Arca da Esperança

Durante o período em que Nosso Senhor jazia no sepulcro, só Nossa Senhora creu na Ressurreição.

Portanto, sobre toda a face da Terra Ela era a única criatura com uma Fé sem sombra de dúvida, uma expectativa imensamente dolorida por causa do pecado cometido, mas calma, às promessas evangélicas.

Maria foi a Arca da Esperança que continha em Si, como em uma semente, toda a grandeza e todas as virtudes que a Igreja haveria de desenvolver e semear ao longo dos séculos; todas as  promessas do Antigo Testamento e as realizações do Novo. Tudo isso viveu dentro de uma única alma: a alma da Santíssima Virgem.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/11/1971)

Uma das obras-primas da piedade católica

A família Scrovegni, muito poderosa em Pádua no início do século XIV, mandou construir um palácio e uma igrejinha. A família e o palácio desapareceram; ficou apenas a capela cujas paredes Giotto marcou com os tesouros de seu gênio de pintor

Antes de passar aos comentários de algumas pinturas de Giotto, é interessante tomar conhecimento de dados históricos a respeito da Cappella degli Scrovegni(1).

Restou a capela por causa das pinturas de Giotto

O trabalho de Giotto na Cappella degli Scrovegni – ou Capela Arena, pois ela está situada no interior de uma área outrora ocupada por um anfiteatro romano – data possivelmente do ano 1305. Os documentos do tempo nos informam que Enrico Scrovegni, membro de uma poderosa família de Pádua, comprou em 1300 todo o terreno das arenas romanas para ali construir sua própria residência, hoje inteiramente destruída, com a capela anexa.

Então aquela igrejinha cujas paredes Giotto marcou com os tesouros de seu gênio de pintor – e, ao que parece, também de sua grande piedade, porque os quadros são muito piedosos – foi capela  do palácio de uma família. A família e o palácio não existem mais, porém a capela ficou por causa das pinturas de Giotto.

A construção da pequena igreja, autorizada em 1302 pelo bispo local, desenvolveu-se rapidamente, sendo consagrada no ano de 1305. O Papa Bento XI concedera, no ano precedente, indulgências aos visitantes dessa mesma capela. Analisemos, agora, algumas dessas pinturas.

Nosso Senhor entra em Jerusalém com a fisionomia triste

No dia em que Nosso Senhor ressuscitou Lázaro, os fariseus comentaram entre si que era preciso matá-Lo. Realmente organizaram um caso, em torno do qual provocaram a morte de Jesus.

Vemos nesse afresco Nosso Senhor dar uma bênção e Lázaro, com seu corpo todo enfaixado, sair da sepultura. E ele e mais uma irmã, provavelmente Marta, estão empenhadíssimos em que se  preste atenção no acontecimento, porque um grande milagre está sendo praticado.

Esses dois santos, no primeiro plano do quadro, estão pasmos com o assombroso milagre realizado pelo Divino Mestre. Notem Lázaro, todo enfaixado como os judeus costumavam fazer com os seus mortos, e um pouco mais adiante um personagem com uma veste verde-claro, que está falando com muita animação. Parece ser da turma de canalhas que resolveu a morte de Nosso Senhor
Jesus Cristo.

Outro quadro representa o Domingo de Ramos. Observem a inocência da apresentação: Ao fundo, para dar a entender que Jerusalém estava em seu início, aparece um pedacinho de fortificação e uma torrezinha que não daria para defender-se contra um batalhão de cem homens. Porém, é evidentemente uma imaginação. Nosso Senhor entra em Jerusalém com a fisionomia triste, o rosto muito varonil, uma abundância extraordinária de barba, e a atitude de um prelado de altíssimo poder ou de um chefe da Religião verdadeira. Ele era muito mais do que isso: o Messias. No meio da multidão que O acompanhava percebe-se uma ou outra pessoa com o aro da santidade. Ele mesmo tem esse aro muito definido, quer dizer, sinal de santificação. Sem dúvida, Jesus era o maior de todos os Santos.

Descem os azorragues

Uma pintura nos mostra a parte do Templo de Jerusalém, onde havia mercadores vendendo suas mercadorias. Nosso Senhor, não conformado com isso, desce os azorragues nesses negociantes.

Vemos dois homens de pé, apoiando-se um no outro, e o Redentor, com uma fisionomia evidentemente indignada, açoitando como quem tem o direito de bater, de verdade e com força. Os dois estão apenas procurando defender-se contra as pancadas porque, na concepção de Giotto, não tinham muita facilidade de fugir no momento.

Dentro de uma gaiolinha veem-se uns pássaros, que estavam à venda para serem oferecidos como sacrifício. Ao lado, os Apóstolos assistem a essa cena para lá de edificante.

Na representação da traição de Judas, os dois personagens ao lado estão confabulando, urdindo. O homem que conversa com Judas é um fariseu velho, experiente, com ar sacerdotal, e que recomenda discretamente como o traidor deve proceder. Judas, inimaginavelmente cruel e sem-vergonha, ouve as instruções para aplicá-las bem exatamente, numa atitude respeitosa. Sem sabermos o  que dizem, temos a impressão de quase ouvir o murmúrio da voz deles.

Evidentemente, Judas já está recebendo o saquinho com o preço da traição, que vai junto com as últimas recomendações. Atrás do traidor se encontra o demônio que está mandando em tudo.

Gosto muito mais desta representação da Santa Ceia do que a de Leonardo da Vinci. São João encosta a cabeça junto ao Coração de Jesus e pergunta quem é o traidor. Nosso Senhor o recebe com carinho, mas não indica o nome. Todos estão confabulando entre si sobre o que quererá dizer isso, mas numa relativa calma, a qual é uma das vergonhas da atitude deles durante o prenúncio da Paixão. Por certo, o católico não deve perder a calma, porém não precisa ter esta fleuma que denota uma certa indiferença, à espera da chegada do banquete para eles comerem.

Cerimônia do lava-pés. O Divino Mestre está lavando os pés de uma pessoa, e Ele se humilha a ponto de praticamente Se ajoelhar para executar esse ofício de caráter servil. Os Apóstolos estão comentando, estranhados com o fato. Mas Nosso Senhor não faz questão da opinião alheia e vai realizando o que deve fazer.

A revolta dos anjos e o ósculo de Judas

Depois da revolta dos anjos, e talvez certos episódios ainda ocultos da História contemporânea, não creio ter havido na História dos homens nada de comparável a esse fato do ósculo de Judas.

Para mim, esse “face a face” entre Nosso Senhor e Judas é das coisas mais espantosas que um pincel humano tenha pintado.

Nosso Senhor está sério e olhando o traidor até o fundo  da alma. E Judas procurando mentir. É a Verdade eterna e subsistente, encarnada, a qual olha para um homem que mente.

Judas, procurando tornar a mentira dele aceitável, abraça seu Mestre e O olha com ares de quem quer dar a entender ser seu grande amigo. Nosso Senhor fita-o e diz: “Judas, com um ósculo trais o Filho do Homem?” (Lc 22, 48).

De fato, Judas combinou com os guardas que o homem procurado para ser preso, Jesus de Nazaré, era aquele a quem ele beijasse. Então, foi até Nosso Senhor e, aproveitando-se de sua intimidade de apóstolo, aproxima-se do Divino Mestre e oscula a Sagrada Face. Jesus recebe com paciência esse beijo imundo, acompanhado provavelmente de um mau cheiro asqueroso, cheiro do Inferno.

Giotto quis representar em Nosso Senhor Jesus Cristo o auge de todos os predicados intelectuais e morais, e em Judas o extremo de todas as abjeções. Consideremos os recursos de que o artista se serviu para isso. Primeiramente, a cabeça de Nosso Senhor é provida com certa largueza de cabelo, mas não é uma cabelama que dá a impressão desses tapetes felpudos, feitos para serem postos do lado de fora da casa a fim de limpar os pés. Judas, não. Ele está com uma grenha suja, abundante, e que ele tratou de pentear direito antes de cometer seu crime infame, pois não queria que nada atrapalhasse o “bom negócio” que ele ia fazer. Quiçá, se ele estivesse desgrenhado na hora do beijo, o Divino Mestre não o quisesse aceitar. Ora, era preciso que tudo se passasse com ares de cordialidade.

Então ele se enfeitou. Comparem a desordem capilar de Judas com a proporção e a ordenação adequada de Jesus.

Comparemos também a implantação da barba de Nosso Senhor e a de Judas. A barba de Jesus possui boas dimensões e se dispõe muito belamente em cima da pele, tudo muito direito, com muita proporção. O mesmo se deve dizer do bigode. Prestem atenção na barba de Judas! São uns fios raros, formando arquipélagos peludos em uns e outros lugares do rosto. Nem se sabe bem o que é barba e o que não o é ali.

Por outro lado, no traidor a parte que vai do alto da maçã do rosto até o queixo é enormemente desenvolvida em comparação com a de Nosso Senhor, em quem tudo é proporcionado.

Judas dá a impressão de uma gulodice porca, horrorosa, enquanto Jesus manifesta uma austeridade delicada e verdadeiramente divina.

O apóstolo traidor não responde à pergunta de seu Divino Mestre. Logo depois de tê-Lo entregue, ele se põe a delirar e começa a correr de um lado para outro à procura de um sacerdote a fim de ver que jeito dava no caso. Mas, não tendo sucesso, acaba recorrendo ao suicídio.

Nossa Senhora de pé, com força e determinação

No recinto de Caifás – onde este Sumo Sacerdote se apresenta com autoridade, sentado sobre um estrado com dois degraus –, percebe-se uma algazarra e uma politicagem. Os personagens falam, mexem-se, Caifás está raivoso e agitado, e todos querendo encontrar um meio de arrancar dos lábios de Jesus uma palavra que justifique a sua condenação, mas não conseguem.

Nosso Senhor está calmo, sereno, sem ódios, mas sem abandonar sua posição em nenhum instante, e confessando a verdade corajosamente em todos os momentos.

Por causa disso – e Ele o sabia – haveria de acontecer que os seus tormentos iriam crescer cada vez mais até o fim.

Eis a Flagelação: não pode ser mais triste a atitude d’Ele, penetrado de dor física como de sofrimento moral – já alheio a tantos desaforos, ultrajes, insultos que lhe dizem e aos quais Ele não deve responder –, com a vara de bobo na mão e padecendo sem fim para resgatar os nossos pecados.

“Baiulatio Crucis Domini Nostri Iesu Christi”, Nosso Senhor Jesus Cristo carregando a Cruz. O Redentor vai sozinho, com aro de santidade, todos os outros são pessoas estranhas a Ele, indiferentes, exceto um que eu suponho ser São João Evangelista, acompanhando veladamente e de longe. Jesus carrega a Cruz com decisão rumo à sua própria imolação. Os outros estão totalmente alheios, pouco lhes importa. É a crueldade dos adversários d’Ele.

