Em viagem pela Europa no ano de 1978, um dileto discípulo de Dr. Plinio visitou o famoso “Château de Vincennes”, nos arredores de Paris. De volta ao Brasil, resolveu ele presentear seu mestre com um belo álbum de fotografias tiradas nessa ocasião. Dr. Plinio as comentou em uma de suas conferências.
Antes de iniciarmos a projeção das fotografias do “Château de Vincennes”, seria interessante apresentar alguns dados históricos a respeito do castelo.
O espírito francês possui obras-primas de toda ordem. Uma delas é o modesto “Guide Vert”(1) [Guia Verde], o qual contém interessantes referências sobre o castelo.
Veremos como as sacolejadas do passado deixaram suas cicatrizes no castelo.
Narra-nos o livro:
O Versailles da Idade Média apresenta dois aspectos distintos: um altaneiro e severo “donjon” e um majestoso conjunto do século XVII.
Esta descrição é um primor de resumo e talento.
Continua o Guia:
No século XI, a Coroa adquiriu, da Abadia de Saint Maur, a Floresta de Vincennes. Filipe Augusto lá construiu um castelo. São Luís o enriqueceu com a construção de uma capela. O bom rei proibiu que nessa floresta se caçassem animais, pois ele gostava de encontrá-los durante seus passeios.
Simbolizando a mansidão de um rei cruzado
Apesar de exímio caçador, São Luís IX fez ali o que talvez tenha sido o primeiro parque florestal da Europa: uma larga extensão cercada, onde era proibido caçar. Ele queria ter a alegria de passear pelas belezas do bosque e encontrar os animais, a fim de se entreter e brincar com eles.
Aos pés de um carvalho, o rei recebia, sem o impedimento de qualquer oficial, todos quantos viessem suplicar-lhe justiça.
Este episódio ficou famoso na História: nas estações mais belas do ano, São Luís sentava-se sob um carvalho particularmente frondoso e de seu agrado, para tomar contato com qualquer francês que quisesse vê-lo.
Esta era uma manifestação da benignidade do rei para com todos, especialmente em relação àqueles que tinham mais difícil acesso à sua pessoa. Este carvalho tornou-se símbolo da mansidão deste rei tão majestoso e cheio de glória.
Maison du Roi Soleil…
Mazarino, tornando-se Governador de Vincennes em 1652, fez construir simetricamente dois pavilhões: o do Rei, e o da Rainha. Um ano após o fim dos trabalhos, em 1660, Luís XIV lá passou sua lua de mel.
Entre os mil cargos que Ana d’Áustria, Regente da França, deu ao cúpido Primeiro Ministro Mazarino — homem extraordinariamente capaz, que desenvolveu o absolutismo real em detrimento do feudalismo — está o de Governador do Castelo de Vincennes.
Ele, por sua vez, teve o mau gosto de alterar o estilo do castelo, mas, é preciso dizer, o fez com bom gosto! Quer dizer, introduziu no famoso conjunto arquitetônico medieval duas construções ao estilo de seu tempo: o Pavilhão do Rei e o da Rainha.
Luís XIV, então moço recém-casado, passou seus primeiros tempos de matrimônio com Maria Teresa D’Áustria no Pavilhão do Rei, em Vincennes.
Percebe-se, ao longo dos séculos, uma espécie de chuva de ouro de recordações extraordinárias, que vai se acumulando em Vincennes. Primeiramente, São Luís ali acolhe os humildes e acaricia os animais.
Bem depois, Luís XIV, precedido e seguido por mosqueteiros, chega ao castelo numa carruagem magnífica, trazendo consigo a jovem rainha; ele sai da carruagem, estende a mão à rainha que nela se apóia levemente para descer, os cortesões ali estão para recebê-los, as tropas prestam armas, algum sino toca. O jovem monarca começa a sua vida de casado em Vincennes. Luís XIV estava na sua ascensão e, nesse tempo, era um monarca de vida muito pura — mais tarde, ele se desencaminhou.
Prisão dos ilustres
Desde o início do século XVI até 1784, o “donjon”, onde não moram mais os soberanos, torna-se prisão de Estado.
Tendo os reis deixado de residir no “donjon de Vincennes” — cuja estatura impressionante veremos pelas fotografias que serão projetadas —, este se transforma em prisão do Estado. Entre outros, um prisioneiro muito conhecido foi o Príncipe de Condé, que na batalha de Rocroi jogou seu bastão de marechal no meio das tropas espanholas e disse: “Agora vamos buscá-lo”; com esse artifício, Condé determinou o curso, para ele vitorioso, da batalha que estava indecisa.
Mais uma vez vemos aqui a História se acumular. Isso nos mostra como foi a vida na Europa. Quantas coisas se somaram nas paredes veneráveis dos prédios que duraram séculos!
Belas porcelanas…
Outro fato digno de nota na história do Château de Vincennes é o seguinte:
Em 1738, o castelo transforma-se fortuitamente num atelier industrial. Dois operários, desertores da fábrica de porcelana em Chantilly, lá receberam asilo. Executando os segredos trazidos, eles fabricaram verdadeiros jardins de porcelana.
