O Santo Sudário

Relíquia das mais preciosas da Cristandade, o Santo Sudário nos emociona de modo particular, posto nos oferecer, praticamente, uma fotografia de Nosso Senhor Jesus  Cristo. Certo, ali está retratado o cadáver do Homem-Deus que passou por tormentos inenarráveis antes de morrer, e, portanto, encontra-se em algo desfigurado. Não  devemos imaginar que Jesus tenha sido em vida como O vemos no Sudário. Foi muito parecido com essa figura, ressalvadas as deformações da morte e, sobretudo, de um longo martírio.

Não obstante, podemos nos perguntar qual o alcance de contemplarmos essa Sagrada Face estampada de modo miraculoso no lençol que hoje é venerado em Turim. Sabemos que em todo homem a face é um símbolo da alma. Não raras vezes, uma imagem que oculta a verdade, pois temos o hábito de fazer fisionomias especiais para  encobrir nossos defeitos. Além disso, em virtude do pecado original e das nossas imperfeições morais, essa fisionomia, mesmo não intencionalmente, é ambígua, não exprimindo tudo quanto nos vai no espírito. De modo que uma pessoa menos avisada pode não perceber o autêntico valor da alma refletida no semblante de alguém.

Ora, tal não se verificava em relação a Nosso Senhor Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem. Como Homem, perfeitíssimo, o mais perfeito que jamais houve e haverá. Como Deus, a Perfeição. De sorte que a fisionomia d’Ele era de fato a expressão acabada de sua insondável santidade.

***

Contemplemos o Santo Sudário. Pela proporção entre o tamanho do rosto e o do corpo, percebe-se a grande estatura e a atitude majestosa de Jesus. Na face sagrada, em que permanecem as cicatrizes dos maus tratos recebidos, nota-se a extraordinária semelhança com as imagens existentes em nossas igrejas. A fisionomia, um tanto alongada, estirada, não reflete inteiramente o  normal daquele rosto divino que atraiu o olhar enlevado de multidões.

Aspecto curioso. Quando morreu, Nosso Senhor contava apenas 33 anos, mas para a ótica de homens de hoje Ele parece ali mais maduro, e com facilidade se Lhe daria 45.

Quer dizer, é a manifestação de uma maturidade absoluta, de uma decisão profunda, imensa, de alguém inteiramente cônscio de tudo quanto pensa, e senhor de um juízo  ponderado ao extremo. Homem de uma vontade forte e determinada: Ele sabe tudo quanto quer, Ele quer tudo quanto Lhe convém querer. Transmite-nos uma ideia de ordem completa, de uma varonilidade e um domínio de si perfeitos. Muito acima dessas qualidades, porém, admira-se n’Ele uma sacralidade extraordinária. Não nos é difícil perceber a suma responsabilidade desta figura e a segurança que tem das supremas excelências inerentes ao Verbo Encarnado. Admirando a sagrada fisionomia, vem-nos à  lembrança o episódio do Evangelho em que os algozes se apresentam para prender Nosso Senhor, perguntando se era Jesus Nazareno. E Ele respondeu: “Sou Eu!”. Ao ouvirem o som daquela voz divina, os malfeitores caíram com a face no chão. Tal eram a majestade e a segurança de Jesus.

Essa resposta — “Sou Eu!” — evoca, por sua vez, a definição de si mesmo dada por Deus a Moisés, quando apareceu no meio da sarça ardente. Perguntado pelo líder do povo eleito quem Ele era, Deus disse-lhe: “Eu sou Aquele que é”. Se afirmássemos que essa figura do Sudário se define assim: “Eu sou Aquele que é!”, tomaríamos como adequado e natural, porque ela exprime a posse de todo o absoluto, uma certeza de si por onde se vê que Ele é o padrão e a medida de todas as coisas, que julga como Rei e como Deus  a tudo e a todos, em função de si próprio.

Ao mesmo tempo, entrevemos o que poderia ter de divinamente suave e de afável no olhar desse Homem, assim como o que haveria de supremamente doce na linguagem e  no timbre de sua voz. É a coexistência de todas as virtudes, de todas as perfeições em todos os graus que possam caber na natureza, como reflexo da natureza divina ligada a  Ele pela união hipostática.

De outro lado, é interessante observar a severidade da expressão. Nosso Senhor morreu sob o maior tormento de que há notícia na História. Contemplamos essa fisionomia,  e vemos que Ele se acha como um Juiz diante de seus algozes. Escritos nesse semblante, de modo verdadeiramente divino, estão a rejeição, a censura, o desacordo e a  condenação àqueles que O mataram. Como quem diz: “Eu sou a Lei, sou o Juiz e sou a Vítima! E julgo a esses três títulos o crime que contra Mim foi praticado”. É majestoso! É admirável!

***

O que se destaca no Santo Sudário, no meu entender, é a soma e a conjugação inteiramente harmoniosa de todas as virtudes, semelhantes e opostas, num grau tão elevado  que nem a mente nem o olhar humanos logram alcançar. N’Ele temos, então, a força e a bondade; a mansidão e ao mesmo tempo a cólera divina; a placidez, bem como uma  capacidade de agir, de tomar iniciativas, que ofusca a qualquer um. E assim por diante, poderíamos enumerar todo o rol de virtudes e perfeições de que Nosso Senhor é o  adorável modelo.

Por outro lado, para se compreender tudo o que há de profundo e misterioso na fisionomia deste Varão divino, devemos atentar para o fato de que Ele está repleto das mais  subidas cogitações, nas quais vive de modo permanente e estável; assim como  para o fato de que Ele é a via posta para os homens de todos os séculos: quem se encontra de  acordo com Ele, está certo; em desacordo, está errado.

“As minhas cogitações não são as vossas, e as minhas vias não são as vossas”, disse Ele… E disse também, de si mesmo: “Eu sou o caminho, a verdade, a vida”. Há nisto um mistério que é o próprio do absoluto. Vendo-O, tem-se a impressão de que essa prodigiosa auto segurança se comunica em todo o ser d’Ele, de uma maneira indizível, com a  natureza divina, com a Santíssima Trindade, e que a sua atenção está ao mesmo tempo posta nos segredos de Deus e nas atitudes dos homens, entre os quais Ele vive.

Cogitações e vias que procedem do Céu. N’Ele, tudo é sagrado, santo, perfeito, altíssimo. Se dissermos que é um poderoso monarca, O diminuímos; se grande orador, O  apequenamos. Todos os maiores títulos que possam ser atribuídos a uma pessoa, tornam-se minúsculos em paralelo com esse Homem-Deus. Ele é o Rei dos reis, o Senhor dos senhores. Nunca houve nem haverá filósofo que se Lhe iguale, nem oratória que se assemelhe à sua. Porque ninguém, jamais, debaixo de nenhum ponto de vista, poderá  ser comparado com esse Varão do Santo Sudário.

Plinio Corrêa de Oliveira

São José, esposo de Maria e pai adotivo de Jesus

Eleita pela Santíssima Trindade para ser a Mãe Admirável do Verbo Encarnado, Nossa Senhora é a mais perfeita de todas as meras criaturas. Mesmo se considerássemos,  num só  conjunto, as excelências dos Anjos, dos Santos e dos homens que existiram, existem e existirão até o fim do mundo, não teríamos sequer uma pálida ideia das  celestes perfeições de Maria, que reluziram aos olhos de Deus desde o primeiro instante de sua Imaculada Conceição.

Para cumprir os eternos desígnios da Divina Providência no tocante à Redenção da humanidade, foi preciso que, em determinado momento, essa criatura excelsa contraísse legítimo matrimônio. Assim poderia Ela, sem detrimento de sua reputação, conceber miraculosamente e dar à luz o Filho do Altíssimo.

O único homem à altura de Jesus e Maria

Ora, entre esposo e esposa deve haver certa proporcionalidade: não pode um ser por demais superior ao outro. Era necessário, portanto, surgir um homem que, por seu amor a Deus, por sua justiça, pureza, sabedoria, enfim, por todas as  suas qualidades, estivesse à altura daquela augusta Esposa. Mais ainda. É também conveniente que o pai seja proporcionado ao filho. Por isso, era preciso que esse mesmo  varão, com toda a dignidade, arcasse com a honra de ser o pai adotivo do Verbo feito carne.

E houve um único homem criado para essa sublime missão, um homem cuja alma recebeu do Pai Eterno todos os adornos e predicados que o colocassem inteiramente à  altura de seu chamado. Esse homem, entre todos escolhido por estar na proporção de Nossa Senhora e de Nosso Senhor Jesus Cristo, foi São José.

A ele coube essa glória, esse píncaro inimaginável de ser esposo da Virgem-Mãe e pai legal do Menino Jesus. Como legítimo consorte de Nossa Senhora, possuía São José  plenos direitos sobre o Fruto das imaculadas entranhas d’Ela, embora este Fruto houvesse sido engendrado pelo Espírito Santo. Quer dizer, sem contar a própria maternidade divina, não se pode conceber vocação mais extraordinária! É uma grandeza inconcebível.

Pensemos, por exemplo, nos momentos em que São José trouxe em seus braços o Menino Jesus, ou naqueles em que ele O viu praticar os atos da vida comum na santa casa  de Nazaré, ou ainda nas horas em que O contemplou imerso nos colóquios com o Padre Eterno…

Consideremos quão puros deviam ser seus lábios, e quão insondável a sua humildade para conversar com o Divino Infante, responder às perguntas d’Ele ou Lhe dar um  conselho, quando solicitado. Um simples ser humano, formado e plasmado pelas mãos do Criador, ensinando a Deus!

Pensemos, ainda, no trato repassado de elevação e respeito entre São José e Nossa Senhora, quando Ela se ajoelhava diante dele para o servir. Ele vê aquela Criatura, que é o  Céu dos Céus, inclinada à sua frente, e aceita seus préstimos. Como se tal não bastasse, a Esposa também se aconselha com ele, troca opiniões e acata suas ordens.

Numa palavra, ele era o homem que tinha bastante sabedoria e pureza para governar a Deus e a Virgem Maria. Então se compreende quão inimaginável é a grandeza de São José!

Excelências de príncipe e operário

Para se traçar o verdadeiro perfil moral do chefe da Sagrada Família, seria preciso saber interpretar a Divina Face do Santo Sudário de  Turim e, à maneira de suposição, deduzir algo da personalidade de quem foi o educador daquele semblante que ali está, e o esposo da Mãe d’Ele.

Casado com Aquela que é chamada de o “Espelho da Justiça”, pai adotivo do “Leão de Judá”, São José devia ser um modelo de fisionomia sapiencial, de castidade e de força.

Um homem firme, cheio de inteligência e critério, capaz de tomar conta do Segredo de Deus. Uma alma de fogo, ardente, contemplativa, mas também impregnada de carinho.

Descendia da mais augusta dinastia que já houve no mundo, isto é, a de David. Segundo São Pedro Julião Eymard, Fundador da Congregação dos Padres Sacramentinos, os  judeus reconheciam em São José o homem com direito ao trono real, caso a monarquia legítima fosse restaurada na Terra Santa. Direito este que Nosso Senhor Jesus Cristo herdou de seu pai legal, e por isso foi aclamado como “o filho de David”, quando entrou em Jerusalém. Ou seja, não era um descendente qualquer do Rei Profeta, mas o  primogênito pretendente ao trono. E São José era o varão por meio de quem esta dignidade se transferiu para o próprio Filho de Deus.

