O PARAÍSO DO NOVO ADÃO

Conforme disse certa vez um autor sagrado, os verdadeiros devotos de Maria se sentem irresistivelmente atraídos uns pelos outros. É o caso de Dr. Plinio em relação a São Luís Maria Grignion de Montfort, cujos escritos foram, para ele, contínua fonte de inspiração. Nestas páginas ele volta a comentar as riquezas aí encontradas.

 

Uma das obras mais ricas e empolgantes sobre Nossa Senhora é, sem dúvida, o Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, de São Luís Maria Grignion de Montfort. Nele encontramos sempre ensinamentos que nos convidam a crescer no amor e na devoção a Ela, além de se prestarem a valiosos desdobramentos acerca das insondáveis e maravilhosas perfeições da Mãe de Deus.

Tomemos, por exemplo, um pequeno trecho desse magnífico Tratado, para comentá-lo passo a passo. Discorrendo sobre como devemos fazer todas as ações com Maria, em Maria e por Maria, explica o santo autor:

“Para compreender cabalmente essa prática, é preciso saber que a Santíssima Virgem é o verdadeiro paraíso terrestre do novo Adão, de que o antigo paraíso terrestre é apenas a figura. Há, portanto, nesse paraíso terrestre riqueza, belezas, raridades e doçuras inexplicáveis que o novo Adão, Jesus Cristo, aí deixou”.

Excelência interior de Nossa Senhora

Como se sabe, Adão foi criado no Paraíso Terrestre. Era o lugar de maravilhas, de esplendores, de felicidade, do qual ele e Eva foram expulsos, depois de caírem na tentação do demônio e prevaricarem contra os preceitos divinos. Contudo, aquele era o paraíso do primeiro homem.

Ora, Nosso Senhor Jesus Cristo é considerado, a justo título, o segundo Adão. Quer dizer, aquele que veio resgatar a humanidade, tirá-la das sombras da morte e restabelecê-la no estado de graça, através da imolação que Ele fez de si mesmo no alto da Cruz. E assim como o primeiro Adão foi criado num paraíso, o novo Adão deveria ser criado igualmente num lugar de delícias imaculadas. Esse segundo paraíso é Nossa Senhora. Ou seja, tudo o que Éden terrestre tinha de belo e de esplêndido na sua realidade material, Maria possuía ainda mais belo e esplêndido na sua realidade espiritual.

E Nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em Nossa Senhora, teve maior felicidade e contentamento do que Adão no seu paraíso, pois assim como o Filho de Deus era infinitamente superior a Adão, o paraíso d’Ele era insondavelmente mais precioso e excelente que o do primeiro homem. Por isso São Luís Grignion fala de “riquezas, belezas, raridades e doçuras” que existiam nele.

Tratam-se de aspectos distintos. Riqueza é a abundância das coisas úteis, e nem sempre envolve a beleza. Por outro lado, algo pode ser muito belo sem ser necessariamente rico, e pode ser raro, sem representar riqueza ou beleza especiais. Nesse novo Paraíso havia, portanto, extraordinárias raridades, belezas e riquezas espirituais, além de incomparáveis doçuras.

A doçura é uma qualidade que torna alguma coisa amena, agradável de trato, suave de contato. Por exemplo, o bem-estar que uma pessoa sente quando se encontra à sombra de determinadas árvores frondosas, a faz experimentar uma satisfação e uma harmonia que são diferentes da realidade da riqueza e da beleza. É o mesmo aconchego que se sente, aliás, à beira de um bonito lago, de um riacho ou, conforme o momento, à beira do mar. Enfim, há uma doçura que não se esgota nos termos de beleza, nem de riqueza, nem de raridade.

Nossa Senhora e a Igreja, perfeições recíprocas

E São Luís Grignion faz então um inventário desses quatro valores, para nos dizer que tudo isso existe em Nossa Senhora, e nos levar a compreender o que n’Ela há de riqueza, beleza, raridade e doçura. Desse modo, embora a Santíssima Virgem seja inesgotável, vamos adquirindo um conhecimento classificado das perfeições e magnificências contidas na sua alma. Por via de comparação, deveríamos proceder da mesma maneira em relação à Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Porque quase tudo que se diz de Nossa Senhora, se diz da Igreja; e, reciprocamente, quase tudo o que se diz da Igreja, se diz de Nossa Senhora. Maria é Mãe de Cristo, a Igreja é a Esposa Mística d’Ele, e entre a Mãe e a esposa existem essas correlações que facilmente podemos compreender.

