Sorriso inefável

Que Vos levaria, Senhor, a sorrir do alto da Cruz? Que abismo de contradição entre as dores que da cabeça aos pés Vos atormentam o Corpo sagrado, e esse sorriso que aflora doce, suave, meigo, entreabrindo-Vos os lábios e iluminando-Vos o rosto! Sobretudo, Senhor, que contradição entre o abismo de dores morais que enche vosso Coração, e essa alegria tão delicada e tão autêntica que transluz em vossa Face! Contra Vós, todo o oceano da ignomínia e da miséria humana se atirou. Não houve ingratidão nem calúnia que Vos fosse poupada. Pregastes o Reino do Céu, e vossa pregação foi rejeitada pelo vil apetite das coisas da Terra. O demônio, o mundo, a carne, em infame revolta contra Vós, Vos levaram ao patíbulo, e aí estais à espera da morte. E, entretanto, sorris! Por quê?

Vossas pálpebras estão quase cerradas. Mas ainda podeis ver algo. E o que vedes é, Senhor, a maior maravilha da Criação, a obra-prima do Pai Celeste, uma alma – e quanta beleza pode haver em uma alma, embora o ignore o materialismo de nosso século – riquíssima e íntegra em sua natureza, cumulada por todos os dons da graça, e santificada por uma correspondência contínua e perfeitíssima a todos esses dons! Vedes Maria. Vedes vossa Mãe. E no meio de todos os horrores em que estais imerso, tal é a maravilha que vedes que sorris afetuosamente, para alentá-La, para Lhe comunicar algo de vossa alegria, para Lhe dizer vosso infinito e sublime amor.

Vós vedes Maria. E ao lado da Virgem Fiel, vedes os heróis da fidelidade: o Apóstolo virgem, as Santas mulheres, a fidelidade da inocência e a fidelidade da penitência. Vosso olhar, para o qual tudo é presente, vê mais, pois se alonga pelos séculos e Vos faz ver todas as almas fiéis que hão de Vos adorar ao pé da Cruz até o dia do Juízo. Vedes a Santa Igreja Católica, vossa Esposa. E por tudo isso sorris com o sorriso mais triste e jubiloso, o mais doce e compassivo sorriso de toda a História.

Entre as miríades de almas que seguindo a Maria estão ao pé da Cruz, e para as quais sorris, também está a minha, Senhor? Humilde, genuflexo, sabendo-me indigno, entretanto eu Vos peço que sim. Vós que não expulsastes do Templo o publicano, pelas preces de Maria não rejeitareis para longe de Vós um pecador contrito e acabrunhado. Dai-me, do alto da Cruz, um pouco de vosso sorriso inefável, ó bom Jesus.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de Catolicismo n. 148, abril de 1963)

Revista Dr Plinio 253 (Abril de 2019)

Ação de graças por meio de Nossa Senhora após a Comunhão

Ó Maria Santíssima, minha Mãe, Vós encontráveis tantas maravilhas para dizer ao vosso Divino Filho quando Ele estava em vosso claustro virginal. Dizei-Lhe por mim aquilo que eu gostaria de dizer se conhecesse esses vossos sublimes colóquios.

Adorai-O como eu quereria adorá-Lo, porém – oh, dor! – não sou capaz. Dai-Lhe a ação de graças que eu deveria dar-Lhe, e não sei fazê-lo. Apresentai-Lhe atos de reparação pelos meus pecados e pelos do mundo inteiro, com um ardor que infelizmente não tenho.

Minha Mãe, pedi por mim tudo quanto minha alma necessita e tudo aquilo de que precisam todos os homens, para instaurar na Terra o vosso Reino. Porque, minha Mãe, o que Vos peço mais do que tudo é o triunfo da vossa glória e a implantação de vosso Reino, em mim e sobre todos os homens. Assim seja!

 

Plinio Corrêa de Oliveira – Revista Dr Plinio 248 (Novembro de 2018)

Paixão de Cristo

Embora fosse infinitamente superior aos homens, Nosso Senhor Jesus Cristo chegou ao extremo de receber todos os ultrajes que Lhe foram feitos em sua Paixão, com imensa doçura.

Assim sua superioridade tornou-se não apenas régia, mas, por essa doçura, digna de ser amada. É uma elevação enquanto corolário da misericórdia, consentindo em colocar-se num plano indizivelmente menor, por amor àqueles que Lhe são inferiores.

Plinio Corrêa de Oliveira, 18/10/1989

É de noite que é belo acreditar na luz!

Nossa Senhora acreditou na luz durante a terrível treva da Paixão. Nesse tremendo desamparo, vendo que cada chaga era uma razão humana para tornar indiscutível a morte de seu Divino Filho, Ela teve uma Fé plena.

Quando Maria Santíssima segurou aquele cadáver nos braços, no momento em que O acolheu para ser objeto dos cuidados e levado à sepultura, tendo aquela imensa derrota física nas mãos, Ela via toda a impossibilidade natural da Ressurreição e fazia um ato tranquilíssimo de Fé: “Ele ressuscitará. Eu creio porque Ele prometeu!”

Plinio Corrêa de Oliveira, 19/11/1971

A procura do absoluto e o perfeito convívio – I

A perfeição do relacionamento humano está profundamente condicionada à capacidade que as almas tenham de transcender à fruição meramente material e elevar-se a uma esfera metafísica e sobrenatural.

 

O maravilhoso na ordem temporal tem como desfecho a tendência para o Céu empíreo.

Deleitar-se com os bens temporais à procura do absoluto é um ato de natureza espiritual

Normalmente, para o comum dos homens — não para um com vocação especial —, o maravilhoso, o religioso, não podem ser vistos a não ser numa orientação análoga com o temporal. Portanto, o grande comprazimento com a coisa temporal não se confunde com o ato de volúpia, mas é um ato de natureza espiritual quando se procura nele o absoluto. Toda a teoria da procura do absoluto em função das coisas temporais é o que leva ao Céu empíreo. Porque no Céu empíreo a coisa sensível é dada ao homem para ajudar a sua integração na visão beatífica.

