Santo Agostinho – Águia de Hipona

A águia, no momento em que está levantando seu voo, é muito bonita.

Porém, ainda mais belo é o pensamento humano, quando expresso de tal modo que se possa perceber o seu voo. Assim é Santo Agostinho: em seus ímpetos de alma, mostra um voo incomparável.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

São José – Modelo de castidade e de força

Para se formar uma ligeira ideia de quem foi São José, dever-se-ia tomar a Divina Face do Santo Sudário de Turim e deduzir, à maneira de suposição, a fisionomia moral do homem escolhido para ser o pai adotivo de Quem tem aquele rosto sagrado, do homem que foi o esposo da Mãe d’Ele, Aquela que era a sede da Sabedoria e o espelho da  Justiça.

Pai do Leão de Judá e consorte de Nossa Senhora, São José teria de ser um modelo de fisionomia sapiencial, modelo de castidade e de força. Um varão de santidade  inimaginável, a quem coube a sublime missão de governar o Filho de Deus e a Santíssima Virgem.

Plinio Corrêa de Oliveira

São José

Depois de Maria Santíssima, São José foi o mais elevado expoente de virtudes da humanidade. Brilha nele a chama da caridade. Um intenso amor de Deus, uma  espiritualidade e uma vida interior admiráveis fazem de sua alma objeto da complacência da Santíssima Trindade.

Este homem humilde foi chamado a participar de acontecimentos dos quais decorreram os mais notáveis fatos da história do mundo. Pela sua admirável correspondência à graça, São José colaborou de modo eminente no plano divino da Redenção e, desse modo, é merecedor de grande parcela da glória que, legitimamente, cabe ao Divino  Salvador, pela imensidade de benefícios com que nos cumulou.

Plinio Corrêa de Oliveira

Santo Eulógio – Lutou como um leão

Em todas as perseguições sofridas pela Igreja, existiram duas correntes entre os católicos: a do heroísmo e da acomodação. Santo Eulógio, mártir, lutou valentemente contra os acomodatícios, tendo uma forma de coragem mais meritória do que a própria coragem do martírio.

 

A respeito de Santo Eulógio, diz o Martirológio Romano:
Santo Eulógio foi presbítero e mártir, e na perseguição dos sarracenos foi açoitado, esbofeteado e degolado à espada, em consequência de sua intrépida e gloriosa confissão de Cristo. Foi quem descreveu o martírio de vários santos de Córdoba, durante esta cruel perseguição. Século IX.

Perseguido pelos muçulmanos e pelos cristãos acomodados

Em Rohrbacher(1) encontram-se os seguintes dados biográficos sobre este Santo:
No ano de 850, desencadeou-se em Córdoba violenta perseguição muçulmana contra os cristãos. Dentre as várias vítimas destaca-se o sacerdote Eulógio, pertencente a uma das famílias mais consideradas da cidade, e que escreveu os combates gloriosos daqueles que morreram pela fé. Será o defensor de vários cristãos que se apresentaram voluntariamente ao martírio, e por isto foram criticados como temerários.

Os muçulmanos, espantados de ver tantos cristãos correr ao martírio, temeram uma revolta e o fim de seu domínio. O califa Abdéramo reuniu os conselheiros e ficou resolvido que prenderiam ou matariam quem quer que falasse contra o profeta.

Os cristãos então se esconderam e vários fugiram, durante a noite, disfarçados e mudando, muitas vezes, de esconderijo. Outros, não querendo fugir nem esconder-se, renunciaram a Jesus Cristo e perverteram os outros.

Vários, tanto sacerdotes como leigos, que antes louvavam a constância dos mártires, mudaram de opinião e passaram a tratá-los de indiscretos, alegando mesmo a autoridade da Escritura para sustentar suas opiniões.

Estes, que desde o começo desaprovaram o comportamento dos mártires, queixavam-se amargamente de Santo Eulógio e de outros sacerdotes, os quais, encorajando-os, haviam atraído a perseguição.