Podendo conhecer a Igreja Católica, no que ela tem de essencial, no seu esplendor copioso que atravessou os séculos, também nos é dado distinguir suas riquezas, suas belezas, suas raridades e doçuras…

Dotada de graças indizíveis

Concluindo seu pensamento, São Luís afirma que tais maravilhas foram deixadas nesse segundo paraíso pelo próprio novo Adão. É a ideia de que Nosso Senhor Jesus Cristo, durante o tempo sacratíssimo em que Ele se formou no ventre materno, cumulou-o de excelências de toda ordem. Depois, pelo convívio entre Filho e Mãe, desde o nascimento d’Ele até a Ascensão, enriqueceu-A ainda mais. Adão, no primeiro paraíso, parece ter sido apenas um consumidor; não consta que fosse um embelezador, embora, permanecendo fiel, provavelmente lhe coubesse a tarefa de construir ali uma civilização que aprimorasse tudo quanto recebera de Deus. Ao contrário dele, Nosso Senhor requintou e elevou o paraíso onde esteve, isto é, aprimorou e dotou Nossa Senhora de graças indizíveis, fazendo-o, segundo a expressão de São Luís Grignion, “com a magnificência de um Deus”.

Analisemos. A magnificência de um Deus é a magnificência total. O autor lembra, de passagem, que ninguém pode realizar coisas tão magníficas quanto Deus. E se é verdade que o paraíso do novo Adão foi mais esplêndido do que o do primeiro, devemos deduzir que Nossa Senhora é incomparavelmente mais bela que todo o universo. Quer dizer, estrelas, sol, lua, água, lírios do campo, nada tem qualquer paralelo com a beleza espiritual e física da Santíssima Virgem.

Terra imaculada para o corpo do novo Adão

“Esse lugar santíssimo é formado de uma terra virgem e imaculada da qual se formou e nutriu o novo Adão, sem a menor mancha ou nódoa, por operação do Espírito Santo que aí habita. É nesse paraíso terrestre que está, em verdade, a árvore da Vida que produziu Jesus Cristo. Há, nesse lugar divino, árvores plantadas pela mão de Deus e orvalhadas por sua unção divina, arvores que produziram e produzem todos os dias frutos maravilhosos, de um sabor divino; há canteiros esmaltados de belas e variegadas flores de virtudes, cujo perfume delicia os próprios anjos.”

São outras lindas comparações.

Assim como Adão foi formado a partir do barro, e em seguida Deus lhe insuflou uma alma, assim também o novo Adão foi constituído da carne virginal de Nossa Senhora, por obra do Espírito Santo. Depois, havia uma árvore da vida no paraíso antigo, porém no paraíso novo existia outra, que produziu o mais precioso dos frutos, Jesus Cristo. É uma referência à fecundidade imaculada de Nossa Senhora.

Os belos canteiros, flores e frutos variegados simbolizam os dons e virtudes de Maria Santíssima, que deixam os próprios Anjos tão santos e puros extasiados.

Fortaleza invencível, caridade abrasadora

“Há torres inexpugnáveis e fortes, habitações cheias de encanto e segurança”. Como em todo o texto de São Luís, temos aqui mais uma imagem muito bonita. Ela nos faz pensar num castelo com torres inexpugnáveis, cheias de encanto e segurança, com maravilhas dentro e robustíssimas por fora. Essa é a virtude da fortaleza que em Nossa Senhora protege todas as demais virtudes.

“Ninguém, exceto o Espírito Santo, pode dar a conhecer a verdade oculta sob essas figuras de coisas materiais. Reina nesse lugar um ar puro, sem infecção, um ar de pureza; um belo dia sem noite, da humanidade santa; um belo sol sem sombras, da Divindade; uma fornalha ardente e contínua de caridade, na qual todo o ferro que aí se lança fica abrasado e se transforma em ouro.”

São Luís Grignion, referindo-se aos elementos materiais que relacionou nesse paraíso, afirma que só com o auxílio da graça alguém pode fazer ideia do que eles significam enquanto aspectos físicos, espirituais e sobrenaturais de Nossa Senhora. Quer dizer, Ela é bela como o dia por sua natureza, mas Cristo, que habitou n’Ela, não é apenas o dia, mas é o sol, a fonte de todo o esplendor diurno. Então, Jesus é o astro soberano da divindade presente em Maria.