Quis a Providência nobilitar a classe operária, fazendo com que o pai adotivo de Jesus fosse também trabalhador manual, exercendo o ofício de carpinteiro. Desse modo, São  José reunia em si os dois extremos da escala social na harmonia interior da santidade e da pessoa dele. Estava no ápice como príncipe da Casa de David, mas era um príncipe empobrecido, que tirava do seu labor artesanal o sustento da Sagrada Família.

Como operário, soube ser humilde e tributar o devido respeito aos que lhe eram superiores. Como príncipe, conhecia também a missão de que estava imbuído, e a cumpriu  de forma magnífica, contribuindo para a preservação, defesa e glorificação terrena de Nosso Senhor Jesus Cristo. Em suas mãos confiara o Padre Eterno esse Tesouro, o  maior que jamais houve e haverá na História do universo! E tais mãos só podiam ser as de um autêntico chefe e dirigente, um homem de grande prudência e de profundo  discernimento, bem como de elevado afeto, para cercar da meiguice adorativa e veneradora necessária o Filho de Deus humanado. Ao mesmo tempo, um homem pronto  para enfrentar, com perspicácia e firmeza, qualquer dificuldade que se lhe apresentasse: fossem as de índole espiritual e interior, fossem as originadas pelas perseguições dos adversários de Nosso Senhor.

O herói da confiança

Consideremos, por exemplo, a tremenda provação que sobre ele se abateu, logo no início de seu matrimônio com Maria Santíssima. No Antigo  Testamento, a maior ventura que podia almejar um judeu era a de ser contado entre os ancestrais do Messias. Em vista disso, a imensa maioria do povo eleito procurava contrair matrimônio e ter filhos, não sendo raro considerar-se a esterilidade como um sinal de desprezo e opróbrio.

Mas, São José, movido pela graça, não quisera se casar, a fim de conservar a virgindade. Levava ele sua tranquila vida de homem casto e puro, quando, inesperadamente,  recebe uma convocação: todos os descendentes diretos de David deviam comparecer diante de uma Virgem chamada Maria, a fim de se poder escolher um marido para Ela.

Obediente, São José se apresenta ao lado de seus parentes, confiando na voz da graça que o fizera abraçar a virgindade. No seu íntimo, alimentava a certeza de que o  escolhido seria outro.

Como naquele tempo se viajava com o apoio de um bordão, todos se apresentaram com o seu. O sacerdote encarregado da cerimônia determinou: aquele em cujo bastão desabrochar uma flor, este será o eleito para se unir a Maria.

São José olha para seu cajado… e nele vê aparecer uma flor! Evanesceram de súbito todos os seus anseios de virgindade. Como será agora? Ele confia. É um milagre que o obriga a se casar com Maria. Entretanto, no fundo de sua alma, quer continuar virgem! Sereno e corajoso, aceita a disposição divina.

Entra em confabulação com a jovem e descobre que Ela também fizera voto de virgindade. A dificuldade parecia estar resolvida: ambos se manteriam intactos. Que  felicidade! Seus anelos permaneciam vivos. Com o passar dos dias, ele percebe a incomparável riqueza de alma dessa Virgem que foi posta no seu lar. Pensa: “Protegê-La-ei magnificamente. Aqui estou para defendê- La no esplendor de sua personalidade contra toda espécie de ataques.”

Em determinado momento, porém, o impensável acontece: ele nota que a Virgem está à espera de um Filho. No espírito de São José se estabelece a perplexidade. Ele não  podia entender o que se passava, depois de tantos milagres… O florescimento do bordão, o encanto com que os dois se comunicaram o recíproco desejo da perpétua  virgindade, a alegria de alma que então sentiram: “É claro! Deus nos colocou no mesmo caminho. Ele prometeu e está cumprindo a promessa!”

Mas, agora, o incompreensível… São José passa por uma inenarrável provação, e Nossa Senhora também, uma vez que Ela percebia em toda a medida o sofrimento de seu  esposo. Angústia tanto mais intensa quanto ele sabia ser impossível uma traição da parte d’Aquela Virgem incomparável. Ora, pela lei judaica, se uma esposa prevaricasse, o  marido tinha a obrigação de expulsá-la do seu lar.

Mas São José tinha a certeza de que Maria não havia cometido nenhum pecado. Não querendo tomar uma atitude injusta em relação a essa Virgem tão santa, e não sendo  capaz de encobrir  aquela situação irremediável, São José resolve deixar despercebido a casa de Nazaré. Antes da longa jornada que o esperava, resolveu descansar para  reparar suas forças. Na madrugada seguinte ele partiria, levando simplesmente seu bordão, um pouco de comida e o fardo de uma grande incógnita, mais pesada que o  Monte Everest: Como se passou isto? Meu Deus, meu Deus…eu confio na vossa promessa!

Apesar da aflição, tinha a alma tão confiante e tão serena que adormeceu. E, ao dormir, sonhou. No sonho teve esta recompensa: Deus lhe comunicou que aquela Criança  formada no claustro virginal de Maria era o  Verbo Encarnado, Filho do Divino Espírito Santo.

Quando São José despertou, a paz reinava na sua alma. E Nossa Senhora, ao ver o semblante luminoso de seu esposo, soube que a provação dele havia cessado. Porque foi  um herói da confiança, São José recebeu a maior e mais extraordinária missão que um homem teve na Terra. Ele era o consorte da Virgem Mãe, d’Aquela que daria à luz o  Homem-Deus e Redentor do mundo. Nisto florescia a promessa de virgindade que lhe fora feita. Tudo se cumprira além do inimaginável.

Cavaleiro-modelo na proteção do Rei dos Reis

Entretanto, as dificuldades não haviam abandonado as sendas pelas quais caminharia São José. Basta recordar, por exemplo, as recusas de que foi objeto nas estalagens de  Belém, quando procurava abrigo para Nossa Senhora, na iminência do nascimento do Menino-Deus. Ou então a fuga para o Egito.

“Fuga para o Egito”… Quatro palavras que a nós, homens do século XX, parecem banais: toma-se um avião e em pouco tempo se vai de Jerusalém ao Egito. Não era assim no  empo em que São José, recebendo o aviso de que o cruel Herodes procurava matar o recém-nascido Rei dos judeus, foi obrigado a tomar a Mãe e o Menino e com eles partir para a terra dos faraós.

Uma viagem incerta, longa, através de desertos onde se ocultavam toda sorte de perigos: das feras famintas aos ladrões e salteadores, capazes de não só roubar e matar,  como também de levar os viajantes em cativeiro, a fim de comercializá-los nos mercados de escravos. E São José, com seu coração de fogo, sua previdência e força varonil, enfrentou todos esses obstáculos, levando Nossa Senhora sobre um burriquinho e, ao colo d’Ela, o Menino Jesus, o Deus que quis ser fraco nos braços e nas mãos do glorioso patriarca.

Costuma-se apreciar e louvar, com justiça, a vocação de Godofredo de Bouillon, o vitorioso guerreiro que, na Primeira Cruzada, comandou as tropas católicas na nascido Rei dos judeus, foi obrigado a tomar a Mãe e o Menino e com eles partir para a terra dos faraós.

Uma viagem incerta, longa, através de desertos onde se ocultavam toda sorte de perigos: das feras famintas aos ladrões e salteadores, capazes de não só roubar e matar, como também de levar os viajantes em cativeiro, a fim de comercializá-los nos mercados de escravos. E São José, com seu coração de fogo, sua previdência e força varonil, enfrentou todos esses obstáculos, levando Nossa Senhora sobre um burriquinho e, ao colo d’Ela, o Menino Jesus, o Deus que quis ser fraco nos braços e nas mãos do glorioso Patriarca.

Costuma-se apreciar e louvar, com justiça, a vocação de Godofredo de Bouillon, o vitorioso guerreiro que, na Primeira Cruzada, comandou as tropas católicas na conquista de Jerusalém. É uma linda proeza! Ele é o cruzado por excelência.

Porém, muito mais do que retomar o Santo Sepulcro é defender o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo! E disso São José foi gloriosamente encarregado, tornando-se o  cavaleiro-modelo na proteção do Rei dos Reis e Senhor  dos Senhores.

Na coorte dos Santos, o primeiro abaixo de Nossa Senhora

Ao lado de todas as glórias que se acumularam sobre ele, São José recebeu, já nesta Terra, um prêmio inestimável: é o patrono da boa morte. Com efeito, dir-se-ia que ele teve um passamento de causar inveja, pois faleceu entre os braços de Nossa Senhora e os de Nosso Senhor, que o  cercaram de todo o carinho e consolação na sua última hora. Não se pode imaginar morte mais perfeita, com Eles ali, fisicamente presentes. De um lado, Nosso Senhor  cumulava seu pai adotivo de graças cada vez maiores, à medida que a alma de São José continuava a se santificar nos derradeiros transes da agonia. De outro, Nossa Senhora lhe sorria com respeito, e procurava aumentar-lhe a confiança:
— Meu esposo! Lembre-se de que tudo se cumprirá.

Coragem! vamos para a frente!

Em determinado momento, São José exala o último suspiro, e o Limbo se abre para a alma dele. Ali ficaria ele até o instante, entre todos bendito, em que a alma santíssima   de Jesus, que morrera crucificado, desceu ao encontro daqueles eleitos, a fim de colocar um jubiloso termo na sua grande espera. Alguns — Adão e Eva, por exemplo — lá se  achavam desde os primórdios da humanidade, aguardando durante milênios o Redentor que os levaria para a eterna bem-aventurança.

E o Messias veio. Podemos bem imaginar que toda a coorte do Limbo se reuniu em torno de São José para receber o Salvador. E que Este, tão logo ali se mostrou, resplandecente de glória, tendo perdoado e redimido o gênero humano, manifestou-se de modo especial a São José, como que exclamando: “Oh! meu pai!”

Era o ápice do cumprimento de todas as promessas, a perfeita realização de um chamado que passou por indizíveis perplexidades e incomparáveis glórias. E São José,  esposo de Maria Virgem, pai adotivo de Jesus, declarado Patrono da Igreja, ocupa no Céu um lugar tão eminente que recebe o culto de proto dulia. Ou seja, abaixo de Nossa  Senhora — a qual merece a devoção de hiperdulia — é ele o primeiro a ser venerado na extensa hierarquia dos Santos.

Grandiosa recompensa à qual fez jus esse varão que praticou em grau elevadíssimo a virtude da confiança.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

São José

Em geral, as pinturas e esculturas que representam a Fuga para o Egito mostram Nossa Senhora montada num burrico, trazendo aos braços, com uma imensidade de carinho, cuidado e respeito, o Menino Jesus. À frente ou ao lado d’Eles, caminha São José.

Sendo o membro mais forte da Sagrada Família, competem-lhe, explicavelmente, os maiores incômodos e cansaços da viagem. Fadiga que o castíssimo esposo de Maria  aceitava com sublime disposição de alma, pois sabia que devia cercar Nossa Senhora de todo o conforto possível: era Ela quem levava o adorável pequeno peso, aquele corpo divino que um dia seria suspenso nos braços implacáveis da Cruz…

Glorioso São José

A primeira das glórias terrenas de São José é a do homem recusado às portas das estalagens de Belém; a de se  refugiar num lugar ermo e ali ver nascer o Filho de Deus; a de ser um homem apagado, o “carpinteiro”, rejeitado por amor à justiça. A glória, exatamente, daquele que, enquanto comovedora prefigura, tomou sobre si as humilhações, a ignomínia, todo o peso do opróbrio que um dia recairiam sobre o divino Redentor.

