Impressoes sobre a Semana Santa

Para Dr. Plinio, a principal época do ano era a Semana Santa. Não apenas pela recordação, em si, da tragédia do Homem-Deus, morto e sepultado, mas também pelo ambiente salutar e santificante que dela emanava.

Na Sexta-feira Santa, a cerimônia que mais me tocava era esta: a cruz exposta numa espécie de mesa, com Nosso Senhor morto, e o povo fiel que passava para oscular-lhe os pés. Desfilavam aquelas pessoas às centenas. Nas catedrais, esse cortejo para a veneração da cruz era encabeçado pelo bispo, e foi durante uma dessas celebrações litúrgicas que contemplei, pela primeira vez, a simbólica beleza do báculo.

Estávamos na Igreja de Santa Efigênia (pois a Catedral da Sé ainda se achava inacabada), quando o velho Arcebispo D. Duarte entrou para a cerimônia, revestido dos trajes próprios aos ritos da Paixão: batina amplíssima, de um roxo quase violeta, prolongando-se numa grande cauda, levada por um ou dois caudatários, em geral seminaristas. Ia sem mitra, com uma cobertura na cabeça lembrando em algo o barrete dos doges venezianos. Não sei a razão dessa peça no paramento episcopal, mas o adornava de modo muito adequado.

Com todos os fiéis quietos, tendo já deixado um espaço aberto no corredor central para o prelado passar, este vinha caminhando sem sapatos, deixando ver as meias violáceas. Estava descalço em sinal de penitência, e ia como bispo diocesano, o primeiro, pedir perdão pelos seus próprios pecados e pelos do povo.

Essa cena causava uma impressão de realidade — e o era — de que, diante do trono de Deus, naquela hora, comparecia com o bispo a diocese, e cada um dos que estávamos ali, na pessoa do Pastor,  pedia perdão por seus pecados, responsáveis pela morte de Nosso Senhor Jesus Cristo. A liturgia começava a entoar um cântico que exprimia e corroborava esse sentimento, enquanto Dom Duarte, com ar grave e recolhido, em grande estilo se aproximava do Senhor morto para Lhe oscular os pés. Em seguida, saía pela sacristia, e tinha início a longa procissão de fiéis.

Ao presenciar essa cena, eu me rejubilava: “Ah! Esta é a Igreja Católica!”

A cidade se tornava austera e séria

Outros lindos aspectos das celebrações da Paixão me encantavam igualmente. Por exemplo, a transladação do Santíssimo, que havia sido consagrado, para o chamado monumento ou sepulcro.

Então, o celebrante — que podia ou não ser o próprio bispo — envolvia o cibório com uma capa da cor de luto e o conduzia ao seu destino, precedido pelos toques das matracas: “plec-plec, plec-plec, plec-plec, plec-plec”… Quer dizer, não havia mais música nem alegria. Era tudo tristeza e tudo pranto, por causa de nossos pecados, porque o Filho de Deus morrera. O cortejo se dirigia a um altar lateral, mais afastado, para que o maior espaço a ser percorrido pelo povo conferisse certa pompa e extensão à cerimônia.

Descia-se uma urna, na qual depositavam o Santíssimo, trancavam-na à chave e esta era entregue ao pároco. Até o Sábado Santo não havia mais comunhão naquela igreja, porque o Senhor estava  morto. Era um luto pesado, uma tristeza profunda.

O povo se dispersava silencioso e recolhido. Caminhavam todos para suas casas, naquela época antiga, ainda usando trajes escuros. Os homens se vestiam de preto, e as senhoras portavam sinais  de luto, faixas ou véus negros, etc. As próprias crianças se apresentavam com algo de preto. E assim, pelas ruas tranquilas da cidade, as pessoas voltavam para suas residências. Iam fazer a sua   refeição de jejum e abstinência, mantendo-se na piedosa e compungida quietude daquele dia de dores.

A cidade tornava-se tão austera, tão séria, que se tinha quase a impressão de que, quando ela voltasse ao normal, já estaríamos vivendo no Reino de Maria. Ou seja, naquela época histórica  prevista por São Luís Grignion de Montfort e outros santos, durante a qual a Santíssima Virgem ser á a Rainha dos Corações e da sociedade.

As alegrias da Ressurreição

Terminada a Sexta-Feira Santa, os espíritos se voltavam para as esperanças e as alegrias da Páscoa.

Certa vez, quis ver a cidade de São Paulo no seu conjunto — eu tinha uns 20 anos — festejando a Ressurreição. E a Igreja, naquele tempo, o fazia no Sábado de Aleluia, ao meio-dia. Acompanhado de um amigo, subi então até o último andar da torre do santuário Coração de Jesus, onde ficamos à espera do festivo momento.

Quando chegou meio-dia em ponto, ouvimos o timbre do bonito carrilhão da igreja que começava a tocar.

Depois do silêncio sacral e sepulcral da Semana Santa, ecoavam os repiques dos sinos. E como não havia quase arranha-céus naquela época, o som se propagava, trazendo aos nossos ouvidos os tangeres dos sinos das mais variadas igrejas, a diferentes distâncias, bimbalhando festivamente junto com o sino fortíssimo do Coração de Jesus. Era um júbilo, um triunfo pascal com grandeza bíblica.

Logo a alegria da Páscoa começava a se espalhar sobre a cidade. Soltavam-se rojões, e a molecada ia pelas ruas levando o judas para ser enforcado em árvores, em postes, espancado até cair e, finalmente, queimado.

Já nas casas de família, as mães acendiam velas bentas diante das imagens de Nosso Senhor e de Nossa Senhora, para celebrá-los, e reuniam as crianças para rezar.

Enfim, tinha-se a impressão de que até a natureza se rejubilava quando, ao meio-dia do Sábado Santo, soavam os sinos da Ressurreição. O Apóstolo diz esta palavra, que tudo resume: “Absorta est mors in victoria”. A morte foi tragada pela vitória!