Depois, a igualmente magnífica simbologia da fornalha ardente e abrasadora de caridade, de amor a Deus, que é a Santíssima Virgem. Uma pessoa pode ser dura e fria como o ferro, porém, lançada nessa fornalha, isto é, sendo muito devota de Nossa Senhora e n’Ela confiando, transforma-se não apenas em ferro incandescente, mas em ouro. O contato com Maria muda a alma por completo, a nobilita e santifica.

Abundância de humildade e virtudes cardeais

“Há um rio de humildade que surge da terra e que, dividindo-se em quatro braços, rega todo esse lugar encantado: são as quatro virtudes cardeais.”

Por fim, um outro conceito muito bonito. As quatro virtudes cardeais são aquelas que regulam todas as ações do homem: a justiça, a temperança, a fortaleza e a prudência. Todas as outras virtudes decorrem dessas. Então, São Luís Grignion diz que em Nossa Senhora há como que um rio de humildade, que se abre em quatro braços e dá origem às mencionadas principais virtudes.

Mas a imagem significa também que uma pessoa verdadeiramente humilde possui de modo torrencial as virtudes cardeais. E o que é ser verdadeiramente humilde?

Antes e acima de tudo é ser humilde para com Deus, reconhecendo tudo o que devemos a Ele e retribuí-lo. Sermos, portanto, em relação a Deus, amorosos, fiéis, filiais, paladinos da causa d’Ele até o último ponto, vivendo num holocausto contínuo a serviço d’Ele. A autêntica humildade coloca uma alma nessa posição, e é dessa maneira que esta última adquire, abundantemente, as quatro virtudes cardeais.

E assim era Nossa Senhora.

Aqui temos, portanto, um pouco daquele bem-estar de que falamos atrás, proporcionado pelas doçuras da Santíssima Virgem. É impossível comentar-se algo a respeito d’Ela, sem se ter a impressão de que estamos junto a um rio ou a uma árvore sobrenatural, sentindo, num plano diferente, aquela satisfação particular que experimentamos à beira dos rios ou à sombra das árvores naturais.

Acredito que, após um dia passado no corre-corre de uma cidade supermoderna, super trepidante, superdinâmica, deter-se um pouco na consideração desse panorama maravilhoso que é a alma de Nossa Senhora é algo que sempre nos fará bem…

A Cooperação de Nossa Senhora com seu Filho

Na seqüência de suas considerações sobre o Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, de São Luís Grignion de Montfort, Dr. Plinio nos convida a contemplar as “maravilhas de graça” operadas em Nossa Senhora, cujo claustro materno tornou-se, durante nove meses, a paradisíaca habitação de Deus.

 

Escreve São Luís no tópico 16 do Tratado:

Deus Filho desceu ao seu seio virginal qual novo Adão no paraíso terrestre, para ai ter suas complacências e operar em segredo maravilhas de graça.

Em primeiro lugar, devemos considerar a Encarnação de Deus Filho em Nossa Senhora. Ela, pelo processo da maternidade, foi gradualmente fornecendo-Lhe sua carne e seu sangue, e assim foi sendo formado, dentro de seu seio virginal, o corpo de Nosso Senhor, unido à divindade pela união hipostática. A participação d’Ela no mistério da Encarnação é imensa. Considerando que o corpo de Nosso Senhor, sua carne e seu sangue, são carne da carne e sangue do sangue de Nossa Senhora, não se pode imaginar uma maior intimidade com Deus. O papel de Nossa Senhora nesse mistério foi tal, que Deus quis que Ela antes desse o seu consentimento, para depois dar sua carne, seu sangue e, portanto, algo de seu próprio ser.

Maria criou, governou e ofereceu Jesus em holocausto

…Encontrou sua liberdade em ser aprisionado no seio da Virgem Mãe; patenteou sua força em se deixar levar por esta Virgem santa…

Foi vontade de Deus Pai que Nosso Senhor ficasse contido n’Ela como dentro de uma arca, de um tabernáculo, em que Ele operava maravilhas de graças só por Ela conhecidas. E foi dentro d’Ela, como no interior de um santuário, que Nosso Senhor Jesus Cristo começou a dar glória ao Pai Eterno. No próprio momento em que começou a existir a união hipostática, Deus Pai recebeu de Nosso Senhor Jesus Cristo o mais perfeito ato de amor que jamais se deu na Terra. Ninguém nunca prestou-Lhe um ato de amor tão excelso quanto a humanidade santíssima de Nosso Senhor Jesus Cristo.

