Despretensão: ensinamento e exemplo divinos

Formando os Apóstolos, Nosso Senhor deu-lhes o divino exemplo de despretensão: “Eu estou no meio de vós como aquele que serve.” Vindo ao mundo para remir o gênero humano, Jesus indicou que entre os católicos aquele que manda deve ser como quem serve; precisa ser o menor e mais apagado, deve sacrificar-se e imolar-se, a fim de que seu apostolado seja fecundo.

 

Comentarei um trecho do Evangelho de São Lucas, muito propício para as comemorações da Paixão de Nosso Senhor.

Ora, houve uma discussão entre eles sobre qual deles devia ser considerado o maior. Jesus, porém, lhes disse: “Os reis das nações dominam sobre elas, e os que exercem o poder se fazem chamar benfeitores. Entre vós, não deve ser assim. Pelo contrário, o maior entre vós seja como o mais novo, e o que manda, como quem está servindo. Afinal, quem é o maior: o que está à mesa ou o que está servindo? Não é aquele que está à mesa? Eu, porém, estou no meio de vós como aquele que serve. Vós sois aqueles que permaneceram comigo em minhas provações. Por isso, assim como o meu Pai me confiou o Reino, eu também vos confio o Reino. Havereis de comer e beber à minha mesa no meu Reino, e vos sentareis em tronos para julgar as doze tribos de Israel(1).

Desigualdade das classes sociais

Trata-se de uma discussão entre os Apóstolos durante a Ceia. É curioso que, depois de Jesus lhes ter lavado os pés, instituído a Eucaristia, eles discutam entre si a respeito de quem seria o maior.

Isso poderia ser chamado de pretensão, e tenho a impressão de que estaria perfeitamente bem designado. Na hora mais augusta, mais sagrada, quando eles deveriam se preparar para os maiores sacrifícios, sua preocupação era de quem seria o maior. É uma coisa completamente extrapolada, colocada fora da linha em que deveria estar.

E Nosso Senhor lhes dá uma lição, dizendo-lhes incidentalmente uma série de coisas, que valeria a pena comentar. Afirma o Redentor: Afinal, quem é o maior: o que está à mesa ou o que está servindo? Não é aquele que está à mesa? Eu, porém, estou no meio de vós como aquele que serve.

Vemos aqui uma afirmação muito interessante da legitimidade da desigualdade das classes sociais, feita por Nosso Senhor. Ele pergunta: o que é mais, ser servido ou servir? E responde: ser servido é mais do que servir; o servidor é menos do que aquele a quem ele serve.

A autoridade existe para o bem dos subordinados

Quer dizer, há uma desigualdade que vem da natureza das coisas. E essa desigualdade, que é um fato legítimo, o Divino Mestre toma como ponto de partida para exprimir a posição d’Ele: Jesus está no meio dos discípulos como aquele que veio servir.

E aqui está a enorme lição de despretensão, como quem diz: “Se Eu Me coloco como servidor, como cada um de vós quer ser considerado o primeiro em relação aos outros?” Aqui está a coisa acachapante. É contrária ao espírito de Nosso Senhor, a toda a lição de sua vida, à doutrina que Ele veio ensinar, a preocupação de se fazer valer, de se colocar acima dos outros. Em sentido oposto, diz o Redentor, os que mandam devem ser como os que servem.

Qual o significado disso? No caso d’Ele, o sentido é evidente: Jesus veio para remir, salvar os homens. Ele estava ali como pastor que salva suas ovelhas, portanto, para o bem deles. É a autoridade constituída para o benefício daqueles sobre os quais deve mandar. Daí vem a ideia de que a autoridade tem um fim dentro de uma ordem posta por Deus; ela precisa ser servidora desse fim, e por isso deve cercar-se de esplendor, de grandeza, de pompa. Nosso Senhor louvou a mulher que derramou unguento precioso sobre a cabeça d’Ele.

Quem manda existe para o bem de seus subordinados. E aqueles que obedecem devem compreender e amar a autoridade e o princípio de autoridade, o qual é altamente benéfico.

Megalice de certos soberanos da antiguidade

Continua o Divino Salvador:
Os reis das nações dominam sobre elas, e os que exercem o poder se fazem chamar benfeitores. Entre vós, não deve ser assim. Pelo contrário, o maior entre vós seja como o mais novo, e o que manda, como quem está servindo.

A megalice(2) dos reis nas épocas anteriores a Nosso Senhor era uma coisa incrível. Os monarcas assírios, por exemplo, mandavam esculpir nas pedras dos rochedos os relatos dos seus feitos. E, para que não se apagassem, era colocada uma espécie de porcelana coberta com vidro, de maneira que eles tinham a esperança de que durante séculos ainda se lessem aquelas inscrições. E em muitos lugares ainda hoje podem ser lidas. Eles contavam coisas que eram evidentemente falsas. Uma dessas inscrições, que eu li, narrava que, numa caçada, o rei tinha domado um leão, pegando-o pelas orelhas. Ou se tratava de um leão velho, que havia sido embebedado previamente pelos cortesãos, ou era simplesmente uma megalice sem nome!

Aqueles imperadores romanos… quanta megalice! A veneração que faziam lhes prestar, o modo pelo qual dominavam e oprimiam os outros, dirigiam tudo pela força, e tantas outras coisas. Já tive ocasião de comentar neste auditório o respeito que se tributava aos faraós. Li aqui certa vez uma carta ao faraó, escrita por seu agente consular na Assíria, na qual dizia: “Eu, que sou indigno de beijar os vossos pés, indigno de beijar as patas de vossos cavalos; beijo o pó onde as patas de vossos cavalos se puseram”. Esse era o clima de megalice que os soberanos daquele tempo criavam.

Nosso Senhor mostra que quem é católico deve servir. Embora sua autoridade seja muito grande e transpareça bastante, ele, como indivíduo, deve eclipsar-se por detrás de sua própria autoridade.

O princípio, o cargo, a missão, o poder valem muito, o indivíduo vale pouco.

Jorge V e Rainha Mary

Certa vez li numa revista de História um fato a respeito de Jorge V, esposo da Rainha Mary. Todas as noites em que não recebiam visitas no palácio, eles ficavam ouvindo vitrola, enquanto um secretário ia trocando os discos. Quando chegavam às dez horas em ponto, os monarcas se levantavam e o secretário colocava o disco com a música “God save the King” — Deus salve o Rei —; Jorge V tomava atitude de continência, e a Rainha ficava em posição de oração. Terminada a audição, iam dormir.

E Rudyard Kipling(3) comentou que isso era a verdadeira humildade. Jorge V, detentor da autoridade, compreendia que o cargo, a dignidade, era grande, mas a pessoa dele, nada. E por isso tomava uma atitude de respeito diante de seu próprio cargo. Nesse ato, o Rei prestava continência à realeza; e a Rainha rezava, como uma fiel qualquer, por aquela que era a Rainha da Inglaterra. Vemos aqui o eclipsar-se da pessoa e o engrandecimento do cargo.

Reis de França e Imperador Francisco José

Nos tempos de monarquia cristã havia fatos nesse sentido. Quando os Reis de França saíam da Catedral de Reims, após serem coroados, o povo acreditava — e parece que algum fundamento havia nisso — que eles tinham o poder de curar a escrófula(4). Então, filas de escrofulosos repugnantes ficavam à espera do novo Rei na saída da catedral, o qual tocava cada doente com a mão e dizia: “Le Roi te touche, Dieu te guérisse — O Rei te toca, Deus te cure”. Diziam os cronistas do tempo que muita gente ficava curada. Quer dizer, depois daquele esplendor máximo da realeza — a coroação de um Rei de França era uma cerimônia fabulosa, em que aparecia o cargo e não o homem —, o monarca condescendia em tocar com suas mãos régias os enfermos mais repelentes do seu reino, para curá-los, usando de um carisma que reconhecia não proceder dele. A frase “O Rei te toca, Deus te cure” queria dizer: “O Rei sabe que não cura nada, quem cura é Deus. O Rei é um mero instrumento para que a ação de Deus se exerça”.

O exemplo de Nosso Senhor foi imitado nos tempos em que a Igreja era unida ao Estado, em todas as monarquias europeias. Pouco antes da guerra de 1914-18, em que quase toda a Europa era monárquica, na Quinta-feira Santa os reis iam lavar os pés dos pobres. Francisco José, por exemplo, Imperador da Áustria-Hungria, lavava os pés dos pobres na Catedral de Viena. E um dos significados desse ato era este: uma é a dignidade do Imperador, e outra, a situação dele enquanto indivíduo, que devia estar sujeito a todas as humilhações, por mais que o cargo por ele ocupado fosse excelente.

O Papa, “servidor dos servidores de Deus

Os próprios Papas realizavam o lava-pés. De um lado o Papa imita Nosso Senhor Jesus Cristo — a dignidade pontifical, como a dignidade régia, deve tocar os pobres —; mas, de outro lado, esse ato significa a humilhação do homem, indicando o desaparecimento da pessoa, mesmo no esplendor do cargo e da função.

Vemos assim, na tradição cristã, a aplicação do ensinamento do Divino Mestre. O Papa, chamando-se a si próprio “servidor dos servidores de Deus”, evoca uma reminiscência do que Nosso Senhor disse.

Então, para praticarmos adequadamente a despretensão, devemos compreender que toda grandeza terrena deve existir — porque Deus quis que houvesse grandes na ordem espiritual, como na ordem temporal —, e precisa cercar-se do esplendor que lhe é próprio; mas o homem que está colocado nesse lugar de grandeza deve saber apagar-se. E aqueles que estão longe da grandeza, não possuem o cargo, não o devem invejar. Para o vaidoso, o que adianta ter um cargo se não pode se gabar dele? Nenhum cargo, nenhuma situação pessoal, na qual o indivíduo não possa consentir no envaidecimento, não lhe adianta de nada.

São Vicente Ferrer: “A vaidade esvoaça em torno de mim, mas não entra”

Lembro-me que li, numa biografia de São Vicente Ferrer, um fato muito curioso. Ao chegar a Barcelona — ele era grande missionário —, foi-lhe preparada uma recepção apoteótica. Todo o povo estava reunido, das janelas pendiam tapetes preciosos, ele caminhava debaixo do pálio, carregado pelos nobres da cidade. Durante o cortejo, alguém desconfiado perguntou-lhe: “Irmão Vicente, não estás vaidoso?” Ele respondeu: “A vaidade esvoaça em torno de mim, mas não entra”.

O que adianta para um homem receber todas essas homenagens, se ele é obrigado a resistir à tentação de se envaidecer? Não adianta nada. Porque, se é para ficar vaidoso, há um prazer terreno. Mas, se não pode se envaidecer, andar devagar no meio daquele povo aplaudindo, e ele resistindo contra a tentação, é muito cansativo. Quando termina, ele desabafa: “Uf! Acabou a tentação; ao menos estou trancado na minha cela, sozinho”. Esse é o verdadeiro dinamismo das coisas.