Plinio Corrêa de Oliveira

Modalidades de sofrimento

Os sofrimentos da alma, por serem os mais penosos, podem levar a pessoa a buscar refúgio na irrealidade que, ao invés de aliviar os padecimentos, agrava-os, tornando o ser humano escravo de suas próprias mentiras.

A respeito do sofrimento da alma haveria ainda algo a acrescentar e que é o seguinte:
Sendo esta Terra um vale de lágrimas, a vida humana passa-se de maneira a fazer o homem sofrer tanto do ponto de vista físico, material, como do espiritual, conforme as várias formas de sofrimento de que tratei.

Dores causadas pela realidade e pela irrealidade

Na existência do homem o jogo de seus anseios, a finalidade a que ele se propõe ou para a qual Deus o destina — na medida em que ele conhece, segue, deseja ou não essa finalidade — fazem com que, para todo ser humano, viver acabe sendo uma batalha terrível.

Porque há uma irremediável desconexão entre o que ele quereria como satisfação, como prazeres de alma, inclusive legítimos — não estou me referindo apenas aos ilegítimos —, e aquilo que de fato a vida lhe dará. E ele tem que sorver o cálice duríssimo na vida que é o enigma de cada homem.

Adivinhar isso em outro homem é extraordinariamente difícil. E, em geral, o homem carrega esse seu problema de tal maneira que os outros imaginam que ele tenha todos os problemas, menos aquele que realmente tem. Quer dizer, ele carrega isso no isolamento.

Essa é propriamente uma dor de alma e não do corpo. A dor do corpo pode aumentar a da alma. É muito pior ter aborrecimento acrescido de uma dor ciática, do que ter só o aborrecimento. A dor ciática pode agravar muito. Mas, de fato, o aborrecimento é tanto mais, que a dor ciática não é nada em comparação com ele.

Nessa dor de alma entram os sofrimentos que a vida impõe por causa da realidade, e depois as dores que vêm para o homem por motivo da irrealidade.

Quando o homem não quer ir para onde Deus deseja, ele se põe a fazer imagens erradas das coisas e forma uma ideia irreal da vida. E ruma para uma meta que não é aquela para a qual ele deveria caminhar, e que não é realmente a dele. E se faz uma espécie de vida de mentira dentro dele e em torno dele, que o atormenta enormemente mais do que a realidade que ele seguiria, cheia de contradições, de absurdos, de fricções, etc. Mas, de outro lado, ele se convence cada vez mais de que ele não aguenta esta vida tão dura, a não ser carregando as mentiras. As mentiras que são uma causa potentíssima do sofrimento, ele julga que, se não as carregar, não suporta.

Então, ao mesmo tempo ele aguenta a causa do sofrimento e esta lhe produz efeitos pelos quais ele se julga necessariamente preso à causa. Isso forma um círculo vicioso que leva o indivíduo não se sabe até onde.

São Gregório VII: semelhante a um toureiro que investe contra o touro

Uma figura histórica pela qual tenho um respeito enorme é São Gregório VII. O que mais gosto nele é ver como ele viveu dentro da verdade. Isso é também assim nos outros Santos, mas nele esta característica fica particularmente clara aos meus olhos.

Se ele não visse inteiramente de frente a situação na qual se encontrava, poderia se tapear, levar uma vida mais ou menos cômoda como Papa, e até iludir-se, fazendo várias coisas boas. Mas ele não teria cumprido o seu dever.

Empolga-me e acho uma maravilha vê-lo à maneira de um toureiro que entra diretamente na arena e faz aquele lance com a capa e a espada por cima do touro, como a dizer:

“O caso que eu tenho é um só: com o Império(1). O próprio assunto dos sarracenos se resolverá se eu solucionar o caso do Império. Como seria agradável se eu pudesse combater os meus inimigos ostensivos. Tenho inimigos pendurados em mim e que são os meus filhos. E este meu filho a vários títulos primogênito, o Imperador do Sacro Império Romano-Alemão, está querendo me assassinar! Irei de encontro a ele e sustentarei a batalha. Verei o perigo inteiro como é, e lançarei a ele o contrário do que ele quer, de tal maneira que entre mim e ele não haverá paz possível.”

Vê-se nele um homem que em nada procurou iludir-se, em nada buscou um caminho que não era o seu, mas que olhou de frente.

Ele pediu auxílio para defender-se contra Henrique IV, e depois morreu exilado. Consta que, parafraseando o Salmo que diz: “Amas a justiça e odeias a iniquidade, por isso Deus te consagrou com o óleo da alegria”(2), São Gregório teria afirmado: “Amei a justiça e odiei a iniquidade, por isso morro no exílio!”

É o princípio axiológico(3) quebrado. Mas é um homem que não teve falsas dores de espírito em nada. Viu a coisa de frente!

Nosso Senhor Jesus Cristo fez exatamente isso: foi de encontro aos que O podiam matar e levar a obra d’Ele para a ruína. E Ele os enfrentou, ainda que desse embate saísse a solução anti-axiológica. Nisso estava a axiologia d’Ele.

Exemplo perfeito de amizade: os sete santos fundadores dos Servitas

Façamos agora a relação de tudo isso com almas muito especialmente chamadas. Ou essas almas avançam por cima de sua própria anti axiologia, e com coragem, ou não têm nada feito.

Quer dizer, devem compreender que, em vários episódios de sua vocação, esta vai lhes parecer anti axiológica, e precisam, apesar disso, continuar a avançar de qualquer jeito, mesmo para o absurdo e para a catástrofe, colocando sua confiança em Deus.

A alma que conserva qualquer nostalgia de tal alma irmã, no fundo espera de outra criatura o que ela só pode receber de Deus! Seja no terreno alma irmã homem-mulher, seja no terreno mais inocente, e por isso menos carregado de veneno, amigo a amigo. Não conseguirá! Ou Deus dá, ou não terá…

Para mim, o exemplo perfeito de amizade, que estou me lembrando no momento, é São Filipe Benício, um dos sete santos fundadores da Ordem dos Servos de Maria. Todos eles foram enterrados juntos, e as suas cinzas se misturaram. É uma coisa extraordinária!