O Santo mostra ainda como Jesus, que era Senhor onipotente, contido em Nossa Senhora, deixou-se transportar por Ela, não só pelas montanhas da Judeia para visitar Santa Isabel, como por todos os lugares pelos quais Maria o quis.

…Achou sua glória e a de seu Pai, escondendo seus esplendores a todas as criaturas deste mundo. Para revelá-las somente a Maria; glorificou sua independência e majestade, dependendo desta Virgem amável, em sua conceição, em seu nascimento, em sua apresentação no templo, em seus trinta anos de vida oculta, até a morte, a que ela devia assistir, para fazerem ambos um mesmo sacrifício e para que ele fosse imolado ao Pai eterno com o consentimento de sua Mãe, como outrora Isaac, com o consentimento de Abraão á vontade de Deus. Foi ela quem o amamentou, nutriu, sustentou, criou e sacrificou por nós.

Ó admirável e incompreensível dependência de um Deus!… Nossa Senhora foi incumbida de criar Nosso Senhor e de O governar em sua infância, durante a qual Ele tinha para com Ela as mesmas relações de uma criança para com sua mãe. Pois seria falso imaginar que, na presença de outros, Nosso Senhor fazia o papel de criança; e quando não havia ninguém, apresentava-se como Deus. Ele estava junto a Nossa Senhora sempre como menino, do qual Ela cuidava como quem trata a um Deus.

Depois Nosso Senhor cresceu, passando trinta anos de sua vida junto d’Ela, e consagrando aos homens somente três.

Por fim, Ela O levou até o alto da cruz e, ali, ofereceu-O a Deus.

São Luís Grignion resume o papel de Nossa Senhora na Redenção: Ela gerou, criou, acariciou e finalmente acompanhou a vítima ao altar do sacrifício, onde Ela mesma o imolou, como diz o Santo autor. Porque verdadeiramente Nosso Senhor morreu com o consentimento de Nossa Senhora. Ela aceitou que Ele sofresse tudo o que padeceu, e morresse da maneira como expirou.

Dediquemos mais tempo a Nossa Senhora, a exemplo de seu Divino Filho

Há aplicações maravilhosas para nossa espiritualidade a tirar desse fato: Nosso Senhor vivendo trinta anos sob a dependência de Nossa Senhora.

Em nossa vida de piedade, por exemplo, que importância damos, respectivamente, à nossa união com a Virgem Santíssima e ao nosso apostolado? Temos a impressão de que este é muito mais importante que a nossa união com a Mãe de Deus, de tal modo que dedicamos nosso quarto de hora de oração a Ela, e, o restante do tempo a nosso “enorme” apostolado?

Nosso Senhor nos dá exemplo do contrário. Tempo dado à união como Nossa Senhora: trinta anos; ao apostolado: três.

Podemos bem compreender o que representa de homenagem — “homenagem” de um Deus, a palavra parece até absurda —, de glória para a Virgem, o Verbo Encarnado vir ao mundo e passar trinta anos junto d’Ela, dedicando apenas três à realização de sua missão. E entender o que significa a graça de estar junto de Maria Santíssima. Assim sendo, quando vamos fazer uma visita a uma imagem de Nossa Senhora numa igreja, podemos nos unir a esses sentimentos de Nosso Senhor. Convém que, amiúde, interrompamos nossas atividades, e entremos numa igreja para fazer uma visita a Maria Santíssima com esta intenção: imitar Nosso Senhor, que não se apressou em iniciar desde logo sua vida pública, mas consagrou trinta anos a estar junto de Nossa Senhora. Vou seguir seu exemplo; por isso peço-Lhe que, dada minha impossibilidade de agradar como devo a Nossa Senhora, que Ele A agrade por mim neste momento. Quando me coloco diante do tabernáculo, devo pedir a Nosso Senhor a graça de que, em meu nome, Ele trate Nossa Senhora como eu gostaria de fazê-lo, embora seja incapaz.

Eis uma boa visita ao Santíssimo Sacramento e a Nossa Senhora. Com isto se constrói uma vida espiritual digna desse nome. Mas é preciso que sempre tenhamos em mente todas essas idéias, esses princípios, para que possamos utilizá-los quando as ocasiões se apresentarem.

Convicção e resolução em nosso amor, não mera sensibilidade…

Pelo acima exposto, vemos como seria tolo dizer que há secura ou geometrismo na piedade por parte de quem assim procede. O que aí não se pode desejar é o vácuo, a bazófia. Pois o que recomendamos não é secura nem geometrismo, mas coerência: a inteligência ilumina, a vontade quer, e a sensibilidade acompanha o preito de amor da vontade. E se acaso a sensibilidade não acompanhar, não terá maior importância, pois o ato de amor estará feito. O amor reside na vontade.