Crucifixio et mors Domini Nostri Iesu Christi”. Trata-se, portanto, do que nós contemplamos e veneramos no quinto mistério doloroso do Rosário. O Corpo está lívido, parece que o Redentor já emitiu ou está por emitir o último suspiro. Uma das santas mulheres oscula seus pés. Nesse grupo de três pessoas vemos Nossa Senhora,
a sua esquerda São João Evangelista, e a sua direita parece estar outra das santas mulheres; os outros personagens não são mostrados.

Por esse cantinho do lado esquerdo da Cruz, observamos como o local se está enxameando de gente que quer assistir aos acontecimentos. Mas o céu se encontra crivado de Anjos cantando a glória d’Ele. Entretanto, os espíritos angélicos, por enquanto, estão invisíveis, de maneira que os homens viam apenas a dor e a vergonha.

Nossa Senhora como está? Muito contundida, mas de pé, com força e determinação para tudo. Ademais de ser concebida sem pecado original, Ela amava tanto a Deus que era capaz de, por causa desse amor, frear a sua própria dor em alguma medida, de maneira a sustentar-Se de pé o tempo inteiro. Esta é a Paixão segundo Giotto, para mim uma das obras-primas da piedade católica. 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/11/1988)

Contemplar maravilhas nos prepara para o Céu

Descrevendo as belezas existentes no palácio de Versailles, sua solidez e dignidade, Dr. Plinio afirma que todo católico precisa desejar o maravilhoso para amar a Deus, enquanto que a Revolução visa a abolir o amor ao belo.

 

O palácio de Versailles foi construído por ordem de Luís XIV, segundo os preceitos e princípios da arte francesa e do espírito francês, para simbolizar a glória da monarquia e o brilho da majestade real.

Le Nôtre: o maior jardineiro de todos os tempos

Notemos, em primeiro lugar, a vegetação. O europeu cuida extremamente da vegetação e tem por jardins, árvores e parques um zelo todo especial. Esta coloração tão bela é fruto do trabalho, ao longo de séculos, de pessoas que aspiravam ao píncaro em matéria de relva, e que por isso plantaram relvas maravilhosas.

O resultado é que olhamos para este panorama e temos uma sensação de verdor, de vida, de saúde, de frescor que descansa os olhos. Mas repousa principalmente a alma, ao considerar uma criatura de Deus tão cheia de viço primaveril. Trata-se, portanto, de alta cultura em matéria de relva, como encontraremos também em Versailles uma elevada cultura em matéria de arquitetura. Porque tudo ali é alta cultura e custou esforço, vontade de produzir maravilhas por parte de gerações inteiras.

É interessante considerar como a vegetação está toda ela bem aparada, formando desenhos, o que evidentemente dá trabalho também. Esses desenhos foram elaborados pelo maior jardineiro de todos os tempos: Le Nôtre(1). São desenhos geométricos nos quais entrou um mundo de pensamentos e o cuidado de estabelecer a harmonia com a fachada do castelo.

Dignidade, fortaleza, estabilidade

Analisemos agora o castelo. Ele visa exprimir a dignidade, a fortaleza e a estabilidade da realeza. São os três valores que caracterizam todo poder na Terra. Quando este é digno, forte e estável, ele impõe o respeito. Há, portanto, como pressuposto dessa obra, uma teoria do poder.

Ao contemplar Versailles surge logo a exclamação: Que bonito este castelo! Mas somente prestando atenção notamos como esta beleza é obtida. Encontramos três zonas de leveza diferentes no castelo: primeiro, o que chamaríamos o rés do chão. Tem-se a impressão de algo forte, que toca no solo e constitui um fundamento vigoroso. O robusto da base é acentuado pela abundância de pedras, todas rajadas, que dão a impressão de estarem postas umas sobre as outras, quase como um muro. É a ideia da solidez.

Vem depois a ideia da dignidade. Consideremos o andar de cima: são janelas altas, constituindo uma fachada muito longa. Mas enquanto no andar inferior os arcos não têm colunas, no superior cada janela está entre duas colunas. Por ser esbelta, a coluna dá um ar de leveza e confere a esta parte do castelo um caráter de nobreza. Este andar é leve e fidalgo, enquanto o anterior, forte e serviçal.

De vez em quando se destacam corpos do edifício formando terraços, para quebrar a monotonia da fachada. É o cenário apropriado para aparecer, por exemplo, o rei com a família real e outras pessoas da nobreza, constituindo moldura para o monarca. Quer dizer, é uma apresentação, para todos, de uma hierarquia política e social ornamental, decorativa, nobre, pomposa, que mostra a sua beleza, mas ao mesmo tempo manifesta-se afável, risonha, numa proporção humana com os que estão embaixo; sem esmagá-los pela sua altura, mas isolando-se.

O último andar é tão pequenino que a vista quase abstrai dele. O olhar se concentra no restante e quase prescinde desse pequeno andar que parece servir apenas para suportar troféus guerreiros e estátuas. E, por cima, tem o céu. Forma-se, assim, uma espécie de transição entre a ordem política e social, e Deus. O castelo parece não ter fim, ele se perde em figuras alegóricas, em formas etéreas, e se funde com o horizonte celeste. Foi esta a intenção ao construí-lo.

Degustar sua beleza como se prova um fino licor

Esta concepção arquitetônica corresponde bem aos erros da época: a atenção está toda voltada para o rei, para a esfera política e social; o elemento forte e o leve são quase molduras para ressaltar a realeza. Temos, assim, a glorificação da realeza feita pelo castelo.

Para explicitarmos o que o castelo tem de maravilhoso, é necessário que o contemplemos algumas vezes por espaços de tempo bem diversos. Só então essas considerações vão se destacando e percebemos toda a realidade. É como provar um licor fino: às vezes sentimos seu sabor somente depois de tê-lo engolido. Aqui também: é a segunda ou a terceira análise que nos torna mais palpável o que acabo de explicitar, e nos faz degustar completamente o que o castelo de Versailles diz para aqueles que o visitam.

Embora esse castelo exista como uma concha vazia, pois tudo quanto nele era vivo foi exterminado ou levado embora, até hoje os turistas do mundo inteiro vêm vê-lo. É uma fama de beleza que se mantém pelo consenso de todos que o visitam.

Como é bonito ter havido todas essas ideias no espírito dos que compuseram esse castelo e, séculos depois, alguém, olhando para ele, recompor essas ideias e, por assim dizer, dar-lhes vida! Tal é a densidade de pensamento que uma obra de arte pode conter.

Essas considerações ajudam-nos a readquirir o gosto pelo maravilhoso. A alma de um católico tem que desejar o maravilhoso para amar a Deus. Somos criados para ver a Deus face a face; e contemplar essas maravilhas é uma preparação para o Céu. Preparam-se para o Céu os povos dotados desse amor ao maravilhoso que a Revolução de tal maneira quer abolir.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/3/1967)

1) André Le Nôtre (1613 – 1700). Foi jardineiro do Rei Luís XIV de 1645 a 1700.

Sabedoria e sacralidade – I

A visão sacral do universo, haurida no Sagrado Coração de Jesus por meio da Santa Igreja Católica, levava Dr. Plinio a tudo analisar sob este prisma e a discernir o cunho dessacralizante da Revolução.

 

Em menino, recebi a influência altamente benéfica dos jesuítas em minha formação. Assim, graças a Nossa Senhora, vincou-se muitíssimo no meu espírito a noção de que, por cima de tudo aquilo que eu vinha considerando e admirando nas etapas anteriores, pairava a autoridade doutrinária da Igreja, e o que havia na minha alma de bom, de belo, eu o tinha porque era católico e o recebia de minha comunicação espiritual, sobrenatural e religiosa com a Igreja Católica.

A Igreja, fonte de todo o bem

Os jesuítas não insistiam sobre a metáfora do Corpo Místico, mas a doutrina eles davam. Naturalmente, prestei
muita atenção nela e se cravou muito em meu espírito a ideia de que a Igreja era a própria fonte de onde vinha tudo quanto havia de bom em mim. Ou seja, o Sagrado Coração de Jesus, por meio do Coração Imaculado de Maria. Essa noção era muito vivaz, mas foi “doutrinalizada” só mais tarde quando li São Luís Grignion de Montfort.

Tudo quanto era de Jesus Cristo, para mim vinha por meio da Igreja, a concha na qual pousavam todos os benefícios d’Ele para todos os homens. Eu me entregava àquilo e hauria tudo dali.

Mas a Igreja era a minha mestra e corrigiria os desvios eventuais a que meu espírito estava sujeito. Eu me sentia capaz de erro, pelo lapso da inteligência, pela tendência ao mal, mas também enormemente protegido pela ideia da infalibilidade da Esposa de Cristo.

Eu percebia a impossibilidade de fazer todos os homens pensarem do mesmo modo. Ou havia uma autoridade infalível que ensinava a todos, ou não existiria possibilidade de pensarem da mesma forma. Enquanto isso não se desse, a vida seria um caos, indigna de ser vivida.

Daí uma veneração enorme pelo Papado. E depois, correspondentemente, pelo Episcopado e pelos outros graus da Hierarquia.

Jardim protegido pelas muralhas do dogma e da lei

Juntamente com tudo isso, também uma ideia do poder governativo da Igreja.

Em primeiro lugar, as leis feitas por Deus, sacratíssimas, venerabilíssimas, mas obrigando como a lei obriga. Depois, as leis da Igreja, complementação das leis de Deus, obrigando também com uma autoridade divina.

Portanto, a noção do dogma, do preceito, da necessidade de obedecer — sobretudo em matéria religiosa — se vincou em meu espírito a fundo. E quem não obedecesse teria que cumprir uma pena. Eu tinha entusiasmo pela aplicação efetiva da penalidade, e repulsa em relação às autoridades que aplicam de um modo dorminhoco, negligente a lei, que velam com mão mole sobre o dogma.

Tudo isso formou uma vertente do meu espírito, como fruto das etapas anteriores. Não como uma etapa nova, mas uma complementação a uma coisa já existente.

E a inocência era para mim como um jardim magnífico, mas protegido pelas muralhas do dogma e da lei. Um jardim fortificado.

Há em certo lugar da Escritura uma referência ao “hortus conclusus”(1) — jardim fechado —, que a Igreja aplica a Nossa Senhora. A Igreja me parecia um horto fortificado, cheio de maravilhas no interior, mas do lado de fora preparado, ajustado e assestado para o combate. A ideia da fortaleza era um complemento.

Ordem do universo e combates sacrais

Do choque com a Revolução vinha a ideia de que a ordem do universo pedia que fosse possível haver combates sacrais. Porque seria necessário que, em homenagem aos mais altos valores, houvesse os mais elevados sacrifícios, os heroísmos mais extremos, os sacrifícios mais terríveis, as abnegações mais cruciantes. Portanto, o sacral de si era belígero, no sentido de que a presença dele na Terra, ao mesmo tempo, atraía e repelia, criava uma divisão. E essa divisão provocava a luta.