São José

De todas as gloriosas palavras sobre São José, outras não dizem tanto quanto a simples afirmação de que foi esposo de Nossa Senhora e pai legal de Nosso Senhor Jesus Cristo. Pois Deus, tão magnificiente no predestinar, modelar e cumular de graças a Mãe do Verbo Encarnado, se-lo-ia menos no escolher e formar o homem destinado por Ele a ser esposo dessa Virgem Mãe e pai jurídico desse Filho?

São José, modelo de confiança em meio à perplexidade

“Eis como nasceu Jesus Cristo: Maria, sua mãe, estava desposada com José. Antes de coabitarem, aconteceu que ela concebeu por virtude do Espírito Santo. José, seu esposo, que era homem de bem, não querendo difamá-la, resolveu rejeitá-la secretamente. Enquanto assim pensava, eis que um anjo do Senhor lhe apareceu em sonhos e lhe disse: José, filho de David, não temas receber Maria por esposa, pois o que nela foi concebido vem do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus, porque ele salvará o seu povo de seus pecados. (…) Despertando, José fez como o anjo do Senhor lhe havia mandado e recebeu em sua casa sua esposa” (Mt 1, 18-24).

Como nos mostra Dr. Plinio, nessa passagem do Evangelho transparece uma das eminentes virtudes de São José: sua inabalável confiança na superior vontade de Deus.

 

A grandiosa figura de São José sempre foi exaltada da maneira conveniente ao esposo de Maria Santíssima e pai adotivo de Jesus. Contudo, não será de todo supérfluo ressaltarmos uma faceta dessa luminosa alma, cujo brilho deve atrair de modo especial nossa admiração. Trata-se da heroica confiança por ele manifestada em decisivas ocasiões de sua vida ao lado de Maria e do Homem-Deus.

Voto de castidade e casamento

Como se sabe por fontes não inspiradas — as quais, entretanto, foram incorporadas pela Igreja na sua iconografia e na piedade popular — São José, por uma moção interna da graça, fizera voto de virgindade. Disposição esta que o afastava de uma existência matrimonial.

Ora, algum tempo depois, ele e outros varões da Casa de David são chamados a comparecer diante do Sacerdote a fim de participar da escolha de um esposo para Nossa Senhora. Reza a piedade católica que o eleito seria aquele cujo bastão florescesse miraculosamente. Para a surpresa de São José, em seu cajado brotaram lindos lírios brancos…

Assim, depois de a Providência incutir em sua alma os mais nobres desígnios de castidade perfeita, parece agora contrariá-los, realizando um milagre a fim de mostrar que ele deveria abraçar o casamento. Se nos colocarmos por um instante no lugar de São José, não será difícil compreendermos o dilacerante de tal perplexidade!

Deus estaria permitindo ao demônio ludibriar um desejo de castidade? Não era possível, pois tal anelo acendia na sua alma toda forma de bem. Deus queria seu casamento? Não podia admiti-lo, pois tal ideia, legítima e louvável para qualquer outro, nele determinava o fenecimento de tudo aquilo que o levava para o ideal, para a renúncia, enfim, para o perfeito amor a Deus.

Então, que caminho trilhar diante de duas vozes de Deus, diretamente contraditórias?

Dilaceração cruel. Entretanto, inteiramente submisso à vontade divina, confiando contra toda confiança, ele se dispõe a casar com Nossa Senhora.

Perplexidade das perplexidades

Os dois cônjuges, levados por mútuo desejo de perfeição, revelam um ao outro seu propósito de manter a virgindade perpétua. Imensa alegria, profunda compreensão das duas almas, e o mistério se resolve.

Por pouco tempo. Os meses passam e, num determinado dia, São José percebe que Nossa Senhora está esperando um filho. A dilaceração cruciante se lhe apresenta uma vez mais. Maria era tal que ele não podia duvidar de sua virtude. Mas, o fato era inegável, patente aos olhos de qualquer um. Como explicá-lo? Como não duvidar?

São José não duvidou. Foi embora. Preparou-se para abandonar o lar, pois não lhe ocorria outra solução.

Imagine quem possa a perplexidade na qual ele se abismava…

Mas, tratava-se de um varão tão confiante nos desígnios divinos que, no pináculo do seu drama, decidiu fazer as coisas de modo racional. Uma vez que partiria para uma longa viagem sem destino certo, devia estar bem repousado e munido de suficientes provisões de água e comida. Talvez terá preparado um meio de transporte animal, além de uma série de providências, em que cada coisa era um estrangulamento de sua alma. Mas, um estrangulamento tão pacífico, tão sereno, tão repleto de confiança que adormeceu sobre isso.

É interessante notar que o esposo castíssimo de Maria, embora se encontrasse na perplexidade das perplexidades, entretanto conseguia dormir. E quão mais belo o fato de ele ter dormido do que se permanecesse acordado, pois aquele terá sido dos sonos mais sublimes da História!

Em sonhos, a revelação do anjo

Com efeito, foi durante o repouso que ele recebeu em sonhos a revelação do anjo, anunciando-lhe que o Filho esperado pela Santíssima Virgem era o Verbo encarnado, concebido pelo Espírito Santo nas entranhas virginais de sua esposa.

Dir-se-ia que essa revelação encerrava um fator de certeza menor do que o oferecido a Nossa Senhora durante a Anunciação, uma vez que uma aparição feita em sonho pode não passar de simples sonho. Porém, devemos crer que tal manifestação do Céu tenha sido acompanhada de elementos de persuasão interna, os quais racionalmente não permitiam qualquer dúvida.

Assim, São José se tranquilizou, readquiriu a serenidade, não porque tivesse “tocado” no anjo (o qual, é claro, sendo puro espírito não pode ser apalpado), mas porque aquela explicação era talvez a única possível para o mistério diante do qual se achava. E esse homem de confiança heroica, deve ter feito o seguinte raciocínio: “Embora eu conheça as altíssimas virtudes de Maria, não tive a luz suficiente para imaginar que Ela fosse a Mãe de Deus. Porém, no sonho tudo se explicou, e agora vejo inteiramente confirmado tudo quanto me foi dado contemplar da personalidade d’Ela. Eis-me tranqüilo”.

Então, pode-se dizer ter sido São José mais bem servido pelo fato de o anjo lhe aparecer “em sonhos” e não quando estivesse acordado. Porque, ao raciocinar daquele modo, ele fez um ato de fé extremamente belo e de incomparável louvor a Nossa Senhora.

Encontro com a Santíssima Virgem após a aparição

É-nos dado conjeturar que São José não tenha acordado com a aparição do anjo, mas permaneceu em repouso até a manhã seguinte. Quando despertou, estava todo impregnado pela suavidade e esplendor da revelação recebida.

Como terá sido o primeiro encontro dele com Nossa Senhora depois desse fato?

Quiçá, tivera Ela conhecimento das palavras do anjo a São José e não se surpreendeu quando este se apresentou para Lhe manifestar seu preito de amor e veneração à futura Mãe de Deus.

Ambos se encontravam numa linda composição de situações. Admirando Nossa Senhora, São José pensava: “Eis minha esposa, tabernáculo de meu Deus”, e adorava o Verbo encarnado no seio puríssimo de Maria. Esta, por sua vez, durante a refeição, por exemplo, humildemente lhe perguntava se queria um pouco mais de ensopado…

A partir de então, o que se depreendeu é algo de tanta beleza que ultrapassa nossa pobre capacidade imaginativa.

Em meio às nossas incertezas, apelo a São José

Recordo, ainda, outra perplexidade à qual São José, em companhia de Nossa Senhora, viu-se exposto: a perda do Menino Jesus em Jerusalém.

São Lucas nos descreve o episódio, e da narração evangélica se conclui que Jesus não quis participar aos seus pais a decisão de permanecer na Cidade Santa. Resultado, Nossa Senhora e São José, aflitos, passaram três dias à procura do Menino, e finalmente o encontram no Templo, sentado no meio dos doutores, ouvindo-os e interrogando-os.

Considere-se o contraste dessa situação. Maria e José estavam no auge do abatimento quando entraram no Templo e acharam Jesus. Este, já com o uso da sua inteligência, discutindo com os sábios, causando assombro e admiração ao seu redor. Nossa Senhora e São José O viram e a angústia se transformou em alegria, em júbilo. Tanto mais que ambos estavam certos da inocência e da retidão do Homem-Deus, o qual teria tomado aquela atitude movido por altos desígnios.

Mas a perplexidade floresce na pergunta: “Filho, por que fizestes assim conosco?”

Uma indagação sem desconfiança, de quem deseja ser ensinado por Jesus. São José sofreu com aquela provação, assim como Nossa Senhora, porém manteve a confiança inabalável nas superiores disposições de Deus.

Creio não haver melhor modo de encerrar essas considerações senão recomendando que, em nossas dúvidas e perplexidades, quando nos sentirmos abalados na virtude da confiança, apelemos a São José, perfeito modelo de homem que soube confiar em meio às maiores provações.

Plinio Corrêa de Oliveira

Nobreza e lógica de São José

Amor à hierarquia e espírito lógico são características fundamentais do contrarrevolucionário. Dr. Plinio analisa as razões pelas quais São José pode e deve ser cultuado enquanto nobre, e louva a lógica, levada até o heroísmo, do Patrono da Santa Igreja.

 

O texto que pretendo comentar é tirado do capítulo VII do livro “Suma dos dons de São José”, do Padre Isidoro de Isolano, dominicano do século XVI, um dos primeiros teólogos católicos a atacar Lutero. É de longe o mais importante Doutor da Teologia sobre São José. Esta ficha parece conter dados muito interessantes a respeito deste Santo e o espírito da Contra-Revolução.

Carpinteiro e príncipe da Casa de Davi

Não está muito conforme com os mistérios das Sagradas Letras essa nobreza de sangue tão louvada em São José.

Aqui o autor cuida de São José enquanto nobre de sangue. Ele era, ao mesmo tempo, trabalhador manual, carpinteiro e, como tal, pertencente — ao menos do ponto de vista econômico — à camada mais modesta da sociedade. Mas, de outro lado, descendia do Rei Davi e de toda uma linhagem de reis de Israel.

A Casa de Davi decaiu e, com o tempo, perdeu o trono e afastou-se do poder. Seus membros continuaram a morar em Israel, mas essa Casa era cada vez menos influente, menos poderosa e menos rica. A tal ponto que quando, afinal, da raça de Davi nasceu Aquele que, na intenção de Deus, era a razão de ser da raça, Nosso Senhor Jesus Cristo — a esperança e a alegria de todo o povo, e que deveria ser um filho de Davi —, a Casa de Davi estava no auge de sua decadência.

E São José era um trabalhador manual, um mero carpinteiro. É bem verdade que, nessas sociedades muito rudimentares, as classes sociais e econômicas não se diferenciam de um modo absolutamente tão nítido quanto nas sociedades mais desenvolvidas; e nem sempre é um sinal de muita decadência econômica o fato de a pessoa ter pertencido a uma grande família e passar a exercer um trabalho manual.