Quem deseja aparecer não imita Nosso Senhor Jesus Cristo

Precisamos ser muito cautelosos. Sempre que estamos apetecendo uma situação de mando, de destaque, de influência, devemos tomar cuidado, pois facilmente nos apegamos a isso para nos mostrarmos. E, se consentirmos ao desejo de aparecer, não estaremos imitando o exemplo de Nosso Senhor, o qual indicou que entre os católicos aquele que manda deve ser como quem serve; precisa ser o menor, apagado, sacrificado, e imolar-se.

Alguém poderia fazer uma pergunta-objeção: “Mas, Dr. Plinio, o senhor nos diz isso com uma ênfase, como se estivéssemos na iminência de sermos eleitos presidentes da república! Ora, acontece que nós, sendo membros do Movimento, não estamos em via de ser eleitos para nada e nem temos, ao menos de momento, um eleitorado muito grande. Então, por que o senhor nos fala essas coisas?”

Digo isto porque não se trata apenas de cargos, mas de situações nas quais se exerce alguma influência numa roda de pessoas: querer ser o primeiro numa conversa, numa mesa de refeições; aquele que conta a piada mais engraçada; conhece a última novidade ou comentário sobre nossa vida interna e o transmite para o pobre basbaque que ainda não sabe; está a par das coisas mais importantes; diz a coisa mais audaciosa em matéria de doutrina. Tudo isso são coisas que significam preeminência e dão apego. E disso tudo devemos mostrar-nos desapegados, lembrando o ensinamento e o exemplo de Nosso Senhor.

A pretensão torna estéril o apostolado

Quanto maior é a pretensão de uma pessoa, mais estéril é seu apostolado, porque só faz apostolado fecundo quem está unido ao Divino Mestre. Quem não está unido ao Redentor é como a vinha que está destacada do sarmento.

Como podemos estar unidos a Ele, se temos pretensão? Não estou afirmando que sejamos todos uns poços de pretensão. Mas quero dizer que todo homem, na melhor das hipóteses, é como São Vicente Ferrer: está sempre com a pretensão esvoaçando em torno dele. Isso é evidente. Então, cuidado! Ainda que recebamos manifestações tão mais modestas do que as prestadas a São Vicente Ferrer, devemos lutar contra a pretensão, de todos os modos e com todo o empenho.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 1/4/1969)

1) Lc 22, 24-30.
2) Megalice: termo criado por Dr. Plinio a fim de designar o vício de quem atribui a si mesmo qualidades que não possui ou então as exagera.
3) Joseph Rudyard Kipling (1865-1936), escritor inglês.
4) Infecção tuberculosa em gânglios linfáticos do pescoço.

Num olhar de Maria, a imensidade de suas virtudes

Entre as características de Dr. Plinio que mais impressionavam seus circunstantes estava sua profunda devoção à Santíssima Virgem. Eram patentes sua veneração, enlevo e entusiasmo pela Mãe  de Deus na maneira de ele rezar, no modo respeitoso e ao mesmo tempo carinhoso de a la se referir, no costume de em tudo se reportar a Ela, e até nos imponderáveis de seu agir.  Em vista disso, certa feita, durante uma reunião, um de seus discípulos lhe pediu que abrisse um pouco o coração a respeito do seu relacionamento de alma com Nossa Senhora. Abaixo transcrevemos as palavras com que Dr. Plinio procurou atender a tão justo pedido.

 

Buscando explicitar para mim mesmo o que tanto me atrai em Nossa Senhora, encontrei uma figura tão simples como mais não se pode conceber, e que exprime bem o meu pensamento. Com a ressalva de que o exemplo talvez não se verifique inteiramente exato no que concerne a Geometria (da qual possuo sumários conhecimentos…), imaginemos um poliedro regular.

Analisando-se uma de suas faces, é possível intuir como são as outras, com suas características e dimensões. Assim é Nossa Senhora. Em virtude de sua perfeição supereminente, possui Ela em grau igualmente incomensurável todas as qualidades de que seja capaz uma criatura humana. E, portanto, ao considerarmos  uma delas, podemos perceber o valor e a magnitude das demais.

Contemplando, digamos, o teor da virtude da Caridade em Maria, nos será dado discernir a riqueza de sua Fé e de sua Esperança. O mesmo sucede com as suas virtudes cardeais e com todos os excelsos predicados de que A enriqueceu a Santíssima Trindade.

Atraído pela inesgotável compaixão de Nossa Senhora

Contudo, o que primeiramente mais me tocou em Nossa Senhora não foi tanto a virginal, régia e insondável santidade dEla, mas a compaixão com que essa santidade olhava para quem não é santo, atendendo com pena, com desejo de dar, com uma misericórdia cujo tamanho era o das outras qualidades.

Quer dizer, inesgotável, clementíssima, pacientíssima, pronta a ajudar a qualquer momento, de modo inimaginável, sem nunca um suspiro de cansaço, de extenuação, de agastamento. Sempre disposta, não só a repetir-se a Si própria, mas a superar-se a Si própria. De maneira que, dispensada tal misericórdia, e sendo ela mal correspondida, vem uma misericórdia maior. E, por assim dizer, nossos abismos de ingratidão vão atraindo a luz para o fundo. E quanto mais fugimos d’Ela, mais as suas graças se prolongam e se iluminam em nossa direção.

Um olhar que comunica calma para a vida inteira Eu mesmo experimentei essa maternal compaixão quando, na infância, pela primeira vez atinei com a imagem de Nossa Senhora Auxiliadora, na Igreja do Sagrado Coração de Jesus. Naquela hora, não tive nenhuma visão, nenhum êxtase, nenhuma revelação. Mas, pela ação da graça, senti-me tocado como se a imagem me olhasse.

Se fosse possível comparar o miosótis com o sol, eu diria que esse olhar de Nossa Senhora operou em mim um efeito análogo ao do olhar de Nosso Senhor para São Pedro, durante a Paixão. O Príncipe dos Apóstolos O renegou, o galo cantou, e Jesus olhou para o discípulo infiel. Nesse instante, São Pedro se sentiu tomado por inteiro. E ele, que havia visto tudo quanto os Evangelhos narram — ou como testemunha direta, ou tendo recebido uma repercussão imediata dos acontecimentos — foi objeto de uma graça ímpar, que reavivou em sua alma, de modo intenso e  esplendoroso, tudo o que ele conheceu da infinita bondade de Nosso Senhor. E essa lembrança venceu a ingratidão dele. Por isso, diz a Escritura:

“Et flevit amare — E chorou amargamente”. Daí vem a grande contrição de São Pedro, que constitui um dos mais belos fatos da história dos Santos.

Também eu, no momento daquela graça diante da imagem de Nossa Senhora, tive conhecimento como que pessoal da indizível misericórdia d’Ela, de sua inexcedível bondade a me envolver todo, de maneira tal que, quisesse eu fugir ou renegar, Ela me pegaria afetuosamente e diria: “Meu filho, volte de novo, aqui estou…”

Como resultado desse celestial favor, tornei-me calmo para o resto de minha vida. Porque, seja o que for e como for, uma vez que nós, homens, estamos envolvidos por essa misericórdia, podemos descansar. No fundo, aquele que não é brutalmente insensível com Nossa Senhora, e para Ela se volta, d’Ela acaba recebendo sempre proteção e socorro em suas dificuldades.

E precisamente uma das coisas que mais me enlevaram, e que, dentro da indefinição de minha mentalidade de menino, entretanto ficou-me bem clara, foi o fato de que aquela solicitude materna não representava um privilégio para mim, mas é a atitude d’Ela para com todos os homens.

Nossa Senhora poderia condescender em tratar alguém como um privilegiado, porém não foi disso que eu tive cognição. Antes, compreendi o contrário: “Veja que você é um Zé da rua, e Ela trata da mesma forma a todos os Zés da rua. Para qualquer um, para todos os homens que existiram, existem e existirão, para todos os pecadores que transitam pelas cidades, que enchem as casas, os ônibus e os automóveis, Ela é exatamente assim”.

Volto a dizer que fiquei calmo para a vida inteira. Causa-me muita pena ver alguém, sobretudo um jovem, nervoso e com problemas. “Por que não lhe ser comunicado um olhar como o que recebi de Nossa Senhora?” — penso eu. “Ele ficaria calmo até o fim dos seus dias”.

Medindo a profundidade dessa clemência sem limites, vêm-me ao espírito aquelas palavras que a Santíssima Virgem, no Magnificat, diz do Padre Eterno: “Et misericordia ejus a progenie in progenies timentibus eum”.

Ou seja, a misericórdia divina se estende de geração em geração a todos os que O temem. A tal propósito, sempre pensei: “É bem verdade, e isto se dá por meio d’Ela. Maria é a misericórdia inesgotável, que não se extingue, que se multiplica solícita, bondosa, que toma nossa dimensão, que se faz até menor do que nós para nos pegar, de pena de nós.”

Pureza, fortaleza e sabedoria

Na dimensão dessa misericórdia, e nela contida, vem a ideia da virginalidade. Nossa Senhora é pura, de um grau de pureza do qual não se tem noção. Conhecida a misericórdia, se conhece a pureza. É novamente a figura do poliedro. Todas as purezas que se possam imaginar não chegam nem de longe aos pés da pureza d’Ela, que é feita não só de ausência de qualquer pendor para o mal, mas de um impulso de alma direta e exclusivamente para Deus, sem compromisso com mais nada e ninguém. É um ímpeto inteiro, de uma força, de uma integridade, de um desejo de Absoluto como também não se pode medir. Está na dimensão da misericórdia.

Supérfluo dizer que, nessa concepção de pureza, entra também o sentido de castidade, perto da qual a neve seria um carvão.

Essa pureza, no meu modo de entender, traz consigo a ideia da fortaleza. E fortaleza aqui não significa apenas algo que nada quebra. É diferente. Nada tem comparação possível com essa fortaleza.

O que Ela, na sua pureza, decidiu, o resto do mundo se flecte e se liquida, e o universo inteiro é zero, pela força da vontade de Nossa Senhora. Quando Ela decide, é uma resolução que torna impossível a resistência de quem e do que quer que seja. É uma soberania e um domínio de igual dimensão da misericórdia e da virginalidade, uma envergadura para a qual não há palavras humanas. Todas as armas modernas são pobres e inofensivos brinquedos em comparação com um ato de vontade d’Ela. Por sua vez, essa misericórdia, essa pureza e essa fortaleza trazem uma idéia da sabedoria da Fidelíssima Esposa do Espírito Santo.

Ela conhece tudo, e as inter relações de todas as coisas, com acuidade tão superior que Ela penetra até as entranhas de todo ser, vê como é cada qual e discerne a ordem de Deus no universo, tão  grande, tão inabarcável! Diante de sua sabedoria lúcida, adamantina, na qual não cabe nenhuma dúvida, compreendemos mais uma vez qual é a imensidade da pureza e da fortaleza da Virgem Santíssima.