A luta, de vez em quando, daria na guerra. E esta guerra, em certo sentido, completava a ordem do universo, porque era a efetivação do holocausto com sangue à sacralidade, que o homem deveria pagar.

De maneira que o pacifismo exagerado e o laicismo sempre me pareceram coisas correlatas, não na primeira superfície, mas no fundo.

Eu ainda não conhecia o ecumenismo falso, inteiramente diferente do ecumenismo verdadeiro. Podem calcular quando conheci esse falso ecumenismo, que sabor desagradável me produziu na boca…

Sempre me pareceu que esses utopismos não queriam considerar que, sendo o mundo um vale de lágrimas, de vez em quando era necessário que nele aparecessem lutas, conflitos, os quais levassem até esse ponto.

Era uma necessidade deplorável, fruto do pecado original e dos outros pecados dos homens, mas de uma natureza tal que seria ainda mais deplorável se não houvesse. Porque até mesmo o homem concebido sem pecado original ficaria amputado e deformado se ele não tivesse a possibilidade, às vezes, de levar a luta pelo sacral ao extremo de todas as dedicações.

Holocausto sublime que dá beleza à vida

Nesse sentido, a guerra legítima me aparecia como uma nota da sacralidade. Porque é um holocausto praticado pelo homem que vai à batalha, mesmo quando esta não tem motivo religioso, mas é uma questão de fronteiras ou algo assim. Neste caso, o combatente defenderá o direito de seu país por uma razão moral. Ele, católico, vai à luta porque um Mandamento de Deus o obriga a ir. Nesse sentido, para ele é uma “guerra santa”. Não santa na sua meta imediata, mas na sua meta última de cumprir o dever para com seu país.

De onde, então, em toda guerra justa, exatamente nos seus horrores, aparecer um sentido de holocausto sublime que dá uma beleza à vida, indispensável para compor os aspectos da existência, tal como ela é em consequência do pecado original e dos pecados atuais.

Alguém, para fazer chicana, perguntaria: “Você não deseja uma era de paz? Veja na Escritura tudo quanto se diz a respeito da paz, da beleza dela, como se deve querer uma paz eterna que nunca mais tenha fim. Você não deseja isso? E fica como uma hiena, um chacal à espera da efusão do sangue? E você se diz católico?!”

Como as doenças que nunca desaparecerão…

A resposta é muito simples. Aplica-se aqui tudo quanto sabemos a respeito da necessidade da doença. Não há quem possa, em certo sentido da palavra, gostar que haja enfermidades na Terra. Mas, de outro lado, ninguém pode imaginar até onde o mundo cairia se não houvesse doenças.

Então, o homem deve fazer o possível para diminuir o número de enfermidades, bem certo de que Deus nunca permitirá que elas desapareçam. E, pelo contrário, pode Ele dispor que, na medida em que o homem vá vencendo na luta contra as doenças, vão aparecendo enfermidades, menos numerosas é verdade, entretanto mais cruéis. Por quê? Porque Ele não quer que a dor desapareça dentre os homens.

A própria Igreja, que tanto fez para diminuir os sofrimentos do homem doente — com os bens do espírito e do corpo, incitando, estimulando e consolando —, entretanto sabe que a doença é de uma grande utilidade. Faz o possível para evitá-la, mas o faz tranquilamente porque tem ciência de que jamais desaparecerá de modo completo, e que, portanto, nunca faltarão doenças nesta Terra.

Assim também é a guerra.

Sacralidade e luta

Então, a esse senso de sacralidade se acrescentou um colorido militante, pelo qual a minha alma ansiava, e que se representava pouco nas expressões religiosas que eu conhecia até essa época.

Lembro-me de que quando os jesuítas falavam de Santo Inácio como grande combatente no cerco de Pamplona — eles ressaltavam muito isso —, eu ficava encantado, embora visse bem que a guerra, dentro da qual a batalha de Pamplona era um episódio, referia-se a questões de limites da França com a Espanha e, mais remotamente, com o Sacro Império; portanto, uma guerra temporal. Mas era um herói! Quando contavam que Santo Inácio ficava entusiasmado em ler os romances de Cavalaria, eu me regozijava.

Quando vi aquele livrinho de Carlos Magno(2), a minha alma teve uma sensação de algo de completo, que se lhe acrescentava com a consideração desse maravilhoso.

Por quê? Precisamente porque o sacral sem a luta não me parecia completo. E, pelo contrário, a fina ponta da sacralidade parecia simbolizar-se para mim muito bem na fina ponta de uma espada.

O Protestantismo e a Revolução Francesa são dessacralizantes

Mais tarde, entrou a ideia da sacralidade ligada à questão da Revolução.

Eu tinha noções esparsas sobre protestantismo e o detestava, possuindo em relação a ele um horror intuitivo e muito profundo.

Lembro-me de que, em certa ocasião, a Fräulein Mathilde(3) precisou falar com alguém dentro de um templo não sei de que seita protestante construído numa rua não muito distante de minha casa. Ela entrou levando Rosée por uma das mãos e a mim pela outra.

Quando me pilhei dentro daquele recinto e percebi que era uma igreja protestante, sentia horror até de respirar, por se tratar de uma coisa que não era católica, contrária à Igreja Católica. E toda a semente protestante se afigurava ao meu espírito como sendo um horror, algo satânico, nojento.

Depois, comecei a ler algumas coisas sobre a Revolução Francesa. No fundo, embora não se explicitasse isso no meu espírito, eu via bem que havia um elemento comum entre as duas Revoluções; não só o que está em meu livro Revolução e Contra-Revolução, mas algo que, quando o escrevi, estava no fundo de minha alma, mas ainda não chegara a explicitar inteiramente: é que ambas essas Revoluções são dessacralizantes.

As igrejas ou as seitas nascidas do protestantismo têm doses diferentes de restos de uma sacralidade envenenada, conspurcada. São restos de bom vinho misturado com pus e, portanto, falso, adulterado, asqueroso.

O protestantismo é todo ele um resto de sacralidade dado para tranquilizar as pessoas que, colocadas entre a negação ou a aceitação completa da sacralidade, acabariam por optar pela Santa Igreja Católica. Então os protestantes ofereciam, como uma espécie de mal menor, o pão feito sei lá de que farinha “leprosa”, que era o pão da doutrina protestante, em vez da Doutrina Católica, o mais puro dos pães.

Daí, por exemplo, eles não usarem batina, e uma porção de outras coisas que a Igreja Católica põe por inteiro. Eles não colocavam por não terem o estofo do sagrado, que só a Igreja Católica possui.

E onde havia dessacralização eu me sentia exilado, expatriado e inimigo de morte!

Na Revolução Francesa também. A sociedade do “Ancien Régime”(4), com os defeitos que eu percebia bem, era ainda toda feita de um respeito sacral para com pessoas que, se fossem como as aparências pediam, deveriam se apresentar de um modo profundamente sacral: protocolo, etiqueta, maneiras, decoração, etc.

Em relação à Idade Média eu ainda não tinha feito a comparação, mas, vistas do tempo em que eu vivia então — os anos 20, com a influência laicista do cinema de Hollywood —, as coisas do “Ancien Régime” eram sacralizantes. Em graus diferentes, mas ao menos comportavam a sacralidade. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Continua no próximo número)

(Extraído de conferência de 14/4/1989)

Revista Dr Plinio Abril de 2015

1) Ct 4, 12.

2 ) Dr. Plinio se refere ao episódio ocorrido na Estação da Luz em São Paulo, quando, ainda menino, tomou conhecimento pela primeira vez da existência de Carlos Magno, ao se deparar com um livro popular que narrava a história deste Imperador e de seus pares. Ver Dr. Plinio, n. 8, p. 4-5.

3) Srta. Mathilde Heldmann, preceptora alemã contratada por Dona Lucilia.

4) Sistema social e político aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.

Os fulgores da Ressurreição

Contemplando os esplendores e mistérios que envolvem a Páscoa da Ressurreição, Dr. Plinio tece interessantes hipóteses e comentários sobre o significado dos acontecimentos narrados no Evangelho.

 

Nas cerimônias litúrgicas do tríduo pascal, a Igreja sempre soube impregnar de tristeza a atmosfera quando se tratava de ficar triste; e depois marcar de alegria os momentos em que se deveria estar alegre.

Pudemos ver, por exemplo, essa nota de tristeza, sobretudo, ontem: a cerimônia da Sexta-Feira Santa estava pungente!

Agora, o júbilo. O “Gloria in Excelsis Deo” dá-nos a impressão de ser o reflexo da alegria de quando Nosso Senhor ressuscitou!

A primeira visita ao Santo Sepulcro

O Evangelho lido hoje narra que Santa Maria Madalena e a outra Maria encontraram o sepulcro aberto e um anjo sobre a lápide que antes vedava o túmulo. O anjo rolou a pedra e sentou-se nela.

Por ser o seu rosto como o raio e a sua vestimenta como a neve, ele incutiu grande terror àqueles guardas que tomavam conta do sepulcro, e que então fugiram. Duas simples mulheres não tiveram medo, e ele falou com elas familiarmente.

Tem-se a impressão de que elas estavam muito intimidadas, porém não medrosas, o que é uma coisa diferente.

Outra manifestação da intimidação delas é o fato de ter sido necessário o anjo dizer-lhes que entrassem no sepulcro. Seria normal elas penetrarem ali, vamos dizer, com as reverências devidas a um lugar sacrossanto, fazendo assim a primeira visita ao Santo Sepulcro! Uma honra, aliás, enorme! Todas as gerações dos séculos posteriores visitaram o Santo Sepulcro. Elas foram as duas primeiras. É formidável! Como honra, é algo extraordinário!

Elas entraram e viram que Nosso Senhor não se encontrava lá. Estava tudo explicado.

Um acontecimento pleno de simbolismos

Agora, eu teria muita vontade de saber qual era o sentido simbólico do rosto como fulgor e das roupas como neve.

Evidentemente o fulgor indica o poder de Deus. Mas indicará de que maneira? Será um fulgor de vitória, de festa triunfal em que não se está mais pensando no inimigo, ou desse tipo de celebração de triunfo na qual se tem a sensação de estar calcando aos pés o inimigo? É uma pergunta. Qual seria o feitio desse fulgor?

Se soubéssemos como os exegetas consideram esse fulgor, talvez pudéssemos ter aí um elemento para formar um juízo sobre isso.

As roupas como a neve. Percebe-se que era neve refulgindo ao clarão desse fulgor. A neve é a pureza do espírito. Um puro espírito porque não tem carne e, além disso, é um espírito puro, ou seja, é santo! Compreende‑se bem que a túnica — seria provavelmente uma túnica — era como a neve. Mas quais são os outros significados dessa neve?

Por que ele não pairava no ar ou não estava de pé sobre a pedra, mas sentado?