Conheço zonas do interior do Brasil, por exemplo, em que das grandes famílias do lugar há gente que é, por exemplo, chauffeur de praça, carregador da estação, ou algo análogo, mas que se casa com ramos mais ricos da família e, depois, ascende novamente na escala social.

Portanto, essa situação de São José não queria dizer necessariamente tanta prostração quanto seria a de um descendente de reis que chegasse a ser, hoje em dia, trabalhador manual. Mas ao menos se pode afirmar que era, na ordem econômica das coisas, o mínimo que uma pessoa pode ser.

Então, São José pode e deve ser cultuado enquanto operário, mas também enquanto príncipe da Casa de Davi. É por essa razão que, falando a respeito dele, o Papa Leão XIII, um dos Pontífices que mais inculcaram a devoção a São José, disse taxativamente que este Santo deve ser cultuado não só como modelo do príncipe, mas também como o modelo, o ânimo, o estímulo de todos aqueles que pertencessem a grandes linhagens decadentes; para que essas pessoas compreendam como, pela virtude, pela fidelidade a Deus, podem erguer-se ao mais alto grau da santidade e realizar esplendidamente os desígnios da Providência sobre elas.

Argumentação tomista

O Padre Isidoro de Isolano está analisando, precisamente nesse capítulo, São José enquanto aristocrata. Então, escreve ele: São José foi eleito para conhecer a verdade do Verbo de Deus. São Paulo disse: “Não há, entre vós, muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos nobres. Antes escolheu Deus a estultice do mundo para confundir os sábios, e a fraqueza para confundir os fortes” (1Cor 1, 27). Logo, não se deve louvar a nobreza de São José, escolhido por Deus.

Percebe-se que o autor adota o método de São Tomás de Aquino. Ao tratar desse tema, o Doutor Angélico perguntaria, por exemplo: “Deve ser São José louvado também enquanto nobre?”

Então ele daria, em primeiro lugar, as razões pelas quais parece que não deve. Citaria um, dois, três argumentos negativos. Depois apresentaria os argumentos positivos, como quem faz um cálculo de conta corrente: tem o débito e depois o crédito. Por fim, tira a conclusão: Se tais são os argumentos pró e tais os contra, como responder? Então ele refuta os argumentos da tese que ele quer refutar, faz alguma grande citação em abono da ideia dele — sobretudo citações da Sagrada Escritura — e depois tira a conclusão. É o método lógico perfeito.

Nota-se, então, que o Padre Isidoro adota esse mesmo processo. Começa por dar os motivos pelos quais não se deve louvar a nobreza de São José. E aqui está uma razão tirada de São Paulo que, dirigindo-se aos primeiros católicos, diz: “Entre vós não há muitos que sejam cultos, nem nobres, nem poderosos de acordo com o mundo. Mas desde que sirvam a Deus, isso basta.” Então, daí se tira um argumento contra a nobreza, a cultura, o poder, que são coisas sem importância e não devem ser louvadas. É o primeiro argumento, que depois ele vai rebater. E continua:

Isso mesmo se confirma com a autoridade da Glosa sobre essas palavras do Apóstolo: “O Deus humilde veio a buscar os humildes e não os poderosos, entre os quais são considerados os nobres pelos mortais.”

Esgrima da inteligência

No século XVI os nobres eram considerados poderosos. Na reviravolta das coisas de hoje, um diretor de sindicato é, o mais das vezes, mais poderoso do que um duque. Então, ele diz: “Se é verdade que Nosso Senhor Jesus Cristo, ao encarnar-Se, não veio procurar os poderosos — os nobres, portanto —, não há importância em ser nobre. Logo, não se deve louvar São José enquanto nobre.”

E passa adiante:

A humildade de Deus foi extrema na Encarnação. Mais humilhação era escolher um pai putativo pobre do que um nobre. Logo, não deve elevar-se a nobreza de São José. A argumentação está muito bem desenvolvida. Nosso Senhor Jesus Cristo veio para Se humilhar. Por isso escolheu um pobre como pai putativo, isto é, a quem se atribui a paternidade, mas que não era o verdadeiro pai. Então, não tem importância que esse pobre seja nobre. Nosso Senhor também não olhou para isso, mas apenas para o lado da pobreza. Portanto, ser nobre não vale nada.

Continua o autor: A nobreza não parece ser outra coisa senão a antiguidade das riquezas, como disse Aristóteles. E José, pobre até o ponto de ter que exercer o ofício de carpinteiro para ganhar o pão de cada dia, não podia gabar-se de ser nobre.

O argumento também é interessante. Diz ele que, segundo Aristóteles, a verdadeira nobreza é ter uma fortuna muito antiga. Quem tem uma fortuna que passou por várias gerações, esse ficou nobre. Ora, São José não tinha nenhuma fortuna e, portanto, já não era nobre. Logo, não era o caso de louvar a nobreza dele.

Esses argumentos parecem-me muito bem feitos, o autor sabia objetar bem. Deve fazer parte da destreza do nosso espírito que apreciemos esse florete da argumentação, gostemos de ver argumentos feitos ainda que sejam contra nossas teses para, depois, dar a nossa resposta. É como uma esgrima. Muito mais alta e mais bela do que a esgrima da espada é a esgrima da inteligência. Aqui estão quatro estocadas bem desferidas contra nós. Vamos ver, agora, como o nosso bom padre responde a essas estocadas.

Descendente de rei, de sacerdote e de profeta

Para solucionar essa dificuldade, tenha-se em conta que a nobreza humana pode considerar-se em sua causa, em sua essência e em sua ação.

Está muito bem lançado! Para responder, começar por ver o que é a nobreza, para depois desencaixar daí os argumentos contrários. E, para saber o que é a nobreza, ela deve ser considerada em sua causa, em sua essência e em suas ações, ou seja, no que a causou, no que ela é e no que ela causa. Está perfeito. Não falta nada!

Considerando-a em sua causa, é a nobreza de origem, no que foi singularíssimo São José, pois tem sua origem numa tríplice dignidade: corporal, espiritual e celeste. Ou seja, uma dignidade real, sacerdotal e profética, que é celestial, pois predizer o futuro é só de Deus. Davi foi rei, Abraão foi patriarca, Natã, profeta, e os três foram antepassados de São José.

Ao analisar a causa da nobreza de São José, o Padre Isidoro explica que ele descende de varões dignos a três títulos diferentes: segundo o corpo, por ser descendente de rei; conforme o espírito, por descender de estirpe sacerdotal; segundo as coisas sobrenaturais, porque era descendente de profeta.

Ora, descender de rei, de profeta e de sacerdote confere a mais alta nobreza que uma pessoa possa ter. É esplendidamente bem argumentado.

Que relação há entre rei e corpo? O rei é o chefe do Estado. O Estado cuida, entre os homens, daquilo que diz respeito ao corpo.

O sacerdote faz para a alma o que o Estado realiza para o corpo. Ele cuida das coisas da alma, do espírito.

O profeta é o representante de Deus, o porta-voz da palavra do Altíssimo. Sobretudo quando se trata do profetismo oficial, de um homem mandado por Deus e cuja missão era garantida com milagres, e que falava oficialmente em nome do Criador, como o embaixador fala oficialmente em nome de seu rei. Evidentemente isso é uma altíssima situação, uma altíssima missão.

São José tinha, portanto, as três causas mais altas de nobreza, representativas de três aspectos da vida do homem: o aspecto material, o espiritual e a representação de Deus. É muito bem tratado, superiormente inteligente.

Vejamos agora o que ele diz sobre a essência.

Varão justo, esposo da Rainha do Céu e pai nutrício de Jesus

São José era nobre em sua essência, quer dizer, na sua própria pessoa, porque encontramos nela tríplice nobreza: ele foi justo em sua alma, alcançou a dignidade de esposo da Rainha do Céu e teve ofício de pai nutrício do Filho de Deus.

Consideremos que aquele fotógrafo, Antony Armstrong-Jones, que se casou com a Princesa Margaret, irmã da Rainha Elizabeth da Inglaterra, antes do casamento foi elevado à dignidade de Conde de Snowdon, porque para se casar com a irmã da Rainha tem que ser nobre.

Mas que pouca coisa é ser casado com a irmã da rainha, em comparação de ser esposo da Mãe de Deus! Se isso não constitui nobreza, e se o homem que se casou com a Mãe de Deus não é nobre, então não há nobreza na Terra! O estado dele é, por definição, nobiliárquico.

Nossa Senhora é Rainha do Céu e da Terra, não por uma alegoria, uma imagem, mas Ela o é efetiva e autenticamente. Se a Rainha Elizabeth fosse católica e reconhecesse, portanto, a realeza da Santíssima Virgem, ela, aparecendo diante de Nossa Senhora, teria que se ajoelhar e colocar a coroa dela aos pés da Mãe de Deus. Porque onde Nossa Senhora está ninguém é rei, ninguém é rainha. Somente Ela é a Rainha e tem todo o poder. Os reis e as rainhas não são senão os representantes d’Ela. Nossa Senhora é que manda, porque todo o poder que Deus tem sobre o universo, Ele deu a Ela. Maria Santíssima é a Rainha de todo o universo. Ora, aquele que se casa com a Rainha de todo o universo é nobre, evidentemente.

Notem a coisa interessante: antes de mencionar a nobreza de São José como fidalgo casado com Nossa Senhora, o autor refere a nobreza de São José porque ele era justo, um varão virtuoso que vivia na graça de Deus.

Temos aí uma tese muito interessante em matéria de nobreza. Aos olhos dos homens, um nobre pode valer mais do que um plebeu, porque não está escrito na fronte de ninguém se ele está ou não na graça divina. Mas, aos olhos de Deus, o plebeu em estado de graça vale incomparavelmente mais do que o nobre que esteja em estado de pecado. Quer dizer, o primeiro foro de nobreza é a graça de Deus. É uma coisa evidente.

De tal maneira que no Reino de Maria, se houver uma nobreza, sou da opinião de que os nobres que vivam oficial e publicamente em estado de pecado percam a nobreza. Mas, depois, o Padre Isidoro diz bem: São José não foi apenas o esposo de Nossa Senhora, mas também o pai nutrício do Menino Jesus. Ora, ser o pai nutrício do Filho de Deus é a mais alta honra a que um homem possa chegar, depois da honra de ser a Mãe do Filho de Deus, que é, evidentemente, maior.

Mais do que governar todos os reinos e impérios do mundo

Também em suas obras ele deu provas, ao mundo inteiro, de uma singular nobreza, pois recebeu em sua casa o Salvador do mundo, conduziu-O são e salvo através de vários países, serviu-O e alimentou-O durante muitos anos com seus trabalhos e seus suores.

Quer dizer, ele não só foi nobre porque se casou com Nossa Senhora, mas porque Deus o investiu na mais alta função de governo que possa haver na Terra, abaixo de Maria Santíssima. Exercer uma alta função de governo, de acordo com os conceitos da sociedade tradicional daquele tempo, nobilitava, conferia nobreza. Ora, ser o pai do Menino Jesus, governá-Lo, bem como a Nossa Senhora, é mais do que governar todos os reinos e impérios do mundo. Isso não lhe veio só do casamento; Deus o escolheu para essa tarefa. Compreende-se a nobreza excelsa que lhe vinha disso, evidentemente.