Essas são as virtudes marianas que mais me chamam a atenção quando me lembro daquele olhar da imagem de Nossa Senhora Auxiliadora, na Igreja do Sagrado Coração de Jesus.

“Meu filho, eu te quero”  — “Minha Mãe, eu sou vosso”

Alguém poderá me dizer: “Mas, Dr. Plinio, o senhor contemplou esse olhar como um menino de onze ou doze anos. E depois, nunca mais houve algo assim?” Respondo que, para mim, essa graça foi tão excepcional que permaneceu como um sol a iluminar toda a minha existência. É como se tivesse acontecido ontem. Como se, naquele momento, Ela me houvesse dito: “Meu filho, eu te quero”, e ouvisse de mim: “Minha Mãe, eu sou vosso”.

Poderão, ainda, perguntar-me: “E nesse relacionamento do senhor com Nossa Senhora, onde se encontra Nosso Senhor Jesus Cristo?”

Eu respondo: em tudo! É a ideia desenvolvida por São Luís Grignion de Montfort no seu célebre “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem”. Nossa Senhora é o claustro, o oratório, o tabernáculo sagrado onde está Nosso Senhor Jesus Cristo, e quanto mais estivermos próximos d’Ela, tanto mais estaremos próximos d’Ele.

Minha devoção a Ele passa por Ela, e, por isso, nunca alguém me vê proferir uma palavra de adoração a Nosso Senhor, sem que logo depois eu não fale de sua Mãe Santíssima. É sistemático. Outros poderão todavia observar: “Muitas vezes o senhor se refere a Ela sem mencioná-Lo”. É isso mesmo. Porque, sendo Jesus infinitamente maior do que Nossa Senhora, está Ele contido de  modo implícito em toda referência que eu faça a Ela. A recíproca, porém, não se verifica. Razão pela qual procedo dessa forma e, se Ela me ajudar — queiram ou não queiram, agrade ou não agrade — assim procederei até morrer.

Plinio Corrêa de Oliveira

A Santa Igreja, espelho das virtudes de Maria

Ao comentar os ardorosos louvores que Santo Agostinho dirige a Nossa Senhora, Dr. Plinio tece um paralelo entre os excelsos predicados de Maria e a Santa Igreja Católica Apostólica Romana — virgem na sua perfeição sem mácula, e mãe de todos homens nela batizados e engendrados como filhos de Deus.

 

O grande Santo Agostinho deixou-nos esse belo texto a propósito das virtudes de Nossa Senhora:

Ó Maria, cumpristes perfeitamente a vontade do Pai Celeste. Vossa maior honra, vossa maior felicidade não foi de ter sido a Mãe, mas a discípula de Cristo. Bem‑aventurada sois por terdes ouvido o Verbo de Deus e conservado [sua palavra] em vosso coração. Vós guardastes a verdade de Cristo em vossa inteligência, mais ainda que sua carne em vosso seio. Não se saberia comparar‑vos às mulheres do Antigo Testamento, a Ana, a Suzana. A que alturas não vos elevastes acima delas? Aqui ainda não falamos na santa virgindade; vossas outras virtudes, ó Maria, há no mundo alguém que as ignore?

Maria, “beleza e dignidade da Terra”

Para exemplo e ensinamento para todas as mulheres, convém somente não esquecer vossa santa e admirável modéstia.

Cumpre ressaltar que, na linguagem católica, modéstia não significa acanhamento, nem a pessoa estar de olhos baixos, apagada, sumida. Trata-se de ter boas maneiras, compostas e elevadas, de acordo com a virtude cristã. Prossegue o comentário de Santo Agostinho:

Vós fostes julgada digna de conceber o filho do Altíssimo e, entretanto, permanecestes a mais humilde de todas as criaturas; porque fizestes sem cessar a vontade de Deus, sois segundo a carne e o espírito, a Mãe de Cristo, sua Mãe e sua irmã, mulher única, mãe e virgem, e o sois corporal e espiritualmente.

Mãe da nossa cabeça, que é o Salvador,  sois também, e perfeitamente, mãe de todos os membros de Cristo, porque cooperastes, por vossa caridade, para o nascimento dos fiéis na Igreja.

 Única entre todas as mulheres sois, ainda uma vez, mãe e virgem. Mãe de Cristo e virgem de Cristo. Foi por vós, ó Mãe do Senhor, que a dignidade virginal começou sobre a Terra. Por Vós, ó Maria, que merecestes ter um filho, mas que o merecestes sem deixar de ser virgem. Para honra do Salvador Jesus, o pecado não se aproximou de Vós. Sabemos que para vencer o pecado, e vencê-lo por completo, foi dada a graça abundante à criatura digna de conceber e de cuidar do Impecável.

A beleza e a dignidade da Terra sois Vós, ó Virgem, que fostes sem cessar a figura da Santa Igreja. Por uma mulher, a morte; por uma mulher, a vida. E essa última sois Vós, ó Mãe de Deus.

Assim como Nossa Senhora, a Igreja é virgem e mãe

Desse lindo trecho de Santo Agostinho parece-me oportuno salientar o pensamento final, quando ele se refere a Nossa Senhora como sendo a figura perfeita da Santa Igreja Católica. Se ousarmos aprofundar a ideia do insigne autor, poderíamos nos perguntar em que sentido a Igreja, assim como Nossa Senhora, é igualmente virgem e mãe, tornando-se, por sua vez, imagem magnífica de Maria Santíssima.

A Igreja é virgem no sentido de que manifesta uma santidade inteira, sem nenhuma forma de condescendência para com o mal. Por causa disso, nela não se acha mácula alguma e é, portanto, intacta como uma virgem consagrada a Deus.

Por outro lado, ela é mãe, pois todos os homens nascem para a vida espiritual de dentro da Igreja; no seio desta são batizados e engendrados como filhos de Deus e irmãos de Nosso Senhor Jesus Cristo. E ela procede como uma mãe em relação a seus rebentos, nutrindo-os com os sacramentos, propiciando-lhes os dons sobrenaturais da graça, formando-os por meio de seu magistério infalível e os guiando em bom caminho por meio da autoridade da hierarquia eclesiástica. Dessa forma, ela exerce junto a cada católico todos os ofícios e misteres que uma boa mãe dedica a seu filho.

Estabelecido esse paralelo, pode-se aplicar à Esposa Mística de Cristo a mesma afirmação — repassada de beleza e de veracidade — que se faz de Nossa Senhora: ninguém é mais virgem do que a Igreja, e ninguém mais do que ela é mãe, pois entre todas as instituições e todas as mães da Terra, nenhuma teve uma maternidade mais copiosa do que a Igreja Católica. Desde o momento em que foi fundada, até o fim do mundo, a maioria dos homens que se salvarem serão gerados em seu grêmio e por ela conduzidos à bem-aventurança eterna.

Remédio para as dificuldades espirituais

 Daí se compreende como o amor à Igreja Católica é uma fonte de todas as virtudes. Quem a considera e a ama como à melhor das mães, alcança graças e forças para se santificar.

Não raro, ouço lamentações de pessoas que sentem dificuldade em perseverar na prática dos Mandamentos ou em progredir na vida espiritual. Ora, uma das muitas soluções — pois a Igreja é a cidade da salvação onde para toda doença há diversos remédios — é exatamente aumentar nosso amor a ela. Crescendo nesse amor, nossa determinação para praticar o bem e repudiar o mal também aumentará.

Fixemos, então, esse pensamento valioso: a Igreja é a figura de Nossa Senhora, ela é resplandecente e bela na Terra, e devemos procurar amá-la como desejamos amar a Santíssima Virgem hoje e no Céu. Amemos a Igreja acima de todas as coisas no mundo, na sua hierarquia, nos seus mil aspectos autenticamente divinos.

Três elementos da beleza da Igreja

Por exemplo, evoquemos apenas três elementos da Igreja, dignos de nosso amor e de nosso entusiasmo. Primeiro, a infalibilidade pontifícia: a figura de um homem infalível, governando a todos e ensinando à humanidade o caminho da salvação. Nunca se concebeu, em matéria de autoridade e orientação, algo mais belo e mais nobre do que o Papado.

Admiremos, por outro lado, a Eucaristia. Sob as espécies consagradas, de modo misteriosamente oculto, está Nosso Senhor Jesus Cristo, realmente presente entre nós, em corpo, alma e divindade. E é a Igreja que oferece essa possibilidade de o homem estabelecer com Deus um convívio tão íntimo e até insondável. O Criador vem ao homem e como que se faz um com este. Pode-se imaginar algo mais esplêndido do que o Onipotente condescender em ter tal familiaridade com cada um de seus filhos?

Por fim, pensemos no sacramento da Penitência. Difícil seria conceber nossa existência neste vale de lágrimas se não nos fosse dado abrir sobre os nossos pecados e não tivéssemos a certeza do perdão de Deus através da absolvição ministrada pelo sacerdote no confessionário. Um confessionário: que obra-prima de sabedoria e de discrição, com a inviolabilidade do segredo de consciência nunca traído!

Então compreendemos melhor quão maravilhosa é a Igreja e quão digna de nosso amor. Meditemos nessas verdades e, com o misericordioso auxílio da Virgem Mãe, encontraremos em nós maior resolução para combater nossos defeitos e  praticar a virtude.

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 24/9/1969)

Revista Dr Plinio 121 (Abril de 2019)

Santo Adalberto: Um Santo que se opôs à ala má da Igreja

No dia 23 de abril comemora-se a festa de Santo Adalberto. Sobre ele o Padre Jean-François Godescard, em sua obra Vida dos Santos (não dispomos dos dados bibliográficos da obra citada), diz o seguinte:

Terrível morte do Bispo de Praga

Adalberto  nasceu em 956 de uma das mais ilustres famílias da Boêmia. Atacado, na infância, por uma doença mortal, seus pais fizeram um voto à Santíssima Virgem de consagrá-lo ao sacerdócio se ele se curasse. Suas preces foram ouvidas e o menino recobrou a saúde. Eles entregaram Adalberto ao Arcebispo de Magdeburgo, que lhe deu ótimos mestres, correspondendo a criança em tudo ao que dela se esperava em santidade e ciência.

Em 973, recebeu as ordens sacras das mãos do Bispo de Praga, que pouco tempo depois morreu desesperado, soltando gritos horríveis e dizendo que ia se condenar porque havia negligenciado os deveres de seu estado e procurado com paixão as honras, as riquezas e os prazeres do mundo. Testemunha desse triste fim, Adalberto nunca mais pode esquecê-lo, tomando a lição para si o resto de sua vida. Escolhido para substituí-lo, entrou de pés descalços em Praga onde foi recebido com extraordinária alegria pelo povo, principalmente pelo Rei Boleslau.