Cada uma dessas coisas tem um significado. É claro que nós teríamos vontade de conhecê-los. Aumentaria nossa alegria pela Páscoa da Ressurreição.

Por que um anjo anunciou a Ressurreição?

Se o objetivo da manifestação angélica era dar uma prova apologética da Ressurreição, debaixo de certo ponto de vista, essa prova poderia não ser muito concludente. Sobretudo para os homens do século XX, cuja mentalidade os levaria a dizer:

“As duas foram caminhando para a sepultura cada vez mais compenetradas. Quando chegaram lá, estavam no auge da excitação. Então julgaram ver um anjo. E os guardas estavam fora porque tinham saído para — em linguagem nossa — tomar um cafezinho. A sepultura estaria aberta? Quem pode garantir? Qual é a prova que se tem disso? Não seria mais interessante haver um magote de dez homens importantes como, por exemplo, Lázaro, José de Arimateia, Nicodemos que dissessem terem visto? Por que um anjo?”

Eu julgaria uma objeção completamente inválida, mas é uma pergunta que se poderia fazer.

A essa pergunta devemos dar a seguinte resposta:

Deus, nas suas manifestações, não visa principalmente àqueles que não creem, mas aos que creem. Um episódio como esse — que foi a primeira manifestação da Ressurreição, depois vieram muitas outras — seria calculado conforme a conveniência da piedade e do aumento no fervor do punhado de fiéis reunidos em torno de Nossa Senhora. Era a esses que se tratava de afervorar, de alimentar, de preparar para Pentecostes, que seria o próximo grande lance.

Sendo assim, compreende-se que fosse um anjo e não um homem. Porque não existe proporção entre dez homens e um anjo. Ademais, poderia haver entre eles pequenos desacordos a propósito de um ponto ou outro, e até mesmo algum que, ao contar o fato, ficasse vaidoso…

Poder-se-ia, inclusive, levantar outra objeção: Nós não acreditamos muito nesses homens que estão servindo de testemunhas, porque nenhum homem estaria à altura de testemunhar tal acontecimento; só um puro espírito. Parece-me, portanto, inteiramente concludente e apropriado o aparecimento de um anjo para anunciar a Ressurreição.

A honra de remover a lápide do Sepulcro

Em uma de nossas comissões de estudo estamos lendo textos de São Dionísio Areopagita que tratam sobre a hierarquia dos Anjos. Segundo ele, dos nove coros angélicos existentes, o menos elevado é o dos simples Anjos.

A palavra “anjo” significa “emissário”. E esses são os emissários. Um anjo de uma categoria mais elevada é um Arcanjo. Os outros têm categorias mais altas: Principados, Virtudes, Potestades, Dominações, Tronos, Querubins e Serafins.

E São Dionísio Areopagita dizia que embora a categoria dos Anjos seja a menos elevada, ela completa a hierarquia angélica. De tal maneira que esta ficaria cambaia como um vaso do qual se serrasse a base, caso não houvesse o coro dos Anjos.

Quer dizer, a categoria menos alta é tão preciosa que constitui um elemento sem o qual toda aquela ordenação que está acima ficaria desajustada. É, pois, um importantíssimo papel. Por que Deus teria enviado um simples anjo e não um serafim para realizar uma missão como essa?

Provavelmente porque remover uma pedra não é tarefa para um príncipe. E podemos imaginar esses anjos menos elevados fazendo uma humilde e razoável súplica diante de Deus para ser dada a eles, e não a uma categoria mais elevada, a honra de mover a pedra do Santo Sepulcro:

“Senhor, Vós que nos mandais exercer missões que tocam mais diretamente na matéria, desta vez que se trata de operar a mais nobre remoção da matéria, Vós nos tirais essa ocasião única?! Ela não está na natureza de nosso ofício?”

A qualquer pessoa pareceria um argumento difícil de responder…

Duas maneiras de imaginar a Ressurreição

Mas considerando a Ressurreição em si, poderíamos imaginá-la de duas formas:

Em certo momento, Nosso Senhor começaria a dar sinais de vida. Seu Corpo sagrado se tornaria de uma luminosidade extraordinária, e no instante em que sua Alma o reassumisse, sua primeira atitude seria uma glorificação do Padre Eterno e um ato de amor ao Espírito Santo. E levantando-Se com uma majestade indizível, caminharia dentro do sepulcro transformado, de repente, numa catedral feita de luzes, cânticos e glória.

Chegando junto à porta do túmulo, o anjo rolaria a pedra. É-nos legítimo imaginar que no interstício entre a Ressurreição e o encontro com Santa Maria Madalena, em virtude do deslocamento rapidíssimo dos corpos gloriosos, Ele tenha estado no Cenáculo e se manifestado a Nossa Senhora. De maneira a ter sido Ela a primeira pessoa a contemplar seu divino Filho ressuscitado. Logo depois, Jesus teria Se apresentado a Santa Maria Madalena, conforme nos descreve o Evangelho.

Essa seria uma modalidade de conceber a Ressurreição.

Poder-se-ia figurá-la de outro modo, conforme a piedade e o feitio de cada pessoa. Por exemplo, em meio às trevas densas, de repente reluz algo à maneira de um corisco sublime! A montanha, como que, racha e Nosso Senhor se levanta como um raio. E num instante já está junto à porta, um anjo rola a lápide e Ele aparece diante dos olhos estupefatos. Acabou!

A Páscoa: uma festa triunfal

Em todo caso, a Páscoa não é uma celebração qualquer, é uma festa de triunfo. Portanto, não pode ser considerada, como muitos supõem, apenas como uma festa caseira para despertar a bonomia familiar, distribuindo ovos e todos se abraçando. Tudo isso é muito legítimo, acho um encanto, mas a Ressurreição tem qualquer coisa de um estouro, de uma explosão magnífica!

Sem dúvida, pode-se imaginar a Ressurreição acompanhada pelo maior e mais majestoso dos raios desferidos numa aurora.

Vários quadros representam o divino Ressuscitado assim, saindo com o braço direito levantado e tendo os dedos em posição de quem ensina ou abençoa, mas com um ar de desafio vitorioso: “Já atravessei!” Isso deveria causar no Inferno o terror diante da inutilidade de tudo quanto fizeram contra Ele.

Aí está um pequeno comentário para participarmos juntos das alegrias pascais.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 18/4/1981 e 21/4/1984)

Preciosos ensinamentos da Ressurreição

Da gloriosa Ressurreição de Cristo, pondera Dr. Plinio, não só refulgem consoladoras alegrias, como também dela se depreendem importantes lições para o homem fiel, à luz das quais deve este pautar sua trajetória rumo à eterna bem-aventurança.

 

Durante os três dias em que Nosso Senhor esteve morto, aos olhos dos que O conheceram, com exceção de Maria Santíssima, tudo parecia irremediavelmente perdido. “Morreu!”, pensavam eles. “Correram a pedra sobre a entrada do sepulcro, e a escuridão envolveu o corpo d’Ele. Acabou, não resta mais nada!”

Indizível alegria das almas dos justos

Ora, restava tudo. A história da salvação dos homens apenas começara. Assim que a alma santíssima de Nosso Senhor se separou do corpo sagrado, apareceu às almas dos justos que aguardavam — algumas há milênios — a Redenção e a abertura das portas do Céu.

Imaginemos, se pudermos, a emoção da alma de São José em contato com a de seu Filho, ou a felicidade indizível da alma de Adão e a de Eva, constatando que, afinal, o pecado por eles cometido, o pecado que provocara a decadência do gênero humano, estava perdoado e sua culpa redimida! E do mesmo modo, o júbilo ímpar da alma de tantos outros justos, patriarcas e profetas do Antigo Testamento ali reunidos, que aclamaram o aparecimento de Quem os libertava daquela longa espera. Esse encontro foi, sem dúvida, um espetáculo extraordinário.

Na pior das horas, refúgio junto a Maria

Contudo, para os apóstolos e discípulos que haviam fugido durante a Paixão, essa realidade espiritual e gloriosa era inteiramente desconhecida. Pelo contrário, achavam-se abatidos, prostrados, horrorizados, sem vislumbrar saída alguma para a dramática situação em que estavam. Cada qual se escondeu como pôde, esperando que a efervescência dos acontecimentos se extinguisse e a normalidade da vida de todos os dias fizesse com que deles se esquecessem.

Outros eram, porém, os desígnios da Providência. Podemos conjeturar que houve um trabalho misterioso da graça no sentido de sugerir ao espírito de cada um deles o desejo de procurar Nossa Senhora e de se abrigar sob seu manto materno. Junto a Ela — sempre nos é dado supor — encontraram-se, chorosos e contritos, ainda incertos quanto ao futuro. Apenas a Mãe de Deus confiava e rezava, segura do triunfo de seu Divino Filho sobre a morte.

De alguma maneira, também própria ao sobrenatural, a fidelidade de Maria Santíssima começou a contagiar a tibieza dos apóstolos, e a despertar na alma de cada um deles sensações, esperanças, percepções da maravilhosa graça que lhes estava reservada. No interior daqueles homens, em meio à tormenta da provação, foram se alicerçando uma convicção nova e um novo ânimo.

Quer dizer, na pior das horas, porque se refugiaram aos pés de Nossa Senhora, receberam graças inestimáveis que os prepararam para tudo o que logo lhes aconteceria. Unidos em torno da Virgem Fiel, estavam em condições de acreditar na Ressurreição e de se predisporem à grandiosa missão para a qual haviam sido chamados.

Confirmaram-se as mais audaciosas esperanças

Na manhã do terceiro dia, ressurge glorioso o Redentor Divino e — como sugere a crença de piedosos autores, embora os Evangelhos não o narrem — aparece em primeiro lugar a Nossa Senhora, inundando-A de consolação e felicidade. Todo Ele era um só esplendor, espargindo luminosidade celeste a seu redor como o brilho de mil sóis!

Aparece depois a Maria Madalena e a outros discípulos. A Ressurreição era já um fato incontestável. Os apóstolos creem e exultam. Tudo quanto era caminho sem saída, tornou-se viável e todas as esperanças, as mais audaciosas, confirmaram-se no triunfo de Cristo Ressurrecto. Vitória que representava, ao mesmo tempo, a afirmação de toda a vida d’Ele e um imenso perdão para seus discípulos. A partir daí estes passaram por uma autêntica conversão. Mais alguns dias, e receberiam a infusão do Espírito Santo, tornando-se cada qual uma coluna de amor e fidelidade sobre a qual se ergueria o edifício da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

O homem fiel não se deixa abater pelos reveses

Da ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo e dos aspectos a ela vinculados — sejam os precedentes, sejam os que se lhe seguiram — depreendem-se para nós alguns ensinamentos.