Esses são os novos raios que emite a nobreza do santíssimo José, tornando-a mais resplandecente que o mesmo Sol.

Seguindo, como dissemos, o método de São Tomás, o Padre Isidoro deu os argumentos contra a tese que ele ia sustentar; depois defendeu a tese e apresentou os raciocínios a favor dela. Agora ele vai destruir os argumentos contrários à tese por ele sustentada.

A humildade é o melhor ornamento da nobreza

Respondendo à primeira dificuldade: São Paulo se refere aos pregadores que levariam a Fé ao mundo, que deviam ser de origem humilde e simples, para que não se atribuísse ao seu poder e sabedoria a dignidade das maravilhas que obrava a graça de Deus, mediante o ministério deles; restando daí glória à Cruz de Cristo. Por isso lhes disse a Glosa: se não houvesse um honrado pescador, teríamos poucos pregadores humildes.

O pensamento é o seguinte: era natural que entre os primeiros católicos houvesse poucos nobres, e daí não se tira nenhum argumento contra a nobreza. Porque se entre os primeiros católicos existissem muitos nobres, muitos poderosos, muitos ricos, dir-se-ia que o Evangelho conquistou toda a Terra por causa do prestígio desses homens. Ora, não foi isso. Não houve nem nobres, nem sábios, nem poderosos, nem ricos. Foram homens simples que conquistaram. Donde o milagre fica patente. E não é porque a Providência não gostasse da nobreza, ou não lhe desse valor, mas foi para glorificar mais especialmente a Deus que foram escolhidos homens de uma condição modesta para esse primeiro passo. Está muito bem argumentado.

Agora, outra razão: Mas não era apropriado que o Rei dos reis convivesse na intimidade com quem não era nobre nem de espírito nem de sangue. Não era razoável que Aquele a Quem servem milhões de Anjos, escolhesse por pai a quem não fosse nobre de linhagem; nem tampouco que a Virgem escolhida por Mãe, a Quem admiram os moradores da Jerusalém celeste, fosse desposada por um homem de origem plebeia.

[…]

…sabemos que a humildade não é incompatível com a nobreza, mas que, pelo contrário, é o seu melhor ornamento; pois, quanto maior é uma pessoa, tanto mais deve humilhar-se em tudo. Deus ama singularmente os humildes. Assim disse a Santíssima Virgem: “Porque Ele olhou a humildade de sua serva, por isso todas as gerações me chamarão bem-aventurada” (Lc 1,48).

Tanto é verdade que a grandeza e a humildade não se excluem, que em Nosso Senhor tiveram uma aliança admirável.

O Magnificat

Foi [Nosso Senhor] pobre em bens de fortuna, mas não na excelência de sua Pessoa, que é o verdadeiro fundamento da nobreza.

Está muito bem argumentado. De fato, Deus ama eminentemente a humildade, porém esta não é uma virtude exclusiva dos plebeus; é também dos nobres, pois é a virtude dos grandes e dos pequenos.

A humildade é a verdade. É humilde aquele que, olhando para si, reconhece a verdade a seu respeito, contenta-se com o que é, não quer ser mais nem menos, porque Deus Nosso Senhor, que manda nele, o colocou na posição que ele tem. Por isso uma pessoa pode ser muito humilde, embora seja de altíssima categoria.

O autor cita exatamente as palavras do Magnificat. Porque olhou a humildade de Nossa Senhora, todas as gerações A chamarão bem-aventurada. Quer dizer, colocou-A no ápice porque era humilde, tinha a respeito de Si uma ideia perfeitamente precisa. Se a grandeza fosse incompatível com a humildade, colocando Nossa Senhora em tal excelsitude, Deus Nosso Senhor A teria impedido de ser humilde. Ora, Ela foi humilde até o fim da vida, sendo a maior das meras criaturas. Logo, entre grandeza e humildade não há incompatibilidade. É um argumento que não permite resposta. É perfeito.

Formas de grandeza de Nosso Senhor Jesus Cristo

Terceiro argumento:

Constatamos que a Encarnação revelou a suprema humildade de Deus:
1º- O revestir-Se da carne humana. “Ele Se aniquilou, tomando a forma de servo” (Fl 2,7).
2º- Por sua humilde vida. “Aprendei de Mim, que sou manso e humilde de coração” (Mt 11,29).
3º- Pelas terríveis dores de sua Paixão. “Olhai e vede se há dor comparável à minha dor” (Lm 1,12).

Contudo, nem sempre apareceu no exterior com a mesma humildade; mas, pelo contrário, mostrava sua grandeza quando convinha. Assim vemos que Ele ensinou com autoridade, fez milagres e ressuscitou vitorioso dentre os mortos.

Também está muito bem argumentado. Afirma o autor: tanto é verdade que a grandeza e a humildade não se excluem, que em Nosso Senhor tiveram uma aliança admirável. Ninguém na vida foi mais humilde do que Nosso Senhor Jesus Cristo, mas ninguém teve grandeza maior do que a d’Ele.

E ele indica três formas da grandeza do Redentor. O ensinamento de Nosso Senhor; ensinar é um atributo da grandeza. Mostra, de outro lado, o seu poder de fazer milagres, a ponto de ressuscitar mortos; é manifestar uma grandeza que ninguém tem. Quando qualquer potentado da Terra, no auge de seu poder, ressuscitou um morto? Só Deus o pode fazer. Mas, terceiro, ressuscitou-Se a Si próprio, o que é um milagre ainda muito maior. Porque, estando morto, ressuscitar-Se a Si próprio é uma grandeza que desafia qualquer palavra. Então, Aquele que foi o mais humilde de todos foi o maior; logo, a humildade não é incompatível com a grandeza. Não há o que dizer! Está perfeitamente respondido.

Mais ainda: a humilhação de Deus na Encarnação não teria sido maior por escolher um pai de origem humilde; foi extrema a humilhação e nada poderia acrescentar-se à humildade que supõe revestir a divindade da natureza humana.

Ele quer dizer o seguinte: falar que Nosso Senhor Se humilhou muito, sendo filho de operário, é uma coisa inteiramente secundária. A humilhação verdadeira d’Ele, sendo Filho de Deus, foi consentir em ficar homem. Diante disso o resto é inteiramente secundário.

Nobreza “en sommeil”

Por último, foi pobre em bens de fortuna, mas não na excelência de sua Pessoa, que é o verdadeiro fundamento da nobreza, como já foi declarado. Além disso, ele careceu do supérfluo, mas não do necessário. Nem tampouco se opõe à nobreza o ganhar o pão com o suor de sua fronte, pois o trabalho evita a degradação, e ninguém pode glorificar-se da nobreza se não souber cobrir suas necessidades com o trabalho de suas mãos. A natureza, que dá essa nobreza aos homens, aborrece a ociosidade, combatendo-a com todas as suas forças. E assim dizia Aristóteles: “Todo o que trabalha ordena sua operação ao obrar”. O trabalho tem a si mesmo por seu próprio efeito; e também Deus e a natureza nada fazem inutilmente.

O princípio que o autor desenvolve aqui é muito interessante. Ele diz que o trabalhar com as próprias mãos de si não destrói a nobreza, porque não há uma incompatibilidade radical da nobreza com o trabalho manual; este não é uma vergonha, não é um pecado. Um nobre pode estar reduzido à condição de trabalhador manual e, com isso, não perde a sua nobreza. Ele pode readquirir, de futuro, a sua posição, porque não fez uma ação vexatória, criminosa. São José foi assim. O que ele fez com seu trabalho manual foi tudo quanto havia de mais nobre e de mais alto e, por causa disso, não se pode dizer que ele tenha desmerecido a nobreza de seus antepassados, trabalhando manualmente.

Certa ocasião li um livro sobre a nobreza no qual o autor mostrava que, em determinadas regiões da Europa, havia essa delicadeza de alma: quando um homem de uma família nobre perdia a fortuna e era obrigado a trabalhar com suas próprias mãos, não se afirmava que ele tinha perdido a nobreza, dizia-se que sua nobreza estava “en sommeil” — a expressão é muito bonita: em estado de sono —, e que ela despertaria no dia em que suas condições materiais lhe permitissem viver no estado nobre. É um infortúnio, ele ficou pobre, está trabalhando, mas não está fazendo nada degradante.

É verdade que para um homem que se tornou, por exemplo, copeiro não é próprio dizer para ele: “Alteza, traga-me um copo d’água!” A nobreza dele entrou num estado de sono; ela está como que dormindo dentro dele. Mas, as circunstâncias melhorando, a nobreza dele refloresce.

O Padre Isidoro de Isolano aplica isso à nobreza de São José. Perfeitamente bem pensado, bem concluído, bem articulado.

Alegria proporcionada pelo raciocínio

Enquanto eu desenvolvia o pensamento desse sacerdote a respeito de São José, notei como as expressões fisionômicas dos ouvintes indicavam adesão e satisfação, não apenas pela tese sustentada por ele, mas também por verem a agilidade de sua argumentação.

Permitam-me, nesta reunião um pouco mais íntima, tratar de algo à margem do tema.

Aqueles que sentiram algum contentamento em ouvir a argumentação desse padre tiveram um prazer por onde se esqueceram, por alguns instantes, das preocupações e dos aborrecimentos da vida de todos os dias; experimentaram certa serenidade, certa tranquilidade.

Façamos uma comparação entre a alegria que dá a torcida e a proporcionada pelo raciocínio, com essa serenidade da alma, quando o homem está no estado de repouso, de distensão, e acompanha o passo majestoso e cadenciado dos argumentos que se seguem uns aos outros como uma bonita parada; em que ele aprecia o gume de cada arma da lógica, e tem esse prazer soberano de ver a arma da lógica entrar no corpo, na carnatura do erro e fender.

O argumento que, como o bisturi de um médico excelente, entra e talha, corta o tumor e o organismo respira satisfeito. Magnífico! O mal ficou inutilizado, prostrado, arrasado.

Assim faz a lógica clara, precisa, elegante, que como um Anjo dardeja um raio sobre o erro e o liquida. Vemos o erro ser apresentado com todos os seus enfeites, mas depois surge a lógica e o joga ao chão com uma sapecada certa, um golpe certeiro.

Esse elogio da lógica seja feito em homenagem a São José, tão lógico, tão coerente, que levou a lógica ao verdadeiro heroísmo durante a sua vida.

Uma calma que só os homens lógicos possuem

Qual foi um lance da vida de São José em que ele levou a lógica até o heroísmo? Foi aquele episódio muito conhecido, quando ele viu que Nossa Senhora tinha concebido um filho do qual ele não era pai. O Evangelho trata disso. Então, ele ficou colocado diante de uma situação absurda. Maria era evidentemente santa, e ele não podia disso duvidar, porque a santidade d’Ela reluzia de todos os modos possíveis; de outro lado, estava criada uma situação que ele não conhecia, mas com a qual ele não podia conviver.

Ao invés de denunciá-La, como mandava a lei hebraica, ele saiu com a única solução lógica: “Quem está demais nessa casa, não é essa Mãe, que é a dona e rainha desse lar; nem o filho que Ela concebeu. Alguém está demais, mas esse alguém sou eu. Vou abandonar a casa e sumir; porque não compreendo esse mistério, mas contra ele não me levantarei. Passarei meus dias longe, venerando o mistério que não entendi.”