Em mim, a problemática metafísica foi modelada pela influência da Fräulein Mathilde, porque um mundo de coisas da mentalidade, da educação das crianças alemãs é embebido da ideia de que certas coisas têm valor metafísico. Mas não vão mais adiante e não relacionam este valor metafísico com Deus.

Então, por mil aspectos, minha alma aderia muito a isso. E eu percebia que a procura do absoluto me conduzia à Igreja, me completava como católico e, portanto, eu deveria estimulá-la. Porque dia viria em que as coisas se conectariam. Eu notava a dissonância entre a posição que eu tomava e a de outras pessoas, e percebia com todas as luzes que a atitude delas não podia ser a católica.

Do lado brasileiro, ajudou-me nisto também a vida tranquila e, até certo ponto, regalada existente na São Paulo de meu tempo, onde uma série de deleites era concebida ainda dentro da ordem tradicional, e eu percebia que esses prazeres tinham uma coerência com os princípios católicos e, portanto, a questão não consistia em largar esses deleites retos, mas em ensinar as pessoas a conservá-los.

Um exemplo característico tão frisante, quase infantil: a árvore de Natal. Uma criança muito virtuosa diante de uma árvore de Natal tinha dois caminhos: por penitência, comer coisas de que não gosta e torturar o seu Natal, ou, por outro lado, gozar o seu Natal. Ora, embora compreenda em tese que, a uma alma chamada de modo muito especial, Deus possa exigir o sacrifício do Natal, para mim, teria dado uma asfixia do outro mundo!

O gáudio reto, santo, inocente do Natal me enchia de amor a Deus. E também com uma série de outras coisas, por exemplo, a vida um tanto cerimoniosa que se levava no meu ambiente. Isso dava propriamente em uma vida com bons regalos. Essa teoria do regalo santificante não poderia deixar de desfechar numa teoria do Céu empíreo. Donde durante décadas eu insistir, de um ou de outro modo, sobre o regalo bom santificante. Em certo momento, caiu-me nas mãos esse material sobre o Céu empíreo, do Cornélio a Lápide(1).

Duas escolas espirituais diante dos deleites legítimos

Segundo certa escola espiritual, uma pessoa virtuosa, na hora de colher morangos nos bosques, diria: “Ó, fujamos disto! Não vos esqueçais de que hoje é sexta-feira e Nosso Senhor padeceu por nós.” É uma consideração muito santa, muito direita para certo filão de almas. Para outro filão: “Vá pegar morango no bosque, passe pela capela, pela paróquia que está aberta, faça uma Via-Sacra, porque é sexta-feira, Nosso Senhor morreu nesse dia”. Está muito bem.

Eu estou vendo que uma pessoa poderia me dizer desde logo: “Ofereça esse pequeno sacrifício e renuncie a esse regalo, porque isto é grato a Deus”. Eu digo: Desde logo ponho em dúvida o que você diz. Há certos casos em que é, há certos casos em que não é.

Certa vez, uma pessoa me disse: “Você quer passar um dia de virtude? Faça o seguinte: o tempo inteiro quando você quiser esticar as pernas, você cruze; quando quiser cruzá-las, faça o contrário, e assim por diante, o contrário do que você quer. Você à noite terá uma tonelada de méritos”.

Pensei comigo: “Eu não vou desencorajar essa boa alma, mas tenho um abismo de mal-estar e de perplexidade com isso”.

Alternativa em face da fruição e o risco de abandonar a “transesfera”

Quando a pessoa está na fase anterior às provas, o deleite é quase sempre santificante. Entretanto, há um determinado momento na evolução de uma pessoa em que o deleite da coisa pela coisa se diferencia saudavelmente do deleite por causa daquilo que ela significa. Então, por exemplo, o deleite físico de mexer com esta pedra, que adorna minha mesa, e o deleite espiritual de contemplar as ranhuras que há nela diferenciam-se um do outro, mais ou menos como de dentro da haste de uma flor se diferenciam as pétalas.

E, em consequência, começa a aparecer um apego a isto, que já não é concomitante com o deleite espiritual, mas é autônomo. E que nasce de uma profundeza da alma, como o deleite espiritual nasce também.

Vamos dizer, banho de mar. Ele pode dar toda espécie de deleites físicos e espirituais ao mesmo tempo. Mas há um momento em que o deleite puramente físico do banho de mar, da respiração cutânea, enfim, do movimento, da aventura nas ondas, do “pulchrum” do mar se apresentam já eles mesmos diferenciados daquilo que seria o trans-esférico(2), que a atenção ora vai para uma coisa, ora vai para outra. Quando isto se dá, o amor pelo trans-esférico começa a ser provado, porque a alma não pode prestar atenção em duas coisas ao mesmo tempo. Ela não pode pensar como seria o mar trans-esférico e fruir com toda a alma daquele mar concreto. E a provação começa.

Dá-se uma espécie de alternativa onde ainda não entra diretamente, muito de imediato, a tentação para o mal, mas ela está a um milímetro daí. A pessoa pode ser mais arrastada pela fruição do mar, enquanto mar sensível, do que pelo mar trans-esférico, pelo simples fato de que essa fruição do mar sensível tem qualquer coisa de absoluto, de imperativo, de arrebatador, que é uma coisa tremenda. E com isso ela é colocada diante de uma opção: “Qual das duas é melhor?”

Para a maior parte das pessoas, essa escolha se passa nos lindes da semiconsciência: a pessoa vê bem pela inteligência que um é mais nobre, que corresponde mais à sua estatura inteira, que o outro apresenta uma fruição da parte. De um modo mais ou menos implícito, é positivo que vê.