Essa diocese estava em deplorável estado: uma parte de seus habitantes ainda era idólatra. Os que professavam o Cristianismo o desonravam pelos vícios mais vergonhosos. Em vão Adalberto procurou fazer florir a piedade e a Religião. Lidava com um povo incorrigível. Desesperado por não conseguir nenhum bem, obteve do papa permissão para deixar o bispado e ir a Roma tomar o hábito monástico.

Cinco anos depois foi mandado de volta, sendo-lhe prometido que poderia deixar seu rebanho novamente, se este não se mostrasse dócil. Recebido com alegria, seus diocesanos prometeram corrigir-se. Vãs promessas logo esquecidas. O Santo decidiu abandoná-los para sempre e retomar o caminho de seu mosteiro.

Atravessando a Hungria, evangelizou-a com sucesso, mas o papa mandou que retomasse o governo de sua igreja. À notícia de sua volta, os habitantes de Praga enfureceram-se, massacraram inúmeros parentes do Santo, roubaram seus bens e queimaram seus castelos. Adalberto, informado dos acontecimentos, permaneceu perto de Boleslau, seu amigo, filho de um duque da Polônia.

Conseguiu nesse país converter numerosos idólatras e dirigiu-se à Prússia, país ainda não evangelizado, onde parte dos habitantes de Dantzig pediram que fossem batizados. Mas foi numa pequena cidade prussiana que encontrou a morte, atacado por um grupo de pagãos. Quando, após o primeiro golpe, Adalberto agradeceu a Deus por poder sofrer por sua causa, o grão-sacerdote dos ídolos, atravessando-o com uma lança, disse “Alegra-te então agora, já que não desejas outra coisa senão sofrer por teu Cristo”. Era o dia 23 de abril do ano de 996.

Ao longo da Idade Média, a vida da Igreja foi uma luta

Essa narração é tão cheia de episódios quanto de ensinamentos. O primeiro deles é a respeito da situação da Igreja na Idade Média. Não se deve imaginar o período medieval como uma espécie de noite de rosas sobre as quais a Esposa de Cristo dormiu, coroada de glória, durante mil anos. Ao longo desse milênio, a vida da Igreja foi uma luta. Entretanto, ela venceu esse combate porque as almas generosas, chamadas por Deus para fazerem o sacrifício de sua vida, disseram “sim”.

Há épocas em que a Igreja não mantém essa luta, porque as almas chamadas para sacrificarem sua vida a Deus dizem “não”; ou “talvez”, que é um dos mais detestáveis modos de dizer “não”. O resultado é que a Igreja é mal servida e, então, a Civilização Cristã degringola.

Vejam essa situação na Idade Média. Praga já era uma das cidades importantes daquele tempo, uma espécie de sertão novo, porque toda aquela parte da Boêmia estava apenas recém-evangelizada e as terras pouco aproveitadas. A civilização estava pouco implantada e todos os olhos se voltavam para lá.

Em Praga, nós encontramos um bispo investido da grande responsabilidade de consolidar o Reino de Nossa Senhora naquela zona: em primeiro lugar, confirmando na Fé os verdadeiros católicos; em segundo lugar, convertendo aqueles que não eram católicos.

Qual é a situação do bispo? Trata-se de um homem que desempenha mal o seu cargo, e que morre em transes de desespero na presença desse jovem, depois chamado à santidade. Qual o ensinamento que nos dá a morte desse bispo?

Atualmente existe uma insensibilidade moral péssima

Notem a diferença entre o modo pelo qual o mal se apresentava na Idade Média e como ele se mostra hoje. Em nossos, dias, ninguém morre em transe de desespero. Pecadores iguais ou piores do que esse bispo morrem ouvindo música, completamente inconscientes de suas responsabilidades, despedindo-se de todo mundo e fingindo não perceber que estão morrendo. Quase mais ninguém tem um arrependimento “in extremis”. Por mais carregadas de vergonha ou de opróbrio que tenham suas consciências, morrem com indiferença.

É uma insensibilidade moral péssima que multiplica o péssimo pelo péssimo. Essa insensibilidade era mais rara na Idade Média do que em nossos dias. E, embora a Igreja tivesse que lutar com muitas almas pouco recomendáveis, não se dava, ou era raro, o fato de uma morte insensível, cínica, simplesmente indecente como ocorre hoje. Pelo contrário, os maus morriam blasfemando, desesperando-se, ou se convertendo e se salvando. Mas era muito raro o mau morrer com esse cinismo com que a quase totalidade dos maus morre hoje.

Quer dizer, a maldade de nossos dias não está em que se peca muito, mas no estilo de pecado, na indiferença e no cinismo dentro do pecado, o que antigamente não havia. O mau tinha, pelo menos, uma certa vibração diante do pecado.

Esse mau bispo morreu com esses sinais de horror. Qual é o resultado? Ele é observado por um futuro Santo. E a vista desse horror faz bem e sacode a alma do jovem Adalberto. Este, então, entra na cidade de Praga de pés descalços e é recebido com extraordinária alegria pelo povo, principalmente pelo Rei Boleslau.

Com esse modo de tomar posse, ele queria fazer sentir a sua execração à vida do antecessor e o seu propósito de ser um bispo penitente, enquanto o outro fora um bispo devasso, escandaloso. Era uma manifestação de reação, uma oposição à ala má da Igreja daquele tempo. Ele tomava posse de seu cargo por meio dessa atitude.

Graves consequências para a Boêmia por ter rejeitado Santo Adalberto

Fato curioso, que entra em contradição com o que ocorre depois: Santo Adalberto é recebido muito bem, com extraordinária alegria pelo povo e também pelo rei. Entretanto, apesar de fazer esforços, ele lidava com um povo incorrigível, que resistiu durante  toda a vida à ação dele. E foi, naturalmente, a cruz da sua vida. Ele pregou a esse povo, mas não conseguiu nada. Renunciou ao episcopado, e quis ser frade.

Foi para Roma, e depois converteu gente na Hungria, na Polônia, na Prússia, mas o seu próprio povo ele não converteu.

Vê-se, por aí, como não há nada de automático na vida da Igreja. E se é verdade que, muitas vezes, um Santo basta para converter uma região, um povo mau pode resistir à ação dos maiores Santos, como o povo de Israel se opôs à ação de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Homem-Deus.

Qual é o resultado e a responsabilidade da rejeição a um Santo? A Boêmia continuou a ser uma região má até o protestantismo. Pouco antes da heresia protestante, começou a rebentar nela, com João Huss, explosões, manifestações de autêntico protestantismo. Os católicos perseguiram João Huss e mandaram matá-lo, mas o pré-protestantismo continuou a lavrar nas fileiras desse povo.

Durante toda a luta contra a pseudo-Reforma protestante, a Boêmia foi uma das forças do protestantismo. Embora sujeita à Casa d’Áustria, foi uma nação sempre muito pouco católica. Separada da Casa d’Áustria, ela constituiu uma república de caráter socialista. O povo checo não apresentou nenhuma reação ponderável quando, afinal de contas, os comunistas tomaram conta da Checoslováquia.

Quer dizer, era uma velha rejeição de um povo que gerou gente má até nossos dias. Com exceções, evidentemente. Houve ali gente muito boa, Santos, grandes homens de piedade, cruzados, vocações esplêndidas. Entretanto, um filão mau, apesar das pessoas boas, continuou e fez com que a Boêmia fosse, dentro do Império de Francisco José, um perpétuo problema.

A América Latina encontra-se numa encruzilhada

Temos que pensar muito nesse assunto, porque há algo disso com os povos latino-americanos no presente momento.

As nações latino-americanas estão numa encruzilhada: ou elas ouvem a voz daqueles que as chamam para a verdadeira causa católica e as convidam a uma posição contrarrevolucionária, ou rejeitam. Se receberem, são séculos de glória católica, de salvação das almas que se abrem para um florescimento. Se rejeitarem, não há o que não possamos recear.

Há na América Latina algo sobre o mistério da aceitação ou rejeição de um povo que nos deve levar a rezar muito e a compreender nossa responsabilidade.

Alguém dirá: “Mas se Santo Adalberto não conseguiu nada, como é que nós vamos conseguir?”

Essas são coisas que só no dia do Juízo Final se saberão. Não era desígnio da Providência que outros, além de Santo Adalberto, fossem chamados para evangelizar a Boêmia e não o fizeram? Não sabemos se havia ali, dentro da própria Boêmia, gente chamada a constituir um núcleo em torno de Santo Adalberto e que resistiu ao chamado, não formou esse núcleo e agiu frouxamente. No dia do Juízo Final essas coisas se saberão. O fato concreto é que Santo Adalberto cumpriu o seu dever. Provavelmente outros não o cumpriram, e daí veio o triste fim da nação boêmia.

Devemos concluir, portanto, considerando a gravidade da nossa responsabilidade e a necessidade de rezarmos muito uns pelos outros, pedirmos a todos nossos Padroeiros, todos os Anjos e Santos do Céu, especialmente a Nossa Senhora, que nos deem forças para estarmos à altura da nossa missão. Porque nada há de mais glorioso do que ser os homens dos quais a Providência espera a salvação de um continente. E nada mais triste do que dizermos “não” ou “talvez” à Divina Providência. 

(Extraído de conferência de 22/4/1966)

 

 

 

 

O mistério da vida…

Quem nunca terá pensando no que consiste a vida? Analisá-la em seus mais variados graus pode deixar qualquer um estarrecido diante dos mistérios que ela contém. Diante de tão interessante tema, Dr. Plinio discorre magnificamente à maneira de um navegador que perscruta os mares desconhecidos.

 

O tema a respeito do qual me pediram que tratasse é de tal vastidão, imensidade e complexidade, que se fizéssemos um simpósio de um ano não teríamos senão aflorado o assunto.

Considerações sobre heráldica

Imaginemos, por exemplo, um leão heráldico. O leão é, sem dúvida, um espécime magnífico do que a vida pode produzir. Como a figura desse animal, pintada sobre uma superfície, é pouco em comparação com um leão de verdade! Entretanto, ela tem, sob certo ponto de vista, uma beleza maior do que o próprio leão vivo, pois apresentando suas formas de modo mais característico, pode ele ser mais bem compreendido. E, para se entender bem uma série de leões vivos, nada melhor do que ter visto um leão bem pintado.

Representar bem um leão, procurando, não propriamente imitá-lo, estilizá-lo, mas sublimá-lo, é o que faz a heráldica. Através desta, tudo é idealizado de um modo esquematizado, captando ao mesmo tempo a anatomia e a fisiologia; mais ainda, aquilo que se poderia chamar a vitalidade e a “mentalidade” do animal. E, se olharmos para cem leões vivos, teremos aprendido menos do que vendo um leão heráldico.