Resolveu, então, fugir da casa, deixando Nossa Senhora com o fruto de suas entranhas. Ele tinha que abandonar o maior tesouro da Terra, a Virgem Maria, o que para ele representava um sofrimento inenarrável, inimaginável.

O Evangelho nos conta que ele estava dormindo quando apareceu um Anjo e lhe deu a explicação. Quer dizer, antes desse lance tremendo, São José dormia. Ele ia viajar e tinha que se preparar por meio do repouso para essa viagem. E foi durante o sono que o Anjo veio e lhe explicou tudo. Ele continuou a dormir. Vejam a calma dele! Essa calma só os homens lógicos têm. De manhã, acordou e a vida continuou normalmente. Suma normalidade, suma coerência, suma lógica!

Em louvor dessa lógica de São José, fica este rápido comentário.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/3/1976)

PASSIO CHRISTI, CONFORTA ME

Em outubro de 1944, Dr. Plinio começou a comentar, em sua coluna do “Legionário”, o plano pastoral do novo Arcebispo de São Paulo, destacando como dos mais  importantes o tópico sobre a caridade.

“Atrair todos os elementos supracitados do Clero e da Ação Católica para a obra social e multifária da caridade cristã, em socorro de todas as necessidades físicas ou morais do nosso próximo, sem distinção de cor, de raça, de nacionalidade ou de classes”. É este um dos itens mais importantes do plano de ação do novo Arcebispo de São Paulo.

Humildade e altivez cristãs

“Socorro das necessidades físicas ou espirituais”: é bem este o conceito das obras de misericórdia que Nosso Senhor ensinou ao mundo, e que a Santa Igreja vem realizando  ininterruptamente através dos séculos. Todo o espírito da Igreja é feito de contrastes fecundos que se resolvem em uma divina harmonia. Durante a Idade Média, viajava  pela Europa um potentado muçulmano, feito prisioneiro pelos guerreiros feudais, defensores da Fé. Encontraram-no um dia muito pensativo, e aos que lhe indagaram o  motivo, respondeu: “Não posso  compreender como constroem monumentos tão altivos, esses homens tão humildes”.

Almas humildes, construtoras de obras divinamente altivas, eis bem genuinamente representadas nesse traço as almas resgatadas pelo Precioso Sangue de Nosso Senhor  Jesus Cristo. Aparentemente, entre a humildade e a altivez, há uma contradição. O mundo pagão não compreendia essa contradição, e uma das acusações que os romanos  faziam aos mártires era precisamente que sua Religião glorificava a baixeza. Eles não sabiam que admirável sementeira de almas altivas eram aquelas escuras e misteriosas  catacumbas, em que patrícios e escravos, grandes e pequenos, se confundiam em torno dos altares, aprendendo de Jesus Cristo o segredo da humildade e da altivez de que Ele nos deu em sua vida terrena tão adoráveis exemplos.

“Christianus alter Christus” (o cristão é um outro Cristo), e a humildade do cristão, ou a altivez do cristão, não é senão um reflexo da altivez e da humildade de Nosso Senhor  Jesus Cristo.

Doçura e combatividade

Outro contraste que o mundo não compreende, e que entretanto é tão harmônico e fecundo quanto o da altivez e da humildade do verdadeiro cristão, é o da doçura e da combatividade. Se o árabe de que falamos  observasse a vida dos Santos, esbarraria por certo neste mistério, e diria deles: “Não posso     compreender como almas tão pacíficas são tão belicosas, como almas tão belicosas podem ser tão pacíficas”. É que no catolicismo tudo é amor, e mesmo quando, por  necessidade, e imitando a Nosso Senhor, alguém empunha o látego que há de fustigar os erros do século, fá-lo por amor. Fá-lo por amor, e fá-lo com amor.

A combatividade  cristã tem o sentido exclusivo de legítima defesa. Não há para ela outra possibilidade de ser legítima. É sempre o   amor de alguma coisa ofendida que move o cristão ao  combate. Todo combate é tanto mais vigoroso quanto mais alto for o amor com que se combate.

E, por isso mesmo, não há, no católico, combatividade maior do que aquela com que ele luta pela defesa da Igreja ultrajada, negada, calcada aos pés. Por que combate ele?  Para defender os direitos das almas que se quer arrancar à Igreja. Para manter livres e desobstruídas as portas de acesso que devem permitir aos eleitos de Deus a    aproximação de sua Igreja. Para abater a insolência da impiedade, e para exaltar a Santa Madre Igreja.

Para essas coisas é que se deve bater o católico. E, quando esgotados um a um, pacientemente, irremediavelmente, todos os meios pacíficos, o católico se ergue com o valor de um novo Macabeu, incendido em zelo pela Esposa de Cristo, ele bem pode dizer que em toda a sua combatividade só há uma coisa: amor.

Abandonemos esse quadro e, em vez de olharmos para o guerreiro cristão, olhemos para a irmã de caridade. Ela que docemente se aproxima do leito em que agoniza um doente repugnante. É para ela um desconhecido, em que ela vê, entretanto, um membro do Corpo Místico de Cristo, que é a Santa Igreja Católica.

E, por isso, aproxima-se dele cheia de sobrenatural ternura, desata os panos que ocultam a hediondez de suas chagas e recebe em pleno rosto, mais forte do que nunca, o  odor terrível das carnes em putrefação. No rosto da irmã de caridade a impassibilidade é completa. Ela olha para as chagas como se fossem pérolas, respira o odor da  podridão como se fosse um perfume.

Sabe Deus que terríveis repugnâncias ela está esmagando em seu interior, e que luta tenaz, violenta, titânica ela tem de desenvolver para não abandonar o lugar de sacrifício em que Nosso Senhor Jesus Cristo a quer! Quanto amor! dirão os que atentarem apenas para a placidez de seu semblante e de seus gestos. Quanta combatividade! dirão os que forem mais penetrantes e desvendarem o tumulto da luta interior diante da qual a Religião não cede. Quanto amor nessa combatividade! Quanta combatividade nesse amor!

Combatividade e amor, se o mundo contemporâneo pudesse compreender como se harmonizam essas virtudes, como é preciso amar até o que se combate… e combater com as duas mãos até o que, por vezes, se ama ternamente por mais de um título justo, como estaria diversa a face da terra!

É para as santas pugnas da caridade cristã, pugnas interiores que aumentem em nós os mananciais de amor, pugnas exteriores, vitórias tanto mais jubilosas quanto mais  pacíficas, porque Cristo é o Rei da Paz, mas em todo caso vitórias que não desdouram com a energia e não perdem seu lustre se a luta aberta tiver sido o único meio para as  conseguir — é para as santas pugnas da caridade cristã que nosso Arcebispo nos conclama.

Olhando de longe para seu rebanho espiritual, Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Mota tem palavras de ternura e compaixão que são um eco da exclamação divina:  “Misereor  super turbam” — tenho pena desta multidão. E com que razão! Pio XII, na alocução magistral que recentemente publicamos, diz que é preciso ter um heroísmo   comparável ao dos mártires, para praticar com fidelidade e esmero a Religião em nossos dias. Assim, pois, as grandes cidades modernas são verdadeiros lugares de luta e  tormenta para os “christifideles” (fiéis cristãos) de nossos dias.

No luxo dos salões aristocráticos, no conforto dos ambientes burgueses, na calma das classes pequeno-burguesas, na simplicidade das camadas operárias, na crua indigência  das classes pobres, em tudo isso se ocultam hoje terríveis tentações, cuja vitória custa e custa muito, custa sofrimento espiritual que é o sangue de alma. É preciso correr,  voar em auxílio dessas almas que sofrem para se manterem fiéis a Nosso Senhor ou para se aproximarem d’Ele. Toda demora é uma derrota, nesta tarefa, e toda negligência um crime. Por isso, Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Mota conclama uma verdadeira cruzada para a salvação de tantas almas aflitas em nossos dias.

Socorrer sobretudo os inocentes que sofrem

Mas isso não basta. Não basta fazer aceitar às almas o jugo duro e suave da moral cristã. É preciso ainda consolar os que sofrem  misérias físicas de toda a ordem.

Para que relembrar o quadro doloroso que temos sempre diante dos olhos, os hospitais repletos que rejeitam doentes por falta de espaço, as pessoas doentes que definham por falta de dinheiro para a aquisição de remédios caríssimos, as pessoas sãs que vão imergindo lentamente no estado de doença por excesso de trabalho, necessário para a manutenção da família, ou por falta de alimentação?

Por que relembrar com terror as inúmeras pessoas que, sem Fé nem horizontes  espirituais, arrastam na sombra de suas casas ou premidas nas paredes dos hospitais uma vida de desespero e de revolta? Tudo isso corta por demais o coração, e tudo isso ainda não é tudo. Existe o problema da infância, da infância inocente, da infância promissora, da infância que o ambiente deletério das grandes cidades torna tão cedo miserável e pecadora.

Como bem acentua nosso novo Arcebispo, muito já se tem feito entre nós nesse sentido. A Cidade dos Menores da Liga das Senhoras Católicas é simplesmente uma  maravilha. Mas… quanto ainda há por fazer! E se de todos temos pena, que especialíssimo lugar ocupa em nosso coração a infância, que Jesus Cristo tão entranhadamente  amou!

É necessária a caridade cristã

É preciso muita caridade. Mas as palavras de nosso Arcebispo são muito  nítidas: do que precisamos é de  caridade cristã, e não simplesmente e uma filantropia qualquer. Por quê? Simplesmente porque sem a Igreja de Jesus Cristo não há caridade verdadeira. Não negamos que possa haver almas que vivem fora da Igreja, em nossa civilização  atual, e que fazem bem ao próximo.

Elas possuíram a Fé, e essa Fé que perderam deixou nelas um vago perfume, como o que fica no vaso de que retiramos as rosas. São  essas as palavras do grande Pio X. Mas, de fato, a caridade ou é cristã ou não existe. […] E, no catolicismo, qual o maior foco da caridade? A contemplação da Paixão de  Nosso Senhor Jesus Cristo.

É na meditação minuciosa do que sofreu o “Homem das Dores”, é na rememoração afetuosa e constante daquele em quem “do alto da cabeça até a planta dos pés não havia  um só lugar que fosse são”, é tendo diante dos nossos olhos dia e noite aquele que, sob a mão violenta de seus adversários, foi desfigurado a ponto de ser “um verme e não  um homem, o opróbrio dos homens e o escárnio do povo”, que nosso coração se dilata para a comiseração para com os próximos.

Revendo em todo o sofrimento um sofrimento do próprio Cristo, em toda a chaga, uma chaga de Cristo, remediando todo sofrimento, curando toda chaga como se  debruçássemos nossa alma amorosa sobre tanta dor, como se aplicássemos com nossos próprios dedos à chaga de Cristo o bálsamo confortador, é com este meio que  verdadeiramente teremos a virtude da caridade.

Narra a História que antes de Cristo não havia hospitais nem instituições de caridade. Foi uma católica, Fabíola, quem fundou o primeiro hospital. De lá para cá, quantas  obras de caridade se têm fundado! De onde nasceram? Das chagas santíssimas de Nosso Senhor Jesus Cristo pregado na cruz. Foi da Paixão de Cristo que nasceu o  reconforto de tantas criaturas sofredoras.

