O citarista do Espírito Santo

Santo Efrém, Padre da Igreja, dos primeiríssimos séculos do Cristianismo, cantava muito bem, fazendo-se acompanhar de uma cítara, e  compunha versos maravilhosos a respeito de Nossa Senhora, a ponto de ser tido como um Doutor da Mariologia. Seus versos, apesar de simples e acessíveis a todo o povo, tinham tal densidade de poesia, tal beleza e tal riqueza doutrinária, que ele passou para a História da Igreja como o “citarista do Espírito Santo”.

Dir-se-ia que o Espírito Santo não só falava, mas cantava pelos sons harmoniosos de sua laringe e fazia vibrar a graça divina nas almas, ao diapasão da cítara com que Santo Efrém entoava cânticos.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 6/11/1972)

Santo Efrem – O convite de Deus a uma alma inocente

Já assinalamos outras vezes que “Santo do Dia” era o título de uma série de conferências quase diárias dadas durante muitos anos por Dr. Plinio. Em cada ocasião, eram-lhe apresentadas as  biografias dos Santos celebrados na data, e ele escolhia uma delas para comentar. Foi o que ocorreu naquela noite de sextafeira, há cerca de três décadas…

 

A festa de hoje é de Santo Efrém, da Síria, diácono, confessor e Doutor da Igreja. Chamado “cítara do Espírito Santo”, grande devoto da Virgem, lutou contra os hereges no século IV. Estamos também no terceiro dia da novena do Sagrado Coração de Jesus. Tenho ainda aqui a ficha da bem-aventurada Osana de Mântua.

Qual delas comentar? Tenho certa preferência por esta última, porque nunca ouvi falar dessa bem-aventurada. Vejamos o que diz o autor: Osana Andreazzi, nascida em Mântua em 17 de Janeiro  de 1449, num esplendoroso palácio, pertencia a nobilíssima família vinda da Hungria. Com seis anos, um dia passeava sozinha pelas margens do rio Pó, quando ouviu uma voz clara, que lhe dizia  com firmeza: “A vida e a morte consistem em amar a Deus”. Extasiada, viu-se erguida do solo por um grande e belo Anjo. “Para entrar no Céu é necess ário que a Deus muito ames. Ama-o.

Ele a tudo criou para que O amem”, disse o Anjo.

Diante de Deus, então, ela rezou: “Ó Deus, Deus meu, por amor Vós me criastes para Vos amar e ser a Vós reconhecida por vossas imensas e inumeráveis bondades. Ó meu Deus e Senhor! inclinai os ouvidos de vossa bondade e escutai um pouco o meu pedido, não desdenheis minha intenção e meu santo desejo. Rezo, Senhor, porque tenho receio de não Vos amar e de não Vos conhecer  como deveis ser conhecido. Eis que, ó Bondade Eterna, estou disposta no meu espírito a só tomar a Vós. Ó meu doce Senhor! eu queria encontrar a maneira de, com atenção, poder abraçar-Vos a Vós só. Por isso rogo-Vos, iluminai-me com o fogo do Espírito Santo, ensinai-me, estabelecei-me de tal modo que perfeitamente possa amar-Vos e só a Vós, meu Deus, e de coração perfeito possa servir-Vos”.

Um grande desejo de ser teóloga invadiua avassaladoramente. Mas o pai achava que aquilo não convinha a uma criança. Proibiu-lhe. Osana, então, recorreu à oração, e a própria Mãe de Deus veio  ensinar-lhe, ministrando-lhe lições.

E a bem-aventurada dominou o latim, chegando a um sólido conhecimento da Escritura Sagrada, e podendo até citar Padres da Igreja. A proibição paterna a pouco e pouco se atenuou, caindo por terra. Faleceu com 56 anos, em 1505. Seu corpo, intacto depois de 400 anos, achase atualmente na catedral da cidade.

Aí temos o esplendor e, ao mesmo tempo, a dificuldade de se fazer idéia do que seja um santo através de narrações desse tipo. Conta um fato realmente admirável da vida dela, que se passou na infância. Depois informa que ela ficou teóloga, mas não nos diz quais foram suas cogitações, o que ela estudou, que pensamentos externou, nada! Ficase sabendo depois que ela morreu e que o corpo não se putrefez. Com esses escassos elementos, é muito árduo formar a idéia de um todo. Temos apenas fulgurações dentro das penumbras de uma vida cujo unum se gostaria de conhecer,  para se ter uma noção geral do que ela fez.