A alma pode começar a optar por um dos dois polos e, portanto, entrar pelo caminho de Esaú ou de Jacó. Quando a alma está nesse estado, a parte fruitiva baixa começa a se deformar, e constituem-se ansiedades, apegos, tormentos, reações próprias do pavor de perder aquele prazer. E o metafísico começa a empalidecer porque não concorre em nada, ou em muito pouco; aquela fruição lota o horizonte. Aí entra uma espécie de opção que vai pela vida afora.

Se uma pessoa, diante dessa fruição, disser: “Eu não te quero assim, vou te conter, limitar-te, reduzir-te à devida proporção e, se for o caso, eu te elimino, porque não quero ser infiel”. Então há um sacrifício que vale muito mais do que o amor inocente não sacrificado dos primeiros anos. Entra a Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Porém, se a pessoa tiver uma fruição desvinculada disso, ela erra completamente.

Do amor a uma ordem superior nasce o perfeito relacionamento entre os homens

Esses problemas da vida relacionam-se cronologicamente segundo uma maturação prevista pela Providência: na criança, com o amor primeiro não provado, ela não tem dificuldades de relacionamento com os seus, e aquilo é manso, “mar azul”. A mãe, o pai, os irmãos, a parentela toda, aquilo tudo é uma maravilha. Depois começam a aparecer as diferenças e as decepções, como também os atos de justiça em relação a esses e àqueles, e o mundo familiar vai se rasgando.

Há rasgões externos como internos, apresentam-se os deveres que a pessoa segue ou não, juntamente com várias provações simultâneas, e a puberdade, cedo ou tarde, irrompe dentro disto e a pessoa vai entrando na batalha.

Se imaginarmos almas numa posição inteiramente reta a respeito deste assunto, as relações entre elas serão fundamentalmente diferentes. Porque essas almas amam principalmente a ordem trans-esférica, mística, sobrenatural para a qual elas vivem, e por causa disso o relacionamento com outras almas análogas em função desta ordem é reputado por elas um bem mais precioso do que o trato baseado em outros valores.

Tomemos como exemplo dois bons irmãos que se estimam, se prezam e têm relações de alma completamente corretas neste ponto. Aparece entre eles uma questão de divisão de uma herança paterna. Ela se faz amistosamente, sem nenhuma dificuldade, porque, por esta sua retidão neste patamar superior, eles são parecidos e, portanto, têm facilidade de se entender e fazer a justa divisão. Mas também porque se um notar uma pequena fraqueza ou um pequeno apego que possa prejudicar o superior relacionamento entre ambos, o irmão bom facilmente desiste da vantagem material para conservar um convívio mais elevado.

O episódio bíblico ocorrido com Abrão e Ló é característico. Abrão diz: “Aqui estão as terras, pega a parte que tu queres, eu fico com a outra”(3). Esta é a atitude de uma pessoa que preza o relacionamento bom, muito mais do que a terra.

Mas se a pessoa cedeu ao desejo do bem material, inferior, da fruição não metafísica, não religiosa, facilmente entra em briga. Porque quando não apreciam aquele bom relacionamento e o viverem juntos para uma esfera mais alta, dividem-se miseravelmente a respeito de ninharias. Seriam capazes até de fazer o seguinte: “Tal ponto não fica nem teu nem meu. Construamos ali um altar, um templo, mas teu não fica!”

Os vínculos na Cristandade medieval eram baseados no amor ao transcendente

Assim, todas as relações humanas de ordem política, social, familiar, econômica são completamente diferentes num mundo onde haja esta boa ordenação. Do ponto de vista humano, formas de governo, estruturas, leis, simplesmente não pegam, na medida em que esse relacionamento superior não exista.

A lealdade, por exemplo, provém propriamente do fato de alguém ter verazmente em relação a outrem essa disposição de alma. Tê-la e saber torná-la notória, isto é a lealdade que permite funcionarem direito vínculos como os da sociedade feudal.

O ponto de partida está em que as almas não sejam apegadas às coisas de modo fruitivo e amem o transcendente.

Esse amor ao transcendente, a Cristandade medieval conheceu a fundo, embora não soubesse explicar. Todos os vínculos da ordem social eram vínculos de amor baseados nesse vínculo das almas pelo lado superior.

(Continua no próximo número)

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 11/3/1982)

Revista Dr Plinio 217 (Abril de 2016)

 

 

1) Jesuíta e exegeta flamengo (* 1567 – † 1637).

2) Relativo a “transesfera”: termo criado por Dr. Plinio para significar que, acima das realidades visíveis, existem as invisíveis. As primeiras constituem a esfera, ou seja, o universo material; e as invisíveis, a transesfera.

3) Cf. Gn 13, 8-9.

Santidade e personalidade – I

A Doutrina Católica visa que cada homem aprimore sua personalidade, caminhando rumo à santidade. Assim são criadas as condições para a constituição de uma civilização perfeita.

Todos ouviram falar vagamente, com certeza, do panteísmo, e da diferença entre este e o ateísmo. E depois, sobre a crença em Deus.

Noção de pessoa

De acordo com o ensinamento da Igreja infalível, existe um só Deus em três Pessoas realmente distintas. Mas esse Deus é pessoal. O que é uma pessoa? Chama-se “pessoa” um ser que pensa a respeito de si mesmo e forma, portanto, um circuito fechado. Um bicho, uma planta, uma pedra não são pessoas, e sim indivíduos. Por quê? Porque eles não pensam, não têm consciência de que existem, de um mundo interno e de um mundo externo. Nós, pelo contrário, temos essa consciência, e por causa disso somos pessoas.

Deus é Pessoa porque Ele tem consciência de Si próprio, daquilo que Ele criou. E de tal maneira é Pessoa que, na sua unidade — porque é um só Deus —, há três Pessoas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. O que constitui o mistério da Santíssima Trindade.

