Esse assunto, sobre o qual me perguntam, é uma matéria abundante, com o inconveniente de que versa sobre um tema do qual não entendo muito, que é a música. Mas enfim, de algo eu posso tratar.
Um canto que considerasse a vida de Nosso Senhor
Primeiro, a respeito do que seria a música de Natal perfeita. Há uma porção de hipóteses que se entrecruzam nisso, e depois uma série de feitios de espírito que se colocam diante disso. Por exemplo: a mim pessoalmente me agradaria uma música de Natal que considerasse o mistério do Menino Jesus que se encarnou, e apareceu entre nós… O que todos sabem. E que se relacionaria, entretanto, com o futuro do Menino Jesus; de maneira que dissesse alguma coisa a respeito dos trinta e três anos de vida de Nosso Senhor. Porque o nascimento, por mais sublime que seja, é apenas o começo. E quem considera o começo de uma estrada, volta os olhos para a extensão da estrada que se desenrola a partir daquele início.
E, portanto, eu gostaria de uma música de Natal que, em determinado momento, desenvolvesse algo — um pouco que fosse — sobre os trinta anos de vida oculta, contemplativa, d’Ele com Nossa Senhora. Depois a dor da despedida, a vida pública, a Paixão, a Morte, a Ressurreição e a glória no Céu! Terminando, por exemplo, com este pensamento: “Se os anjos cantaram ‘glória a Deus no mais alto dos Céus e paz na Terra aos homens de boa vontade’, o Homem de boa vontade por excelência foi Ele, o Homem-Deus!” Ninguém teve a boa vontade que Ele teve, em nenhum sentido, nem de longe, nem comparado com nada. E então a glória d’Ele também é superior a de qualquer outro. Quando cantaram “glória a Deus no mais alto dos Céus”, os anjos louvaram a Jesus enquanto Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. E quando entoaram “paz na Terra aos homens de boa vontade”, glorificaram a Ele enquanto trazendo para a Terra a possibilidade da verdadeira ordem; e, com essa verdadeira ordem, a verdadeira paz.
Depois, a luta d’Ele em sua vida pública e a Ascensão ao Céu, porque Ele era o Homem de boa vontade por excelência, que realizou tudo o que tinha de realizar e recebeu uma glória incomparável no Céu. Essa seria uma ideia que muito me compraz.
Mas especialmente me agradaria focalizar o caráter militante da Igreja. Seria, portanto, uma música muito mais longa do que simplesmente o “Stille Nacht”, quase um canto épico. E não seria dirigida somente para as crianças. O Natal é, a titulo especial, uma festa de criança, mas ela é uma festa para todo mundo. Nosso Senhor chegou até a idade madura, trinta e três anos. E, portanto, o normal é que essa festa seja para todas as idades.
Canções para diversos estados de alma
Eu também imaginaria de bom grado canções de Natal para diversos estados de alma. Para a alma inocente, mas que se sente imersa neste mundo e dentro da luta para manter a virtude, que tem receio de ver a sua inocência comprometida, agradece a Deus a inocência que tem e pede que essa inocência seja de aço e que dure até o fim.
Depois, o cântico de Natal da alma penitente. Há duas espécies de penitentes.
O penitente arrependido, humilde, de cabeça baixa, que se acerca da manjedoura e canta a São José e a Nossa Senhora. A São José, pedindo que ele obtenha da Santíssima Virgem um olhar de compaixão. Nossa Senhora atende ao pedido, e o recebe ultra maternalmente. Ele então pede a mediação d’Ela para chegar até o Menino Jesus.
Ele se sente indigno de entrar na gruta, e canta do lado de fora, dizendo:
“Até o boi e o burro, com seus bafos, são dignos de ficar aí dentro, porque estão na ordem de Deus. Mas eu sou um pecador, que rompeu em determinado momento essa ordem; e não sou digno de me aproximar. Aonde os animais entram, eu não entro! Mas se Vós, minha Mãe, me cobrirdes com o vosso manto, eu ouso tudo!”