Leão heráldico, tintura-mãe da “leonicidade”

O que de misterioso tem a vida do leão, por onde ele parece melhor, em alguns aspectos, quando não está vivo, mas esquematizado? É que ele foi visto, considerado, por um ser com um tipo de vida mais alto, que é o homem. E o leão, depois de ter formado uma imagem na mente humana, ter criado no espírito humano uma impressão tão forte, propiciou ao homem talentoso, após uma análise, a vontade e os meios de exprimi-lo.  E isto pintado pelo homem tem, sob certo ponto de vista, mais vida do que propriamente quando vivo no leão.

Por quê? Porque a imagem do leão desprendeu-se deste e entrou na mente do homem, passando assim para um circuito e um grau de vida superior. O leão corre, salta, ruge, mas não entende a si próprio porque ele não entende nada. Mas alguém que entende e tem, portanto, um grau de vida incomparavelmente mais elevado, olhou para o leão e tirou de dentro dele algo mais alto do que o próprio leão e pintou este algo. Assim, o que há de precioso na vida do leão, mas meio escondido, disfarçado, a vida da alma conseguiu apresentar melhor à nossa atenção.

De maneira que o pensamento de quem concebeu o leão heráldico, hirto, “figé”(1), faz com que este seja como que o leão dos leões, uma tintura-mãe da “leonicidade”. O conceito de leão deixou de ser um leão concreto e passou a ser um leão de quintessência.

Talento de um pintor ao representar uma fisionomia

Outro dia, ao folhear um álbum e deparar-me com uma pintura representando uma mulher, eu pensava o seguinte: “O imponderável de um talento! A fisionomia desta mulher é de uma velha, mas neste rosto o artista pintou uma pele de moça”. Aquilo produzia uma sensação de contradição, que causava mal-estar.

Entretanto o mais curioso é que a pele, sendo ao mesmo tempo de moça, tinha qualquer coisa de ensebado, de uma pessoa que se lava pouco. E de uma forma de ensebamento que dá um brilho falso e ruim à pele. Não era o brilho da limpeza, mas um lustre de sujeira que foi aplicado naquela pele de moça.

Que talento tem aquele pintor para saber exprimir, por meio de tintas sucessivas sobre uma superfície lisa, até a sensação da ligeira pátina de sujeira que pode tornar repugnante a pele mais brilhante! O que há na pele de uma pessoa que parece agradável de ver, e o que nela existe por onde engendra algo que lhe é mortal e, se ela deixa durar, a torna repugnante? Que quintessência de talento precisa ter um homem para saber ver isto e passar, por cima de uma pele que ele pintou, não sei que lustrina ou verniz imitando exatamente a sujeira! Que tesouros de observação tem ele sobre a vida! O que existe na vida humana, por onde ela algumas vezes frutifica a plenitude de si mesma, e outras vezes produz sua própria deterioração e degenerescência? Fonte, ao mesmo tempo, do que há de mais admirável e mais repugnante? De uma pedra não sai nada de repugnante, também não emerge nada de admirável.

 Alguém poderia dizer:

— O brilho!

Eu digo:

— O brilho é uma coisa admirável, mas é algo que, posto na pedra, ela devolve. A pedra é inerte, não tem vida. O homem, entretanto, para elogiar um olhar, diz: “Esse olhar é brilhante”. Mas o olhar vivo é tanto mais, que ele nunca elogiará um brilhante dizendo: “Parece o olhar”.

Um dos brilhantes mais conhecidos e bonitos, o “Koh-I-Noor”, está na coroa da Rainha da Inglaterra. Pode-se fazer daquele brilhante qualquer elogio, afirmar que ele lembra uma inteligência rútila etc. O olhar humano tem tal vida que se pode dizer a uma pessoa: “Seus olhos são como o “Koh-I-Noor”. Mas não se pode afirmar a este último: “Tu és como um olho!”

Metáfora da floresta

Quais as reciprocidades, qual o jogo das analogias, o que é, no fundo, esse mistério da vida que se oculta e se mostra de um modo fugaz em todos esses exemplos que apresentei, de maneira a termos, ao mesmo tempo, a impressão de apanhar coisas finas e definidas, mas, quando se vai apalpar, vê-se que algo foge, é indefinido e resiste a qualquer definição?

Com efeito, a palavra “vida” não se define, e também o vocábulo “morte”; sendo a morte a cessação de algo que não é definido, ela mesma não pode ser definida. Porque o termo “não”, posto diante do indefinido, não define o indefinido.

Isso não nos impede de ter certa noção de vida e de vitalidade. Que uso fazer dessas noções, tendo em vista as finalidades para as quais estamos reunidos aqui? O que é a vida natural da alma? O que é vida sobrenatural? O que é a vida de Deus? O que é vida?

Aí nós esbarramos com um mistério; podemos apalpá-lo, como faz um cego, mas sem o ver, e é para apalpações que vos convido nesta reunião. Apalpações que faremos tanto quanto possamos, não procurando abarcar o tema inteiro.

Realizaremos algumas incursões no assunto, à maneira de um viajante que penetra numa floresta grande demais; ele sabe que jamais poderá percorrê-la inteira, mas, para ter algumas ideias a respeito da floresta, nela faz algumas incursões. Depois disso, ele não sai com um mapa da floresta, mas leva na alma exemplos do que há dentro dela, algumas noções sobre a vida da floresta. Percebendo que a floresta era variável quase ao infinito, ele compreendeu que as incursões o ajudariam a ter uma ideia dela, a qual é mais rica do que se apenas a contemplasse de fora para dentro.

A vida é uma floresta; alguns estão no meio da picada, outros perto do fim, e outros no começo, mas a picada é a mesma. Convém fazer nela, de um lado ou de outro, incursões, apalpar pontos, a fim de extrair ideias e depois fazermos algumas considerações. Mais do que isso não nos permite o tempo, ainda mais numa reunião como esta. Vou tomar a vida de baixo para cima, desde o que ela tem de mais elementar e mais simples, até chegarmos ao mais complexo.

Modo de agir dos antigos navegantes portugueses

Empregaremos a marcha de “proche en proche”. O espírito humano funciona exatamente à maneira dos antigos navegantes portugueses, que chegaram até a Índia. Eles desciam um trecho ao longo do litoral africano, depois voltavam para Sagres e desenhavam o mapa. Descansavam e desciam mais um tanto. Regressavam e anotavam o que tinham visto, em conexão com o anteriormente feito. E assim, navegando de ponto em ponto, chegaram até a dobrar o Cabo da Boa Esperança.

Lá, eles estavam tão longe que o caminho da certeza já não lhes era possível. Em vez de voltar para Sagres, resolveram seguir em frente. No Cabo, segundo Camões, apareceu o gigante Adamastor para intimidar o gênio lusitano. Nossos ancestrais portugueses vararam o espectro do Adamastor e entraram pelo Oceano Índico. Então, mais valia a pena continuar, e assim chegaram à Índia; e mais tarde até a China e o Japão.

Há certo ponto atingido pelo espírito humano, do qual ele não volta atrás para formar certezas, mas embarca nas hipóteses. Ou ele, pela experiência, encontra a certeza na ponta da hipótese, ou não sossega, não se sente satisfeito. Vamos então viajar um pouco e lançar algumas hipóteses; assim teremos obedecido à segurança e à ousadia do gênio luso, do qual tantos de nós procedemos.

A pedra, a grama, o homem

Consideremos a coisa mais simples, comum, que a ordem natural pode oferecer aos nossos olhos. Imaginemos que um indivíduo, andando pelo campo, encontre uma pedrazinha sobre uma graminha. Quantas pedrinhas e graminhas haverá pelo mundo?  Só a sabedoria divina conhece.

Sendo reflexivo, ele se detém e vê que a pedrinha está colocada ligeiramente em cima da grama, a qual cresceu inicialmente sob a pedra, fez algumas voltas e continuou a se desenvolver.

O indivíduo tem uma impressão de superioridade e, ao mesmo tempo, de inferioridade da pedra. Esta pesa sobre a planta de tal maneira que a tornou torta; a pedra é, portanto, mais forte do que a planta.

Entretanto, a planta tem algo dentro de si por onde ela não se conforma com a pedra; apesar de ser mais fraca, ela empurra a pedra como que com o cotovelo. Ela se adapta à forma da pedra e encontra o caminho do sol. A grama tem uma superioridade de outro gênero, que só uma palavra, de quatro letras, pode explicar bem: “v”, “i”, “d”, “a”. Ela tem vida, e por isso resiste, encontra um caminho, se esgueira, fura e brilha à luz do Sol, embora a pedra queira atrapalhá-la.

E a pedra, que foi colocada ali, fica estupidamente naquele local, se ninguém a retirar, enquanto o mundo for mundo. Se for uma pedra enorme, ela pode comprimir tudo quanto é vivo. Mas se quem tem vida não se deixar comprimir por ela, o ser vivo é tão superior à pedra que faz dela o que entende.  Assim, se compreende o que é a matéria não-viva, e se tem um sinal do que é a vida.

O Pão de Açúcar, por exemplo, tão colossal. Quantos milhares de homens ele esmagaria; entretanto, chegou um dia em que o homem conseguiu esticar um fio até seu topo e fazer passar uma carreta, dominando o Pão de Açúcar, servindo-se dele para um passeio. E o Pão de Açúcar não pôde nem mover-se.

Embora enorme e majestoso, ele não sentiu sequer o que lhe acontecia. E essa formiga chamada homem construiu um torreão em cima dele, amarrou-o com um fio de linha e se diverte com ele.

O que é então a vida?

Heliotropismo

No que diz respeito ao vegetal, a vida se apresenta — estou indicando sintomas externos — como uma possibilidade de tirar de si mesmo uma mudança de sua situação. A planta cresce, se desenvolve, fenece. Ela existe dentro do tempo, está sujeita a mil condições, a mil infortúnios, mas de si tem uma coisa que o mineral absolutamente não possui: uma energia pela qual, por um princípio que lhe é próprio, crava raízes na terra e seleciona o que lhe convém. Ela se expande na direção dos minerais que lhe são úteis.

O melhor dos mineralogistas não conhece tão bem os minerais como uma planta, incapaz de conhecer-se a si própria ou qualquer outra coisa. E o trabalho dela, por debaixo da terra, é de antenas delicadas, por onde ela faz esta coisa admirável que o ser inerte não é capaz de realizar: encontrar, sugar e transformar em si mesma algo que não é ela.

Quer dizer, ela faz um encontro e um trabalho de assimilação, de apropriação, que é o crescimento dela. E, da noite de suas raízes, ela tira a parte dela que brilha e frutifica.

O mais extraordinário é que ela não conhece nada; a planta não tem nem sequer sensibilidade. E sem ter sensibilidade ela, entretanto, porque tem isto chamado vida, possui determinada ordenação por onde pega o que lhe convém e se desenvolve.

O heliotropismo é a procura que a planta faz do sol. Algumas até giram, fazem torções para encontrar o astro rei, como o girassol. Se alguém quisesse caricaturar o Sol, imaginaria o girassol, que é a figura do bajulador procurando imitar o bajulado, voltando-se para este, mas sem conseguir imitá-lo em nada; sol vulgar, rasteiro, amarelo, quando o outro é dourado. O girassol tem uma bordadura que imita o dourado e um cebolão marrom, no seu interior. O marrom é o estado plebeu do ouro e o estado mortal do amarelo. 