O homem modelado segundo o espírito do Divino Mestre, o homem que corresponde às graças obtidas pelos rogos de Maria, o homem fiel que obedece inteiramente a vontade de Deus e tem sua alma talhada pela doutrina da Igreja, esse homem possui uma têmpera tal que não há desastre, ruína ou tristeza, não há perseguição nem miséria que o abatam e o desviem de sua trajetória apostólica.

Pelo contrário, quanto maiores os reveses, maior sua coragem; quanto mais inesperadas e inopinadas as derrotas, maior a sua vontade de reagir; quanto mais terríveis os golpes que ele recebe, maior a sua determinação de continuar a lutar. E se acontecer de ele cair prostrado durante a lide, Deus, que vela por ele e por sua descendência espiritual, fará com que de seus exemplos e de sua lição nasçam discípulos que continuem sua obra.

E assim por diante, de glória em glória, de passo em passo, mas de dor em dor, de sofrimento em sofrimento, é possível levantar obras de uma grandeza e de uma beleza inimagináveis. Mas, essas obras nascidas da dor, da fidelidade, da constância e da entrega completa de si mesmo para que Deus execute sua vontade sobre os homens, nascem também da devoção e da união a Nossa Senhora, a qual nos alcança graças indizivelmente fortes, profundas e tonificantes.

Júbilo que nos prepara para novas provações

Outra lição que nos é dada pelo triunfo de Nosso Senhor sobre a morte vem das jubilosas celebrações que no-lo recordam.

As pompas da esplêndida e brilhante liturgia da Vigília Pascal e do Domingo da Ressurreição nos falam de todas as alegrias legítimas e até gloriosas que o homem fiel pode desfrutar em sua vida. Entretanto, a missão e os trabalhos dos apóstolos convertidos nos ensinam não haver alegria que desvie o homem fiel do caminho da dor; não há felicidade que o amoleça, que o subtraia da austeridade com a qual trilha o caminho do Céu. Pelo contrário, como essa alegria é fruto do Espírito Santo, o homem sai desse dia de festa e de glória mais disposto a suportar todas as humilhações, todas as dores e todos os sacrifícios necessários para a grande batalha da salvação que ele terá diante de si.

Por essas razões, ao celebrarmos a Páscoa da Ressurreição, devemos pedir a Jesus Ressurrecto, por intermédio de Nossa Senhora, a força de espírito pela qual não haja nenhuma provação que nos leve ao desespero, nem glória que nos leve à moleza. Assim, através desse caminho de sofrimentos sem desânimos, e de triunfos sem relaxamentos chegaremos afinal à imperecível glória do Céu, pela graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, nosso Redentor, e pelos rogos de Maria Santíssima, nossa Mãe, a cujas preces tanto devemos.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências em 8 e 14/4/1990)

Santa Maria Egipcíaca, exemplo de contrição

Após levar uma vida pecaminosa, aos 29 anos Santa Maria Egipcíaca foi tocada pela graça de um modo inusitado… Então, converteu-se e viveu no isolamento, sujeitando-se à mais austera penitência.

 

Tenho em mãos um texto da Légende Dorée, de Jaques de Voragine, sobre Santa Maria Egipcíaca, que passarei a ler e comentar. Há quem pergunte se tal fonte é histórica. Ora, o mundo necessita da existência de coisas dessas, as quais realmente alimentam a alma, sem indagações históricas nem outras preocupações dessa natureza, pela beleza intrínseca que elas contêm.

Santa Maria Egipcíaca, também chamada a Pecadora, durante 47 anos levou no deserto uma vida de arrependimento e privações. Sua história foi por ela mesma contada ao Abade Zózimo, que certo dia a encontrou.

Ao pedir o religioso que lhe dissesse quem era e de onde vinha, aquela estranha figura de mulher, negra e curtida pelo sol, respondeu:

“Pai, perdoai-me, mas se vos revelar quem sou, fugireis como à vista de uma serpente e vossos ouvidos serão manchados por minhas palavras e vós sereis empestado por minha impureza. Eu me chamo Maria e nasci no Egito. Vim para Alexandria com 12 anos de idade, e durante 17 anos aí levei má vida. Mas um dia, como alguns habitantes dessa cidade fariam uma peregrinação para adorar a Santa Cruz, em Jerusalém, pedi aos marinheiros que me deixassem embarcar também.

“E assim se fez a viagem. Mas eis que em Jerusalém, como eu me apresentasse com os outros peregrinos na porta da igreja, senti-me repelida por uma força invisível que não me permitiu entrar no templo. Vinte vezes aproximei-me das portas e vinte vezes essa força invisível me reteve, enquanto que todos os outros entravam livremente, sem que nada os impedisse. De tal sorte que, voltando ao albergue, compreendi que aquilo era uma consequência da minha vida criminosa. Então comecei a ferir-me, a verter lágrimas amargas, a suspirar do mais profundo do meu coração.

Depois, vendo na parede uma imagem da Bem-aventurada Virgem Maria, supliquei-Lhe que me obtivesse o perdão dos pecados e a permissão de entrar na igreja para adorar a Santa Cruz. Em troca, prometi renunciar ao mundo e viver na castidade.

“Essa oração me deu confiança e de novo me apresentei às portas da igreja; então pude entrar sem nenhum impedimento. E enquanto adorava piedosamente a Santa Cruz, um desconhecido deu-me três moedas, com as quais comprei três pães. E ouvi uma voz que dizia para atravessar o Jordão e vir para este deserto, onde vivo há 46 anos, sem jamais ter visto figura humana, alimentando-me dos três pães que trouxe comigo, os quais, tendo-se tornado duros como pedra, ainda são suficientes para minha alimentação. Quanto aos meus vestidos, há muito que se fizeram em pedaços, e durante os primeiros 17 anos de minha permanência no deserto fui atormentada por tentações. Mas no momento, pela graça de Deus, eu as venci inteiramente. Eis minha história. Eu a contei para que peçais a Deus por mim”.

Então, o ancião, prostrando-se em terra, bendisse ao Senhor na pessoa de sua serva. E esta lhe disse: “Ouvi o que vou pedir-vos: no dia da Páscoa, atravessai novamente o Jordão, trazendo convosco uma hóstia consagrada. Eu esperarei na margem e receberei de vossas mãos o Corpo do Senhor, porque não mais comunguei, desde que aqui cheguei”.

O ancião voltou ao seu mosteiro e no ano seguinte, estando próxima a festa da Páscoa, voltou ao Jordão levando consigo uma hóstia consagrada. Eis que percebeu a mulher, de pé, na outra margem e, tendo feito o sinal da Cruz sobre as águas, ela andou sobre as mesmas e assim chegou até o ancião. Este, maravilhado, quis se prostrar humildemente a seus pés, mas ela lhe disse: “Meu pai, guardai-vos de vos prosternar diante de mim, sobretudo agora que trazeis o Corpo de Cristo. Mas dignai-vos voltar ainda o ano que vem”.

No ano seguinte, Zózimo não a encontrou na margem. Ele atravessou o rio e se dirigiu ao local onde a vira pela primeira vez. E lá a encontrou morta, estendida sobre a areia. Então, ele chorou amargamente e não ousava tocar seus restos. E, enquanto pensava como enterrá-la, leu uma inscrição sobre a areia: “Zózimo, enterrai meu corpo, dê minhas cinzas à terra e pedi por mim ao Senhor, pois fui liberta do mundo no segundo dia de abril”. Assim, o ancião abriu-lhe uma cova, sendo para isso milagrosamente auxiliado por um leão, que aí apareceu. E o ancião voltou ao mosteiro glorificando a Deus.

Pulcritude do contraste entre o pecado e a penitência

A Légende Dorée está inteira nessa narração. Podemos analisá-la ponto por ponto. Preliminarmente, consideremos a pulcritude do contraste aqui estabelecido entre o pecado e a penitência. Ela era uma pecadora péssima, uma mulher que durante 17 anos tinha vivido na pior das situações. Mas de repente, ela é tocada por vias imprevisíveis da Providência, e chega até o momento da conversão. Sabendo que haveria uma festa em Jerusalém, ela viaja por curiosidade e chega até à igreja; então à noção do pecado — do pecado escancarado e com sua hediondez — opõe-se a visão de um Deus três vezes santo e que tem horror ao pecado. Por vinte vezes, ela procura entrar na igreja, mas uma força invisível a impede: é Deus, infinitamente puro, infinitamente santo, que tendo horror ao pecado não quer a presença do pecador maculado em seu santuário.

Entretanto, há ao mesmo tempo a graça e a misericórdia de Deus. Ela volta para a hospedaria e começa então a cair em si, na solidão de seu quarto. Ela pensa:

“O que fiz eu? Ah! o meu crime é o meu pecado: “peccatum meum contra me est semper”, eu pequei contra Ti só e o meu pecado está continuamente de pé, increpando-me e censurando-me. Então percebo o mal que fiz; a cólera do Céu me aparta do resto das criaturas. E enquanto as portas do santuário estão abertas misericordiosamente para todo mundo, a mim Deus rejeita. Como eu caí baixo!”

Notamos como isso é teológico e explica o grande arrependimento e a grande penitência que vieram depois.

Providencialmente há uma efígie de Nossa Senhora em seu quarto; Maria Egipcíaca encontra então a Mãe de Misericórdia e a Porta do Céu, reza para obter o perdão e é convidada para uma penitência extraordinária: ela se afasta completamente dos homens e vai fazer uma dessas penitências de assustar. O pecado de assustar recebeu uma prevenção ou advertência de assustar, que é um convite admirável e de deslumbrar para uma penitência de assustar: ela atravessa o rio Jordão e se coloca num deserto, onde passa 47 anos sem ver ninguém. Então sua beleza de pecadora se esfuma no sol; ela está torrada, preta, causticada, endurecida, os seus trajes caem como andrajos. Ela está continuamente a rezar, numa solidão cheia de amor de Deus.

Para receber a Comunhão, Santa Maria Egipcíaca caminha sobre as águas

Numa primeira fase, Maria teve tentações, mas depois as tentações se retiram e ela fica fazendo uma penitência que é mais a penitência da inocência do que a do pecado. Porque ela se colocou num nível tão alto de virtude, que o perdão é inteiro. Quer dizer, faz uma penitência que já não é só por ela, mas naturalmente por todos os pecadores. E Deus queria que, antes de morrer, ela recebesse essa suprema prova da reconciliação: a Comunhão.

Então acontece que um santo varão — varão como era comum naquele tempo: de barba branca, todo vestido de preto, com um capuz comprido e pontudo, usando um bordão — vai andando pelo deserto, parando para abençoar uma coisa, exprobar um crime, condenar um tirano, fazer um milagre, curando um doente, rezar diante de um ícone. E depois continua a caminhar sozinho pelas estradas. Eu só encontrei, em nossa época, algo de semelhante na vida do Bem-aventurado Charbel Makhlouf, cuja leitura recomendo. É admirável, toda feita desse encanto primitivo, magnífica!