Tendo criado o universo, o qual, sendo necessariamente um reflexo d’Ele, Deus quereria refletir no universo o fato de que Ele é Pessoa. E, portanto, haveria de criar o universo constituído por pessoas; e por isso, criou os anjos e os homens, que são os elementos essenciais do universo. Os animais, as plantas e os minerais estão a serviço do homem, e são para o universo mais ou menos como a franja é para o tapete. Ninguém iria pôr em casa um tapete só feito de franja. Não seria tapete. Pelo contrário, há tapetes muito finos que não têm franja. A franja do tapete é uma coisa que faz parte dele, mas não é de nenhum modo a sua essência.

Assim também os animais, as plantas e os minerais são como as franjas do universo. Deus criou o universo para as pessoas, que são os anjos e os homens. E é em cada uma dessas pessoas que Deus encontra a sua imagem.

Com essa noção, compreende-se fazer parte da Doutrina Católica que cada pessoa se personifique cada vez mais. Quer dizer, Deus criou cada um de nós com determinadas características, as quais são agrupadas em torno daquilo que nós chamamos a “luz primordial”. Se a pessoa corresponde à graça, de fato se santifica, a sua personalidade toma um realce extraordinário, e tudo quanto ela tem de bom e característico fica ultra-característico. Tudo o que ela possui de mau é posto de lado.

Deus é eminentemente personificante

Em qualquer santo isso é ultra-característico. Todos são muito parecidos entre si, mas ao mesmo tempo enormemente diversos uns dos outros. O que São Paulo prefigurou de modo magnífico, dizendo: “Stella differt stella”(1).

Olhem para o céu onde há uma porção de estrelas. Uma criança diria que são iguais. Mas na realidade nestas miríades de estrelas não há nenhuma igual à outra. Assim são os homens.

Mais ainda, todos os homens que houve, há e haverá no plano de Deus formam uma coleção. E essa coleção deve de algum modo, no seu conjunto, espelhar o que o Criador é no seu conjunto. Quer dizer, assim como Deus é imenso, infinito, e tem todas as qualidades possíveis, isto se reproduz no conjunto dos homens. Cada um com sua tônica, tomando essas tônicas no conjunto se obtém uma espécie de mapa de Deus, de conjunto constituído por Deus. De maneira que nós não temos consciência, mas somos peças de uma coleção; peças super-individuais, peças pessoais de uma coleção, e cada um de nós, se corresponder à sua luz primordial, é de um jeito que faz parte da coleção de Deus. E para que esta tenha toda beleza, todo colorido, todo vigor, é necessário que cada uma dessas peças possua toda a sua personalidade. Deus é eminentemente personificante. Quer dizer, Ele dá à pessoa a sua personalidade. Por quê? Porque Ele é Pessoa.

Um extremo oposto disso é o panteísmo. O panteísmo sustenta que há um deus, mas esse deus não é pessoa, é um ente sem pensamento, sem conhecimento de si próprio; que vive, portanto, no eterno sono do bicho, da planta e da pedra. Quer dizer, não conhece nem entende nada, e que todos os seres que existem saíram desse deus, como moléculas saem de um determinado corpo.

A Doutrina Católica ensina o contrário: nós não saímos de Deus; fomos criados por Deus.

Mas, para o panteísmo, ser uma pessoa é uma desgraça; porque para ser uma pessoa é preciso sofrer, e sofrer é uma desgraça. Então, a finalidade da religião é que a pessoa vá se preparando para, morrendo, desaparecer, fundir-se de novo nesse ser sem raciocínio, sem consistência pessoal, que é deus.

Assim, dizem os panteístas, deus é a natureza. O que querem dizer com isto? Que deus é uma força a qual está presente em tudo, e que não tem consciência de si. Se quiserem, deus é a vida. A vida está nos presentes neste auditório, está em mim, nos bichos, nas plantas. A vida não tem consciência de si, nem é uma só vida. O panteísmo apresenta isso como um só fluido presente em todo mundo. Este fluido, esta vida, tem como objetivo despersonificar, liquidar as pessoas, para elas se prepararem a sumir quando elas morrerem. Desaparecerem dentro deste grande conjunto sem pensamento que é chamado “deus”.

Civilização cristã e cortesia

Daí decorre uma ideia da civilização católica, e outra ideia da civilização pagã, panteísta. Para a civilização católica trata-se de, nessa vida, a pessoa se personificar cada vez mais e depois adorar, no Céu, as três Pessoas da Santíssima Trindade. Para o panteísta trata-se de diluir a personalidade.

A civilização católica faz da vida, sobretudo, uma relação de pessoa para pessoa, e concebe a formação de maneira que cada pessoa é ela mesma e depois respeite a personalidade do outro, sinta as afinidades e as diferenças. Tenha cortesia.

O que é a cortesia? É a perfeita afinidade de pessoas distintas umas das outras. Há então um abismo que separa uma pessoa da outra. Eu sou eu, sou um circuito fechado em mim. Cada um dos que aqui se encontram é um circuito fechado em si. De outro lado, nós temos relações, porque somos todos homens.

A cortesia é a perfeita relação que passa por cima deste abismo existente de homem para homem. A força que liga este abismo chama-se amor fraterno católico. A cortesia é o laço cheio de respeito, de distinção, de afeto que prende as pessoas diferentes e as coloca numa relação, como notas de uma música. Dir-se-ia que as notas de uma música estão em estado de cortesia umas com as outras.

Imaginem uma pessoa irrefletida que, por exemplo, passa diante de um piano que está com a tampa aberta, escorrega e se apoia sobre o piano para não cair; sai um som horroroso parecido com uma descortesia. Por quê? É que não há harmonia.

A cortesia é a musicalidade das relações humanas. Mas nessa musicalidade cada homem constitui sua personalidade apoiado pelo outro, e todos crescem, todos brilham, cada um com a luz de sua personalidade própria.

Daí partem inúmeras consequências. Uma delas é que, na civilização medieval, a lei tomava em linha de conta direitos e deveres, o que a lei contemporânea não toma mais em consideração.