Ela o cobre, e ele, sob o manto da Santíssima Virgem, recita um “Confiteor”. E recebe do Menino Jesus um gesto, que pode ser interpretado como o gesto instintivo de uma criança, mas tem o sentido de um perdão. E ele se retira agradecido.
Depois podia haver a canção de Natal do pecador atolado no pecado, que gostaria de sair do pecado, mas que não quer querer. Mas ao menos chega ali e, de fora, canta pedindo a Nossa Senhora que lhe mande um mensageiro, que leve a Ela uma súplica dele. Aproxima-se um passarinho, e o pecador põe uma mensagem em seu bico.
A súplica é entregue, e nesta ele diz que não é como o pecador anterior, que rompeu com a Lei de Deus, mas depois rompeu com o pecado; e, quando entrou na gruta já estava reconciliado com o Criador. Mas ele não é nem o pecador arrependido, nem o boi, nem o burro: é a serpente. Ele está em pecado mortal! E, carregado de pecados, tem tristeza e ao mesmo tempo, esperança! E pede a Nossa Senhora, de longe, que Ela remova as montanhas internas do pecado na sua alma, e faça dele um homem que afinal se arrependa e se entregue a uma vida de penitência.
Ele é o primeiro dos visitantes para quem o Menino Jesus, quando o pecador se aproxima da Santíssima Virgem, sorri e abre os braços. O pecador pede perdão e, contrito e perdoado, sai da gruta de Belém.
Seria algo muito adequado para os vários estados de alma, que daria ânimo aos mais miseráveis como aos mais fortes.
Poderíamos imaginar também o Natal do guerreiro, do combatente. O Natal do cruzado aos pés do muro de Jerusalém. O Natal do cruzado do século XX.
Isso é uma ideia apenas esboçada, porque nunca aprofundei esse pensamento. Essa seria uma canção de Natal, a meu ver, perfeita.
O ”aroma” da graça de Natal na São Paulinho
A tudo isso eu acrescento uma coisa que me parece decisiva, como elemento dentro do assunto. Os Natais de outrora tinham uma sacralidade muito maior que dos dias atuais. No meu tempo de moço, dois, três dias que precediam o Natal, já um certo aroma, uma certa atmosfera natalina começava a envolver a São Paulinho. E alguns homens importantes tomavam na rua um ar de quem não percebia isso, e que estavam preocupados com outras coisas. Mas tinham o cuidado de não contundir, porque seria fazer saltar uma bomba!
E o centro velho de São Paulo, formado pelas Ruas Libero Badaró, XV de Novembro e Direita, depois aquele conjunto de ruas em torno e dentro desse triângulo, era assim: apareciam mais as casas que vendiam brinquedos e tinham na vitrine um presépio. Possuíam também — como se dizia naquele tempo — gramofones, que tocavam músicas de Natal. Andava-se a pé, por exemplo, na Rua Direita, e de ponta a ponta ouviam-se músicas de Natal, em estágios diferentes de andamento.
Mas quando chegava a noite de Natal, e as famílias todas — numa hora em que costumavam estar dormindo — começavam a ir em grupos para a igreja, devagarzinho e na paz, as ruas ficavam vazias de qualquer gente que não fosse caminhando para o templo. E de dentro da igreja saía uma luz forte, que iluminava a rua cada vez que se abria a porta; começam a cantar etc. E depois batia o sino e iniciava a Missa, com o cântico de Natal…
Tinha-se a sensação de uma graça que vinha de uma altura incomensurável, e era de uma qualidade tal que enchia a pessoa de duas disposições de espírito, as quais parecem incompatíveis, mas convivem maravilhosamente: a noção recolhida, humilde e enlevada do sublime; e de outro lado a doçura de quem recebe uma misericórdia sem limites.
Devo dizer que a “organizadora” das nossas festas de Natal era Dona Lucilia. Mas somente muito tempo depois dessas festas natalinas, dei-me conta de que eu gostava dessas comemorações porque o espírito dela as animava. Eu talvez de nada da minha infância tenha tantas saudades quanto desse “aroma” da graça de Natal.
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/1/1989)