As relações entre eles eram realmente admiráveis, mas não nesse sentido de uma alma que encontrou em outra o seu complemento. É algo diferente. É Deus que estava presente numa alma e vendo-Se também presente na outra, formou o amor que o Altíssimo tem a Ele mesmo. É outra coisa.

Esperar encontrar noutra criatura uma espécie de paraíso de contemplação em que a alma tem esse deleite, é inútil. Ou acha ali dentro Deus, então está certo, ou se encontrar apenas outra alma, deparou-se com um blefe. Garrafa vazia… É preciso compreender bem isso.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/11/1983)

1) Dr. Plinio se refere à contenda entre o Papa São Gregório VII e o Imperador do Sacro Império Romano-Germânico, Henrique IV. Esta luta, motivada pela questão sobre se as investiduras eclesiásticas poderiam ser conferidas pelo poder temporal, teve como alguns de seus pontos culminantes a excomunhão do Imperador, sua peregrinação ao castelo de Canossa para pedir perdão ao Papa e a posterior invasão de Roma, por Henrique IV, para tentar remover São Gregório VII e substituí-lo por um antipapa.
2) Sl 45, 8.
3) Termo derivado de “Axiologia”: ramo da Filosofia que estuda os “valores”, isto é, os motivos e as aspirações superiores e universais do homem, as condições e razões que dão rumo à sua existência, para os quais ele tende por insuprimível impulso da sua natureza.

Heroísmo, graça e beleza

Ergue-se sozinha, desafiando a vastidão das águas que se abrem à sua frente. Dir-se-ia antes um palácio em forma de torre, espaçoso, amplo, imponente, com seus diversos andares encimados pelo caminho de ronda, ao longo do qual os vigias atentos são capazes de perlustrar todo o horizonte.

Cercada de pátios, patamares e guaritas, fruto de uma concepção corajosa, misto de guerreiro e sagrado, a Torre de Belém é, a meu ver, um dos mais belos monumentos da Cristandade.

Quando a vi pela primeira vez, desde logo tornou-se dos meus maiores encantos. Era a forma de grandeza e de pulcritude que eu desejava conhecer, sem a poder imaginar. Contemplando-a com meus próprios olhos, veio-me ao espírito este pensamento: “Já a pressentia, mas não conseguia colocá-la em palavras; tudo em mim se inclinava para ela, para o desejo que algo assim existisse. Eis a torre que eu tanto esperava!”

Senti, por assim dizer, uma vivíssima consonância que nos unia. Pareceu-me magnífica como dignidade, calma, distinção, majestade. Como vigor, força e, ao mesmo tempo, suavidade e delicadeza, presente naquelas sacadas de onde o rei e a corte assistiam a partida dos valorosos navegantes. Pude imaginar os adeuses de parte a parte, os lenços que se agitavam para marcar a separação e todas as outras manifestações de carinho e amizade para com os que se ausentavam. Tudo isso me veio de imediato à imaginação, porque havia essa consonância da Torre comigo.

Lembrar-me dela é para mim uma fonte de alegria: “Lá está a Torre, e sempre poderei revê-la!”

Extraordinária definição de ousadia, altiva, séria, resolvida a enfrentar os mares, ela nos convida a superiores cogitações. Sua atmosfera é incompatível com a superficialidade, a intriga e as mesquinharias da baixeza humana. Dela emanam aromas espirituais e sobrenaturais, o maravilhoso perfume da graça divina, posto que edificada por almas movidas de espírito católico, cuja inspiração artística sublimou-se por uma espécie de carisma e dom celestial para atingir aquele esplendor de realização.

Obra do passado, ela nos fala de futuro. Suas pedras de alvura reluzente nos transporta para o mundo dos contos de fábula.

É o próprio símbolo do heroísmo, da graça e da beleza.

Tenho para mim que certos lugares e monumentos que não possuem um significado diretamente religioso, mas constituem uma expressão cultural definida muito católica, devem ser admirados por amor à Igreja. A Torre de Belém é um deles.

Eu lhe devoto tanto apreço porque amo a Esposa Mística de Cristo. E quando a elogio, faço-o com uma emoção religiosa: porque a graça me toca a alma ao vê-la, e ao perceber nos seus encantos os reflexos dos sentimentos cristãos que levaram os navegadores, os missionários e os conquistadores lusitanos a empreenderem uma epopeia que traçou indelével sulco nas águas da História.

Luís XVII poderia ter sido um novo Carlos Magno

Pertencente às duas mais importantes dinastias do Ocidente, Luís XVII possuía todas as graças com que Deus cumulou os Bourbons e a Casa d’Áustria para realizarem sua obra providencial na História. Mas os revolucionários de 1789 descarregaram contra ele uma ação antieducativa brutal.

 

Devo comentar o resumo de um trecho do livro “O menino Luís XVII e seu mistério”, de Madeleine Louise de Sion(1).

Assimilou com facilidade os princípios revolucionários…

Sem dúvida alguma, entre os crimes perpetrados pela Revolução contra a família real, o aviltamento do pequeno Delfim foi um dos maiores.

Arrancada aos sete anos de idade dos cuidados de sua família e entregue ao sapateiro Simão, a criança embruteceu-se totalmente. Quando a 3 de julho de 1793, às onze horas da manhã, Luís Charles, o futuro Luís XVII, encontrou-se em casa de seu novo pai, chorou durante quase três dias. Depois, percebendo que com isso nada obtinha e acostumado a sentir-se centro das atenções, enxugou as lágrimas e iniciou vida nova. De início, resistindo ao ambiente, mas depois nele integrando-se dolorosamente.