O que é propriamente o heliotropismo? Os cientistas já o estudaram. Eles conseguem tornar tantas coisas sem graça; entretanto, aprofundando-se o que dizem, pode-se verificar a existência de alguma graça no assunto. O Sol traz consigo certas transformações do ar e determinados graus de calor necessários para que a planta, a qual, movida pela vida, procura — notem bem — a sua própria conservação e seu próprio desenvolvimento. Trata-se, portanto, de uma forma de energia nascida de dentro do próprio vegetal, que procura sua conservação e depois a plenitude — o que não se conserva não alcança a plenitude; mas às vezes o que não alcança a plenitude, se conserva. Isto que está na planta, e dessa forma se desenvolve, o que é?

A graminha e o “Koh-I-Noor”

É um mistério. Mas um mistério ordenadíssimo, que torna o vegetal muito superior ao mineral e faz da graminha — mesmo a mais insignificante, que não é alimento para o nobre cavalo, nem tapete para um leão, mas comida de formiga — algo intrinsecamente mais nobre do que o “Koh-I-Noor”.  Este não reage, não opera, não cresce, não tende para perfeição nenhuma, é parado; dentro dele não habita nenhuma energia vital. A planta, porque é capaz dessas coisas, vale mais que o “Koh-I-Noor”. Isso de tal maneira é verdade que se imaginássemos dois artistas, um fizesse o “Koh-I-Noor” e o outro elaborasse um vegetal, diríamos que muito maior é aquele que soube fazer uma planta. Em outros termos, a grandeza de Deus se reflete muito mais numa plantinha feita para alimentar formiga do que no “Koh-I-Noor”.

O “Koh-I-Noor” vai para a coroa da Rainha da Inglaterra. A graminha… Se um lacaio relaxado deixar que uma graminha fique no caminho da Rainha, no dia da coroação ou da inauguração do Parlamento, ela pisa em cima da graminha sem perceber. Ela calca o tesouro, mas leva sobre a fronte a coisa secundária!

Metafisicamente falando, a obra-prima de Deus é mais a graminha do que o “Koh-I-Noor”. De fato, o Criador colocou as coisas graduadas para nossas vistas, de maneira a podermos percebê-Lo mais no “Koh-I-Noor” do que na graminha; mas na realidade a graminha é mais do que o “Koh-I-Noor”.

A graminha não sabe nada, mas dela se pode dizer o que Nosso Senhor afirmou sobre os lírios do campo: “Olhai para os lírios do campo, não tecem nem fiam, entretanto Salomão, em sua grandeza, não se vestiu como eles!”(2). Poderíamos dizer: “Olhai para a graminha, não tem ciência nem sensibilidade, entretanto nenhum botânico sabe, com tanto acerto, o que convém a ela; a graminha procura nas trevas, na escuridão, aquilo que lhe convém e o encontra”.

Gramado de uma grande fábrica

Considerem uma fábrica moderna fabulosa. Ela não realiza o que faz uma graminha, quando deita um milímetro a mais de seu próprio vegetal.

Houve até quem dissesse que os vegetais eram fábricas feitas por Deus: por ordem de seu Criador, a natureza fabricava coisas que o homem não sabia produzir. A comparação só não me agrada porque diminui a importância da grama. A vida, que está no vegetal, é mais do que algo organizado pelo homem para produção de caráter material, remexendo coisas minerais, químicas etc.

Imaginem uma fábrica na qual há um gramado. Quem haveria de dizer que, no fundo, o gramado é mais do que a fábrica? Um técnico poderia explicar tudo o que se faz na fábrica, mas nenhum grande cientista seria capaz de dizer o que é a vida que anima aquele gramado.

Se compreendêssemos a lição de sabedoria que Deus nos dá! Enquanto estamos aqui conversando, a grama de nosso jardim está respirando. O Criador sabe o que cada folha de vegetal está fazendo, por causa desta vida que lhe deu. E numa hierarquia tão bem calculada que cada vegetal faz tudo quanto está na sua natureza, mas não sobe um milímetro, um grau, além de sua natureza; faz o que está de acordo com a ordem vegetal, mas não é capaz de realizar nada de animal; pelo contrário, serve de moldura e de comida para o animal. O gramado é um banquete das formigas e dos passarinhos, e não vive senão voltado para os seres de ordem superior. Então compreendemos que tesouros da sabedoria divina existem num simples canteiro.

Glorificar a Deus por ter criado os vegetais

Se fôssemos capazes de entender isto, nos ajoelharíamos e glorificaríamos a Deus pelo que a planta faz na sua raiz e na parte que aparece acima da terra. Diríamos:

“Meu Deus! Vós fizestes, entre outras coisas, as plantas tão feias na sua raiz e tão belas na parte que aparece. Mas, de outro lado, para que vossas regras, dentro do imobilismo de certos padrões, tivessem todas as mobilidades possíveis, fizestes em algumas plantas raízes tais que elas formam os mais bonitos parques para os palácios.

“E algumas dessas raízes se comparam ao trigo, para alimentar o homem: o cará, a mandioca, a batata e tantas outras. Vós quisestes que a planta, às vezes, desse no fundo da terra aquilo que ela costuma apresentar, a título de fruto, balançando ao céu. Desejastes fazer tudo isso diverso e, apenas neste grau primeiro de vida, nos destes uma possibilidade quase infinita de meditação.

“De todo esse formigamento de vida, Vós sois o Autor. Mas um Autor sem esforço, sem o trabalho da aplicação, que faz tudo isso com a serenidade e a facilidade que nenhum de nós homens conhece.”

Eis aí uma primeira noção da vida, que nos aproxima diretamente de Deus. E nos faz compreender que esse primeiro degrau da vida, debaixo de certo ponto de vista, já é um santuário. Nós nos sentimos pequeninos, desconcertados, mas temos uma experiência interna curiosa. Olhando para a planta, na perspectiva em que estou falando, nós dizemos: “Como somos grandes em relação aos vegetais!”

O que qualquer homem é capaz de falar sobre uma planta, ou fazer dela, é uma coisa fenomenal! Pobre planta! Mas Deus põe ali mistérios, perto dos quais somos pequeninos e então dizemos: “Aquele que conhece o que não conhecemos e fez o que não podemos fazer, e nos fez a nós mesmos, é superior a nós, assim como somos superiores à planta”

Podemos então imaginar, vagamente, como Ele nos vê. Somos incomensuravelmente superiores a um vegetal, o Criador é infinitamente superior a nós. Como será Ele, que criou a mim e a planta, e fez que eu pensasse o que acabo de dizer sobre ela, e quis esse contraste, essa comparação, para que me reportasse a Ele, tivesse uma figura d’Ele, e me enchesse de respeito e de amor para com Ele, mas me sentisse face a Ele menor do que a menor das plantas diante do Himalaia? Oh, meu Deus! Que lição! E quanta sabedoria d’Ele para que, sem me revelar nada, nem me falar nada a não ser o que está nos livros da Revelação, entretanto, me desse um espírito por onde eu fosse capaz de calcular tudo isso e ver quem Ele é!

O homem criou uma planta imaginária: o lírio heráldico

Deus aparece ao homem e lhe diz algumas coisas a respeito da vida que Ele criou; mas não se sabe quando surgiram os seres vivos. Que coisa gloriosa o homem receber essa comunicação de Deus! E como Deus me amou fazendo com que eu conhecesse tal comunicação; e, de outro lado, deu-me inteligência por onde algo eu descobrisse e me dignificasse. Porque descobrir não é de nenhum modo criar, mas tem analogia com criar. E o Criador, que é infinito, deu-me a possibilidade de fazer essa analogia.

Um homem colhe uma planta, um lírio, por exemplo, e o transforma num lírio que não existe: o lírio da heráldica. Esse homem criou uma planta imaginária. E nisso ele se parece um pouco com Aquele que criou a planta real.

Isso é uma analogia que Deus, a propósito dos vegetais, bondosamente concedeu ao espírito humano.

É bonito receber a Revelação! Mas também é bonito andar com os passos da inteligência e construir uma determinada coisa. Como é bonito viver! Porque isso é viver. E como é bela a vida!  v

 

Continua no próximo número…

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/2/1980)

Revista Dr Plinio (Abril de 2011)

 

 

1) Fixo, imobilizado.

2) Mt 6, 28-29.

O perigo começa com a vitória! – II

Após analisar a primeira fase medieval, Dr. Plinio nos mostra como, a partir de um relaxamento, operou-se a corrupção da sociedade.

 

Dessa primeira fase em que a Idade Média se revela ainda ponderada, equilibrada, passamos para uma época em que os prazeres se vão acentuando. São ainda honestos, legítimos e até equilibrados. Há, porém, uma sede de prazer que se vai tornado progressivamente acentuada. Numa terceira etapa notamos todo o corpo social da Idade Média já deteriorado.

Tratava-se de um relaxamento e não uma deliberação explícita em fazer o mal

É uma espécie de febricitação, de agitação, de delírio, que já define bem o século XV, fazendo com que muitas pessoas do tempo pensassem que o mundo iria acabar.

Nota-se, então, a passagem sucessiva de um apogeu para um estado de decadência. O ponto de partida foi seguramente a falta de cuidado, a falta de prevenção. Uma atitude despreocupada da Cristandade Medieval foi a causa da decadência.

Despreocupação esta que se caracterizava pela excessiva confiança em si mesmo, julgando haver na própria sociedade medieval raízes e lastros de virtudes suficientes para se eliminar qualquer preocupação.

Não se pode, entretanto, afirmar que havia má intenção nesta atitude. Tratava-se apenas de um relaxamento e não de uma deliberação em praticar o mal. Nessa fase de afrouxamento do modo de viver, a Idade Média até nos impressiona pelo que tem de temperante, de digna, de nobre, mesmo nos seus prazeres.

Note-se que isto não é uma afirmação, não é uma tese que venha acompanhada de documento, mas uma hipótese baseada em alguns conhecimentos. Mas, quando formulamos esta hipótese os fatos se alinham de tal maneira que tudo se torna claro. Assim sendo, os acontecimentos ficam arquitetonicamente explicados.

Está na substância da santificação o desejo da cruz

É necessário considerar que isto não se refere a desvios existentes, mais ou menos excepcionais, embora até profundos. Encontramos na Idade Média fenômenos marginais, como as heresias, mas que não são a Idade Média; casos de satanismo, mas que não são a Idade Média; um imperador que é até arabizante e muçulmanizante, mas isto também não é a Idade Média. É a doença inteira do corpo social que estou procurando descrever, e não apenas certas chagas.