O califa fez reunir em Córdoba os metropolitanos de diversas províncias e estabeleceu-se um concílio para acharem um meio de apaziguarem os infiéis. Na presença dos bispos, um escrivão riquíssimo, cristão, mas que tinha medo de perder o que possuía, atacou rijamente o sacerdote Eulógio. Ele havia sempre censurado tais mártires e pressionava os bispos a pronunciarem um anátema contra os que quisessem imitá-los.

Por fim, o concílio publicou um decreto que proibia dali em diante que alguém se oferecesse ao martírio. Mas em termos alegóricos e ambíguos, segundo o estilo da época, de sorte que servia para contentar o califa e o povo muçulmano, sem todavia censurar os mártires, quando se penetrava o sentido das palavras do decreto.

Santo Eulógio não aprovava tal dissimulação. Lutou contra ela durante muito tempo, duramente perseguido pelos muçulmanos, mas também pelos cristãos acomodados.

Finalmente, firme na defesa dos mártires voluntários — no que teria um fiel aliado, séculos mais tarde, na figura de São Francisco de Sales —, foi decapitado no ano de 859.

Um problema moral

Havia aí dois problemas: o moral e o político.

Antes de considerar o problema moral, analisemos uma situação psicológica.

Para muitas pessoas é um tormento insuportável passar uma vida de corre-corre e de foge-foge. É-lhes muito duro estar de um lado para outro, fugindo da morte que os espreita. É-lhes mais suave — nas horas de maior dificuldade e quando têm coragem — se apresentarem às autoridades e dizerem que são mesmo cristãos, e assim resolver o caso.

Essa situação psicológica, que em última análise é compreensível, traz consigo um problema moral: ou a pessoa não se defende com todas as possibilidades que tem, ou até se apresenta à autoridade que vai matá-la. Isso não constitui um suicídio?

É uma questão moral que se compreende.

Santo Eulógio era de opinião — assim como depois São Francisco de Sales — que isto não constitui suicídio, e que o modo de proceder dos católicos que estavam neste caso era correto. Por causa disso, vários católicos se apresentaram ao martírio e foram mortos. E isto induziu o sultão de Córdoba a perceber que o número de católicos residentes nessa cidade ainda era muito grande, e a desejar, portanto, exterminá-los.

Essa atitude feroz do sultão teria sido então, em parte, desencadeada por causa do procedimento de Santo Eulógio e dos católicos radicais.

E um problema político

Aparece, então, o problema político. A Espanha fora, no tempo dos visigodos, uma nação católica, e a massa da população espanhola continuava católica. Havia uma grande quantidade de mouros ali residentes, mas também um número enorme de católicos, e era até tolerada a Religião católica. Tolerada, naturalmente, com a condição tácita que todas as tolerâncias impõem, e que é a seguinte: a não permissão de que os católicos empreendessem uma ação muito vivaz. E como consequência, os bispos seriam acomodados, tolerantes e dispostos a aceitar tudo, de maneira tal que guiassem os católicos numa política de submissão e de capitulação, a qual ao longo dos decênios haveria de produzir uma debilitação, e quem sabe até um eventual desaparecimento da Fé em terras de Córdoba.

À vista da multiplicação dos católicos que se apresentavam para o martírio, as autoridades maometanas resolveram convocar um concílio, para que este concílio de bispos acomodados condenasse os católicos vigorosos e, pela voz dos bispos, os bons ficassem desmoralizados.

Santo Eulógio certamente tinha muito maior facilidade em pregar contra Maomé do que contra os bispos acomodados, que o desmoralizariam. Realizou-se o concílio, e um escrivão, que era muito rico — em geral os homens muito ricos não querem ouvir falar em morrer e nem em martírio —, fez um discurso em que acusava Santo Eulógio e seus companheiros. Terminado o discurso, o concílio condenou os acusados. Mas esta condenação evidentemente era falsa, não tinha fundamento, e Santo Eulógio continuou valentemente a sustentar seu ponto de vista. Tal foi sua intrepidez, que acabou ele sendo decapitado, morrendo mártir.