A missão de Simão era inculcar-lhe princípios e lhe ensinar modos do povo. Era preciso fazê-lo perder a ideia de sua posição e que ele esquecesse sua realeza. Simão iniciou seu pupilo nas “belezas” do estilo de “Le Père Duchesne”, jornal obsceno dirigido por Hébert, assim como no palavreado grosseiro dos moleques de rua. Nada de ortografia ou de fábulas, ou histórias variadas. O descendente de Luís XVI aprenderia os direitos do homem e cantaria as canções do povo.

Testemunhas inequívocas atestaram o êxito dessa missão. A criança assimilava tudo com grande facilidade. O jovem príncipe perdeu gradativamente os vestígios de sua primeira educação, afogada por atitudes vulgares que ele mesmo aceitou como sendo muito masculinas. Percebeu também que sua linguagem de soldado agradava aos cidadãos, dos quais recebia elogios e aprovação por cada palavra de baixo calão que pronunciava. Aqueles homens sentiam-se radiantes por verem o filho da “orgulhosa austríaca” semelhante a um pequeno vagabundo.

Falso acusador da própria mãe

Três testemunhos – o de um cidadão, o de Madame Royale e de Madame Elisabeth – nos mostram a que ponto chegou a pobre criança.

Um revolucionário com tendências artísticas e certa cultura relata que uma vez brincava com o Delfim, enquanto no aposento de cima, onde se supunham estar Maria Antonieta e suas parentas, ouviam-se ruídos como se arrastassem cadeiras. Num movimento de impaciência gritou a criança: “Será que essas… – aqui utilizou uma palavra obscena – ainda não foram guilhotinadas?” Retirou-se sem querer ouvir o resto.

Madame Royale afirma, por sua vez, que ouvira o irmão cantar a Carmagnole, a ária da Marseillaise e mil outros horrores; que Simão lhe colocava um gorro vermelho na cabeça e lhe ensinava a pronunciar juramentos afrontosos contra Deus, sua família e os aristocratas. O sapateiro o fazia comer e beber muito. Ele engordou demais e cresceu pouco. Finalmente, durante as horríveis acusações feitas pelos revolucionários à Rainha Maria Antonieta, o príncipe tomou partido contra sua mãe e contra sua irmã.

Enquanto Madame Royale negava as infâmias, o Delfim as afirmava verdadeiras. Quando chegou a vez de interrogar Madame Elisabeth, ela respondeu a tudo com sua costumeira dignidade e prudência. Mas ao ver seu sobrinho desmenti-la e acusar a mãe, não conteve um grito de horror: “Oh, que monstro!”

Nos acontecimentos, o aspecto político é sempre secundário

A ficha apresenta um desses episódios nos quais, por assim dizer, o espírito da Revolução Francesa pode ser tocado com a mão, de maneira que vale a pena ser pormenorizadamente estudado por nós.

Em geral, os historiadores apresentam a Revolução Francesa como um acontecimento preponderantemente político. Contudo, seria uma coisa para se perguntar: Há episódio predominantemente político? Todo acontecimento político, por sua própria natureza, seria consequência, efeito de mudanças de ordem religiosa, moral e filosófica do espírito dos povos. Assim, num acontecimento, o aspecto político é sempre secundário, enquanto o pressuposto religioso, filosófico ou moral constitui o aspecto principal.

Eu sou muito dessa segunda opinião e vejo na Revolução Francesa não um episódio preponderantemente político, mas um reflexo político de um acontecimento de ordem moral, religiosa e filosófica, que chega ao seu auge com a explosão política da Revolução.

Em outros termos, podemos medir o alcance da Revolução com a modificação da mentalidade da alma humana, analisando, primeiro, quem era Luís XVII e depois considerando o que nós gostaríamos de fazer dele e o que teriam gosto de fazer dele os revolucionários. E nesse texto o contraste dos dois espíritos, como também o profundo desacordo de ambas as causas – a da Revolução e a da Contra-Revolução –, estão muito claramente em evidência.

Duas mais importantes dinastias do Ocidente

Luís XVII era o segundo filho homem do Rei Luís XVI. Este monarca teve de Maria Antonieta, Arquiduquesa d’Áustria e Lorena, dois filhos varões. O primeiro morreu antes da Revolução Francesa, e esse segundo era criança quando a Revolução arrebentou. Tornara-se, portanto, o herdeiro do trono e, como tal, deveria usar o título de Luís XVII, uma vez que se estava estabelecendo o hábito de todos os reis da França, a partir de Luís XIII, usarem o nome de São Luís IX.

Nessa narração vemos Luís, o menino, educado na corte de Versailles e representando, a vários títulos, uma série de preciosos requintes. Ele é, em primeiro lugar, de um modo ou de outro, o herdeiro de todos os reis da Europa. Não há, a bem dizer, dinastia importante da qual ele não tivesse o sangue nas veias. Mais proximamente, ele possuía o sangue da Casa de Bourbon, correspondente à de São Luís, e da Casa d’Áustria, Habsburg, as duas mais importantes dinastias do Ocidente. Com esse sangue, ele tinha todos os carismas, todas as graças com que a Providência cumulou essas duas famílias para realizarem sua obra providencial na História.

Não que esses carismas se transmitam com a carne e o sangue, mas a Providência os pode manter fixos numa determinada família. Assim, todos eles se concentravam sobre esse menino.

Além de ele ser o ponto de encontro de tantas graças e bênçãos de Deus, era uma pessoa preparada por essa lei misteriosa da hereditariedade que transmite de pais para filhos não apenas caracteres estritamente biológicos, mas disposições de alma, circunstâncias temperamentais, enfim, um mundo de propriedades.

Ele era preparado, no plano natural, para ser o ponto de encontro de dons naturais importantes que essas famílias possuíam. Esses dons tinham sido trabalhados, desde o berço, por um dos ambientes mais requintadamente culturais que a História tenha conhecido, o ambiente do castelo de Versailles, até o momento em que o espandongou a Revolução Francesa. Portanto, esse menino era uma obra-prima à luz da Fé, da Sociologia, da História.