Então, o santo varão chega até o outro lado do deserto e a vê; pergunta quem ela era, e sua resposta é bem no tom sentencioso e grave daquele tempo: “Pai, perdoai-me, mas se vos revelar quem sou, fugireis como à vista de uma serpente, vossos ouvidos serão manchados por minhas palavras e vós sereis empestado por minha impureza. Eu me chamo Maria e nasci no Egito”.

“Eu me chamo Maria e nasci no Egito”. Essa introdução da biografia dela tem uma grandeza e um senso literário verdadeiramente extraordinários.

Santa Maria Egipcíaca está de tal maneira elevada no amor de Deus que, para receber a Comunhão, ela caminha sobre as águas. Deus perdoou tudo, esqueceu tudo, Se fez completamente amor para ela, a qual vive num conúbio com a graça divina o mais íntimo que se possa imaginar.

No ano seguinte, o santo varão volta e ela não está à margem do rio. Ele atravessa o Jordão e encontra o corpo dela estirado no chão; sobre a areia ela escreveu algumas palavras, recomendando-lhe que a enterrasse.

Para os funerais dessa espécie de anjo do deserto, vem o rei do deserto. Quer dizer, é altamente poético e arquitetônico que também um leão ali apareça. O leão, que domina o deserto, é a glória e o brilho do deserto, vem para ajudar os funerais. O santo varão velho e o leão cavam a sepultura, na qual ela é colocada; mais nada. Resta apenas essa história de Santa Maria Egipcíaca, um “apenas” que é uma página de ouro dentro da Légende Dorée. Notamos que maravilha se pode fazer através de uma narração de um grande acontecimento referente a uma grande alma.

Contrição e amor de Deus

Vemos também aí a beleza da contrição, a respeito da qual nossa época faz uma ideia completamente falseada, julgando que a contrição nos vem exclusivamente do temor de Deus, o qual nos afasta do seu amor; de onde a contrição é, debaixo de certo ponto de vista, o contrário do amor de Deus.

Nada mais mal pensado do que isso. Em primeiro lugar, porque o autêntico temor de Deus é um dom do Espírito Santo. E o que procede do Espírito Santo não pode nos afastar do amor de Deus; pelo contrário, só nos une a Ele. Quem tem, portanto, verdadeiramente a graça de um saliente temor de Deus encontra nele um meio para subir ao amor. E notamos pela narração como, pelo arrependimento de seu pecado, Santa Maria Egipcíaca chegou até o auge do amor.

Além disso, precisamos considerar que a atrição é provocada pelo temor, o qual é, aliás, um sentimento salutar. Mas é o amor de Deus que provoca a contrição. E uma pessoa pode passar a vida inteira contrita pelo pecado que cometeu, até crescendo em contrição e, ao mesmo tempo, em amor e em sagrada intimidade com Deus, Nosso Senhor.

Por exemplo, São Pedro. Diz-se que até velho ainda chorava o pecado cometido ao negar Nosso Senhor, e que lágrimas percorriam sua face de maneira a abrir nela dois sulcos. Por quê? Com certeza, porque o olhar de Jesus permaneceu diante de seus olhos a vida inteira. E ele foi crescendo no amor a Nosso Senhor, na consideração daquele olhar, até extremos inimagináveis. Era a contrição que aumentava o amor, e o amor que aumentava a contrição e a intimidade com o Redentor.

Quer dizer, essas coisas se entrelaçam. E a vida de Santa Maria Egipcíaca não nos deve causar terror, mas enlevo pela figura patriarcal e primitiva dessa grande penitente. A Igreja é mais ou menos como um dia luminoso: o sol tem seu colorido da aurora e de todas as horas do dia. E todas essas cores são bonitas. A Esposa de Cristo possui um colorido para cada era de sua vida. E aqui é o colorido da Igreja primitiva: das grandes mortificações, das grandes penitências, dos grandes pecados, das grandes contrições, das inocências virginais, da austeridade requintada. É o velho som de um sino que nos vem do passado, lembrando-nos exatamente aquela velha gravidade, aquela seriedade da Igreja primitiva, tão capaz de empolgar as almas que verdadeiramente procuram amar a Nossa Senhora.

Assim, pensar em Santa Maria Egipcíaca é um refrigério para nós. E devemos pedir a ela que nos dê uma contrição verdadeira de nossos pecados, mas uma contrição na paz, sem escrúpulos; uma contrição verdadeiramente santa, que aproxime nossas almas de Nossa Senhora.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 31/3/1967)

RESSURREIÇÃO E FELICIDADE ETERNA

Ora, se se prega que Jesus ressuscitou dentre os mortos, como dizem alguns de vós que não há ressurreição de mortos? ” (I Cor 15, 12-13). A comemoração da ressurreição de Nosso Senhor, diz Dr. Plinio, é um prenúncio de nossa própria ressurreição.

 

Antes de ser ensinada e difundida pela Igreja Católica, a crença na ressurreição dos corpos era motivo de grande perplexidade para as religiões e os filósofos pagãos do mundo antigo. Sem  acreditar na imortalidade da alma humana, eles estavam convencidos de que, com a morte, uma pessoa ou desaparecia completamente, ou algo dela se reincorporaria — perdendo a identidade consigo mesma — na natureza ou num deus impessoal existente alhures.

Surpreendente doutrina que dividiu o mundo antigo

Com o advento do Cristianismo e a pregação dos Apóstolos, a doutrina da ressurreição dos mortos causou imensa atração. Com efeito, a ideia de que o homem é constituído por uma alma espiritual e um corpo material, e a noção de que um Deus onipotente ressuscitará a todos nós por toda a eternidade, como ressuscitou a Si mesmo,
reunindo novamente em cada pessoa os dois elementos que a compõem — era de molde a surpreender e a maravilhar aqueles povos da antiguidade.

Porém, diante do Evangelho, ou seja, da boa notícia de que o Verbo de Deus se tinha feito carne, nos havia remido, ressuscitara e abrira o caminho da ressurreição para todos nós, os espíritos se dividiram. Uns se mostravam antipáticos ao novo ensinamento, preferindo suas velhas convicções de que a existência do homem termina com sua morte e, portanto, tratava-se de prolongar e aproveitar ao máximo a vida terrena.

Outros, mais elevados, mais alígeros, pensavam: “Depois da série de tormentos que suportamos neste mundo, eu julgava que me afundaria no negrume da sepultura, desfazendo-me no nada. E agora vem um homem chamado Pedro e me diz que ele tem as chaves do reino dos Céus! E me ensina que haverá essa ressurreição gloriosa, que um dia, cheio de luz, eu me levantarei da sepultura para uma felicidade da qual as coisas terrenas nem sequer dão uma ideia!? Que maravilha!”

Compreende-se que a nova doutrina causasse essa divisão em duas famílias de almas. Aconteceu, então, que os da primeira, mais numerosos, mais poderosos, começaram a desafiar e a perseguir os da segunda: surgiram os mártires do tempo do Império Romano. Homens e mulheres convertidos ao cristianismo, até ontem respeitados e venerados por seus semelhantes, agora se encontram ali, na arena do Coliseu, semi-desnudos, invectivados e vaiados por uma multidão enraivecida.

Por quê? Porque abraçaram a crença na vida eterna.

Belezas que envolvem a ressurreição dos mortos

Não é difícil, pois, imaginar o drama e a reviravolta que a pregação da ressurreição provocou na velha humanidade.

Como não é difícil nos darmos conta de que não podemos tomar como banalidade o que deixou pasmo um antigo, perplexo um imperador romano, o que causava dor de cabeça a um filósofo   pagão, e fazia estremecer de alegria um ancião ou uma criança inocente. Antes, devemos sempre ter presente toda a beleza que essa verdade encerra, e o quanto ela foi, ao longo da história da Igreja, ensinada e fundamentada pelos maiores e mais ilustres expoentes da Teologia católica.

Para não nos estendermos, basta evocarmos o pensamento do grande São Tomás de Aquino, que prova a ressurreição com argumentos tirados da razão natural e da Escritura: é fato revelado pelo Espírito Santo.

E ele apresenta como um dos elementos da Revelação esta frase de São Paulo: “Quando tu semeias, não semeias o corpo da planta que há de nascer, mas semeias o mero grão”. A interpretação fantástica dada pelo Doutor Angélico: o grão é o cadáver e a planta que nascerá é o homem ressurrecto, saído daquele. Esta sentença se ajusta de modo magnífico às palavras de Nosso Senhor no Evangelho: “Se o grão não se decompor, não frutifica”. Quer dizer, enquanto o homem não termina a sua batalha neste mundo e morre, dele não brotará o fruto da sua própria ressurreição.

Assim, quando se fecha a tampa do caixão contendo um cadáver, devemos ter o seguinte pensamento, inspirado pela Fé: “Se é verdade que a morte representa um castigo, verdade é também que aqui está uma semente para a ressurreição”.

Nisto devemos ver, também, como é bela a continuidade de uma vida humana levada na virtude e no amor a Deus, de uma existência virtuosa que passa sobre a morte com os olhos postos nas  glórias da ressurreição. É essa verdade que nos incute ânimo, que nos explica a vida, que nos faz seguir sempre em frente, rumo ao encontro da eterna e completa felicidade.

Felicidade esta que o mesmo São Tomás aduz como mais uma prova da ressurreição. Posto que o homem procura como meta final a alegria perfeita, a qual não pode ser achada senão na eterna bem-aventurança, tem de haver uma vida após a morte e uma ressurreição da carne. Sob pena de que tudo neste universo seja coisa errada, fracassada, e sem sentido.

De fato, para que viver, se não existe este objetivo de alcançar a felicidade sem limites, infinita, sem sombras, onde compreendemos eternamente, na medida de nós mesmos, o eterno, o insondável e perfeitíssimo que é Deus? Ver Deus em Deus, ver Deus na pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo, vê-Lo em Nossa Senhora, nos Anjos e nos santos! Esta é a autêntica alegria. O que não for isto, é burla em matéria de felicidade.

Portanto, com o auxílio e o amparo da Santíssima Virgem, chegará para todos nós o dia em que nossas almas estarão definitiva e perenemente unidas aos nossos corpos. As dores e os júbilos efêmeros desta vida terão passado, nós estaremos no Céu por todo o sempre.

Alegria da Páscoa, prenúncio de nossa ressurreição

Para concluir, vem a propósito evocar uma vez mais o ensinamento de São Tomás de Aquino. Ele se pergunta se a ressurreição dos homens tem como causa a Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, e responde pela afirmativa. Ou seja, até Nosso Senhor, ninguém havia entrado no Céu. Somente depois da Paixão, Morte e Ressurreição do Cordeiro de Deus é que foram franqueadas para a humanidade as portas da bem-aventurança eterna. E o dia da Páscoa é a festa por excelência da Ressurreição d’Ele, mas traz no seu cortejo a perspectiva da ressurreição de todos os homens no dia do magno Juízo.

