Sabedoria, certeza e contemplação

A existência humana, entre outras coisas, é própria a ser objeto de uma análise que abarque todo o seu conjunto. Nesse sentido, há pessoas que passam pelo jogo da vida e nada compreendem. Outras, prestam demasiada atenção em si mesmas para se inteirar do restante da humanidade. Outras, ainda, embora sem se importarem tanto consigo, não atingem a síntese ideal que seria uma conjugação das melhores disposições com que se tomam os interesses individuais e os coletivos.

Deve haver, portanto, diante da vida, uma noção e um conhecimento que sejam a arquitetura de todas as impressões que o quotidiano humano nos oferece, o qual tem de ser, por isso mesmo, observado e contemplado com sabedoria. Sabedoria e arquitetura estas que nos fazem compreender os supremos valores da vida e, por esse caminho, nos conduzem a conhecer algo a mais da infinita perfeição do Criador que dispôs assim a ordem terrena.

A meu ver, magnífica expressão desse estado de espírito sábio e contemplativo são as esculturas dos profetas de Aleijadinho. Em todas aquelas fisionomias transparece essa visão do conjunto da existência humana, e aqueles olhos grandes, dir-se-ia abertos para um superior conhecimento da vida.

Figuras de varões que nos transmitem a sensação da profunda certeza que os anima, certeza da missão que lhes foi confiada, certeza que os toma por inteiro e que passa pelo temperamento de cada um como o talento de um músico passa através do instrumento que ele toca. Um profeta daqueles, pelo seu porte, seu jeito, sua atitude, é uma orquestra de expressão de uma grande convicção que ressoa como uma sinfonia.

Diante deles, sentimos o nosso próprio ser como que deliciosamente invadido pela sua presença, por essa certeza, essa sabedoria e contemplação que eles exprimem, não para sermos censurados, mas elevados. Nós nos sentimos descansados, animados, afagados e protegidos. Sentimo-nos mais nós mesmos, porque ele está ali, profeta que contempla e compreende a vida. 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências em 18/5/1963 e 17/4/1977)

Revista Dr Plinio 128 (Novembro de 2008)

MODELOS DE HONRA, SÍMBOLOS DA FÉ

Entre as diversas e esplêndidas características da arte medieval, que nunca me sacio de elogiar, há uma espécie de deformação que se reveste de uma seriedade, uma catadura, uma força e uma  presença heráldica verdadeiramente magníficas.

Ora, algo parecido podemos encontrar nos profetas do Aleijadinho.

Em geral, homens feios. Porém, nada existe de mais belo, no Brasil, do que as célebres esculturas desse artista mineiro. São a sua obra-prima, considerada por todos os críticos modernos como filhas de inspiração medieval, embora a Idade Média há tempos já tivesse passado. São peças góticas, estupendas, que poderiam figurar sem demérito ao lado das imagens seculares que ornam as galerias e os nichos das maravilhosas catedrais europeias.

Nesses personagens talhados em pedra-sabão, o Aleijadinho soube exprimir de maneira esplêndida o que deve ser um profeta. E a deformidade deles, como nas melhores produções medievais, não faz senão acentuar a expressão simbólica que o gênio artístico desejou imprimir na sua obra.

Caixas toráxicas largas, pescoços taurinos, pernas um tanto curtas, musculosas e atarracadas, os braços compridos. As cabeças grandes em relação ao corpo, as orelhas avantajadas. Os olhos, igualmente exagerados para o contorno das faces, denotam a magnitude da alma. Porque tê-los desproporcionais para o rosto, assim como a cabeça o é para o corpo, significa possuir tudo quanto é cognoscitivo maior do que o funcional.

Detalhe que ressalta ainda mais a eloquente representatividade das imagens. Por sua vez, o desenho das barbas joga um papel peculiar na composição dessas figuras bíblicas: algumas volumosas, cheias, felpudas; outras, artisticamente talhadas, emoldurando os queixos proeminentes e vigorosos. Estas e aquelas simbolizando de modo extraordinário a força moral desses homens que atravessaram toda sorte de tormentas, de sofrimentos.

