São João Batista de la Salle e o sofrimento pelo autêntico apostolado

“O verdadeiro apóstolo tem de sofrer e dar sangue de alma pela obra que deseja realizar” — afirma Dr. Plinio, ao comentar os mais salientes aspectos da vida de São João Batista de la Salle, cujos esforços e padecimentos para estabelecer o ensino religioso nas escolas primárias, redundaram em preciosos frutos de santidade e de virtude para católicos do mundo inteiro.

 

Sobre a vida de São João Batista de la Salle nos são apresentados alguns dados biográficos, colhidos no livro Saints de France (Santos da França), de Henri Pourrat.

Organizador do ensino primário católico gratuito

São João Batista nasceu em Reims em 1651, de uma família de magistrados. Menino ainda, em meio a uma festa, sentiu uma náusea profunda de tudo quanto o rodeava. Dirigiu‑se a uma prima, que só conseguiu consolá‑lo, lendo para ele uma vida dos Santos. Com 17 anos, tornou‑se cônego, colocando‑se sob a direção de M. Tronson, conhecido como excelente diretor espiritual. Perdendo seus pais, precisou cuidar de seus irmãos.

Nesse época, em Rouen, uma senhora fundara uma escola gratuita para meninas órfãs. Em Reims, quiseram imitar esse exemplo, mas para os meninos. M. Nyel, encarregado de iniciar as suas funções de educador nessa cidade, foi hospedado por São João Batista, que escreveu então:“Se, [antes de abraçar minha vocação], eu soubesse que a simples caridade que eu tomava para com os mestres de escola, transformar‑se‑ia no dever de morar com eles, eu os teria abandonado. Porque como eu colocava abaixo de meus criados as pessoas que trabalhavam em escolas, o único pensamento de que seria obrigado a viver com eles me pareceria insuportável”.

E assim começou a missão de São João Batista. A organização do ensino primário católico gratuito, e dos Irmãos das Escolas Cristãs.

Sofrimentos e injúrias

E com isso, seus sofrimentos. Sua cidade natal, seus parentes, puseram‑se contra ele. Escrevendo suas regras para seus irmãos, quis que vivessem confiados na Providência. Seus companheiros murmuraram que isso era fácil para ele, cônego. Abandonou então a sua posição e distribuiu seus bens. Os discípulos murmuraram agora ser crime distribuir bens senão entre eles mesmos.

Organizado o Instituto e as escolas, começaram as perseguições dos mestres‑leigos. Seu hábito simples mereceu‑lhe vaias na rua e a injúria de lhe lançarem lama no rosto.

Amarguras até “entrar na terra prometida dos eleitos”

Mais tarde, difundindo a comunhão freqüente, e recebendo cheio de alegria e submissão a bula “Unigenitus”, João Batista é atacado pelos jansenistas, e abandonado pelos próprios irmãos. Idoso e alquebrado por suas austeridades, em 1717, la Salle pensa em descansar no noviciado de Saint Yon, mas o padre que o serve em suas doenças, o maltrata. E dois dias antes de sua morte, em suas querelas religiosas, o arcebispo de Rouen tira‑lhe todos os poderes, como a um padre indigno.

“Espere — diz João Batista com um sorriso — que logo serei libertado do Egito, para ser introduzido na verdadeira terra prometida dos eleitos”. E ele conseguiu isso, na Sexta‑Feira Santa de 1719.

Relaxamento do empenho apostólico

Para bem situarmos a pessoa de São João Batista de la Salle em meio às vicissitudes por ele vividas, devemos considerar que, naquela época, em virtude das guerras de religião — muito exacerbadas na França — entre protestantes e católicos, que desorganizaram profundamente a estrutura eclesiástica da Igreja Católica, de um lado; de outro, em virtude do fato de que os efeitos salutares da Contra‑ Reforma haviam passado, estava se reintroduzindo nos fiéis, e também no clero, um grave relaxamento de costumes e de empenho apostólico.

Como resultado dessa tibieza, procurava-se muito o apostolado junto aos mais ricos, aos nobres, às pessoas importantes da corte, aos magistrados, enfim, às pessoas que, a qualquer título, tivessem um situação social. Em contrapartida, desdenhava‑se o apostolado junto aos pobres e, especialmente, os meninos carentes. Noutros termos, favorecia-se antes as relações que pudessem trazer vantagens, com detrimento para a gente desprovida de recursos.

Resultado, imensa quantidade de crianças do povo crescia sem ter formação ou ensino religioso.

À procura dos abandonados

Ora, São João Batista de la Salle nascera numa família de magistrados e, portanto, de certa categoria. Além disso, tornou-se cônego, e os cônegos naquele tempo possuíam rendas. Poderia ele, portanto, seguir o movimento geral e candidatar‑se com seu título de cônego para frequentar meios mais gabaritados que os dele. Poderia almejar uma boa carreira eclesiástica, eventualmente como bispo, talvez cardeal. Entretanto, São João Batista de la Salle segue uma orientação diversa.

Pessoa modelar que era, abnegado, desinteressado dos bens desse mundo, vai procurar aqueles que estão sendo abandonados, e constituiu uma congregação religiosa de irmãos leigos, especialmente destinados a ensinar a religião para as crianças.