Então se compreende que na alegria pascal, tão característica, temos um pouco do prenúncio de nossa própria ressurreição, e este sentimento se reflete no modo católico de viver o dia da festa da Ressurreição de Jesus.

Plinio Corrêa de Oliveira

Eminente cooperadora na obra da Redenção

Se o gênero humano pôde beneficiar-se da Redenção é porque a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade Se fez Homem, pois o pecado dos homens deveria ser resgatado. Ora, se Jesus Cristo assumiu nossa natureza, fê-lo em Maria Virgem, e assim esta cooperou de modo eminente na obra da Redenção, transmitindo ao Salvador a natureza humana que nos desígnios de Deus era condição essencial da Redenção.

Maria Santíssima ofereceu de modo inteiro e sumamente generoso o seu Filho como vítima expiatória, e aceitou sofrer com Ele, e por causa d’Ele, o oceano de dores que a Paixão fez brotar em seu Coração Imaculado.

Assim, pois, a Redenção nos veio por Maria Virgem, e sua participação nessa obra de ressurreição sobrenatural do gênero humano foi tão essencial e profunda, que se pode afirmar que Maria cooperou para nos fazer nascer à vida da graça. Pelo que Ela é autenticamente nossa Mãe.

Revista Dr Plinio 253 (Abril de 2019)

(Extraído de “O Legionário” de 10/12/1939)

A longa demora permitida por Deus

Embora a Igreja Católica nunca irá morrer, por vezes, parece ter sido colocada num sepulcro. Entretanto, assim como Nossa Senhora tinha certeza de que Nosso Senhor Jesus Cristo ressurgiria, também nós devemos estar convictos de que a Igreja emergirá milagrosamente dessa espécie de morte aparente, e acreditar na realização das profecias, na vitória e no Reino de Maria.

 

Quando se chegou ao auge da Idade Média, pela ideia da Civilização Cristã que se afirmava, da Igreja que chegava àquela plenitude, acentuou-se nos medievais a devoção a Cristo Ressurrecto, e o número de igrejas consagradas a essa invocação aumentou consideravelmente, o que é muito bonito.

A Igreja está numa aparente morte

Eu não vi tratar desse tema em livros de piedade, mas um aspecto no qual se deveria fixar a atenção é a devoção de Nossa Senhora nos três dias em que Jesus esteve na sepultura. Porque existe uma analogia entre a situação da Igreja hoje em dia e Nosso Senhor no sepulcro.

A Igreja Católica não está morta, mas por vezes as aparências são de que ela foi posta num sepulcro. Ela não vai ressurgir porque não morreu, mas dessa espécie de morte aparente ela emergirá milagrosamente. Então, nós estamos nesses três dias – número historicamente real, mas de valor simbólico – de Nosso Senhor na sepultura.

Para a Santíssima Virgem era tremendo pelas saudades que sentia d’Ele. Analogamente, são as nossas saudades da Igreja como ela foi e, sobretudo, como nós não alcançamos. Essas saudades devem nos ser pungentes neste período.

Assim como Nossa Senhora tinha certeza de que Nosso Senhor Jesus Cristo ressurgiria, também nós devemos estar convictos de que a Igreja não morreu, e passar por esta provação: acreditar na realização das profecias feitas em Fátima, na vitória e no Reino de Maria.

Nossa Senhora adorava o cadáver de seu Divino Filho em união hipostática imutável com a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, mas que, entretanto, estava morto. Porém, o auge da devoção d’Ela era já adorá-Lo ressurrecto.

Também nós devemos amar a Santa Igreja nessa aparente morte em que está, mas tomando em consideração nossa certeza de que ela “ressurgirá”, amá-la desde já como ela será no futuro; ideias, esperanças, vislumbres do Reino de Maria devem nos alimentar e nos preparar para o dia da ressurreição.

Esta consideração eu gostaria de fazer por ocasião da Quaresma e da Semana Santa.

Um dos elementos de deterioração do homem

É uma coisa curiosa, mas o triunfo deteriora quem não conserve na boca ou na memória a amargura da derrota anterior. Isso é sistematicamente assim. Um dos elementos de deterioração do homem é quando ele julga que aquilo de bom – e, por vezes até esplendidamente bom – que possui não é senão o normal, e todos os inferiores em relação a ele são uns infelizes, pois não têm senão aquilo que a vida deve dar. Quando o indivíduo forma esta noção da existência, ele começa a se deteriorar.

O ponto de referência é outro. Ele deve achar que o comum neste vale de lágrimas é o estado de mendigo, e qualquer coisa que esteja acima da mendicância já apresenta uma certa vantagem. De tal maneira que, quando na mendicância lhe dão um pão, ele já deve dar graças a Deus. E se ele tem um pouquinho além da mendicância, pode desejar mais, mas nunca maldizendo aquele pouco, jamais deixando de reconhecer que esse pouco é alguma coisa que deve alegrá-lo.

Às vezes, aqueles cujos pais são muito importantes, ou muito nobres, ou muito sábios, ou muito qualquer coisa, por terem nascido nessa situação, julgam um absurdo que não tivessem determinadas regalias, e ainda mais do que aquilo. Então começam a amolecer, a se deteriorar e a apodrecer.

Nós também, para não apodrecermos no Reino de Maria, teremos de conservar a recordação das torrentes nas quais bebemos pelo caminho. Para quando levantarmos a cabeça compreendermos o favor que Deus está nos fazendo e, mesmo no auge de nossa glória, não acharmos isso normal. Do contrário, ao cabo de uns cinco anos, estaremos tão amolecidos que se fosse preciso voltar atrás já não teríamos coragem. É o efeito do pecado original. Essa é a vida.

Li nas memórias de uma governanta das filhas de Nicolau II que quando o Czar ia a Paris, em viagem oficial, levava a família toda. Enquanto ele e a Czarina estavam participando das recepções oficiais, as meninas levavam uma vida à parte. Então, iam para as lojas de brinquedo, que já estavam avisadas da visita das grã-duquesas e punham à mostra os brinquedos mais caros e os melhores vendedores à disposição para atender a criançada.

As crianças nem perguntavam o preço, pois não lhes interessava. Elas apenas diziam: “Eu quero isso, aquilo e também aquilo outro…” Nicolau II, por sua vez, recebia a conta e pagava, também sem questionar. Ora, isso deteriora uma criança a mais não poder.

Segundo os costumes antigos, o primogênito herdava todo o patrimônio da família e ficava com a obrigação de administrá-lo. Os outros filhos, ou se jogavam na aventura, ou caiam no zero. Estes, entretanto, não reputavam isso uma infelicidade. Ao contrário, consideravam uma desventura o destino do primogênito que continuava amarrado ao seu castelinho, sem poder correr a aventura fabulosa que eles tinham diante deles.

D’Artagnan foi isso. Segundo a legenda, ele morreu na hora de receber o bastão de Marechal de França. E morria com a ideia de ter realizado uma fábula. Mas ele teve que dar duro…

Nós tivemos no Brasil um sistema parecido. Os descendentes que não pertenciam ao ramo primogênito recebiam terras colossais para desbravar no franco mato, e passavam os melhores anos da vida, desde o dia do casamento até mais ou menos 45 anos de idade, dando duro, plantando, enfrentando bandidos, porque era “Far West”. Quando a fazenda estava formada, eles voltavam para a capital e iam periodicamente administrar a propriedade. Para isso construíam casas na fazenda onde passavam temporadas. Mas era uma batalha para conseguir alguma coisa. Isso é altamente formativo.

Na longa demora que suportamos, devemos viver com ascese

Exemplos como esses servem para compreendermos as humilhações e tantos outros sofrimentos pelos quais passamos agora e, assim, quando chegar o Reino de Maria não nos apodrecermos na glória, mas darmos o devido valor ao fato de termos subido com sacrifício, reconhecermos o quanto devemos a Nossa Senhora por causa disso, e conservarmos a seguinte ideia retrospectiva: Se eu for capaz de voltar à estaca zero e beber da torrente novamente, porque assim Nossa Senhora quis a meu respeito, não terei apodrecido. Se eu não for capaz, posso estar certo de que apodreci, abusei do dom de Deus.

Tenho a impressão de que essa longa demora que suportamos seja permitida pela Providência a fim de nos preparar para uma imensa glória, dentro da qual deveremos viver com ascese. Alguém poderá me objetar: “Mas isso eu não quero, porque se até nessa hora é preciso viver com ascese, então não é vida.” Eu digo: “Meu caro, você apodreceu antes de subir. Enquanto estava embaixo, você acalentou sonhos podres e imaginou uma vida sem a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.”

Há uma ideia, com a qual muitos de nós fomos educados, de que se deve evitar olhar até o fundo os aborrecimentos que a vida traz, considerando-os superficialmente para não os sentir. E, para isso, cercar a vida dos maiores deleites e divertimentos que se possa, de maneira a estes cobrirem, tanto quanto possível, os aspectos dolorosos que a pessoa não deve ver.

Ora, esta é uma impostação errada. Diante de uma coisa dolorosa apresentada pela vida, a pessoa deve vê-la por inteiro. Porque isso é assim na vida de todo mundo e não adianta fugir da verdade. Não há quem não tenha sofrimentos muito pesados na vida, mesmo quando surjam verdadeiramente rutilâncias muito atraentes e agradáveis. Ainda assim a existência apresenta grandes padecimentos que devemos enxergar de frente, até onde foram e até onde podem ir, preparando a alma para aguentá-los.

Essa postura dá à alma uma espécie de sacralidade, de nobreza, de força para considerar que, ainda que a vida seja assim, ela é digna de ser vivida. Não porque dá saldo positivo, mas é porque a alma cresce muito quando toma a sua dor assim, de frente, como Nosso Senhor Jesus Cristo tomou a d’Ele no Horto das Oliveiras.

Quando se nos apresenta a cruz, devemos abrir os olhos e os braços inteiros

Minha devoção a Nosso Senhor no Horto das Oliveiras é mais acentuada até do que a própria Crucifixão. Não porque eu não saiba que a Paixão d’Ele chegou ao auge com a Crucifixão, mas é que essa meditação puramente espiritual da dor, antes mesmo de ela chegar, a previsão e essa impostação para que a alma receba essa dor vista até o fim, parece-me fundamental na alma católica.

Aliás, por incrível que pareça, é isso que torna interessante a alma com a qual se trata. Quando uma alma procura não ver a dor, ela não fica interessante. Ao contrário, quando ela vê a dor até o fim se assemelha a um instrumento de música afinado, com as cordas em ordem. Isso dá a tudo quanto ela diz uma ressonância, uma vida, porque está afinada em ordem à dor.

É, de fato, a Cruz de Nosso Senhor. Porque a palavra “dor” sem a Cruz dá lugar a toda espécie de desequilíbrio possível. A vida humana é inexplicável e insuportável sem Nosso Senhor Jesus Cristo. Daí São Paulo dizer que só sabia pregar a Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado (cf. 1 Cor 2, 2).