Não se trata, portanto, de experimentar uma espécie de consolação sensível, sentir o trêmulo da comoção, para só então rezar. Importa, sim, ter convicção e resolução. A Fé nos ensina que Nossa Senhora é imensamente bondosa, e por isso recorremos a Ela com confiança. É uma consideração racional, que não nasceu da sensibilidade. Essa atitude racional na oração, a construção de uma piedade toda ela alicerçada sobre convicções recebidas da Fé, que a razão anipula, isso sim é verdadeirasi um tabernáculo admirável, “como Adão no Paraíso”. Para compreendermos bem o que isto significa, é interessante apelarmos para certos conceitos subjacentes à seção Ambientes, Costumes, Civilizações, que nós escrevemos, sobre a importância da beleza e a propriedade dos ambientes. Estando no seio virginal de Nossa Senhora, Jesus encontrou todo o necessário para suas delícias espirituais: havia ali um ambiente, uma atmosfera que Lhe eram perfeitos, graças às virtudes excelsas de Maria Santíssima. Durante este período, Nosso Senhor teve com Ela uma união verdadeiramente incomparável.

Já consideramos o fato de que, neste período, Nossa Senhora vai fornecendo sua própria carne e seu próprio sangue para a formação do corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo. Durante esse tempo, havia uma atividade em extremo íntima entre Ele e Ela, sendo preciso notar que Nosso Senhor teve o uso da razão desde o primeiro instante do seu ser. Ele, portanto, vivia em Nossa Senhora dispondo já completamente de sua inteligência. Podemos imaginar a intimidade enmente a seriedade na vida espiritual. O que desejamos é produzir convicções profundas, construir uma estrutura de espírito útil à vida de piedade, e não apenas fabricar uma faísca passageira de emoção mariana.

União inexprimível entre Mãe e Filho

São Luís Grignion lembra, entre outras coisas, que Nosso Senhor, no período de sua gestação, enclausurou-se no ventre puríssimo de Nossa Senhora, e aí encontrou para tre Eles e o alto grau de cada ato de amor? A cada colaboração que Ela prestava para a formação de seu corpo, correspondia da parte d’Ele uma série de graças a Ela concedidas. Durante a gestação de Nosso Senhor havia, portanto, entre Ele e sua Mãe, uma união verdadeiramente inexprimível e de uma sublimidade incomparável.

Em que sentido a consideração dessa união nos pode ser benéfica?

O homem, na Igreja Católica, encontra-se diante de um firmamento de verdades. E assim como, colocados diante do céu físico, contemplamos inúmeras pulcritudes que enriquecem nossa alma, no universo de verdades da Santa Igreja poucas maravilhas podemos considerar tão grandes quanto a intimidade de uma alma inteiramente humana, como era a de Nossa Senhora, com Nosso Senhor Jesus Cristo, durante o tempo da sua Encarnação.

Assim, nos é dado ter uma ideia da intimidade que também nós podemos adquirir, pela nossa santificação, com Nosso Senhor; faz-nos compreender um pouco o que é a vida da graça, e faculta-nos a apetência de uma maior união com Jesus Cristo.

Essas considerações não podem ficar no vácuo. Na vida espiritual devemos propriamente desejar esses dons sobrenaturais, a união com Deus e os bens eternos!

 

 

A verdadeira devoção a Maria

Damos início neste número à publicação de alguns trechos dos comentários de Dr. Plinio ao “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem”, escrito por São Luís Maria Grignion de  Montfort. Conhecida por Dr. Plinio quando moço, esta obra era por ele considerada como um marco fundamental de sua espiritualidade.

 

São Luís Maria nos explica o motivo que o levou a escrever o Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem: “Meu coração ditou tudo o que acabo de escrever com especial alegria, para demonstrar que Maria Santíssima tem sido, até aqui, desconhecida, e que é esta uma das razões por que Jesus Cristo não é conhecido como deve ser” (nº 12). 

Eis a razão da introdução e de todo o livro. Maria Santíssima é desconhecida, e deve ser conhecida, pois assim virá o reino de Cristo. O livro se destina, portanto, a propagar a devoção a Nossa  Senhora para que venha o reino de Nosso Senhor. Por “desconhecida” entenda-se “muito menos conhecida do que sua excelência e seus admiráveis predicados exigem”. 