Por exemplo, o dever entre benfeitor e beneficiado é de gratidão. Na lei de hoje quase não há resquícios desse dever. Na lei da Idade Média o dever de gratidão era enorme. Daí nasceu o feudalismo, que é uma concatenação de gratidões. O rei dava terras a um suserano, que ficava vassalo do rei. O suserano concedia terras ao nobre menor, o qual se tornava vassalo desse suserano. Esse nobre menor dava terras a um plebeu, que ficava vassalo desse nobre menor. Cada um que deu ficava obrigado à proteção daquele que tinha recebido, para tudo. E cada um que recebeu ficava obrigado a obedecer e a apoiar aquele que tinha sido seu benfeitor. E esta era a concatenação das relações pessoais.

O nobre e o burguês, na Idade Média e no “Ancien Régime”

Na Idade Média, os direitos eram mais sobre as pessoas do que sobre as coisas. Havia direito sobre as coisas também, mas o direito sobre as pessoas se considerava muito mais do que o direito sobre as coisas.

Querem ver um exemplo curioso disso? Na Idade Média o que era mais: um riquíssimo burguês, ou um nobre, senhor de um castelinho com uma aldeia? Era o nobre. Mas o burguês não era muito mais rico, mais poderoso? A resposta que um medieval daria era é a seguinte: “Não vem ao caso. O nobre governa pessoas; o burguês governa matéria, governa ouro. É muito mais governar homens do que ouro. De maneira que é uma riqueza metafísica maior ser senhor de uma pequena aldeia do que dono de uma grande fortuna”.

Não sei se percebem o respeito ao homem que entra dentro disso. E por essa razão se, por exemplo, entrasse numa cidade um senhor feudal num cavalinho rapado, vestido ele mesmo meio apertadamente, porque suas terras produziam pouco, com um escudeiro que ia a pé, porque não tinha cavalo; o senhor portando uma espada com o forro meio gasto, e um chapéu com uma pluma que já tomou muita chuva…

Passando ele diante de um burguês, médio, vestido de veludo, usando um chapéu magnífico com pedras preciosas, e não uma pluma, mas uma cauda de pássaro no chapéu, o burguês se descobria, dando um passo à frente, e o nobre correspondia amavelmente, mas de cima.

Alguém diria: “Incompreensível, orgulho”. Não. É o contrário. O nobre afirmava aí o maior valor dos seus vassalos, porque eram homens, sobre o ouro do burguês. Isto não se encontra em nenhum manual de História, mas é o modo do medieval conceber as relações.

Terminada a Idade Média, o feudalismo foi acabando, mas muitos restos dele ficaram na sociedade do “Ancien Régime”(2). A sociedade se transformou, mas isso ainda existia.

Considerem, por exemplo, um nobre do “Ancien Régime” e um burguês riquíssimo. Por que aquele era nobre? Porque ele era de uma classe social que tinha obrigação de ir à guerra e derramar o sangue pelo rei. Enquanto o burguês não podia ser convocado para o serviço militar; fazia serviço militar se quisesse.

O nobre tinha essa excelência de alma de aceitar ser da classe que é obrigada a ir morrer pela pátria, ainda que não quisesse — quer dizer, era crime não ir. Como a dedicação vale mais do que o ouro, porque a dedicação é uma qualidade do homem, e o homem vale mais do que o metal, por causa disso o nobre valia mais do que o plebeu. Não sei se estão percebendo a ação contínua da pessoa humana.

“E se um plebeu ou um burguês quisesse ir para a guerra?” Ah! Se fosse para a guerra e se tornasse um herói era frequentemente elevado ao cargo, à condição de nobre. Mas aí ele se engajava num outro circuito. Acabou a vida cômoda, terminaram os verões despreocupados e com passeio, acabou a agradável contagem do dinheiro por detrás dos guichês da loja. Porque, habitualmente, chegando a primavera e o verão, começava a guerra e os nobres todos tinham que partir. Se o plebeu ficasse nobre, ele tinha que ir para a guerra também.

Compreende-se que o número de candidatos para nobre era bem menor, do que se podia imaginar à primeira vista.

Como se explica isto? É a prevalência do homem sobre a matéria, das qualidades humanas sobre as qualidades materiais.

O burguês tinha uma vida muito mais confortável do que o nobre. Tomem gravuras daquele tempo, representando o interior das casas burguesas: são residências agradáveis, aconchegadas, confortáveis, com tudo abundante, etc., feitas para as pessoas se regalarem.

Observem as gravuras representando os palácios: são lindos, de alto luxo, não são cômodos. Basta ver os móveis que restaram. Se um indivíduo sentar-se irrefletidamente numa daquelas cadeiras, ele cai com a cadeira. Aqueles móveis exigem que a pessoa esteja continuamente numa atitude de grande dignidade, de grande distinção. Aquele modo de falar todo trabalhado exige uma atenção contínua na língua que se usa, nas fórmulas de cortesia, nas etiquetas, para estar à altura da situação. Que cultura era preciso ter para sustentar aquelas grandes conversas…

Para considerar simplesmente isto: como entrava uma jovem nobre em sociedade? 

(Continua no próximo número)

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/6/1974)

Revista Dr Plinio 217 (Abril de 2016)

 

1) Do latim: Há diferença de estrela para estrela (1Cor 15,41).

2) Do francês: Antigo Regime. Sistema social e político aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.

A mais fulgurante das estrelas

Por que Nossa Senhora é simbolizada por uma estrela? Porque é durante a noite que cintilam as estrelas, e esta vida é para o católico uma noite, um vale de lágrimas, uma época de provação, de perigo e de apreensões.

Na eternidade teremos o dia, porém na vida terrena temos o escuro da madrugada. E nesta noite existe uma estrela que nos guia, que é a consolação de quem caminha nas trevas, olhando para o céu: Maria Santíssima, a mais fulgurante de todas as estrelas!