Naquele tempo, a fabricação de porcelana era um segredo de altíssimo valor, que os missionários jesuítas haviam trazido para a Europa. Quando os ocidentais chegaram à China, naturalmente se encantaram com a porcelana lá existente — a qual é mundialmente famosa — e começaram a comprar peças da mesma e enviá-las por navio aos amigos da Companhia de Jesus, a fim de serem vendidas na Europa para, com o dinheiro, manter as missões etc. E a porcelana chinesa interessou enormemente aos europeus.
Mas não se sabia fabricá-la. Até que um jesuíta, particularmente dotado do dom da sagacidade, de que Santo Inácio foi o padrão e modelo perfeito, conseguiu saber de um chinês o segredo para confeccionar a porcelana. Então, o religioso escreveu a fórmula e a mandou para a Europa, com todas as indicações de qual era o tipo de terra, como esta deveria ser preparada etc.
E em Chantilly, na França, começaram a fabricar a porcelana, porém mantendo o segredo. Certo dia, dois operários propuseram à Corte: “Se quiserem entrar numa combinação conosco, mandem vir tal terra que nós fabricaremos porcelana e ensinaremos o segredo para o rei”.
O monarca foi consultado e concordou. Os operários passaram então a fazer, nos imensos salões de Vincennes, lindas porcelanas que começaram a se escoar.
Como a narração do Guia é muito resumida, não conta como eles saíram de Vincennes. O certo é que fundaram uma das duas fábricas de porcelanas mais famosas da França: a de Sèvres(2) .
Cenário de um crime famoso
Num outro trecho o Guia narra:
Ao lado do fosso percebe-se, à direita, aos pés da Torre da Rainha, uma coluna que lembra o lugar onde foi executado o Duque d’Enghien, Príncipe de Condé(3).
Creio que todos já ouviram falar da execução do Duque de Enghien por Napoleão. Limito-me simplesmente a fazer um resumo.
Ele foi um dos cavaleiros mais brilhantes de seu tempo e o último da estirpe de Condé. Esse príncipe era um obstáculo para a realização dos planos de Bonaparte, pelo seguinte:
Todo o mundo, e talvez o próprio Napoleão, percebia que seu império e sua dinastia não podiam durar muito. E que mais cedo ou mais tarde, pela lei pendular da História, após a França ter chegado até a república, o pêndulo deveria oscilar e voltar, embora não inteiramente, ao ponto de partida que fora a monarquia absoluta e de direito divino do “Ancien Régime”, ou ao menos a uma monarquia temperada, com a mesma dinastia.
Entretanto, quanto aos Bourbons, as possibilidades de se perpetuar a estirpe não eram muito grandes, porque Luís XVIII, o eventual sucessor de Napoleão, era viúvo, não tinha filhos e já estava velho.
E o irmão dele, que lhe sucedeu, Carlos X, tivera um filho, do qual poderia provir uma descendência; mas, sendo viúvo e sexagenário, não era provável que ele tivesse outro filho. Se eventualmente o filho de Carlos X fosse assassinado, o trono passaria ao Duque de Orléans, filho do regicida, Felipe “Egalité”, que era ele mesmo um liberal de quatro costados.
Evidentemente, a transferência do trono para o Duque de Orléans indignaria os monarquistas franceses, que tinham a pior recordação de seu pai. Assim, provavelmente ele não subiria ao trono, mas sim o Duque de Enghien, que era o último príncipe do ramo da família Condé.
Esse homem brilhante, que lutara contra a Revolução na chamada Rue du Prince, foi capturado durante a noite pelas tropas de Napoleão, levado para o Castelo de Vincennes e, depois de um simulacro de julgamento, executado barbaramente à noite, num fosso aberto junto à muralha. Esse crime impressionou enormemente todos os europeus daquele tempo.
Então, há uma coluna indicando o lugar preciso onde esse crime se deu.
Já o século XIX deixou ali mais uma recordação famosa e impregnada de traços de romantismo, porque o Duque de Enghien era secretamente casado com uma princesa da Casa de Rohan. Não sei por que razões seus pais se opunham a esse casamento; por isso as bodas foram celebradas às ocultas.
Quando ele morreu, revelaram-se os documentos e a princesa, Duquesa de Enghien, ficou inconsolável, chorando. Uma viúva jovem, vertendo lágrimas por um príncipe de conto de fadas, executado por um tirano, numa noite de tragédia, dentro de um fosso, foi material para o século XIX, romântico, fazer toda espécie de choradeiras. E, na história do pranto romântico universal, esse local ficou marcado de um modo especial.
Com isso se fecha o ciclo da história do Castelo de Vincennes, assim descrita em linhas muito gerais no “Guide Vert”. Passemos agora a analisar as fotografias.
Continua no próximo número…
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 16/2/1979)
1) Guide Vert Paris. Michelin e Cia. França. 1978.
2) Sèvres, cidade situada às margens do Sena, no subúrbio sudoeste de Paris.
3) Louis Antoine Henri de Bourbon-Condé.