Duas correntes: a do heroísmo e a da acomodação

Qual a lição que devemos tirar daí? Que em todas as épocas da Igreja, e em todas as perseguições que ela sofreu, existem duas correntes: a que quer ser fiel, e a corrente acomodatícia, daqueles que preferem um negócio qualquer com o qual a Fé sofra prejuízos, mas que eles possam morrer tranquilamente nas suas camas, levando uma vida tanto quanto possível agradável.

Existem, portanto, a corrente do heroísmo e a corrente da acomodação, do pacto, da traição.

Há católicos, por exemplo, que dentro do mundo revolucionário de hoje querem precisamente uma acomodação, em vez da luta contra o espírito do mundo.

Santo Eulógio lutou como um leão e passou pela dura provação de ser condenado pelo episcopado. Pode-se imaginar quanto isto deve doer na alma de um Santo! Entretanto, ele soube resistir também a isto, e nos deu um exemplo de que devemos amar tanto a Igreja e as instituições eclesiásticas, que estejamos dispostos a sofrer, por amor e fidelidade a elas, a pior das coisas, que é a oposição, e eventualmente até a condenação de autoridades eclesiásticas acomodadas as quais combatem, dentro da Igreja, o filão áureo do heroísmo e da dedicação total.

Devemos pedir a Santo Eulógio esta forma especial de coragem, muito mais meritória do que a própria coragem do martírio.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/3/1967)

 

1) Cf. ROHRBACHER, René François. Histoire Universelle de l’Église Catholique. 3ª ed. Vol. 12. Paris: Gaume Fréres, Libraires-éditeurs, 1857. p. 40, 52, 53, 233 e 242.

Fundador da Ordem de Cister

Santo Estêvão Harding, juntamente com dois outros bem-aventurados, fundou a Ordem de Cister como reação contra a decadência da Ordem dos beneditinos. Cister teve um enorme progresso com a entrada em suas fileiras de São Bernardo, o homem da mortificação e da polêmica, que esteve em luta estrênua contra todos os adversários da Igreja do seu tempo.

 

Pretendo fazer um comentário em torno de alguns dados biográficos(1) sobre Santo Estêvão Harding.

Origem da Ordem de Cister

Estêvão Harding, filho de um gentil-homem inglês, consagrou-se muito jovem à vida monástica, na Abadia de Sherborne, em Dorset. Enviado à França, na Universidade de Paris cursou brilhantemente Humanidades e Filosofia.

Terminando os estudos teológicos, foi para Roma em peregrinação. Voltando à França, decidiu conhecer Molesmes, atraído pela reputação dessa casa. Molesmes, embora dirigido por São Roberto e o Bem-aventurado Albéric, decaíra sensivelmente, talvez pelas riquezas que então possuía. Os dois santos acabaram abandonando a comunidade e, conjuntamente com Estêvão e com o apoio do Duque Eudes, de Borgonha, decidiram fundar outro mosteiro.

Essa foi a origem da célebre Ordem Beneditina de Cister, da qual Estêvão foi o prior em 1099 e o redator dos Estatutos, aprovados por Pascoal II.

Em 1109, Santo Estêvão tornou-se abade da nova casa; lutando com ingentes dificuldades para levar os religiosos à vida perfeita e recebendo pouquíssimos noviços, começou a duvidar se seu instituto era do agrado de Deus e rezou para ser esclarecido.

Recebeu então uma resposta que o encorajou e à pequena comunidade que ali vivia.

De Borgonha chegava um gentil-homem acompanhado de trinta companheiros, pedindo admissão naquela casa. Esse nobre é São Bernardo. No ano de 1115, Santo Estêvão construiu Claraval, cujo primeiro abade foi São Bernardo.

E de Claraval surgiram mais oitocentos mosteiros. Nosso Santo veio a falecer em 1134, dizendo não ir para Deus senão com o temor de servo inútil que nada tinha feito de bom. Se o Criador lhe concedera algum dom, temia não ter feito dele todo o uso para o qual o recebera.

Vicissitudes que ocorrem nas Ordens religiosas

Encontramos aqui um desses fatos frequentes na vida das Ordens religiosas, que é a fundação de novos ramos provenientes da Ordem antiga.