Mas não é só. O melhor bálsamo para as dores humanas não é o remédio, é a compaixão. Compaixão, “com paixão”, é o sofrimento em união com o próximo, só porque o  próximo sofre. É o reflexo dos sofrimentos alheios em nossa própria alma. Como fazer brotar do coração humano, tão frio, tão duro, tão egoístico, a flor da compaixão?

Pela meditação da Paixão de Cristo. As almas saturadas dessa meditação sabem verdadeiramente condoer-se do próximo. Só elas têm em seus gestos bastante ternura, em  sua voz bastante sinceridade, em seu procedimento bastante discrição, para instilar na alma sofredora do próximo o remédio inigualável da compaixão.

Se, da Paixão de Cristo, brota a misericórdia, brotam as obras de misericórdia, brota a consolação, que jaculatória mais adequada para todos os que se aprestam a atender à grande mobilização da misericórdia cristã que Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Mota promoverá, senão esta: “Passio Christi, conforta me” (Paixão de Cristo, confortai- me)?

Plinio Corrêa de Oliveira (Transcrito do “Legionário”, 22/10/1944. Subtítulos nossos.)

São Patrício

Bela “esmeralda encastoada no mar”, a Irlanda, pelo apostolado de São Patrício, tornou-se a “Ilha dos Santos”. Ameaçando chefes piratas e expulsando demônios com Fé e destemor, São Patrício foi um exímio discípulo do Senhor nessas terras de missão.

 

No dia dezessete de março, comemora-se a festa de São Patrício.

No livro de Hello(1), “A fisionomia dos santos”, há alguns dados biográficos magníficos a respeito da figura dele.

“São Patrício é, sem dúvida alguma, um dos santos de vida mais extraordinária que se conhece. Aos doze anos foi raptado por piratas e levado para a Irlanda.”

Vale lembrar que quem era raptado por piratas tornava-se escravo.

“Ali foi feito pastor, recebendo o dom da oração. Ajoelhava-se no meio do campo e rezava, cercado por seus animais.”

Esmeralda encastoada no mar

A grama da Irlanda é extraordinariamente verde e cobre grande parte do país. Por isso, os poetas antigos diziam que a Irlanda era como uma esmeralda encastoada no mar, ao norte da Europa.

Imaginemos a bonita cena: São Patrício, pequeno, mas já com fisionomia de santo, pastorzinho pobre e humilde, rezando sobre a relva esplendidamente verde da Irlanda, e os animais fazendo círculo em torno dele, para protegê-lo ou a contemplá-lo. Cenas semelhantes eram comuns na hagiografia da Idade Média, constituindo fioretti(2), servindo para iluminuras, vitrais de catedral, etc. A história e a fantasia nelas se reúnem para a realização de um aspecto magnífico do poder da oração, bem como da candura, da inocência, quando fortalecida por carismas vindos de Deus.

“Depois de seis anos, ele sai dessa região, fazendo várias viagens cheias de peripécias, mas se tornou novamente escravo.”

Depois de seis anos dessa forma pastoril tão encantadora, ele consegue fugir, mas se torna escravo de novo.

“Enfim, chegou ao mosteiro de São Martinho de Tours. E como sempre sentira que sua vocação estava na Irlanda, partiu para evangelizá-la. Mas tal era a via estranha pela qual Patrício era conduzido que, apesar de seus desejos, de sua santidade, de seu zelo e do chamamento sobrenatural por ele recebido, fracassou completamente. Foi tratado como inimigo.”

Provação dos santos

Vemos como Deus prova os seus santos, fazendo com que caminhem por uma série de lados, sem conseguirem o objetivo que o próprio Deus tem em vista. Em determinado momento, esse objetivo lhes vem às mãos.

Compreendemos, assim, que nosso Movimento sofra dificuldades, como é natural que em nosso apostolado tenhamos revezes. Os santos progridem assim. Os não-santos progridem rapidamente nas suas obras de pseudo-apostolado; o verdadeiro apostolado somente é feito por quem é santo ou, pelo menos, tende para a santidade e a admira com todas as veras de sua alma.

“Ainda não chegara a hora, a Irlanda não estava pronta. Patrício volta à Gália onde passa três anos sob a direção de São Germano de Auxerre. Depois se retira para a solidão da ilha de Arles.”

Quanto esse homem viaja e quantas curvas tem sua vida antes de voltar para a Irlanda! Ele vai para a Gália, onde aprende com um santo as vias da vida espiritual, torna-se eremita, depois se distancia ainda mais da Irlanda porque se dirige para Roma…

“…onde o Papa São Celestino lhe dá a bênção apostólica. E ele retoma então o caminho da Irlanda, aí aportando em 432. Logo dirigiu-se à assembléia geral dos guerreiros da Hibérnia.”

Hibérnia era o antigo nome da Irlanda.

Pregou a Fé com destemor

Imaginemos como seria bonita, em meio à natureza suave da Irlanda, uma assembléia geral de guerreiros para deliberar a respeito das coisas da nação. Os guerreiros eram os nobres que compareciam a essas assembleias revestidos de suas armas. E quando havia dificuldades nas votações, brigavam entre si utilizando essas armas. Era regime de barbárie. Às assembleias comparecia também o colégio dos druidas, sacerdotes pagãos da Gália e da Irlanda, que pertenciam, então, à mesma raça.

Ali se apresentou São Patrício, que atacou de frente o centro religioso e político da nação. Perante todos os seus inimigos agrupados, pregou ele a Fé. Que destemor! Nada de meias medidas, de panos quentes, de recuos; ele era um santo e tinha o poder dos santos.

“A partir desse momento, as maravilhas se sucederam com rapidez. Houve conversões de famílias reais inteiras.”

Anjos no Céu se inclinam para ouvir os bardos da Terra

Naturalmente, “famílias reais” significam federações de tribos. Não podemos pensar, por exemplo, em princesas como as filhas de Luís XV pintadas por Nattier, mas em nossa Paraguaçu(3): as “princesas reais” de então eram umas “Paraguaçus” louras, mas autênticas “Paraguaçus”.

Enfim, devemos imaginar a selvageria dessas hordas e São Patrício dizendo-lhes todas as verdades. Ele desperta admiração; os guerreiros começam a ficar pensativos, depois contritos, as mulheres a mudar de atitude. Famílias reais inteiras são batizadas, seguidas das respectivas tribos. Que cena linda!

“A Irlanda se transforma rapidamente na ilha dos santos. Naquela terra onde outrora fora escravo, Patrício anda agora como conquistador triunfante. Reis, povos e também poetas vêm a ele.”

A Irlanda é uma das mais antigas pátrias da poesia.

A cítara, uma pequena harpa, com a qual cantavam os bardos irlandeses e do País de Gales, faz parte da bandeira da Irlanda. O maior cantor que houve na Irlanda tornou-se cristão.

“O Homero da Hibérnia inclinou os velhos heróis ante o estandarte do Deus desconhecido. Então, diz um velho autor, os cantos dos bardos ficaram tão belos, com a conversão lucraram tanto em sua beleza, que os Anjos de Deus se inclinavam na beira do Céu para escutá-los.”

Como é linda essa ideia de os bardos cantando na Terra; e no Céu, aberto como se fosse uma claraboia, revoadas de Anjos ouvindo aquelas vozes. Isso tem uma indiscutível poesia, com um aroma e uma força de atração verdadeiramente extraordinários.

Como bem disse certa vez Montalembert(4), a Idade Média foi a “doce primavera da Fé”. Tudo isso se parece com a primavera: é uma energia que surge, com todo o dinamismo para crescer, vencendo todos os obstáculos, iluminando tudo como o sol nascente, ou como uma boa estação do ano que vai entrando.

Como é diferente o dinamismo desse apostolado com a situação que hoje vemos!

Ameaça a um chefe pirata

“Entretanto, as invasões dos piratas desolavam a Irlanda. Patrício escreveu a Corotido, chefe da quadrilha.”

Esses piratas vinham da Dinamarca, da Noruega e da Suécia — quão mudadas daquele tempo para cá! — e eram chamados reis do mar. Nações inteiras, em naus — com proas monumentais, velas bonitas — singravam com rapidez os mares e desciam em hordas pelas praias, devastando os povos, as plantações. Então, para um tal Corotido, ou Corótido — não sei como se pronuncia — nosso santo escreveu o seguinte:

“Patrício, pecador ignorante, mas coroado Bispo de Hibérnia…”

Quão linda a ideia de que o bispo é coroado como um rei!

“… refugiado entre as nações bárbaras por causa de seu amor a Deus, escrevo de próprio punho estas letras para serem transmitidas aos soldados do tirano.

“A misericórdia divina que eu amo não me obriga a agir assim, para defender aqueles mesmos que não há muito me fizeram cativo e trucidaram os servos e as servas de meu pai?”

Quer dizer, ele enfrentou perigos e mostrou os desígnios de misericórdia da Providência.

Ele prediz que a realeza de seus inimigos será menos estável que a nuvem e a fumaça.

“Em presença de Deus e dos seus santos — acrescenta Patrício — atesto que o futuro será tal qual eu previ.”

Ele, portanto, os ameaça dizendo que não adianta atacar, porque vão perder o que estavam querendo conquistar.

“Alguns meses depois, Corotido, acometido de alucinação mental, morria no desespero.”

Podemos imaginar o desespero de Corotido, matando pessoas e depois se golpeando a si mesmo, porque ficara louco. Era o resultado da maldição de São Patrício. “Os inimigos de Patrício caíam mortos, os amigos ressuscitavam. Os túmulos pareciam um domínio sobre o qual ele tinha direito”.

Assim se converte um povo! Se pudéssemos imitar São Patrício, como tudo seria mais simples! Não precisaríamos nem de burocracia, nem de máquinas. Bastaria irmos à sepultura de Dom Vital e de outras pessoas virtuosas para ressuscitá-los. E muita coisa mudaria. Mas a nós isso não foi dado.

Quando se tem esse direito sobre os túmulos, abre-se e fecha-se a porta da morte dessa forma, o que mais é necessário?

Poder sobre os demônios

“Quando de sua chegada à Irlanda, os demônios, diz um historiador do século XII, fizeram um círculo com que cingiam toda a ilha para lhe barrarem a passagem. Patrício levantou a mão direita, fez o sinal da cruz e passou adiante.”

Lindo tema para uma iluminura: um barquinho em cuja proa está São Patrício, fragilzinho, tendo um pé colocado para frente e outro para trás, um halo de santidade, e uma sarabanda de demônios correndo. Para pintar os demônios, pediríamos o auxílio da arte moderna que realmente os representa como eles são. E ao lado, outro quadrinho: São Patrício dando uma bênção, e os demônios, com fogo saindo de suas pernas, caem de ponta-cabeça dentro do mar; e monstros marinhos fugindo espavoridos de todos os lados — porque os demônios até aos monstros causam horror. Outras cenas: o barquinho de São Patrício ancorando sereno; ele descendo, amarrando a pequena embarcação e penetrando na Irlanda. Lamento não saber pintar iluminuras para representar coisas dessas.

“Depois derrubou o ídolo do sol, ao qual as crianças, como ao antigo “Moloch”, eram oferecidas em sacrifício.”

Isso eu gostaria muito mais de pintar: um ídolo horrendo, em pé, numa atitude sanguinária, diante do qual há adoradores infames; uma mãe que entrega espavorida seu filhinho; ao lado, restos de cadáveres de crianças mortas; e São Patrício que chega. Segundo quadro: o santo faz uso da palavra com veemência. Terceiro: ele derruba o ídolo. Quarto: a população festeja.