Por exemplo, se casou-se ou não; se entrou para uma Ordem religiosa; se foi perseguida por amor de Deus; se teve lutas com hereges ou com autoridades temporais simoníacas; se teve provações  extraordinárias; se teve consolações, etc. Nada disso nos é possível saber. Em primeiro lugar, porque uma simples ficha não pode contar tudo isso. De outro lado, é muito possível que a biografia  não conte mais do que isso. É-me, pois, difícil apresentar um comentário que, de fato, atinja o seu fim, que é de proporcionar a todos uma vontade séria, não uma veleidade, mas um firme  propósito de nos tornarmos santos.

Porém, os fatos aqui selecionados são muito bonitos e se prestam a algumas considerações que podem nos interessar.

Uma pequena teóloga que na sua inocência começa a falar

Sabemos que os estudos de Teologia e Filosofia, por sua grande profundidade, exigem um exercício muito grande da razão. É verdade que a Teologia é baseada em dados da Fé, todavia é uma elucubração racional a respeito desses dados, exigindo uma profunda aplicação da razão. São, portanto, estudos que convêm a pessoas maduras.

Ora, deparamos com uma situação curiosa: a Providência decide estimular a esses estudos uma menina de apenas 5 ou 6 anos de idade, que está passeando às margens do lindíssimo rio Pó (aliás,  tive ocasião de percorrê-lo longamente entre Milão e Veneza, encantando-me com as belezas dos panoramas). Enquanto ela caminhava, apareceu diante dela um Anjo, um ser magnífico, que lhe fez a seguinte comunicação: “Para entrar no Céu é preciso que a Deus muito se ame.

Veja: todas as coisas cantam-Lhe a glória e O proclamam aos homens. Ame-O, ame tudo o que criou, para que O amem”. O sentido das palavras é: Ele criou tudo e deve ser amado.

Por que a aparição de um Anjo para dizer essas coisas? Qual o Anjo que teria dito isso? Qual o modo de proceder do Anjo sobre a alma da menina? O Anjo tinha a menina provavelmente colocada  num panorama bonito e impressionada — como acontece na infância e na inocência primeira — com as belezas da natureza. Mas é evidente que quando o Anjo se revelou a ela, a mais bela coisa que  Osana tinha diante dos olhos era ele, um ser de uma beleza toda espiritual e esplendorosa, a quem ela teve a graça de conhecer e de contemplar face a face.

Quando o Anjo disse: “Veja como todas as coisas que Deus criou são belas; ame-as”, naturalmente sabia ser ele próprio a maior beleza que a menina já tinha visto. E ao afirmar: “Deus criou todas as  coisas, todas as coisas refletem a  Deus, ame-O”, ele queria significar sobretudo o seguinte: “Eu fui criado por Deus, eu reflito a Deus de um modo magnífico, ame a Deus contemplando a mim”.

Deus fez a essa menina um convite enfático, arrebatador, para que ela, através da visão do Anjo, compreendesse a magnificência do Criador e de toda a ordem da criação, que fica fora do alcance  dos nossos sentidos. E com isso convidá-la a transpor-se além de tudo quanto é sensível, a situar o espírito naquilo que tem muito mais densidade de ser, que são as criaturas meramente  espirituais e, infinitamente acima delas, Nosso Senhor.

Qual era a intenção de Deus? Era fazer dela, já nessa primeira apresentação, uma pessoa destinada à reflexão. Porque nas palavras do Anjo o que está dito é o seguinte: Todas as coisas refletem a  Deus. Faça um esforço de inteligência para, através desse reflexo, conhecê-Lo.

Aí está indicado o caminho de sua santificação. Aí está indicado o prêmio: se um Anjo é tão belo, quanto mais belo será Deus Nosso Senhor! Aplique-se à meditação.

Neste modo de dizer do Anjo, é tão pronunciado o chamado para a Teologia, que ela responde com uma oração que já é um verdadeiro tratadinho teológico. E era uma menina de seus 6 anos de  idade! É uma teologazinha que na sua inocência começa a falar.

Como se desenvolveu o espírito da bemaventurada?

Vamos imaginar a cena: o Rio Pó que deflui tranqüilo e luminoso, um barranco acima do rio, um jardim. A ficha biográfica nos diz que ela era de uma família nobilíssima. Naquele tempo as famílias nobres em geral eram ricas e, o mais das vezes, as famílias ricas eram nobres. Podemos conceber, portanto, uma menina rica e vestida como se trajavam as meninas naquele tempo.