A santidade de São Luís, a majestade de Luís XIV, a graça de Luís XV, a força de alma dos Bourbons

O que nós quereríamos fazer desse menino?

Adão também era uma obra-prima saída das mãos de Deus quando foi criado. Ele também recebeu da Providência dons sobrenaturais, preternaturais e naturais excelentes. Mas não basta ao homem ter recebido dons magníficos ao nascer. Pode-se até dizer que o principal não está nisso, mas no aproveitamento que ele dê a esses dons.

Nós quiséramos que todo esse heroísmo, toda essa glória, todo esse requinte, toda essa delicadeza, toda essa educação fossem aproveitados de modo exímio por Luís XVII, de maneira que ele desse num herói da Civilização Cristã, num santo, num homem inteiramente entregue ao serviço de Deus e da Santa Igreja Católica Apostólica Romana, um rei perfeito, talvez um outro Carlos Magno.

Se a Europa tivesse tido nessa ocasião um outro Carlos Magno, seria possível frear a Revolução que subia aos borbotões, como Carlos Magno conteve – tarefa, aliás, menos difícil – as invasões dos bárbaros desencadeadas no continente europeu, no tempo dele.

Teríamos querido, portanto, um homem que reunisse em si a santidade de São Luís, a majestade de Luís XIV, a graça de Luís XV, a força de alma dos Bourbons. Então teríamos tido um homem providencial, um desses varões para quem se olhasse com entusiasmo e se pudesse dizer: Como ele é fora do comum, extraordinário, não tem igual! Como nos alegra sermos homens, pensando que o gênero humano pode dar homens assim! Como nós nos alegramos de ser católicos, pensando que a Santa Igreja Católica Apostólica Romana pode produzir um homem assim!

Nós participaríamos de sua grandeza precisamente contemplando-a e nos sentindo inferiores a ele.

Impressão de ter caído vivo no inferno

Os revolucionários o que fazem? Exatamente o oposto. Eles tomam essa joia preparada pela Providência, pela História, pelos séculos, pela cultura, e acanalham o menino o quanto podem, debaixo de todos os pontos de vista. Isolam-no, o circunscrevem, o maltratam. Sobre a alma débil dessa criança – que carregará diante de Deus uma responsabilidade conhecida somente por Ele, e que tanto pode ser pequena como enorme – eles descarregam uma ação antieducativa brutal.

Podemos imaginar qual é a sensação de um menino que sai de Versailles, do centro de todos os afetos, de todos os mimos, de todas as atenções, de todo esplendor, e de repente passa, numa transição cronologicamente muito rápida, para um cárcere onde vive sozinho, permanecendo durante muito tempo como um murado vivo numa sala escura, sem contato com ninguém, apenas um guichê por onde lhe passam comida. Um período em que ele tomava sovas noturnas, quando entravam pessoas durante a noite e o brutalizavam, maltratavam. Imaginem como é a estrutura de alma de uma criança submetida a todos esses terrores, o choque de quem vem de Versailles. O que isso pode ter sido? O tombo, a estranheza, a impressão de ter caído vivo no inferno! Podemos ter ideia do que eram esses anos em que a criança caía de cansaço e imergia no sono já no pavor da surra que deveria vir durante a noite? Os sustos ao acordar durante a noite? Surra brutal! E depois, o que era esse resto de sono, esse resto de noite? Como tudo isso deveria ser um tormento!

Através disso, realiza-se a degenerescência desse caráter. O menino começa a perceber que é bem tratado quando ele diz palavrões, usa um vocabulário novo que não lhe tinham ensinado até então, quando manifesta um tipo de pseudo-varonilidade que é a “varonilidade” revolucionária.

Os revolucionários opunham muito à delicadeza do nobre do “Ancien Régime” a violência brutal popular nascida na Revolução Francesa. Então estimulavam o menino a dizer palavras porcas, a falar de um modo cafajeste, a ostentar sentimentos contrários à família real, a injuriar o próprio pai e a própria mãe.

Resultado: a degeneração moral, que é a mais importante de todas, vai crescendo, acentuada pelo efeito do álcool. Eles embriagavam o menino e ensinavam-no a cantar canções revolucionárias.

Oposição de dois mundos 

Por fim, chegaram a dar ao menino uma superalimentação que lhe prejudicou a própria estrutura física: ele engordou enormemente e cresceu pouco. Um verdadeiro monstrengo.

Quer dizer, eles modelaram aquela criança à imagem e semelhança do espírito deles. Era aquele o símbolo da humanidade nova cuja vinda eles desejavam. Quando vemos um hippie andando pela rua, nos perguntamos: tirados os aspectos fisicamente doentios, que diferença há entre um hippie e Luís XVII? Eles não modelaram nessa criança a prefigura do homem que a Revolução, séculos depois, haveria de produzir como um padrão para a humanidade inteira? Foi precisamente isso que eles fizeram.

Logo, era um mundo novo que surgia à imagem e à semelhança dele: o menino revoltado contra os pais, obsceno, espontâneo, sem controle, sem censura, sem caráter, sem fidelidade a nenhum princípio, oportunista, procurando a popularidade.

Alguém dirá: “Pobre menino! Ele teria tanta culpa quanto o senhor está dizendo?”

Eu não estou tratando do fenômeno culpa. Foi feita ali uma escultura pedagógica, criado um modelo. Esse modelo está andando pelas ruas. O que há de mais importante a respeito de Luís XVII é o fato de ele ser, ao mesmo tempo, alguém que encerra uma série e inicia outra. Nesse contraste entre o menino que ele era em Versailles e aquele como a Revolução modelou vai uma oposição de dois mundos, de dois modos de ver o homem, a vida, o universo.

Para resumir: de um lado, o modo católico que crê em Deus, embora com possíveis deformações de uma época de decadência; de outro, um modo anticatólico que nega completamente a Deus e não quer o menino feito à imagem e semelhança d’Ele, mas à imagem e semelhança dos vícios, das taras, de tudo aquilo quanto há de mais repugnante na natureza humana.