Plinio Corrêa de Oliveira, 24/8/1965

Uma devoção da cristandade…

Nosso Senhor Jesus Cristo morreu numa sexta-feira e ressuscitou num domingo. Ambos os dias foram-Lhe especialmente consagrados, de modo que, semanalmente, relembram a Paixão e a Ressurreição do Senhor. Porém, entre estes dias há outro: o sábado. Como faria a civilização cristã para solenizar este dia posto entre duas datas tão sublimes?

 

Na Idade Média, sob o impulso dos monges cluniacenses, o sábado passou a ser consagrado a Nossa Senhora. Mas, por que razão a piedade católica instituiu esse costume?

A Ressurreição

Embora os Apóstolos tivessem um misterioso instinto de que a história de Nosso Senhor não podia estar concluída e que a última palavra ainda não fora dita — caso contrário haveriam se dispersado —, eles ainda não tinham atinado com a ideia da Ressurreição.

Não concebiam eles que Quem ressuscitara Lázaro — fato que eles puderam comprovar —, ressuscitar-se-ia a Si próprio; não imaginavam que Nosso Senhor aceitaria o desafio lançado pelo mau ladrão crucificado a seu lado: “Se és o Cristo, salva-te a ti mesmo!”(1). Cristo fez muito mais do que descer da Cruz e curar-se a Si próprio: Ele consentiu em morrer para depois ressuscitar-Se.

De fato, a Ressurreição é algo tão extraordinário e miraculoso, que o espírito humano é propenso a sequer imaginá-la. Pois, se um vivo ressuscitar um morto é incomum, quanto mais o é um morto voltar à vida por suas próprias forças, sair dos abismos da morte e dizer a seu corpo: “Levanta-te!”… Esta é uma espécie de vitória dentro da vitória, de esplendor dentro do esplendor, que o espírito humano não pode sequer imaginar.

A Fé da Santíssima Virgem sustentou o mundo

Porém, havia alguém que possuía plena certeza na Ressurreição de Jesus: Maria!

No sábado que precedeu a Ressurreição de Nosso Senhor, somente Nossa Senhora, em toda a face da Terra, teve uma Fé completa e sem sombra de dúvida na Ressurreição. Ela possuía uma certeza absoluta, uma expectativa imensamente dolorida por causa do pecado que havia sido cometido, mas imensamente calma, com a certeza da vitória que se aproximava.

A cada minuto que passava, de algum modo a espada da saudade e da dor penetrava ainda mais seu Coração Imaculado. Mas, de outro lado, havia a certeza de uma grande alegria da vitória que se aproximava. Esta concepção inundava-A de consolação e gáudio.

Maria Santíssima, nesta ocasião, representou a Fé da Santa Igreja e, por assim dizer, sustentou o mundo, dando continuidade às promessas evangélicas, pois, se não houvesse Fé sobre a face da Terra, a Providência teria encerrado a História.

Maria foi a Arca da Esperança dos séculos futuros. Ela teve em Si, como numa semente, toda a grandeza que a Igreja haveria de desenvolver ao longo dos séculos, todas as promessas do Antigo Testamento e todas as realizações do Novo; tudo isto viveu dentro da alma de Nossa Senhora.

Podemos até nos perguntar se este episódio não foi mais bonito do que quando a Santíssima Virgem trazia o Messias em seu seio. Numa ocasião Ela gestava o Messias e carregava dentro de Si a salvação do mundo inteiro; noutra, tinha Ela em Si a Santa Igreja Católica Apostólica Romana, portanto, o Corpo Místico de Cristo.

É à noite que é belo acreditar na luz

Na obra Chanteclair, de Edmond Rostand, há uma linda frase: “É à noite que é belo acreditar na luz”.

Que mérito há em acreditar na luz ao meio-dia? Mas, acreditar na luz à meia-noite, ou mais ainda, às três horas da manhã, quando até a própria meia-noite já vai longe, tem-se a impressão de que o curso das coisas nos afundou nas trevas definitivamente; aí é que é belo acreditar na luz.

Ora, Nossa Senhora acreditou na luz durante a terrível meia-noite da morte de seu Filho. Apesar de presenciá-Lo “rompu, brisé, anéanti”(2), Ela não teve dúvida nenhuma.

Quando Jesus morreu e Nossa Senhora teve seu divino cadáver no colo, Ela fez um tranquilíssimo ato de Fé, dizendo: “Apesar destas chagas e desta morte estraçalhante, Ele ressuscitará! Eu creio porque Ele prometeu!”

Este foi, sem dúvida, um dos mais belos momentos da vida d’Ela.

A fidelidade de Maria fez-Lhe merecer, até o fim do mundo, ser lembrada especialmente aos sábados

Compreende-se assim, com que tato a Igreja escolheu para festejar Nossa Senhora este dia que lembra exatamente a hora trágica da dúvida e do abandono de todos.

No sábado, Jesus estava na sepultura, cheio de perfumes e de aromas, envolto no sudário. O sepulcro estava selado por uma enorme lápide e guardado por soldados. Para todos estava tudo acabado, exceto na alma d’Ela, onde uma tocha de Fé e de convicção ardia com a certeza de que Ele ressuscitaria.

Este é o Sábado Santo, dia especialmente consagrado a Nossa Senhora.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/11/1971)

 

1) Lc. 23, 39.
2) Roto, quebrado e aniquilado.

Santa Maria Madalena: fruto da penitência e do desapego!

Estando profundamente arrependida, Santa Maria Madalena perdeu o apego às coisas da Terra que lhe foram ocasião e motivo de pecado, e voou à contemplação.

Meditando na vida da Santa Penitente, Dr. Plinio põe-se a seguinte interrogação: existirá alguma correlação entre espírito de contemplação, espírito de arrependimento, e desprendimento das coisas desta Terra?

 

Santa Maria Madalena mereceu ser a primeira pessoa a contemplar o Salvador ressuscitado.