Isto interessa muito aos contrarrevolucionários, sobretudo tendo-se em vista o Reinado do Imaculado Coração de Maria conforme sua promessa em Fátima: “Por fim o meu Imaculado Coração triunfará”.

Estes princípios são tão verdadeiros que se aplicam até aos fenômenos de vida espiritual dos contrarrevolucionários de hoje. Em virtude de quase todos os ambientes atualmente estarem, uns mais outros menos, impregnados do espírito revolucionário, quando uma alma ao converter-se torna-se contrarrevolucionária, entra em uma fase de lutas e enormes provações.

Há depois, uma segunda fase, de estabilização, em que tudo se torna menos árduo e mais fácil. Esta é a fase perigosa. Não se devem temer tanto as lutas de conversão como as batalhas de segunda fase, porque é aí que vem a tentação de se viver sem preocupações dentro da virtude, o que significa abandonar a virtude e viver fora dela. Está na substância da santificação o desejo de cruz.

As várias etapas da decadência medieval

A primeira das várias etapas da decadência se caracteriza pelo agradável-bom que se acentua demais, mas ainda honesto, nobre e equilibrado. É exemplo disto o traje feminino habitual na Idade Média. Era lindíssimo, com os belíssimos chapéus de cone com véus pendentes, ou em forma de gomos, com uma coroa. É algo de muito nobre e bonito, e também muito calmo e repousante. Toda a arte medieval produz uma sensação muito agradável.

O agradável encontra sua melhor expressão no Gótico “Flamboyant”. Mas o “Flamboyant” vai invadindo todos os campos, e em vez de ser apenas um agradável-bonito para a sala de visitas, passa a ser a nota dominante em quase todos os ambientes.

Tudo piora sensivelmente a partir do momento em que o agradável se torna ilícito e, portanto, imoral. O mesmo se dá na literatura de Cavalaria e em inúmeros outros setores da vida medieval.

Para se analisar como a crise se generalizou no corpo da sociedade medieval, é necessário ver as profundidades dessa crise. Por profundidade entendemos as várias camadas dessa sociedade; a mais baixa, a do povo, constituía a última profundidade. A mais elevada seriam as cortes.

A corrupção da sociedade a partir das elites

Antes de prosseguirmos, seria conveniente lembrar um princípio.

Ao analisarmos alguém de personalidade encontramos — sobretudo caso se trate de um liberal — várias personalidades conjuntas que entram numa espécie de diálogo. Há num mesmo homem o monarquista e o republicano, o católico e o protestante. É o princípio das várias personalidades opostas, estabelecendo um diálogo interno, e que se dá na vida espiritual de um homem.

Na Idade Média o princípio do diálogo interior entre várias personalidades dava-se conforme as classes sociais. Esse processo de deterioração começou com os mais ricos e poderosos.

O fenômeno é mais evidente nas cortes reais, e mesmo em certas cortes principescas tão altas quanto as cortes de reis. Começa-se então uma vida de extravagância. A metástase, à maneira de câncer, foi se dando, de “proche en proche”(1), para as demais classes sociais.

A corte corrompe a média nobreza, que por sua vez corrompe a pequena. A alta burguesia, sempre a primeira a corromper-se com os reis, deteriora a média burguesia e a pequena. Este processo é lento, mas terrivelmente eficaz.

Houve tempo, na Idade Média, em que se nota muito claramente este fenômeno de corrupção nos altíssimos letrados, nos altos aristocratas, nos altíssimos argentários, e mesmo no mais alto clero.

Há, no entanto, correntes de opinião e umas tantas classes sociais que constituem centros naturais de resistência. É o que se passou com o movimento humanista e renascentista, que tanto floresceu entre os altos intelectuais, mas que encontrou focos de resistência nas universidades, a tal ponto que estas durante muito tempo ficaram à margem do movimento novo, apegadas às fórmulas antigas.

Entre as camadas inferiores do povo a corrupção é muito mais lenta, havendo muita resistência. Mas esta resistência sofre um processo de degradação que se delineia mais ou menos da seguinte maneira: inicialmente há uma indignação e resistência profunda à deterioração; a seguir, uma contemporização, apesar da não adesão e até da resistência; por fim, tolerância indiferente seguida de admiração, inveja e adesão ao processo que já estava vitorioso há muito tempo nas camadas superiores da sociedade.

A decadência deveu-se à tolerância dos bons

Quando estudamos o problema da decadência da sociedade medieval, ocorre-nos uma indagação no sentido de saber por onde ela se vergou à Revolução.

Muitos afirmam que a decadência coube aos reis e ao clero, que deram o passo inicial. Há outra teoria, mais simpática, que é a de que tudo foi possível a partir do momento em que a resistência deixou de ser caracterizada por uma intolerância agressiva, indignada e militante. Só a reação enérgica é capaz de deter o progresso do mal. O mais lamentável não é que os maus sejam audaciosos, mas que os bons não lhes oferecem a intolerância e resistência que eles demonstram para com o bem.

Se alguém denuncia publicamente o mal praticado pelos revolucionários, algo se lhes atrapalha, ainda que eles não queiram. E é esta espécie de atrapalhação interna, que produz o estertor dos revolucionários. Poucos têm coragem para argumentar contra quem lhes denuncia. E vence quem argumenta com mais intolerância, no sentido mais profundo da palavra. Pode-se, em certo sentido, dizer, sob este aspecto, que tudo depende inteiramente da intolerância.

O mal começa a vencer quando os bons deixam de ter essa intolerância ousada e triunfante.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de maio de 1959)

 

1) Pouco a pouco.

 

Quando o Céu e a Terra estavam próximos…

O jovem cônego Pedro González estava penetrado pelo pior dos mundanismos: o das coisas sagradas. Tocado pela graça divina, rompeu com o mundo e entrou para a Ordem dos dominicanos. Tornou-se célebre pregador e influenciou, com seus conselhos, o Rei São Fernando.

 

No dia 14 de abril comemora-se a festa de São Pedro González, dominicano, do qual tiramos umas notas do livro Vida dos Santos, do Padre Rohrbacher(1).

Gritos de admiração se transformaram em vaias e zombarias

Eis a síntese histórica:

Pedro González nasceu no ano de 1190 na cidade de Astorga, na Espanha, da qual seu tio era bispo. Após brilhantes estudos, foi nomeado, ainda jovem, cônego da catedral.

O tio lhe obteve de Roma a dignidade de deão do capítulo. Pedro devia tomar posse do cargo na festa do Natal. Jovem vaidoso, quis que tudo lhe ocorresse com pompa, e que toda a cidade assistisse ao ato.

Montado em um cavalo magnificamente ajaezado, atravessava as ruas da cidade. Chegando a um lugar repleto de pessoas, ferroou o animal para fazê-lo trotar com mais graça e assim aumentar a admiração do povo. Mas o cavalo deu um passo em falso e atirou o cavaleiro numa poça cheia de lama. Os gritos de admiração se transformaram imediatamente em vaias e zombarias.

Pode-se imaginar a confusão que sentiu González. Esta, porém, lhe foi salutar. No mesmo lugar exclamou bem alto: “Como! Este mesmo mundo que eu procurava agradar ri-se de mim? Pois bem, zombarei dele por meu turno. De hoje em diante dar-lhe-ei as costas para começar uma vida melhor.”

E, de fato, abandonou o mundo e entrou para a Ordem de São Domingos. Foi um ótimo religioso e mais tarde não menos excelente pregador.

Sua fama chegou até o Rei São Fernando, que lhe pediu um conselho a respeito da guerra contra os sarracenos. Mais tarde foi evangelizador dos pobres e particularmente dos marinheiros, tendo sido agraciado com o dom dos milagres. Pregou sem cessar, até seus últimos dias.

Predisse sua morte, falecendo em Tuy, assistido pelo bispo da cidade que muito o estimava. Os marujos de Espanha e Portugal o invocavam em todas as tempestades sob o nome de Santo Elmo.

Uma tradição muito razoável, pitoresca e psicológica

A vida dele é realmente pitoresca a começar por essa manifestação de mundanismo canonical. Era sobrinho do bispo que conseguira que ele fosse nomeado deão do capítulo, quer dizer, a principal figura do cabido.

Fazia parte dos costumes do tempo que quando uma pessoa assumia uma dignidade nova passeava pela cidade, revestida das insígnias de sua dignidade. Por exemplo, quando alguém era nomeado professor de universidade passeava pela cidade, com foguetório, alunos, etc., vestindo a beca e os trajes de mestre, montado a cavalo. Naturalmente era preciso saber montar a cavalo, porque a coisa não deixa de comportar alguns riscos.

Assim, quando o estudante se formava e voltava para a cidade de origem, tomava o traje da profissão que exerceria e passeava pelo meio da cidade. E o povo todo ficava vendo o novo profissional graduado, novo doutor, que iria adornar os meios sociais e intelectuais da cidadezinha à qual pertencia.

Algo disso conservou-se durante algum tempo no interior do Brasil. Até 1920, mais ou menos, se não me engano, quando um rapaz do interior se formava em São Paulo, ele ia para sua cidade e era acolhido, com banda de música, pelas autoridades municipais, e todos os que estavam na estação para recebê-lo acompanhavam-no até a casa, onde havia uma coisa horrendamente chamada “boca livre”, quer dizer a família oferecia, ao menos quando podia, uma refeição para todo mundo que quisesse comer quanto quisesse. E assim ficava entronizado o novo doutor.

Essa tradição que, aliás, é muito razoável, pitoresca e psicológica, aplicava-se até aos reis. A rainha, quando se casava com o rei e ia pela primeira vez à sua capital, tinha a “joyeuse entrée”, a alegre entrada, em que havia recebimentos e pompas.

Por exemplo, Luís XVI e Maria Antonieta, depois de casados, fizeram uma “joyeuse entrée” em Paris, porque era a primeira vez que ela ia àquela cidade oficialmente. Então, grande recebimento, grande reboliço. Isso é muito conforme à ordem natural das coisas.

No momento do sumo mundanismo, a hora da graça

Então, o novo cônego estava para entrar a cavalo na cidade, e este acontecimento deveria ser envolto em grande pompa e circunstância. Imaginem um homem guapo, montado num belo cavalo, com aqueles trajes bonitos de cônego, deão do cabido. Provavelmente havia clérigos acompanhando e confrarias fazendo coro.

Era uma época em que não existia anticlericalismo. Hoje não há mais propriamente anticlericalismo, mas é meio secundário aos olhos da opinião pública ter um cargo eclesiástico. É melhor um cargo eclesiástico do que não ter nenhum cargo, nem civil. Mas é muito melhor ter um cargo civil do que um eclesiástico, mais ou menos em igualdade de condições. Mas naquele tempo, não. Os cargos eclesiásticos eram de uma alta atração mundana.