Ora, como se vestia uma menina daquele tempo? Não era com o que se chama de traje de criança em nossos dias. Era com uma miniatura do traje das pessoas adultas. Temos, portanto, de  imaginá- la vestida como uma mulherzinha, com saia comprida, com cintura, cabelo penteado de um certo modo e, possivelmente, com uma flor na mão. E temos de figurar uma criança assim —  verdadeira boneca de se expor em vitrine — que de repente tem um êxtase. Vê um Anjo, e os que estão em torno dela nada vêem. E, diante dos circunstantes arrebatados, a menina, com o timbre delicado da voz feminina, acentuado pelo timbre infantil, com os fulgores da inocência primeva, sai com todo esse tratadinho de oração.

O que se passou nessa criança para ela se ter iluminado de tal maneira? Qual foi esse convite da graça para ela? O que aconteceu para que ela fizesse algo que uma criança não consegue fazer, que é raciocinar tão bem e com essa segurança?

Mais. Já nessa hora ela disse uma palavra que é o seu ecce ancila Domini: “Eu aceito, vou contemplar a Deus a vida inteira. Vou contemplá-Lo enquanto Criador das coisas que existem; vou contemplá-Lo enquanto presidindo e conservando a ordem dessa Criação. E essa contemplação, eu a farei como a finalidade de minha vida”.

Podemos imaginar o que seria a infância de uma menina assim. Não era uma doutorazinha, a toda hora dardejando uma lição, mas brincava com boneca, com casinha, de costura, etc., enquanto
se entregava a reflexões. Ajudada pela graça, parava e dizia alguma coisa que havia excogitado. É assim que devemos supor o desenvolvimento normal do espírito dela, assim como foi o do Menino Jesus — que teve verdadeiramente infância, mas era Ele! —ou como terá sido com Nossa Senhora.

Podemos pensar, também, nas pessoas piedosas moradoras naquela casa, vivendo sob o influxo do ambiente medieval, encantadas com a menina e considerando que ela não era qualquer uma:  Deus, por ela, queria fazer maravilhas.

Tendo Nossa Senhora como Mestra

Mas, sente-se na descrição o embate do mundanismo. A menina quis ser teóloga, e o pai não o permitiu. Compreende- se que ele não tenha querido. Entrevê-se que desejava para ela uma carreira  terrena e não a de teóloga, que era raríssima em se tratando de mulher.

Ele almejava para a filha uma carreira de grande dama, e chegou a proibir o  curso de teologia para uma menina tão fortemente chamada por Deus. Ele tinha  um milagre diante de si, mas disse não a Deus. 

Vemos a saída que Deus deu ao caso: “Está bom, não pode estudar teologia? Nossa Senhora ensinará a ela”. É um curso. Esse dado é muito encantador. A ficha é muito categórica: “A própria Mãe de  Deus veio ensinar-lhe, ministrando-lhe lições. Em pouco tempo a bem-aventurada dominou o latim, chegando a um sólido conhecimento da Escritura Sagrada, e podendo até citar Padres da  Igreja”.

Quer dizer, Nossa Senhora deu a ela uma interpretação da Sagrada Escritura. Podemos imaginá-la já mocinha e, de vez em quando, Nossa Senhora que aparece e lhe ensina alguma coisa da Bíblia,  á lições de teologia e, provavelmente, o próprio método de pensar da teologia.

E ela se torna assim uma pesquisadora autorizada e sólida da Escritura Sagrada. 

Vemos aqui a vitória dos desígnios da Providência e uma luz que se acende na Igreja: não mais a do pensador, mas a da pensadora. Exceção legítima, válida, magnífica, que mostra não ser por  inferioridade que a mulher não é pensadora, mas por uma vocação adequada à sua missão na Terra.

Mostra também que o Espírito sopra onde quer. Creio que todos sentimos a mesma curiosidade: não haverá um livro da bem-aventurada Osana de Mântua que tenha as meditações dela sobre as  Escrituras? E não constarão nele também as meditações que Nossa Senhora lhe ensinou? Pois Nossa Senhora não se limitou a revelar. Ensinou, adestrou o exercício da razão para conhecer as verdades que deveria conhecer.

Seria muito bonito colocar, na entrada de uma universidade católica, um grupo de esculturas, tendo Nossa Senhora em pé, ensinando, e a Bem-Aventurada Osana sentada junto ao pupitre, não na  mera contemplação, mas escrevendo e estudando com seriedade. Até mais: eu me atreveria a pô-la fazendo uma pergunta, e Nossa Senhora respondendo. Aí o fato dessa relação de vida mística se  tornaria mais claro.

Alguém me dirá: “Essas são considera ções muito sumárias sobre uma vida que se gostaria de conhecer mais a fundo.”