No famoso episódio do banquete, em que Maria Madalena — tudo leva a crer que dela se tratava — ungiu os pés de Nosso Senhor, há aspectos colaterais os quais nos fornecem algumas perspectivas da alma e da vida dela, bem como de sua posição no firmamento da Igreja, que seria o caso de comentarmos.

Contemplação e penitência

Ela era irmã de Lázaro, o qual segundo a tradição, pertencia à alta sociedade porque era um homem muito rico. Portanto, Lázaro e suas duas irmãs eram pessoas de alta categoria, mas Maria Madalena havia decaído muito e se tornara uma pecadora pública.

Depois do seu arrependimento, Santa Maria Madalena passou a representar duas coisas que se tornaram claras: de um lado a contemplação, e de outro a penitência.

Ela se diferenciou de Marta, no célebre episódio em que Nosso Senhor disse a esta última — que censurava Madalena porque não estava se ocupando das coisas da casa, mas se limitava a olhar para Ele e ouvi-Lo —: “Marta, Marta, Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada!”(1)

A partir de então, Santa Maria Madalena representou o estado puramente contemplativo, destacado da vida ativa. E, pelo seu grande arrependimento, pela sua fidelidade ao pé da Cruz, e pelo fato de ter sido a primeira que teve notícia da ressurreição do Redentor, ela passou a simbolizar não apenas a contemplação, mas a penitência, a penitência na sua glória, no estado do maior perdão e da maior intimidade com Nosso Senhor.

Com o exemplo da vida dela, e de outros santos, alguns teólogos pretenderam que o estado de penitência séria, profunda, é mais bonito que o estado de inocência.

Judas, o oposto de Santa Maria Madalena

Em terceiro lugar, ela representou também a afirmação dos direitos da inocência e dos direitos de Nosso Senhor.

Em que sentido?

Todos se lembram deste fato: estando o Divino Salvador em Betânia, foi oferecida uma ceia em sua honra. Madalena entrou e, quebrando um vidro de perfume, começou a ungir os pés de Nosso Senhor. Judas censurou-a a esse respeito, mas o Redentor justificou a atitude dela(2).

Vemos aí a penitência, juntamente com a contemplação, numa espécie de irredutível oposição ao espírito sem nenhum arrependimento de Judas. Este, em vez de arrepender-se, caiu no desespero, como mostra o ato pelo qual ele se enforcou na figueira.

Enquanto ela, como contemplativa e penitente, representava a renúncia aos bens da Terra, Judas, como ladrão, traidor — e traidor por dinheiro —, simbolizava o apego aos bens deste mundo.

Dois itinerários que se cruzaram

O que pode ter levado esse miserável a ter tanto apego ao dinheiro? Um apego que naturalmente chegou ao ódio ao Redentor, porque ninguém faz uma traição como aquela, apenas por lucro, sem ódio; no fundo, um ódio que domina o próprio espírito de lucro. A roubar as esmolas coletadas para os pobres? Ele que era o defensor dos direitos dos pobres, na hora em que se verteu o perfume nos pés de Divino Mestre… Ao desejo de se tornar rico, para ter uma carreira colateral à de apóstolo, e ser um homem considerado importante naquela sociedade de Jerusalém, julgando que ele perdia algo de sua carreira humana seguindo a Nosso Senhor Jesus Cristo, a quem os fariseus desdenhavam como um homem sem importância?

Judas fez tais coisas porque, quando ele estava junto a Nosso Senhor e ouvia as prédicas e assistia aos milagres do Divino Mestre, o seu espírito saía de lá e começava a pensar em Jerusalém, nas suas praças ou no Templo, onde ficavam os tão “finos, simpáticos e inteligentes” fariseus.

Porque não se reteve nas contemplações do Redentor e começou a aspirar às coisas do mundo, ele caiu em pecado. E esse pecado, chegando até o extremo, o conduziu ao desespero: Judas então se enforcou na figueira maldita.

Podemos admitir a possibilidade de que, em determinado momento, Judas esteve em estado de graça e Maria Madalena em pecado mortal. Ela saiu do pecado, para subir a um alto grau de virtude, e ele desceu da condição de apóstolo, para a qual tinha sido convidado por Nosso Senhor — houve, portanto, uma hora em que o Redentor não só o amou, mas o amou até o fim, e Judas amou a Nosso Senhor —, ele desceu desta condição, para ser o vendilhão do Salvador.

Vemos assim quanto pode subir uma alma que está no lodo, e quanto pode cair uma alma chamada para o que há de melhor. Foram dois itinerários que se cruzaram; é uma coisa que nos arrepia, enche de terror.

Santa Maria Madalena e Judas; espírito de Jacó e de Esaú

A oposição das figuras de Santa Maria Madalena e de Judas torna-se tão flagrante que vai até ao Calvário e à Ressurreição.

Ela estava ao pé da Cruz, e ele, o apóstolo maldito, o homem execrando, foi quem encaminhou Nosso Senhor para a Cruz. Santa Maria Madalena é a primeira a presenciar a Ressurreição, enquanto ele se enforca e sua alma cai porcamente no Inferno.

As antíteses entre um e outro estado de alma são tremendas; os espíritos são diferentes. Compete-nos fazer uma análise dos traços desses espíritos.

Que nexo há entre arrependimento, pura contemplação e desapego dos bens do mundo, de um lado; e de outro lado, impenitência final, desespero, apego aos bens do mundo, enchafurdamento na vida prática, ativa, como fazia Judas, homem que naturalmente roubava e fazia negócios desonestos? Que paralelismo existe entre uma coisa e outra?

Há algum tempo tratei neste auditório a respeito de Esaú e de Jacó, e falei sobre o espírito de ambos.

Santa Maria Madalena nos afigura como quem teve o espírito de Jacó. Quer dizer, espírito superior, voltado para as coisas elevadas, portanto para Deus, e indiferente às coisas materiais do mundo.