Catequista primoroso

Há outro aspecto que merece ainda mais nossa consideração. São João Batista de la Salle foi um exímio professor de catecismo, e desempenhou essa função santamente, ou seja, perfeitamente. Existem modos de lecionar o catecismo em nível primário, de maneira que se marque o rumo da alma para a vida inteira. E pessoas há que se mantiveram firmes na virtude e no ideal católico, ao longo de toda a sua existência, por causa de uma catequese bem dada. São João Batista de la Salle foi desses primorosos catequistas, ensinando os fundamentos do catolicismo com toda a atenção, o recolhimento e a influência que pode haver na lição de catecismo proferida por um santo.

Mas, fez ele coisa muito melhor. Não apenas deu aulas, como fundou uma congregação religiosa voltada para a catequese no ensino primário. Ou seja, suscitou vocações de homens que deixaram o mundo para se consagrar exclusivamente ao ensino do catecismo. Portanto, milhares de pessoas que, desde aquela época, têm passado a maior parte de suas vidas nessa nobre tarefa.

Admirável baluarte de Contra-Revolução

A congregação de São João Batista de la Salle se estendeu por inúmeros países e, ainda hoje, é uma das pujantes instituições da Igreja Católica, tornando-se a esse título um admirável baluarte de Contra‑Revolução.

Digna de todo louvor é a pessoa que realiza de modo altíssimo aquilo a que foi chamada. São João Batista de la Salle é uma delas. Esforçou-se, empenhou-se, obteve êxito no seu apostolado. Sua congregação prosperou e fez o bem pelo mundo afora. Essa é a linha mestra do apostolado dele. Um homem chamado por Deus, atendeu ao apelo divino e realizou sua vocação.

Sofrimentos e contrariedades

Agora, em torno dessa linha mestra, de um traçado límpido como um canal, aparecem as sinuosidades dos sofrimentos, das dificuldades, das oposições que ele encontrou à sua frente. Cumpre tê-las presente, para se contemplar, na sua verdadeira perspectiva, a vida e a obra de São João Batista de la Salle. É bela a luta que ele teve de enfrentar contra tantas incompreensões, das quais as mais dolorosas vieram da parte dos seus próximos.

Uns se arrepiaram diante de um quotidiano confiado apenas à Providência, sem rendas nem patrimônios garantidos: “O senhor é cônego, tem bom ordenado, é fácil confiar na Providência quando, todos os meses, cai um montante na sua bolsa. Mas, para nós, coitados, onde está o nosso dinheiro? Queremos patrimônio!”

São João Batista de la Salle renuncia ao seus próprios bens, e a reclamação passa a ser outra. Ele diz:

— Pronto. Estou pobre como vocês.

— Que loucura! Dispensar esse dinheiro! Era só o que tínhamos! É um crime!

Ou seja, aqueles mesmos que deviam apoiá-lo e ajudá-lo na sua obra, não compreendiam todo o alcance do que ele desejava fazer. Muito lhe terá custado passar por essas adversidades, até que os horizontes se clareassem e seus seguidores se pusessem à altura do santo.

Outra contrariedade a vencer: tornar-se professor primário. Percebe-se pela narração que ele, em virtude da formação que recebera na família, não tinha em grande conta a figura de mestre-escola, “colocando-a abaixo de seus criados”. A Providência bate à porta de sua alma e lhe chama: “Meu filho, convido-o para ser professor primário e catequista”. Sem hesitação, ele deixa as honrarias e antigos hábitos, aceita o chamado e passa a viver no meio dos professores primários. Pode-se bem conjecturar que São João Batista esperasse encontrar, entre esses últimos, uma acolhida amável e um trato afetuoso. Não! Mais incompreensões, vistas limitadas, estupidezes.

Regou com o próprio sangue a árvore de sua obra

Ele adota uma vestimenta muito simples, para indicar a modéstia da profissão e das suas condições. Em lugar de respeito, as pessoas o vaiam na rua e chegam a jogar-lhe lama no rosto. Para onde se voltasse, encontrava ele recusa e maus tratos. Apesar de tudo, sua obra caminhava e prosperava.

Quer dizer, a Providência quis que ele sofresse tanto para, com os méritos dos seus padecimentos, com seu sangue, regar a semente que lhe fora confiada plantar e fazer vicejar.

Permitam-me chamar a atenção para essa regra da qual não se esquiva nenhuma obra apostólica: o apóstolo autêntico, ou sofre e dá o sangue de alma — mais dolorido e precioso que o do corpo — pelo que deseja realizar, ou absolutamente não é apóstolo.

Todo apóstolo tem de sofrer. E uma das suas aflições mais pungentes é a de se sentir, de um lado, chamado a empreender uma obra, e, de outro, perceber as ondas contrárias que parecem tornar sem sentido o chamado que recebeu. Essa coarctação da vocação, esse enfrentar obstáculos que parecem opor‑se à via do Espírito Santo, constitui uma das dilacerações mais penosas que uma alma pode sofrer.

De maneira que São João Batista de la Salle agiu como verdadeiro homem de Deus, suportando todas essas contrariedades. Por fim, a morte o libertou de tudo, e ele encontrou a sua coroa no Paraíso.

A nós cabe admirar e imitar esse modelo de santidade, de confiança e de resolução que levou a bom termo a obra para a qual a Providência o suscitou. Obra cujos frutos enriquecem e torna mais digna de nosso amor a Igreja Católica Apostólica Romana.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 15/5/1971)