E todos aparentam uma saúde de ferro, física e, sobretudo, espiritual. Uma sanidade psíquica absoluta, objetividade completa, pensamento pão, pão, queijo, queijo; rudes e francos, paladinos da verdade sem simplificações nem relativismos. Homens dispostos a dizerem tudo a que foram destinados, ainda que o cumprimento de sua missão implique na luta e no holocausto da própria vida.

Guerreiros dotados de extrema coragem, imbuídos do espírito profético no que este tem de mais elevado. Gestos altamente expressivos, porque tocados por um vento também profético. Na verdade, nunca percebi vento animar tanto a pedra como nos profetas do Aleijadinho. É algo único e fantástico.

Se os olhos são grandes, fitam entretanto um ponto indefinido no horizonte, como o homem que traz a cabeça povoada de subidas cogitações. Contemplativos, acham-se na atitude de quem tirará  dessas reflexões uma invectiva.

Descansam da descompostura que acabaram de passar, e se preparam para a próxima. Instrumentos das recriminações divinas, polêmicos, determinados, movidos por uma superior certeza, nobres, sérios, sublimes. Não há um deles que não seja, também, modelo de honra. Cada qual, a seu tempo, foi um enviado de Deus, com visões místicas, com “flashes” próprios, com todo o direito de transmitir às gentes as mensagens recebidas do Senhor dos senhores. Falavam, proclamavam, e suas vozes reboavam como o som de bronzes tangidos gravemente. Nada neles procura se desviar para outra coisa que não seja a missão de divulgar a palavra divina. Nenhuma de suas virtudes é fingida, nenhuma dissipação em nenhum sentido. Vivem somente para o que foram criados. A honra do profeta é essa retidão integral, essa dignidade excelente, reconhecida pelos povos. Ele incute respeito.

Numa palavra, não conheço na iconografia católica figuras que exprimam tanta fé como esses profetas de Aleijadinho, que rugem um rugido eterno de pedra, hieráticos, imóveis, impassíveis. Figuras postas contra o firmamento, como se raspassem o Céu e tocassem quase em Deus, símbolos de um poder descido do alto.

Daí que não se poderia imaginar lugar mais propício para estarem. Encontram-se ali com uma tal ênfase, constituindo uma espécie de carrilhão em que cada um toca seu sino peculiar, e fazendo ouvir um conjunto que é só deles e de mais ninguém na História, que não se os concebe instalados em outro local.

Eles não ficariam bem dentro de uma igreja, de um templo, por mais colossal que fossem. Não. Dir-se-ia que a abóbada celeste é o único templo proporcional a eles, e tudo atrai para vê-los numa perspectiva do céu, para serem admirados em função das nuvens. Existem para o ar livre, para aquele descampado, ombreando as elegantes palmeiras imperiais que lhes servem de moldura.

Sem dúvida, uma obra-prima de encher a alma! Resta a pergunta: como, na Minas do século XVIII, quando a arte gótica estava mais no seu fundo e na sua desconsideração no mundo civilizado, surge um gênio como o Aleijadinho, apoiado por uma certa equipe de homens de considerável senso artístico, e revive uma Idade Média que, a meu ver, foi a época áurea da arte?

Como explicar que naquele Brasil das colônias se deu essa restauração, antecipando o próprio “renouveau” da Idade Média que aconteceria na Europa do século XIX? Aquela corrente artística então submersa, nas solidões brasílicas recobra vida, pelo indiscutível talento de um aleijado.

E nos fundos do sertão mineiro, as maravilhas medievais renascem, alcançando uma expansão e um florescimento com raro esplendor. Como?

Penso que só há uma resposta possível: foi por uma ação da graça, uma disposição misteriosa da Providência, desejosa, talvez, de fazer luzir em outros panoramas outras tantas belezas artísticas inspiradas pela Igreja — filhas daquelas que levaram a Civilização Cristã aos seus mais rutilantes dias de glória.

 

Plinio Corrêa de Oliveira