Judas é o tipo do Esaú. Mais do que vender o direito de primogenitura por um prato de lentilhas, ele vende seu Salvador por trinta dinheiros, o que é muitíssimo pior. E não teve verdadeiro arrependimento, porque nele não havia mais nenhuma forma de virtude sobrenatural. Fracassou totalmente, caiu no desespero e suicidou-se.

Contemplação nascida da penitência e do desapego

Então, que nexo existe entre estas três coisas: o espírito de contemplação, o espírito de arrependimento, e o desprendimento das coisas desta Terra?

É fácil compreender, pois uma pessoa, de qualquer um desses pontos parte para o outro. Estando profundamente arrependida, com arrependimento eficaz, ela perde o apego às coisas da Terra que lhe foram ocasião e motivo de pecado; e, tendo esse desapego, facilmente vai para a contemplação. A pura contemplação e a renúncia das coisas devido às quais ela pecou, levada ao último extremo, são o próprio da penitência. Quem pratica a verdadeira penitência não se limita a separar-se daquilo que o conduziu ao pecado; ele o execra. E por isso coloca, entre aquilo por onde pecou e si mesmo, a maior das distâncias.

Para praticar essa penitência tão grande, convinha a Santa Maria Madalena separar-se completamente do mundo. E não ficar apenas no estado de uma vida contemplativa e ativa, mas levar vida puramente contemplativa, em que tudo foi abandonado, e qualquer forma indireta de contato com a matéria execrada devido ao pecado foi também cortada; assim, não lhe restava outra coisa senão a contemplação. Contemplação que, nascida da penitência e do desapego, faz compreender a excelência das coisas do Céu, e que todas as coisas da Terra foram feitas para as do Céu. Portanto, era justo e bom derramar unguento nos pés sacrossantos de Nosso Senhor Jesus Cristo, mesmo quando houvesse pobre que precisasse de esmola.

A pecadora arrependida amava Nossa Senhora, e o traidor A detestava

Todos os que têm tratado deste particular dizem o seguinte: Judas com certeza não tinha devoção a Nossa Senhora. Se tivesse para com a Santíssima Virgem um mínimo de instinto filial, de simpatia, de amor, quando ele caiu inteiramente em si iria procurar por Ela; e ter-Lhe-ia pedido que arranjasse a situação dele. Mas Judas tinha antipatia por Nossa Senhora, e A detestava. O Evangelho diz, de modo taxativo, que o demônio tinha entrado nele. E o demônio afastava-o o quanto possível da Virgem Maria.

Qual o resultado? Ele não se dirigiu Àquela que é o canal das graças, e isto ocasionou a sua perdição.

São Pedro, depois de ter renegado Nosso Senhor, talvez tenha tido tentação de desespero. Mas é certo moralmente que ele procurou Nossa Senhora. Por isso, ele, que também tinha pecado muito, foi fiel, sendo o primeiro Papa da Santa Igreja Católica.

Santa Maria Madalena sempre aparece fazendo parte do cortejo da Santíssima Virgem, intimamente unida a Ela em todos os momentos, sobretudo na hora régia da vida de Nossa Senhora, quando Nosso Senhor Jesus Cristo, com dores indizíveis, disse “Consummatum est”.

Podemos imaginar Santa Maria Madalena junto a Nossa Senhora, na hora da piedade, quando  Mãe de Deus tinha Nosso Senhor Jesus Cristo sobre seu colo.

Naquele momento tremendo, Nossa Senhora ficou inteiramente abandonada: Nosso Senhor no sepulcro, o Colégio Apostólico vacilante, a cidade de Jerusalém entregue a terremotos, e os justos da Antiga Lei andando de um lado para o outro. A Santíssima Virgem, nessa situação tão pouco conhecida, estava completamente só.

Tenho a impressão de que não Lhe faltou a assistência de Santa Maria Madalena, a qual estava junto d’Ela. E porque permaneceu junto à Mãe de Deus, ela recebeu um rosário de glórias, cada uma mais extraordinária do que outra.

Quando vemos tudo isto, é impossível não estremecermos com a nossa própria fraqueza. Mas é impossível também que não nos sintamos concertados com este ponto: por mais fraco que o homem seja, desde que ele se apegue muito a Nossa Senhora, peça-Lhe muito por sua própria perseverança e para que Ela o ampare, nunca o abandone, ele encontra aí um ponto de firmeza, de solidez.

A última das pecadoras aproximou-se de Nossa Senhora e se tornou uma penitente gloriosíssima. Um apóstolo, que era distante de Nossa Senhora e frio para com Ela, tornou-se o filho da maldição e da perdição, que Dante coloca no Inferno dentro da boca de Satanás, com as pernas para fora, o eternamente triturado. Enquanto que podemos imaginar, no Céu, Santa Maria Madalena posta bem perto do Sagrado Coração de Jesus e do Imaculado Coração de Maria, agradecendo os favores imerecidos de que ela foi repleta. 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/7/1965)

1) Lc 10,42.
2) Cf. Jo 12,1-8.

O poder das lágrimas de Maria

No momento de Jesus ser retirado da Cruz para ser depositado, como sobre um altar, nos joelhos virginais e santíssimos de sua Mãe, Nossa Senhora olhava para Ele e chorava amargamente.

As lágrimas de Maria Santíssima, vertidas tão abundantemente quanto o sangue por Ele derramado, operaram algo extraordinário: para que os efeitos da Redenção santíssima se aplicassem plenamente a nós, essas lágrimas mereceram o que nós não mereceríamos, aquilo que os nossos pecados rejeitaram afastando de nós o Sangue de Cristo.

Pelas lágrimas de Maria, intercessora onipotente junto a Deus, a misericórdia exalada pelo Sangue de Cristo mais uma vez desceu até nós, nos resgatou, nos deu forças e nos incitou à luta.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/4/1990)