Ofensiva do monstruoso contra o belo, da desordem contra a ordem

Isso se espelha, aliás, em toda a Revolução Francesa. Ela foi uma ofensiva do monstruoso contra o belo, da desordem contra a ordem. Quando vemos, por exemplo, a mudança pela qual passaram as modas por ocasião da Revolução, notamos ter sido exatamente o fim de uma era de modas requintadas para o estabelecimento de uma época de modas ridículas, grotescas.

Por isso, durante a Revolução a moda feminina, como também a masculina, foram quase tão ridículas quanto hoje em dia. Olha que não é dizer pouco! As maneiras baixaram, se degradaram. Se estudamos o modo pelo qual a vida social se estabeleceu depois da Revolução, vemos que é uma vida social indignamente rebaixada em relação à anterior.

Se analisamos a literatura, a música, a arquitetura e outras artes, notamos como tudo leva um tombo. Esse tombo é rumo ao sapateiro Simão e ao aspecto conferido por ele a Luís XVII. Nem tudo foi configurado à maneira desses modelos, mas a distância de todas as coisas em relação a eles diminuiu, e de lá para cá essa distância não tem feito senão decrescer cada vez mais. Porque a Revolução vai aos poucos diminuindo ou eliminando as distâncias existentes entre o estado da humanidade atual e a ordem de coisas para onde ela quer levar o gênero humano.

Dou-lhes um exemplo característico. Lembro-me de que, quando menino, eu ia fazer meus exames no ginásio do Estado, onde havia um funcionário o qual era objeto do riso geral de todos os alunos. Tratava-se de um sujeito completamente calvo, sem um fio de cabelo na cabeça, sem sobrancelhas, sem barba nem bigode. O pessoal, então, o chamava de “belos cabelos”. E o funcionário, ainda moço, mas evidentemente devorado por uma moléstia repugnante, cuja cura, naquele tempo, ainda não era bem conhecida, aceitava esse apodo e tocava sua vida. Era uma coisa que passava por monstruosa.

Ora, em nossos dias há toda uma corrente nova em matéria de moda que apresenta como a última modernidade a pessoa raspar completamente o cabelo, a sobrancelha, a barba, sob o pretexto de ser muito mais prático, higiênico e despretensioso.

Uma pessoa de minha família que frequenta certas rodas sociais me disse ter ouvido o seguinte elogio feito por várias pessoas: “De fato, uma vez que seja adotado esse costume, a higiene lucra muito. Depois, acaba com essa cabelama na cabeça e com essa história dessas pastas e pomadas que se põem. Ademais, a pessoa se mostra como é, com toda a sinceridade, sem os disfarces de um penteado”.

É a marcha para o monstruoso, o hediondo, para uma forma de barbárie pior do que a dos antigos bárbaros. Porque na barbárie do civilizado que se faz bárbaro, achando que assim é bom, há um toque de pecado contra o Espírito Santo verdadeiramente abjeto. É isso o que nós vemos representado nessa ficha.

Atitude sublime de Maria Antonieta

A cena final é o encontro do menino com Maria Antonieta. A rainha deposta está sendo julgada por um tribunal revolucionário. Então, acusam-na de ser uma mulher depravada, adúltera, uma messalina. Entretanto as fileiras revolucionárias só tinham messalinas, porque aquelas mulheres que acompanhavam os exércitos revolucionários – segundo os dizeres de todos os historiadores – eram mulheres públicas.

Pois bem, Maria Antonieta é acusada disso e de ter pecado com o próprio filho. Ela nega. Entra o menino de tamanco, bêbado, vestido com um gorro vermelho e uma roupa com as cores da República. Interrogado pelo juiz, a criança, mentindo, confirma a falsa acusação.

Não se poderia fazer sofrer mais uma mulher que já estava sendo destinada para o cadafalso. Ela, entretanto, teve uma atitude sublime: não disse uma palavra contra seu filho. Dos lábios de sua cunhada que estava presente – tia, portanto, do menino – escapou este brado: “Oh, que monstro!” Dos lábios de Maria Antonieta, porém, não saiu uma palavra sequer contra o filho, nem nessa ocasião. Ela apenas voltou-se para a sala cheia de mulheres e disse: “Eu apelo a todas as mães de França, especialmente as aqui presentes, para dizerem se acreditam nessa acusação”. Todas as mulheres começaram a aplaudir a Rainha. O juiz mandou retirar as pessoas do recinto, e o processo continuou na solidão. Era a época da “liberdade” que começava…

Creio não ser necessário dizer mais do que isso. São dois mundos: um que acaba, com as suas últimas luzes, e o outro que entra com sua careta hedionda.

Com essas considerações nós compreenderemos melhor como as mil pequenas transformações que a todo o momento se dão na humanidade não são comuns. Trata-se de transformações que indicam sempre um passo nessa marcha para o abismo, a hediondez, a completa ausência de moralidade, de Fé, de cultura e de civilização.

Então, as menores coisas: um modo monstruoso de se arranjar ou de se desarranjar, uma nova maneira de se tratarem, um novo estilo de dançar, inclusive um novo formato de garrafa, em tudo isso entra sempre uma influência a mais dessa força histórica que conduz o mundo para a hediondez.

Qual é essa força? No fundo, é a força do demônio, porque excede a maldade humana ser assim. O homem é muito ruim, mas não tanto que chegue até lá. Essa marcha prova a existência do demônio. Cada uma dessas transformações é uma ascensão nessa posse do demônio sobre nós, sobre o mundo. É, portanto, algo ainda da claridade da Idade Média que vai nos deixando, nos abandonando. E tudo o que nos cerca é um contínuo morrer da luz e um aumento das trevas.             v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 21/4/1970)

Revista Dr Plinio 232 (Julho de 2017)

 

1) Paris: Ed. Beauchesne et ses fils, 1957.