Trata-se, por conseguinte, de uma obra de larga visão e alcance histórico muito amplo, fixando-se no desejo de trazer o reino de Cristo para um mundo que não o possui, através da devoção a Maria Santíssima. 

O fundamento teológico, São Luís Grignion o coloca no tópico 1: “Foi por intermédio da Santíssima Virgem Maria que Jesus Cristo veio ao mundo”, isto é, se Maria Santíssima não tivesse existido, Jesus Cristo não teria vindo; “e é também por meio d’Ela que Ele deve reinar no mundo”, ou seja, a devoção a Jesus Cristo deve expandir-se a toda a humanidade por intermédio de Maria Santíssima. Difundir a devoção a Nossa Senhora é, pois, nesta perspectiva, de importância capital. O afervoramento da piedade: passo essencial Esse objetivo de São Luís Grignion se presta desde logo a um comentário. 

O Santo profeta se propõe a preparar o futuro reino de Cristo fazendo o que lhe parece ser o mais essencial,  importante, urgente, e que, na ordem concreta dos fatos, produzirá quase que automaticamente o resto: difundir a perfeita devoção a Maria. 

A derrota do espírito do mundo e a restauração da civilização baseada nos princípios da Igreja Católica não se começam, portanto, por meio da política, das obras, do talento ou da ciência.

Na época mesma de São Luís Grignion, Bossuet deslumbrava Versailles e Paris com seus sermões; entretanto, para evitar a derrocada religiosa da França, não foram decisivos. O começo da regeneração de todas as coisas está na piedade, no afervoramento da vida interior, nos fundamentos religiosos da vida de um povo. O apostolado essencial é de caráter estritamente religioso: afervorar, educar na piedade, formar caracteres; as outras coisas são conseqüências, complementos, importantes realmente, mas complementos.

Eis a grande lição que São Luís Maria Grignion de Montfort fixa já no início do Tratado, e depois desenvolve mais longamente: na formação dos caracteres a condição básica e indispensável é a devoção a Nossa Senhora. Possuindo-a de modo autêntico, as pessoas terão todos os meios sobrenaturais necessários para, com a correspondência da vontade, florescerem. Não se formando esta devoção, o próprio regime de expansão da graça na alma fica comprometido. Portanto, a devoção a Nossa Senhora é condição vital para tudo quanto diz respeito à salvação individual e da civilização, bem como à salvação eterna de todos quantos constituem, em dado momento, a Igreja militante. 

São Luís Grignion tinha, pois, em mente, com este livro, fazer uma obra da mais alta importância para a renovação dos séculos futuros. Cabe-nos, portanto, ser sôfregos em possuir esta devoção a Nossa Senhora por ele pregada. Em outros termos, fomos chamados pela Providência para uma obra definida, com objetivos definidos, e só a realizaremos se tivermos em nosso espírito esta devoção. Sendo ela, como vimos, indispensável para que o mundo se regenere em Nosso Senhor, se queremos com este escopo trabalhar, é necessário ir em busca desta devoção.

O Tratado não é, pois, um livro qualquer de piedade, apresentando uma devoção a algum santo, boa por certo, mas que se pode ou não ter, indiferentemente, “conditio sine qua non” para nosso trabalho. E só a atingiremos no mais alto grau, utilizando a forma com os fundamentos desenvolvidos por São Luís Grignion de Montfort;

Maria é a obra-prima do Altíssimo

Escreve o Santo: “Maria é a obra prima por excelência do Altíssimo, cujo conhecimento e domínio Ele reservou para Si” (nº 5).  Que belíssima noção! Maria Santíssima é tão grande que São Luís Grignion, sendo apenas um seu pequeno menestrel, é quase inesgotável quando fala d’Ela. Ele afirma ser Nossa Senhora tão extraordinária, colossal — pouco dizem estes adjetivos, aos quais de longe Ela transcende — que só Deus conhece em toda a extensão suas perfeições. Não podemos sequer ter uma pálida ideia disto. Há n’Ela belezas, culminâncias, encantos, perfeições, excelências 
que escapam e sempre escaparão completamente ao nosso olhar, e são somente por Deus contempladas. Imaginemos esses universos, essas constelações imensas de estrelas que o  homem não conhece e possivelmente jamais conhecerá, cujas maravilhas ficam reservadas à exclusiva contemplação de Deus:  assim é Maria Santíssima. 