Ora, o “Santo do Dia” tem a finalidade, não de dar a conhecer uma vida, mas de provocar o desejo de conhecê-la. Se obtive esse resultado, considero esta conferência bem empregada.

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 38 (Maio de 2001)

Um encontro com o “Beau Dieu d’Amiens”

Acredito que ao longo de sua existência neste mundo, tem o homem incontáveis oportunidades de perceber a presença mais adorável, perfeita e sublime que imaginar se possa — a de Nosso Senhor Jesus Cristo, manifestada pelas ações da graça em nossa alma, quando meditamos em sua infinita grandeza, ou quando nos sentimos tocados por essa ou aquela representação artística de seu sagrado semblante.

Nesse sentido, sempre me comprouve de modo particular uma imagem de Nosso Senhor que se encontra no lado externo da famosa e linda catedral francesa de Amiens. Essa escultura O retrata numa tão majestosa e bondosa beleza, que ela passou a ser chamada de “Le Beau Dieu d’Amiens”: o belo Deus da cidade de Amiens.

Imaginemos quais sentimentos povoariam nosso coração se, enquanto passeássemos por um campo, de repente víssemos andando em sentido contrário o “Beau Dieu d’Amiens”!

Poderíamos então contemplá-Lo na nobreza do seu porte, no ereto de seu corpo, na harmonia de seus traços, na delicadeza de sua atitude, no que Ele possui de régio — pois a imagem na catedral é a de um Rei em toda a sua magnitude — e de hierático. Trata-se de uma figura que, a bem dizer, participa da heráldica, de tal maneira transparece nela o caráter sacral, as mãos em atitude de quem abençoa e ensina, estreitando ao peito o livro do Santo Evangelho.

Admiraríamos a luminosa cor de sua túnica, de seu manto, a formosura de sua face, emoldurada pelos cabelos e a barba igualmente formosos.

Caminhamos mais alguns passos, e Ele está à nossa frente. Antes mesmo de nos darmos conta, caímos genuflexos, tanto nos envolveria a noção da superioridade, da perfeição e da bondade infinitas de Jesus! Essa ideia nos faz dobrar os joelhos e nos aconchegarmos a Ele, como se Lhe disséssemos: “Contra todas as tempestades sois Vós, Senhor, o meu amparo. Protegei-me!”

Podemos crer que Nosso Senhor abandonaria a atitude hierática que a imagem de Amiens nos apresenta, e sorriria para nós. Essa nobreza divina, posta em sorriso, em quantas delicadezas se desfaz? Em quanta amenidade transluz? Em quanta clemência? E Ele nos pergunta: “Filho, o que queres?”

Os olhos profundos de Jesus — os quais imaginamos castanhos claros — penetram nos nossos, e nós, pelo olhar d’Ele, percebemos que o Mestre nos conhece melhor do que nós mesmos, nos ama de um amor acima de qualquer predileção humana, e sabe de todas as nossas necessidades, para todas é Ele próprio o remédio.

Jesus nos indaga, pois, sobre o nosso desejo. E teríamos vontade de Lhe responder:
— Senhor, quero tanta coisa, que nem sei dizer! Porém, Vós sabeis tudo quanto anelo. Mais: sabeis de tudo quanto preciso. Pois em meio a tantas volições minhas, quantas vezes estão ausentes as coisas de que realmente necessito, e quantas se atêm a coisas que me são supérfluas! Mas, Vós, Sabedoria eterna e encarnada, conheceis tudo que verdadeiramente me importa. Senhor, tende pena de mim!”

Um desejo mais elevado nasce em nossa alma, o de estar sempre com Ele; que o “Beau Dieu” nunca nos abandone. E quando começamos a balbuciar uma súplica nesse sentido, um fenômeno curioso, maravilhoso se opera: Jesus desaparece aos nossos olhos, e temos a impressão viva de que Ele está em nós! Misteriosamente, Ele habita em nosso interior, como se morasse numa casa, e ali, dentro de nossa alma, reza ao Padre Eterno por nós, cumula-nos de graças, favores, dons que nem sabemos descrever.

Tomados por sentimentos indizíveis, a Ele nos dirigimos:
“Senhor, eu estava certo de que me daríeis algo superior a todos os meus desejos. Concedeste-me a presença eucarística. Dentro de mim, realizais maravilhas e produzis benefícios dos quais só terei completa noção no Céu, quando, pelas mãos misericordiosas de vossa Mãe Santíssima, para lá me levardes e eu vos contemplar face a face. Senhor, para Vós, a minha gratidão inteira!”
Eis como poderíamos conceber um encontro com o “Beau Dieu d’Amiens”, em algum recanto daqueles agradáveis campos franceses…