 

“Não apartes de mim o teu rosto…” Salmo 101

A súplica humilde e sempre confiante na infinita bondade divina era um dos aspectos da piedade de Dr. Plinio. Por essa razão, agradava-lhe de modo particular a recitação dos Salmos Penitenciais, repassados de filial apelo à clemência do Criador. Acompanhemos, agora, os comentários que Dr. Plinio nos faz ao Salmo 101.

Como já fiz questão de salientar antes — e por cautela explicável o reitero —, até hoje não tive oportunidade de ler comentários aos Salmos Penitenciais. Recitei-os em várias épocas de minha existência, como quando menino recebi uma tocante graça diante da imagem de Nossa Senhora Auxiliadora, na Igreja do Coração de Jesus, a qual me levou a dar os primeiros passos na vida espiritual. Depois, ao longo dos anos, adquiri o costume de rezá-los durante certos períodos, mas nunca tomei conhecimento de textos explicativos a respeito deles.
Assim sendo, longe de mim pretender não haja equívoco em alguma interpretação que eu faça. Desde já, e de bom grado, estendo a mão à palmatória, se me demonstrarem que determinada afirmação não confere com os comentários oficiais da Santa Igreja Católica Apostólica Romana, constantes não apenas nos documentos de seu Magistério, mas naquilo que se pode chamar o consenso dos autênticos teólogos.
Posta essa ressalva, passo a lhes transmitir os sentimentos que despertam em mim a leitura dos Salmos, ou seja, minha impressão pessoal, a ser partilhada por todos nós. Tenho a esperança de que tal leitura, realizada em comum, produza no conjunto o bem espiritual que recebo quando releio os Salmos e os comento para mim mesmo, no íntimo de minha alma.

Caráter profético do Salmo 101

Isso assente, devo dizer que este Salmo me parece profético em certos sentidos da palavra.
De um lado, é a história individual de um pecador que, como os referidos em Salmos anteriores, foi uma boa pessoa, que amava a Deus e por Ele era amada. Em dado momento, esse amigo do Senhor foi ingrato, revoltou-se contra o Altíssimo e pecou. O Criador não contemporizou e o puniu com sua cólera.
O homem, então, sendo flagelado pela ira divina, geme, chora e sente com amargura o mal cometido. Ajoe­lha-se, implora perdão. Nessa súplica ele registra que Deus o absolveu, e agradece do fundo da alma tal clemência. Não só externa sua gratidão, mas glorifica a Deus, com expressões de particular beleza e, sobretudo, verdadeiras.
Há, também, trechos referentes a Israel, ao fim do mundo e da História. Alguns versículos poderiam ser aplicados à existência do povo judaico, especialmente amado por Deus, que prometera a Abraão uma descendência mais numerosa que as estrelas do céu e as areias da praia. Entretanto, os filhos de Abraão pecaram e Deus se ergueu contra eles, castigando-os. Em vários episódios de sua história, nota-se o castigo divino se abatendo sobre o povo que andou mal, como se deu no cativeiro de Babilônia, durante o qual os judeus ficaram reduzidos à escravidão. Em seguida vem o arrependimento, e Deus os ajuda a se libertarem e voltar para Israel.
Quanto ao futuro, entende-se pelas passagens da Escritura que o povo judaico pedirá perdão e este ser-lhe-á concedido de modo tão imenso e profundo que ele se converterá. Quando isso acontecer, será de novo o Povo Eleito, o mais católico e virtuoso da Terra, tornando-se exemplo e motivo de alegria para o mundo inteiro. Até que sobrevenha a grande decadência final e, numa atmosfera de maldade generalizada, surja o Anticristo.

Os homens da fidelidade extrema

Quando isso suceder, as duas testemunhas que terão aparecido na Terra para profetizarem em nome do Senhor, serão mortas, presumivelmente pelo próprio Anticristo, e seus corpos expostos durante três dias e meio em praça pública, causando regozijo em todos os ímpios. E narra o texto sagrado que os iníquos festejarão esse crime, trocando presentes para celebrar a morte desses dois homens de Deus.
No auge de seu poder, o Anticristo talvez queira se proclamar Deus ele próprio e se fazer adorar. Em todo o caso, dirá que é Cristo, mas será uma caricatura do Redentor. O verdadeiro Filho do Altíssimo estará, na aparência, derrotado, contando apenas com um punhado de fiéis… Mas, que fiéis!
Como eu os invejo! Quando o demônio se achar triunfante no píncaro de sua glória, eles permanecerão íntegros, de uma fidelidade extrema, última, absoluta. Serão os homens incontestáveis, incontestados, que tiveram a coragem de contestar e afrontar de peito erguido tudo quanto é mau. E como me compraz a hipótese de que esses derradeiros fiéis sejam, entre outros, membros da obra por nós constituída, sobrevivendo a tudo, até os instantes finais da humanidade!
Ficarão esses autênticos católicos encerrados numa catacumba, conhecendo apenas por reflexos subterrâneos o que se passa na superfície da Terra, ou estarão presentes nos acontecimentos, em meio a mil perigos, vexações, tribulações, formando a coorte que se apresenta ao lado de Nosso Senhor, vaiado, contestado, objeto de toda a espécie de hostilidades?
O certo é que Ele — com um “E” maiúsculo tão imenso que se estende de ponta a outra do universo — não se rebaixará a combater a lesma imunda chamada Anticristo, mas o destruirá com um simples sopro de sua boca.
Com a morte do ímpio, Deus encerrará a História. Os dias da Terra se completaram, deu-se o grandioso Juízo Final, e o tempo cede lugar à eternidade.