N’Ela há esta nota de incognoscibilidade: paramos extasiados a seus pés, compreendendo que, após ter entendido muito, quase nada compreendemos. Estamos sempre no seu pórtico, que é para nós demasiadamente grande, tal a sua excelência.  

Ao olharmos uma noite de céu estrelado, em lugar de considerarmos apenas as grandezas de Deus — pensamento aliás muito louvável — sabemos contemplar também Maria Santíssima, incomparavelmente maior e mais formosa do que cada um dos astros do céu e do que todos eles no seu conjunto? Porque, sendo Ela a obra-prima da criação, toda a beleza, grandeza, excelência que Deus colocou no firmamento é pequena em relação às postas n’Ela pelo Criador; este céu não é senão uma imagem, uma figura da magnificência de Nossa Senhora. Apesar de ser mera criatura, tudo quanto n’Ela há, excede muito em perfeição todas as belezas criadas, de um modo inexprimível. Continua São Luís Grignion: “Maria é a Mãe admirável do Filho, a quem aprovou humilhá-La e ocultá-La durante a vida para Lhe favorecer a humildade, tratando-A de mulher — mulier — (Jo 2, 4; 19, 26), como a uma estrangeira, conquanto em seu coração A estimasse e amasse mais que a todos os anjos e homens” (nº 5). O Santo defende aqui a ideia de que, durante sua vida, também Nosso Senhor A manteve ignorada; apenas Ele A conhecia.

“Maria é a fonte selada (Ct 4, 12) e a esposa fiel do Espírito Santo, onde só Ele pode penetrar” (idem). É o retorno à ideia de Nossa Senhora como criatura reservada ao conhecimento de Deus.

“Maria é o santuário, o repouso da Santíssima Trindade, em que Deus está mais magnífica e divinamente que em qualquer outro lugar do universo, sem excetuar seu trono sobre os querubins e serafins…” Os anjos da guarda ocupam os graus inferiores na hierarquia celeste. 

Porém, tendo certa vez aparecido a uma santa o seu anjo da guarda, ela se ajoelhou, pensando estar na presença do Altíssimo. A grandeza dos anjos é tal que, no Antigo Testamento, em várias de suas aparições, os homens julgavam tratar-se do próprio Deus. E no Céu há miríades de anjos. Em que assombro ficaríamos se os víssemos todos e ao mesmo tempo! Nossa Senhora, contudo, está  acima de todos eles reunidos. Assim, diante de sua insondável alma, deparamo-nos novamente com termos de comparação, embora os melhores que possamos empregar, imperfeitos e totalmente insuficientes. 

“…e criatura alguma, pura que seja, pode aí penetrar sem um grande privilégio”. Existe, pois, uma categoria de criaturas privilegiadas que podem penetrar no conhecimento de Nossa Senhora. Tais criaturas, o Santo no-lo explica, são aquelas a quem Deus dá, por liberalidade, o dom que o comum das pessoas não têm, de conhecerem e praticarem a devoção a Nossa Senhora conforme o modo especial por ele ensinado. E os “apóstolos dos últimos tempos”, de que ele nos fala, possuirão este dom; por isso, serão terríveis no combate ao mal e eficacíssimos na defesa do bem. Serão almas elevadíssimas, que terão a graça de penetrar neste umbral da devoção a Nossa Senhora.

O paraíso do novo Adão

Continua São Luís Grignon: “Digo com os santos: Maria Santíssima é o paraíso terrestre do novo Adão…” 2 (nº 6). 

O paraíso terrestre era cheio de encantos, delícias, perfeições. São Luís Grignion diz que Nosso Senhor estava no ventre puríssimo de Maria Santíssima de modo análogo àquele — excelente e perfeito — com que Adão permanecia no Éden. Portanto, durante  gestação, Nossa Senhora era o paraíso do novo Adão, Jesus Cristo. Quando, na comunhão, recebemos este mesmo Jesus Cristo acostumado que está a tais paraísos, perguntamo-nos o que Ele achará da nossa hospitalidade? Oferecemos-Lhe ao menos, a Ele que condescende em descer à nossa choupana, o modestíssimo luxo de uma casa limpa? “… no qual Este se encarnou por  obra do Espírito Santo, para aí operar maravilhas incompreensíveis…” 

Nosso Senhor, durante sua vida em Maria Santíssima — e esta é uma belíssima ideia que São Luís Grignion desenvolverá mais tarde —, quando Ela era o tabernáculo no qual Ele habitava, já aí operou maravilhas. 