Com efeito, há uma dualidade de modos de proceder da graça em relação às Ordens religiosas: todas são dotadas, na sua origem, das graças necessárias para cumprirem a missão que Deus tem em relação a elas; e em geral, pelo menos na primeira fase de sua existência, elas cumprem essa missão.

Porém a partir de certo momento, como acontece em todas as coisas humanas frequentemente – eu não digo por uma fatalidade, nem por uma regra geral que não comporte exceções, mas por uma dessas regras gerais que admitem algumas brilhantes exceções –, as Ordens religiosas passam, depois da era heroica do fundador, dos grandes Santos, dos grandes feitos, por um período de arrefecimento. E esse arrefecimento ou é cortado por alguns novos Santos que aparecem e inspiram, comunicam à Ordem um impulso novo, ou então ela vai lentamente declinando para a decadência. Quando chega a determinado ponto da decadência, abre-se outra alternativa: ou a Ordem religiosa se fecha, ou floresce dando origem a um novo ramo.

Em geral, acontece que quando o ramo novo se forma, ele resplandece com um brilho igual ao da Ordem nos seus melhores dias, e o ramo velho acaba se deixando contagiar pelo ramo novo, e vai acompanhando-o um pouco de longe, como um irmão meio envelhecido acompanha, a duras penas, a marcha do irmão mais novo, mas termina se contagiando mais ou menos e se regenerando, acaba arrastando uma certa vida daí para a frente.

Por que Deus permite que algumas Ordens religiosas morram e por que Ele faz com que outras tenham a sua existência maravilhosamente prolongada, ou por uma continuidade gloriosa que, por vales e montes e sem fundação de novos ramos, marca sempre a sucessão de novas graças dentro do mesmo instituto religioso, ou, porventura, pela abertura de novos ramos? Por que então Deus a umas fecha, ou permite que se fechem, e a outras Ele guia de modo tão maravilhoso?

É que há certas Ordens religiosas, para considerar um aspecto da questão – a qual não se esgota nisso –, que têm um papel perene dentro da Igreja Católica. Elas devem irradiar um determinado perfume do qual Deus não quer que a Igreja seja privada nunca mais, para que tenha sua fisionomia, de maneira que então, de um modo ou de outro, Deus conserva aquilo.

Existem outras Ordens que Deus, na sua infinita sabedoria, julga que não são indispensáveis à economia geral da Igreja. E Ele, então, permite que elas decaiam e desapareçam.

A continuidade da Ordem do Carmo

Entre essas Ordens eu creio que nenhuma apresenta uma continuidade tão maravilhosa quanto a Ordem do Carmo.

Segundo uma tradição muito respeitável – que há todas as razões para se admitir como verdadeira –, a Ordem do Carmo, fundada por Santo Elias, passou por muitos revezes e episódios brilhantes antes da vinda de Nosso Senhor até o aparecimento de São João Batista, o qual, segundo essa tradição, foi essênio e, portanto, pertencia àquele eremitério nas encostas do Monte Carmelo, onde os sucessores de Santo Elias cultivavam a vida religiosa. São João Batista teria sido, então, o maior dos sucessores de Santo Elias.

Com o advento do Novo Testamento e a dispersão do povo hebraico, esse núcleo se transformou na Ordem do Carmo. Depois de muitas vicissitudes, ela foi transladada para o Ocidente devido às perseguições que os maometanos desferiram contra os Lugares Santos.

No Ocidente ela esteve para se fechar, quando Nossa Senhora apareceu a São Simão Stock e lhe revelou a devoção do escapulário – ele era o Geral da Ordem – e veio então uma torrente de graças. Ela decaiu de novo no período de Santa Teresa de Jesus, mas esta e São João da Cruz reformaram de novo a Ordem do Carmo que continuou a brilhar até, pelo menos, a produção de uma de suas mais altas e belas flores, que foi Santa Teresinha do Menino Jesus.

Houve depois o fenômeno da decadência que todos conhecemos. Entretanto, a Providência quis conservar essa Ordem até agora e, segundo profecias privadas dignas de crédito, ela nunca desaparecerá e continuará sempre, de glória em glória, como também de provação em provação, até que volte à Terra o seu fundador, Santo Elias, que deve estar presente nos últimos dias da História do mundo, e lutar contra o Anticristo, ser morto por ele, e ressuscitar.