Assim é que se tocam as coisas para frente. Mas para isso é preciso ser santo.

O bastão de São Patrício enxotou serpentes da Irlanda

Certa vez perguntaram a Napoleão — pode-se imaginar quão cretino era o indivíduo que fez tal indagação — por que ele não se fazia aclamar como deus. Napoleão respondeu: “Olhe, meu caro, depois de Jesus Cristo, só há um jeito para alguém ser deus: tomar a cruz, subir ao Calvário e fazer-se crucificar. E eu não tenho vontade disso. Porque depois d’Ele ninguém toma a sério outro deus”. É bem verdade. Assim também, para fazer essas coisas é preciso ser santo. Se quiséssemos verdadeiramente ser santos, talvez pudéssemos realizá-las.

Continua Hello:
“Atribui-se ao bastão de São Patrício o poder de enxotar as serpentes.”

Parece que esses animais são desconhecidos na Irlanda, e sua ausência é atribuída a uma bênção particular: a bênção do bastão que São Patrício segurou nas mãos. Por que não pedimos um pouco dessa relíquia para o Brasil? Positivamente, é falta de imaginação. Poder-se-ia andar tranquilamente pelos matos, com a cruz de São Patrício na ponta de um bastão.

Propulsor, em escala mundial, da vida da Igreja

“A figura desse santo assemelha-se um pouco a um navio que se distancia da pátria: durante algum tempo pode ser visto distintamente; mas depois, ele parece desaparecer quando o céu e o mar se confundem no horizonte. Assim também São Patrício, no céu e nos mares da Irlanda.”

Essa história coloca diante de nossos olhos uma dessas figuras de fundadores e evangelizadores de povos, de homens da destra de Deus.

Há certas pessoas que Deus escolhe a fim de fazer um apostolado circunscrito e pequeno. Para isso são eficientes e poderosas, pois o Deus lhes dá as graças necessárias. Porém, tais pessoas não são muito salientes por suas obras. No período de evangelização da Europa, houve um grande número de santos e de santas que fundaram cristandades em lugares onde haveria de futuro dioceses — alguns desses santos se tornaram diretamente seus bispos — e foram patronos desses locais.

Seus sepulcros ficam nesses lugares, onde se celebram seus cultos, às vezes com peregrinações. Dir-se-ia que eles são animadores desse aspecto riquíssimo da Igreja, como de toda grande sociedade, que é a vida regional.

Mas há outros santos que são propulsores da vida da Igreja, em escala mundial. E esses são propriamente os homens da destra de Deus. Os obstáculos parecem insignificantes diante deles. Tais santos realizam coisas que nunca ninguém poderia imaginar, fazendo acelerar muito a marcha da História e o progresso da Igreja. Isto se pode dizer de São Patrício e também da nação irlandesa.

A Revolução conspurca até as coisas mais esplêndidas

Os irlandeses participaram da ação missionária do império de Carlos Magno, evangelizando a França, a Holanda e, sobretudo, a Alemanha. A Irlanda foi um ponto de irradiação extraordinário da Religião Católica nesta época, mais ou menos como, séculos depois, a Península Ibérica, da qual partiu a evangelização de toda a América Latina, parte da África e regiões da Ásia.

Tal qual aconteceu com a Península Ibérica, depois se apagou a glória internacional da Irlanda, mas algo de sua fidelidade restou. Espanha e Portugal — este último em medida infelizmente menor — têm resistido a toda espécie de tentativas para obrigá-los a apostatar. Na Espanha houve até resistência a uma terrível revolução comunista, e a Irlanda sofreu perseguições atrozes, mas não apostatou, como prêmio pelo fato de ter sido uma nação apostólica, e continua firme para a glória de Deus.

Isso é bonito, edificante, e eleva os nossos corações.

(Extraído de conferências de 18/3/1966 e 16/3/1967)

 

1) Ernest Hello, escritor francês. 1828-1885. Não possuímos referência exata da ficha original usada por Dr. Plinio.
2) Termo retirado da coletânea de histórias de São Francisco de Assis intitulada I Fioretti (As florzinhas).
3) Índia tupinambá, esposa de Diogo Álvares Correia (Caramuru).
4) Charles de Montalembert, 1810-1870.

Maravilha, sonho, realidade!

O homem de hoje sofre uma verdadeira caçada das novidades. Estas o perseguem, a bem dizer, o dia inteiro. Não há lugar onde ele entre e não esteja exposto a ouvir o rádio  ou a televisão relatando os últimos acontecimentos. Em geral, neste mundo caótico em que vivemos, sucederam calamidades e misérias, tristezas e provações, e sobrevêm  sustos.

Porém, se o homem é tão perseguido pelo noticiário, cumpre notar que a recíproca é igualmente verdadeira: ele vai atrás das novidades, das quais tem uma fome  inextinguível. E ainda que essas novidades o apedrejem, está disposto a receber as pedras, se estas lhe proporcionam as sensações mais recentes de seu cotidiano.

O homem se torna, assim, inadequado para conhecer as verdadeiras novidades, aquelas que não são os fatos a espoucarem daqui, de lá e de acolá, não são nada da  humanidade que passa, mas os sentidos, as correlações e os reflexos novos que partem dos grandes valores — espirituais e materiais — que o passado nos legou e que tocam nossas almas.

Exemplifico.

Tive em mãos um lindo álbum de vitrais e, folheando-o, veio-me ao espírito uma consideração nova para mim. Olhando esses vitrais, por certo mais velhos do que eu, analisando-os com admiração, surgiu-me a pergunta: Esses vitrais são tão, tão belos. É bem certo que o Paraíso terreno tinha coisas mais belas do que eles? Uma pessoa que se imagina num lugar amplo, aos pés de um extraordinário vitral no momento em que torrencialmente atravessam por ele todos os raios de sol; em que o olhar dela é  inundado por esses raios, mas a pessoa percebe no corpo inteiro que aquelas refulgências do sol estão vindo, estão ferindo os vitrais e a enchem de luz e de colorido, como se  ela entrasse num mar luminoso e policromado — nesse momento, é bem certo que a pessoa não veja algo de tão belo quanto havia no Paraíso terrestre?

Costuma-se entender que o Paraíso terrestre continha tudo quanto há de mais bonito e excelso na criação temporal. E, grosso modo falando, é verdade. Em confronto com a  realidade deste nosso chão de exílio, a superioridade  do Paraíso é incomparável. Mas, se formos conhecer alguns pormenores, determinados aspectos desta Terra, será que  não existe aqui beleza ainda maior do que há no Paraíso?

E não será que, por esta forma, nós conhecemos melhor um verdadeiro paraíso de nossas almas que existe neste vale de lágrimas, e que é a Santa Igreja de Deus? Se nós a  sabemos ver, se nós a sabemos amar, se nós a sabemos sentir, se sabemos admirar tudo quanto ela engendrou de magnificências e riquezas ao longo de sua História , como  os vitrais por exemplo, não é ela o nosso paraíso neste mundo?

Imerso nessas reflexões, continuando a folhear o álbum, lembrei-me de dois personagens que a tradição nos autoriza a supor que ainda vivem em algum lugar misterioso da  Terra, provavelmente no próprio Paraíso terrestre: Santo Elias e Santo Enoc.

E então pensei: No ambiente onde eles passam os milênios, se for mesmo um lugar paradisíaco, haverá incontáveis maravilhas. Mas, na linha de minhas anteriores considerações, por um dom que lhes terá concedido a Providência, eles podem apreciar esses aspectos da Terra que sejam ainda mais belos do que aqueles do Éden criado por Deus para o homem inocente.

Portanto, eles podem se encantar com os vitrais espalhados pelas igrejas de todo o orbe, conhecendo-os melhor que qualquer homem. Nas horas em que as igrejas estão vazias, nos momentos em que não há ninguém para admirar os seus vitrais, Santo Elias e Santo Enoc os estarão contemplando.

Mais ainda. Eles sabem de todos os vitrais que foram destruídos, como eram e como seriam se ainda hoje resplandecessem. Eles sabem de todos os vitrais que foram planejados, mas que por miséria humana ou por qualquer vicissitude não puderam ser elaborados.

Eles têm conhecimento de quando e como nasceu o intenso desejo do maravilhoso na alma humana, um anseio que a preencheu de tal forma que ela teve a necessidade de  extravasá-lo, de expressá-lo, e, à força de excogitar o meio de fazê-lo, tateando, de repente empreendeu a magnífica epopeia dos vitrais.

Eles conhecem a história do senso artístico de que resultou o aparecimento das inexcedíveis policromias que guarnecem as aberturas em ogivas, em arcos, em rosáceas, das  catedrais, igrejas, abadias, mosteiros e capelas semeados pela Terra.

Eles se enlevaram diante da alma de um vitraleiro humilde e despretensioso que, na sua modesta oficina de artífice, desejou a cor perfeita para sua obra, pôs-se a fabricá-la e  quando finalmente a elaborou, pensou: “A minha vida está explicada. Eu trouxe ao conhecimento dos homens, eu trouxe à piedade da Igreja, eu trouxe à glória de Santo tal,  ou de tal mistério da vida de Nosso Senhor, de Maria Santíssima, essa nova cor. Ó, sol! tu que me antecedeste na Criação, tu também foste feito para que um dos teus raios passasse sempre por este vitral. E enquanto tu fores sol e o mundo for mundo, um dos teus  raios atravessará o azul com que eu sonhei, vai iluminar o chão de granito e arrebatará alguma alma fiel que o veja. Minha vida está justificada”.

Santo Elias e Santo Enoc, ao verem e admirarem esses vitrais, compreendem que eles de algum modo resplandecem, à maneira dos inefáveis esplendores do Padre Eterno, matrizes de todas as cintilações, luminosidades e coloridos postos na Criação. Não será temeridade supor que os Anjos desçam do Céu para acompanhar e instruir a esses  grandes personagens bíblicos na sua peregrinação pelo universo dos vitrais, colocando diante dos olhos deles a fabulosa coleção dos que existiram, existem e poderiam ter  existido.

E os dois, reconhecidos, entoam a Nossa Senhora um cântico de louvor, uma homenagem de todos os vitrais, de cada fragmento de vitral, de cada cor, de cada figura, de cada rosácea… Eles, pelo seu espírito, são o sol que atravessa esses vitrais. E Nossa Senhora os fita comprazida, e pensa: “Meus filhos e meus vitrais!”.

Nestas condições, também é de se supor que eles concebam para si a ideia de que, no fim dos tempos, quando Nosso Senhor Jesus Cristo vier em sua pompa e majestade,  seguido de Maria Santíssima, de todos os Anjos e Santos do Céu, para julgar os vivos e os mortos, esse espetáculo de conjunto nos dê uma impressão à maneira de um  fabuloso vitral que preenche, de ponta a ponta, o horizonte.

Quando, no dizer da Escritura, o céu estiver enrolado como um pergaminho, tudo tiver acabado e a magnitude de Deus aparecer, será talvez este o “supremo” vitral que  marca para sempre o começo de uma era onde não há mais história, mas apenas eternidade. Os vitrais, que maravilha! Os vitrais, que sonho! Os vitrais, que realidade!

Plinio Corrêa de Oliveira