O penitente posto à prova por Deus

Tendo em vista essas considerações, passemos a comentar os versículos do Salmo 101, levando em conta que também nós podemos nos comparar a este homem anônimo e misterioso do qual falam os textos sagrados, ditados pelo Divino Espírito Santo a um profeta. Tal pessoa havia sido boa, amiga do Criador, mas em determinado momento — oh! lástima, da parte de quantos de nós isto é verdade! — prevaricou e ofendeu a Deus. Compreendendo a situação em que se pôs, arrepende-se e dirige aos Céus a sua súplica.
Senhor, ouve a minha oração e chegue a Ti o meu clamor.
Esse pedido com o qual se inicia o Salmo sugere a idéia de alguém que reza, porém percebendo uma aparente indiferença de Deus em relação à sua prece. Ele fala com o Senhor e não recebe nenhuma resposta. Julgando-se não atendido, insiste com “clamor”. Clamar é falar em alta voz, bradar. Na medida e no sentido que esse último verbo comporte um sentimento de respeito, é do brado que se trata. “O meu clamor chegue a Ti”: clama-se para quem está longe, do qual nos separa uma grande distância. Então, as palavras do Salmista equivalem a estas: “Chegue a Ti minha voz longínqua, Tu que te puseste tão afastado de mim, ou me colocaste tão distante, ouve-me, por favor!”
Isso supõe a idéia de um pecador profundamente convicto do mal cometido por ele, e a quem Deus, entretanto, quer provar. Não cedendo desde logo ao primeiro sinal de sua penitência, Deus concede-lhe a graça para que se arrependa ainda mais. Compreende-se. Pois Ele não quer se contentar, em contrapartida de um grande pecado, com um qualquer pequeno pedido de perdão. Deus escava nessa alma os sulcos da dor, para que deles nasçam as flores da contrição.
Quantas e quantas vezes o mesmo acontece conosco! Pedimos algo a Deus e — ainda que o façamos pela gloriosa intercessão de Maria Santíssima, cuja mediação é infalível e sempre vitoriosa — nos parece não haver rea­ção da parte d’Ele. Nosso Senhor assim age, para que clamemos mais alto e o nosso gemido, expressão de nossa dor e humilhação, faça sair das entranhas de nossas almas os brados absolutamente lancinantes, diante dos quais Deus se inclina e, afinal, perdoa.

“Um olhar teu me resgata e redime!”

Não apartes de mim o teu rosto; em qualquer dia que me achar atribulado, inclina para mim o teu ouvido.
Esse versículo é uma reiteração do primeiro. Porém, para evitar algo de monótono inerente a toda repetição e conservar o mérito da perseverança, o versículo utiliza outras palavras e metáforas, dizendo mais ou menos a mesma coisa que o primeiro. Consideremos sua beleza:
Não apartes de mim o teu rosto…
Reaparece a noção contida no versículo precedente, de quem julga suas preces desprezadas por Deus. Então persiste na súplica: “Tu não me olhas e voltaste de lado o teu rosto. Eu te chamo e não me vês, porque não queres, desvias teus olhos enojados da minha alma pecadora. A Ti eu suplico: não afastes mais de mim o teu rosto, que me é como o sol. Um olhar teu me cura, resgata e redime!
“Mas, Senhor, para que Tu me fites, deves voltar teus olhos para mim. Eu me inclino envergonhado diante da limpidez e pureza de teu olhar, o qual não ouso encarar e há de pousar sobre as feridas repelentes dos pecados que me cobrem. Mas, sei que teu olhar cura o mal que ele rejeita, e assim te peço: olhai-me, curai-me!
Esse Salmo me parece profundamente compreensível e tocante, trazendo-me à lembrança a letra da música Ojos claros, do compositor espanhol Guerrero, que muito me agrada e termina com esta súplica: “E já que morreis por mim, olhai-me pelo menos…”
Tais palavras evocam a idéia de Cristo no alto da Cruz e um pecador de joelhos junto a ela, implorando perdão, batendo no peito e dizendo: “Sei que minhas culpas me tornam uma das causas de vossa morte. E como, conforme diz o Salmista, estou metido num limo, numa substância escorregadia, quase diria pantanosa, onde não há solidez1, rogo-Vos: olhai-me ao menos. Se me concederdes um olhar, Vós me tereis dado tudo!”
Tenho a impressão de que, ao chegar a hora de minha morte, pedirei a Jesus, pelos rogos de Maria, esse olhar salvador: “olhai-me ao menos”, porque quero passar para a outra vida com Ele olhando para mim. E aproveito a ocasião para sugerir essa piedosa prática a quem se encontrar no derradeiro instante que um dia chega para todos: lembre-se de pedir a Nossa Senhora que dirija a Jesus, em seu favor, este pedido: “Olhai-o, ao menos”. Porque se a Virgem Santíssima assim interceder por nós, a porta do Céu se nos abrirá.

O desejo de ser atendido prontamente

…em qualquer dia que me achar atribulado, inclina para mim o teu ouvido.
Mais uma vez, a mesma metáfora. Como Nosso Senhor está com a face voltada para outra direção, suas vistas não olham para o pecador que reza, e seus ouvidos como que permanecem fechados à voz suplicante.
Pode acontecer ao longo dos dias de qualquer um de nós — mais extensos ou menos, conforme aprouver aos desígnios divinos — a desgraça de que, em certo momento, Deus nos olhe com olhar por assim dizer empalidecido, distante e desinteressado, a fim de arrancar de nossa alma um gemido de penitência. Se tal acontecer, não fiquemos angustiados, mas roguemos a Nossa Senhora que interceda por nós. Ela, então, dirá a Jesus: “Meu Filho, voltai vossos ouvidos para ele e ouvi suas palavras. Eu vos peço.”
Em qualquer diz que Te invocar, ouve-me prontamente.
O homem aflito espera que Deus não demore em atendê-lo, pois a aflição é uma dor da qual ele procura escapar. Então o pecador exprime essas belas palavras: “Em qualquer dia que te invocar, ouve-me prontamente”.
Ou seja: “Senhor, ouvi-me e atendei-me com rapidez!”
Plinio Correa De Oliveira (Continua em próximo número.)
1 ) Cf. Sl 68, 3.