Há místicos que viram Nosso Senhor recebendo a Cruz e osculando-a. Quer dizer, manifestando carinho para com ela. Eu acho isso uma coisa absolutamente de primeira ordem. Ora, o que significa para nós o carinho para com uma cruz imaterial? É aceitá-la lealmente, abrindo os olhos e os braços inteiros!

Por exemplo, a cruz de ser menosprezado. É melhor descer o vale desse menosprezo até o fim. Não exagerar, imaginando ser maior do que é, mas tomá-lo em todo o seu tamanho. “Está bem, eu aceito! Sentei-me no banco dos desprezados como se fosse um trono, e ali fiquei. Aconteceu assim, vamos para a frente!”

Se soubéssemos as aflições que nós evitamos para a nossa alma quando procedemos assim… Porque a realidade é esta: o sujeito não aceita e começa a tomar toda e qualquer dor que lhe venha como sendo um absurdo. Assim não há como evitar uma torcida enorme para não acontecer aquilo. E na torcida a pessoa sofre muito mais do que na aceitação franca, leal. Esta dá uma calma, uma estabilidade, uma força que realmente correspondem aos desígnios de Deus, a uma aceitação humilde do que Nosso Senhor quis para nós.

Sofrer em união com Nosso Senhor Jesus Cristo

Há, portanto, duas atitudes integrantes da virtude da temperança. Uma consiste em entender que a vida é um vale de lágrimas, e saber saborear como um presente de Deus qualquer pequena alegria como enviada por Ele para nos aliviar. O auge da alegria não está no tamanho, mas sim na qualidade dela. Portanto, saber degustar as pequenas alegrias da vida, e não as imaginar maiores do que são na realidade, compreendendo que são transitórias, e saber vê-las até o fim é um elemento indispensável para a pessoa não se deteriorar, não apodrecer. Porque, se não se faz assim, a pessoa imagina que o normal é levar uma vida na qual tudo vai de acordo com os seus desejos, e o que não for isso é uma desgraça. Esse fica muito mais infeliz do que o primeiro.

Outro elemento da temperança é compreender que o normal dessa vida é sofrer, e muito, e que a pessoa deve padecer em união com Nosso Senhor Jesus Cristo, considerando o sofrimento em seu aspecto sobrenatural, sem o qual tudo isso não tem sentido. Assim, vindo um revés por cima de nós, olhá-lo com força, de frente, medir em toda a extensão o que ele traz de sofrimento e dizer: “Eu aguento, aceito e vou tocar para a frente.”

É o exemplo que nos deu Nosso Senhor na sua Paixão. Na Agonia do Horto Ele previu tudo. Não bancou o imprevidente. Foi revelado à sua natureza humana tudo quanto Ele sofreria em seu Corpo. Além disso, todas as dores de Alma, as ingratidões, etc. Aliás, com os Apóstolos Ele tomou a experiência ali mesmo. Tudo isso Ele viu e não fechou os olhos. Sofreu até o fim a visão do que vinha. Sentiu a sua vontade perfeitíssima não aguentar e pediu que fosse afastado o sofrimento. Mas vejam o equilíbrio perfeito: “Se for possível, afaste. Se não for possível, faça-se a vossa vontade e não a minha” (cf. Mt 26, 39).

Aplicando isso a nós, devemos ter a coragem de ver a nossa situação como é, inteiramente e o quanto ela pode ser irremediável. Porque se o único “remédio” for apostatarmos, esse “remédio” nós não consideramos nem de longe, pois a partir do momento em que um de nós considere isto uma hipótese, começou a discutir o valor das trinta moedas… Então, esta não é uma hipótese válida. Logo, é preciso aguentar a situação assim, não tem conversa.

Ver a realidade de frente é absolutamente indispensável

Suportado o sofrimento com esta força, a pessoa chega até o fim com calma, com paz, com dignidade. E nisto viveu a sua vida. Então são estes os dois aspectos da temperança: saber saborear as coisas que Deus manda, e amar a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, como destinada a todos os homens.

Às vezes encontramos pessoas realmente felizes, mas que não querem olhar para a possibilidade de um infortúnio. A certa altura, levam cada susto! Porque, de repente, o infortúnio lhes explode debaixo dos pés.

Imaginemos um filho que ama enternecidamente seus pais. De repente, percebe que os pais por quem ele se sacrifica, e que o consideram muito bom, de fato não o amam como ele os ama. E isso se externa, por exemplo, pela atitude deles para com outro filho que não é bom, pelo qual eles têm uma predileção estulta, embora esse filho esbanje o dinheiro deles e “pinte o caneco”. E isso apenas por ser um filho mais ornamental ou parecido com eles, qualquer coisa deste gênero…

Então, o primeiro não deixa de ser bom filho, não cai no desânimo, não fica azedo, mas constata: “Meus pais são assim.” Não se trata, portanto, de pensar o seguinte: “Eu vou rever meu procedimento. Vale a pena continuar a dar a eles essa quota de dedicação ou não vale? Posso reduzi-la, porque serei um imbecil se tratá-los como pais perfeitos quando não o são.” Pelo contrário: “São meus pais e, enquanto tais, têm direito à minha dedicação.” Entretanto, esta situação pode criar graus diferentes de infortúnio. É preciso ver de frente!

Em certa ocasião, vi um exemplo doloroso disso. Era uma reportagem a respeito de uma família muito nobre da França. A fotografia mostrava o pai e a mãe ainda jovens, muito bem-apessoados e já rodeados de um bando de filhos, todos muito saudáveis, permanentemente alegres, dando ideia da própria felicidade do casal. Via-se aquela alegria despreocupada, otimista, da qual fazia parte uma borrifadazinha de Religião pelo meio – pois é certo que todos tiveram aulas de Catecismo, fizeram a Primeira Comunhão, por ocasião da qual estavam elegantes e até mesmo piedosos –, porém não lhes fora ensinado o que estou dizendo aqui.

Pensei: “Ou todo o meu modo de ver a Religião e a vida é errado, ou essa família tem que dar num estouro do outro mundo!” Resultado, deu num bando de facínoras. Quanto ao marido, chegou a publicar na mesma revista, na qual saiu a referida reportagem, que há muito tempo ele não tinha temas a conversar com sua esposa, mesmo no auge de seu casamento, pois ela era completamente vazia e não tinha o que dizer a ele. Podemos imaginar o que significa para uma mulher, que tinha a ilusão de ser amada por seu marido, ler isso e dar-se conta de que ele não só não gostava mais dela, mas não gostara jamais? Pois bem, ver isso de frente é absolutamente indispensável e faz parte dos tais elementos da temperança que a pessoa deve ter.

Conheço uma pessoa que no começo de sua adolescência me externou esta sua reflexão: “Eu sei que fui chamado a servir Nossa Senhora. Mas não me consolo de Deus ter me chamado para isso. Por que Ele escolheu a mim, quando podia ter escolhido outro para padecer esse mundo de sofrimentos inerentes a uma vocação, deixando-me sossegado na minha vida?”

De fato, ele sofreu muito pelo que devia fazer e fez, e pelo que não devia fazer, mas fez. Atualmente é um muito bom filho de Nossa Senhora. Mas eu queria analisar esse estado de espírito que em determinado momento foi o dele.

Esse rapaz deve ter recebido graças muito boas no período da infância e adolescência. Entretanto saboreando ao mesmo tempo, intensamente e sem nexo com essas graças, circunstâncias materiais próprias a fazê-lo levar uma vida feliz. Isso amesquinhou o horizonte dele, de maneira tal que, ao invés de considerar o enorme panorama de quem é chamado por Deus a um alto ideal, ele se alegrava mais com o horizonte pequeno, com o prédio de teto baixo da vidinha que tinha diante de si, a qual provavelmente aparecia-lhe como sendo uma existência ideal.

O gáudio dos grandes horizontes

Ora, é uma coisa curiosa, mas o gáudio dos grandes horizontes meio tristonho. Traz, entretanto, um bem-estar e uma satisfação que o horizonte estreito, o prédio de teto baixo nunca dá.

Chateaubriand1 faz uma descrição magnífica de uma noite no Castelo de Combourg. Ele tinha uma irmã chamada Lucille, de quem gostava muito. Sua mãe, a Mme. Chateaubriand, ele apresenta como pessoa muito boa, mas com a saúde precária, tendo que se cuidar. E o pai, uma espécie de leão na jaula, uma fera. Então, ele descreve um final de dia na residência da família, um castelo gótico com um pé-direito muito alto, salas grandes onde punham uma mesa para eles jantarem. Comiam em silêncio porque o pai estava pensando continuamente em outras coisas e metia medo. A mãe tinha medo do pai também e ficava quieta; apenas suspirava docemente, às vezes, e continuava a jantar.

Terminada a refeição, começava o “entretenimento” familiar. Levantavam-se e iam para um salão enorme, vizinho à sala de jantar, onde por falta de dinheiro havia só uma luz acesa perto da mãe. Esta sentava-se numa cadeira mais cômoda, enquanto o pai ficava andando, de maneira que, conforme se aproximasse ou se afastasse, sua sombra na parede ia crescendo ou diminuindo. Assim, ouviam-se os passos do velho visconde a caminhar, preocupado, sobre o chão de pedra. De vez em quando, ele parava diante das crianças, que num canto estavam cochichando, olhava fixamente para elas e lhes perguntava: “O que vocês estão falando?” Um pouco como quem quer entreter a conversa, mas ele não compreendia que, com isso, gelava as crianças… Nesse ambiente, o teto alto aumentava a melancolia e a desolação. Compreende-se que isso parecesse para Chateaubriand imensamente triste e até soturno.

Chegada a hora de se recolher, o menino Chateaubriand ia dormir sozinho numa torre. Metia-se numa cama com aqueles clássicos cortinados, e todos os ventos do mar sopravam em cima da torre, uivavam, assobiavam, com o Chevalier de Chateaubriand apavorado dentro das cobertas, até que o sono viesse. Tenho a impressão de que, pela manhã, ele se levantava despreocupado, ia até o mar para a brincadeira com os meninos da zona e já era outra coisa.

Quando uma alma tem um lado voltado para a vidinha e outro para os grandes ideais, estes fazem um pouco o papel do teto alto do Castelo de Combourg. O indivíduo gostaria de fugir para uma coisa mais aconchegada, mais direitinha, mais arranjada, para ter, afinal de contas, a alegria de ser pequeno.

Assim, pode haver dois modos de considerar o chamado de Deus: um é ao estilo da torre que uiva e essas coisas todas; outro é a grande alma de um cruzado, de um homem que aceitou a cruz e tem nisto uma consonância com o Divino Crucificado.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/8/1988)

Revista Dr Plinio 253, pp. 11-15.

 

1) François-René Auguste de Chateaubriand. Escritor, ensaísta, diplomata e político francês (*1768 – †1848).