Entra, pois, nosso cônego elegante a esporear o cavalo para trotar com mais graça. É que não havia ainda a “heresia branca”2. Esta não gostaria de um cônego que trotasse depressa. No conceito “heresia branca”, isso seria contra a caridade, não ter bom coração. Um homem que anda depressa a cavalo não tem pena nem das viúvas, nem dos pobres, nem do cavalo. Segundo esta ideia deturpada da piedade, o cônego, mesmo quando moço, deveria montar um bicho bem manso, largar as rédeas e seguir lentamente pelas ruas. Então todos diriam: “Como ele é bom!”

Mas vê-se que não havia ainda “heresia branca” e ficava bonito um cônego mostrar que montava bem a cavalo. Então a hora da graça o esperava nesse momento de sumo mundanismo, e o pior dos mundanismos que é o mundanismo das coisas sagradas. Ele monta a cavalo, esporeia o animal que começa a trotar, e espera os aplausos que principiam a se delinear. De repente, ele cai num monte de lama.

Modo da graça operar em um espanhol

Certa vez, Napoleão andava a cavalo pelo “Bois de Boulogne” ou “Champs Élysées” e o povo começou a aplaudi-lo. Então, o embaixador da Dinamarca que estava ao lado dele lhe disse:

— Majestade, que trono sólido!

Ao que ele respondeu:

— Senhor Embaixador, é um engano. Os povos se vingam dos aplausos que nos dão.

De fato, quem aplaude está pronto para vaiar. Esta é a miséria humana. Resultado: estavam aplaudindo, escarrapachou-se, irrompe a vaia. Neste momento vem a graça de Deus e converte o homem. Toca-o mostrando o vazio de todas essas vaidades, e dando-lhe um sentido de desafio àquele povo: “Como é, esse pessoal que me aplaudia, agora está vaiando? Romperei e não terei mais nada que ver com eles.”

Esse é um modo da graça operar em um espanhol. Porque a coisa se converte imediatamente em desafio tendente à tourada. Atitude sumamente bonita, que me agrada muito. Se rompeu, faça o desafio e pule em cima; e vá logo ao fim, seja radical! É bom que as coisas se passem dessa maneira, e assim fez o nosso Santo. Ele foi tocado pela graça e entrou para uma Ordem religiosa. Tornou-se dominicano e se celebrizou como pregador. Aliás, é bonito vê-lo influenciar, com seus conselhos a respeito da Cruzada, o Rei São Fernando.

Evocando um fato com saudade

Vejam que cena bonita: um chefe de Estado santo que manda chamar um pregador santo para confabularem a respeito da luta contra os infiéis. Como tudo isso está longe! Onde se encontra hoje o pregador santo? E o rei santo? Tudo isso se dissipou. E que nostalgia devemos ter desses valores que dizem tanto às nossas almas!

Imaginemos esse encontro: um rei sentado numa cadeira de espaldar alto, com braços, sobre um pequeno estrado na sala; o santo pregador entra e lhe faz uma profunda reverência desde a entrada, e o monarca lhe diz com amenidade:

— Frei Pedro, entre, esteja à vontade.

Então começam a falar e, de repente, a conversa sobe de ponto e dali a pouco estão tratando a respeito de Religião, de temas elevados, e isso dentro do palácio real.

Qual é o palácio onde hoje uma cena como essa se dá? Como isso nos faz sentir a desgraça do nosso distanciamento em relação a tantas coisas magníficas que, por essa forma, podemos entrever dentro da luz do passado. E como é útil, portanto, uma ficha biográfica que nos dê a possibilidade de nos recordarmos de toda essa felicidade.

Dante diz que nenhuma tristeza é maior do que no dia da miséria lembrar-se da ventura que se foi. Nós sofremos em parte isso. Estamos no dia da miséria e nos lembramos desses dias que se foram. Mas pelo menos ficamos sabendo que houve isso e que as coisas voltarão a ser assim. E nesse vale profundo, tão longe do que foi e – ao menos na ordem real das coisas, não cronologicamente – tão distante do que vem, nós evocamos isso com saudade.

Um modo de morrer na doçura e na paz de Deus

Depois, esse Santo exerce vários ofícios: evangelizador dos pobres e, sobretudo, dos marinheiros. Estes constituíam, então, uma ralé sem Fé nem lei, eram aventureiros. Ele se mete nesse ambiente e, sem nenhuma necessidade de ser padre operário nem de fazer concessões malucas, move essas almas porque é um Santo.

Até o fim de seus dias ele pregou, e previu a sua própria morte. É uma das graças especiais que Deus dá a alguns de seus servos: preverem a chegada da própria morte. É um modo de morrer na doçura e na paz de Deus. Isso não lhes causa pânico, porque lhes dá a esperança precisamente de chegarem ao Céu. Antigamente, isso se fazia com tal naturalidade que se conta que o Padre Anchieta, no vilarejo de São Paulo, soube com antecedência o dia de sua morte e avisou várias famílias, despedindo-se e explicando com toda a candura: “Eu vou morrer no dia tanto, tive uma comunicação a esse respeito, e queria agradecer-lhes tanta gentileza”.

É o modo mesureiro e cortesão, no sentido nobre da palavra, de se fazer visita de despedida no século XVI: “Vou morrer, preciso me despedir dos amigos”.

Podemos imaginar o assombro! Entretanto, não causava tanto espanto assim porque muitas vezes pessoas que nem eram tidas como santas viam-se favorecidas com essa graça, e anunciavam a própria morte. E quem as ouvia achava meio provável que acontecesse. Essas comunicações entre o Céu e a Terra não eram excepcionais.

Conaturalidade magnífica com o sobrenatural

Que susto se um padre hoje tocasse a campainha de nossa Sede e dissesse:

— Dr. Plinio, eu vim me despedir do senhor porque vou morrer.

Eu me sentiria, no primeiro momento, tão desconcertado que me julgaria obrigado a dizer:

— Não! O senhor ainda vai ter uma longa vida…

É o “happy end” idiota das coisas modernas.

Naquele tempo, não:

— Ah, o senhor vai morrer? Não diga… O senhor teve uma visão? Olhe, muito obrigado por ter vindo se despedir. Quando chegar no Céu lembre-se de nós. Diga de minha parte a Nossa Senhora tal coisa, fale com meu Anjo da Guarda tal outra, por obséquio não se esqueça.

— Ah, pois não, não tem dúvida, não esquecerei. Até logo.

— Até logo.

Quer dizer, é exatamente a conaturalidade magnífica com o sobrenatural. A harmonia com o celeste, o hábito do convívio com o sobrenatural que cria coisas magníficas como essas.

Por exemplo, no convento, o Santo caminhando de um lado para outro, de repente diz para o Prior:

— Padre Prior, eu julgava necessário que Vossa Reverência provesse alguém que me substituísse no apostolado dos marinheiros.

— Mas por que isso?

— Porque recebi um aviso de que vou morrer.

— Ah, então, está bem.

Já deixa o substituto indicado. O Santo morre na hora marcada, a comunidade está presente e assiste à morte. Ele adormece no Senhor, enterram-no em paz. Uma alegria geral, uma unção no pequeno local onde a morte se dá; o próprio bispo era muito amigo dele e assistiu a sua morte. Assim, ele morre sob as bênçãos e as vistas de seu pastor e com essa naturalidade vai para o Céu.

Como o Céu e a Terra ficam próximos! Que abismos se suprimem dentro desse florilégio da civilização católica! E quanta coisa bonita desapareceu também, as quais vamos rever no Reino de Maria!

Creio que no Reino de Maria não vai ser raro pessoas saberem com antecipação a data de sua própria morte. Quem sabe? Resta-me augurar que essa graça seja dada a todos nós.               v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/4/1967)

Revista Dr Plinio 253 (Abril de 2019)

 

1) Cf. ROHRBACHER, René-François. Vida dos Santos. São Paulo: Editora das Américas, 1959. Volume VI, p. 360-362.

2) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na arte e na cultura em geral. As pessoas por ela afetadas se tornam moles, medíocres, pouco propensas à fortaleza, assim como a tudo que signifique esplendor.

Oração ao Santo Anjo da Guarda

Meu Santo Anjo da Guarda, sei que dentro dos planos divinos deveis, pelos desígnios de Nossa Senhora, exercer especial papel na realização de minha vocação. Vós, com todos os espíritos celestes,  possuís uma missão altíssima na luta contra a Revolução. Dirijo-me  a todos vós tendo presente a vinculação que estas circunstâncias estabelecem honrosamente de mim para convosco.

Em nome desse vínculo eu vos peço: Obtende da Rainha do Céu que vossa ação se intensifique e tome toda a magnitude proporcionada com minhas debilidades, infidelidades, fraquezas, com meu desejo de servir inteiramente a Causa da Igreja Católica e da Civilização Cristã.

Eu vos peço, portanto, que intervenhais quanto antes sobre as pessoas e os acontecimentos de maneira que, libertos da ação do demônio, a qual hoje atingiu um auge, possamos pertencer-vos  inteiramente e ser vossos guerreiros na grande luta que se aproxima.

Plinio Corrêa de Oliveira (Composta em 4/12/1980)

Oração pedindo a graça de rezar bem

Ó minha Mãe, olhai misericordiosamente para minha alma e obtende-me o espírito de oração pelo qual eu recorra sempre a Vós. E tanto mais recorra quanto mais me atenderdes, pois vossos favores nos incitam a pedir dons maiores.

Rogo-Vos ainda outra graça: a de Vos pedir tanto mais quanto menos parecerdes me atender. Pois Vós amais a oração insistente e confiante; quanto maior for a aridez ou a demora, mais apreciável será a graça que desde já nos preparais. Amém

Plinio Corrêa de Oliveira, Composta em 30/7/1971

Oração a Nossa Senhora do Brasil

Ó Maria, abençoai-nos, cumulai-nos de graças e, mais do que todas, concedei-nos a graça das graças: Ó Mãe, uni intimamente a Vós este vosso Brasil!

Tornai sempre mais maternal o patrocínio tão generoso que nos outorgastes. Tornai sempre mais largo e misericordioso o perdão que sempre nos concedestes.

Aumentai vossa largueza no que diz respeito aos bens da terra, mas, sobretudo, elevai nossas almas no desejo dos bens do Céu.

Fazei-nos sempre mais fortes na luta por Cristo-Rei, Filho vosso e Senhor nosso. De sorte que, dispostos sempre a abandonar tudo para Lhe sermos fiéis, em nós se cumpra a promessa divina do cêntuplo nesta Terra e da bem-aventurança eterna.

Ó Senhora Aparecida, Rainha do Brasil, com que palavras de louvor e de afeto Vos saudar no fecho desta prece? Onde encontrá-las senão nos próprios Livros Sagrados, já que sois superiora a qualquer louvor humano? De Vós exclamava, profeticamente, o povo eleito palavras que amorosamente aqui repetimos: “Tu gloria Ierusalem, tu lætitia Israel, tu honorificentia populi nostri” (Jt 15, 10).

Sois Vós a glória, a alegria, a honra deste povo que Vos ama!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído do Jornal “Última Hora” de 12/10/1983)