São Luís Grignion compôs inclusive uma oração dirigida a Nosso Senhor enquanto vivendo em Maria Santíssima — “O Jesu, vivens in Maria”… “É o grande, o divino mundo de Deus, onde há belezas e tesouros inefáveis. 

É a magnificência de Deus (Ricardo de S. Lourenço, De Laud. Virg., lib IV.), em que Ele escondeu, como em seu seio, seu Filho único, e n’Ele tudo que há de mais excelente e mais precioso. Oh! que grandes coisas e escondidas Deus todo-poderoso realizou nesta criatura admirável, di-lo Ela mesma, como obrigada, apesar de sua humildade profunda: ‘Fecit mihi magna qui potens est’” (Lc 1, 49).

O sentido inteiro do cântico do Magnificat só o entenderemos se considerarmos quem é Nossa Senhora. Realmente, é preciso nos lembrarmos do poder de Deus, para compreender que Ele possa ter operado essas maravilhas que n’Ela operou. “O mundo desconhece estas coisas porque é inapto e indigno”. Se antes o Santo nos falou que Deus concede a pessoas privilegiadas o favor único de poder penetrar nos umbrais desta devoção, agora se refere a uma geração (no sentido teológico e não biológico) que por sua maldade, impureza, indignidade, de detesta tudo isto. É o reverso da medalha. 

A devoção mariana é característica de todos os santos 

Afirma São Luís: “Os santos disseram coisas admiráveis desta cidade santa de Deus; e nunca foram tão eloquentes nem mais felizes — eles o confessam — que ao tomá-La como tema de suas palavras e de seus escritos” (nº 7). 

Esse trecho nos evidencia uma verdade muito importante. Não se deve pensar que a devoção a Nossa Senhora é um estilo de santidade inaugurado por São Luís Grignion, ou levado por ele ao último grau de intensidade. A devoção especialíssima e intensíssima a Nossa Senhora é característica de todos os santos. E, embora não se possa dizer que todos a tenham conduzido ao ponto levado por São Luís Maria, estudando a vida de piedade de qualquer deles notamos sempre uma devoção ardentíssima a Ela, a qual é a dominante logo abaixo do culto a Deus Nosso Senhor.

Essa devoção, contudo, se reveste em cada um de aspectos particulares. É raro, neste sentido, encontrar algum santo que não tenha cultivado um aspecto novo de piedade em relação à Nossa Senhora. E nenhum deles desconhece dever à intercessão d’Ela, não só seu progresso espiritual, mas até mesmo sua perseverança. 

Todos passaram por duras provas espirituais, das quais se viram livres por uma intervenção especial d’Ela. São Francisco de Sales, por exemplo, teve em sua juventude uma terrível crise, relativa ao problema de sua predestinação. Pensando no assunto, ficou quase tragado pelo abismo do tema e foi duramente assediado pelo demônio, o qual lhe insuflava que estava condenado. Isto lhe causou uma tremenda depressão. Começou a emagrecer, perder a saúde, nada havia que lhe restituísse a paz à alma. Certo dia, rezando diante de uma imagem de Nossa Senhora, pediu-Lhe, ainda que tivesse de ir para o inferno, lhe fosse dado não ofender a Deus na Terra — pois seu pavor do inferno não provinha do tormento, mas da ideia de ultrajar eternamente a Deus — e recitou a ração
“Memorare o piíssima Virgo Maria”, a qual estava escrita no pedestal da imagem. Ele mesmo nos conta que, logo após o término da oração, restabeleceu-se em sua alma uma paz admirável; percebeu então, claramente, o jogo do demônio de que estava sendo vítima, e recuperou aquela serenidade que viria a ser a nota dominante de sua vida espiritual.

Encontramos, assim, na existência de todos os santos, esta constante de uma particular devoção a Nossa Senhora. Ela é, pois, uma característica segura da verdadeira piedade, e devemos absolutamente duvidar da santidade de alguém que não a possua. Seria sofisma dizer: algo que é especial para todos não o será, por isso, para ninguém. A isto se pode responder: uma mãe com muitos filhos tem, para cada um deles, um carinho especial; e cada filho ama a própria mãe de um modo particular. Assim, cada um de nós deve amar Nossa Senhora de maneira inteiramente própria, especial e inconfundível. Ela, por sua vez, terá para conosco um carinho, que não será genérico, como de quem dissesse: “Eu amo toda aquela gente”; mas sim um afeto particular, que pousará sobre cada um de nós, individualmente considerados, como se só nós existíssemos na face da Terra.

Plinio Corrêa de Oliveira