Há um mistério de união, de sagrada escravidão com Nossa Senhora, e de assistência d’Ela a essa família espiritual, pelo qual ela tem uma longevidade maior do que todas as outras, não só se consideramos sua origem, mas seu futuro também.

Não obstante, foi necessária a reforma empreendida por Santa Teresa de Jesus, que não foi acompanhada por todos, dando origem a dois ramos: os Carmelitas Descalços e os Calçados, entre os quais não faltaram rivalidades ao longo da História. Entretanto, no tempo em que começamos a frequentar a Ordem Terceira do Carmo, edificava-me ver na Igreja do Carmo um altar a Santa Teresinha do Menino Jesus e outro a Santa Teresa de Jesus, que os antepassados espirituais deles de tal maneira tinham combatido.

Assim, dentro da grande paz e cordura interna da Igreja Católica, essa animadversão terminou e as duas Ordens se reconciliaram, e todo o perfume do ramo reformado passou, ao menos de algum modo, para o antigo. A Ordem do Carmo rebrilhou no todo com a glória de Santa Teresa e de São João da Cruz.

Ação que se irradiava à distância

Nós encontramos um fato semelhante na mais antiga das famílias espirituais, não do mundo, mas do Ocidente: os beneditinos.

São Bento foi o Patriarca dos monges do Ocidente, pois o monaquismo ocidental nasceu dele. Ele fundou uma Ordem religiosa gloriosa que se estendeu por toda a Europa, e produziu a conversão de bárbaros numa das situações mais duras da vida da Igreja Católica, que se encontrava internamente devorada por germes de corrupção do paganismo romano, ao qual ela mesma havia combatido. Ademais, esse próprio mundo pagão era hostilizado pelos bárbaros invasores do Império Romano do Ocidente, os quais eram arianos pervertidos por um bispo, Úlfilas, ou completamente pagãos; mas a um ou outro título ambos inimigos da Igreja.

Quando se deu o estrépito tremendo da invasão do Império do Ocidente pelas hordas bárbaras, foram os frades beneditinos que trabalharam para a conversão dos bárbaros, sobretudo na parte mais difícil, ou seja, onde não houvera Império Romano, o Cristianismo não tinha penetrado e se tratava de trabalhar em plena selva.

A conversão da Inglaterra, da Irlanda, depois da Alemanha, da Suécia, da Noruega, da Dinamarca, da Boêmia, da Áustria, em parte da Hungria também, deveu-se ao impulso dessa imensa família religiosa dos beneditinos que trabalhou de um modo altamente prestigioso.

Aliás, prestígio e beneditinismo são coisas quase que indissociáveis. Em toda a vida da Igreja, a Ordem beneditina conservou uma espécie de prestígio e de categoria que ainda tem um perfume do feudalismo medieval. Como eles trabalhavam? Um missionário ia para os povos infiéis, pregava e fundava um convento, em geral edificado em um lugar ermo, onde os monges começavam a cantar, a praticar a Liturgia, a distribuir esmolas aos pobres, a derrubar florestas, a secar pântanos e fazer plantações regulares. Por causa do prestígio que a virtude deles lhes conferia sobre as almas, as populações iam se constituindo em torno dos conventos. Mesmo quando permaneciam solitários, dos povoados iam pessoas visitá-los, e a ação deles se irradiava à distância sobre as cidades, e ajudava a ação do clero secular que nelas se fixava. Era, portanto, uma preciosidade para uma cidade estar a certa distância de um mosteiro beneditino.

Com efeito, não era próprio dos mosteiros beneditinos instalarem-se dentro das cidades. Eles estabeleciam-se sempre fora, até o momento em que as cidades se constituíram em seu entorno e eles não puderam fugir. Mas, propriamente, a ação deles era esse prestigioso apostolado à distância e de atração, que se põe longe a luzir com todo o seu brilho, atrair com todo o seu perfume, e os povos vêm, então, ao encalço do apostolado beneditino.

Enquanto os beneditinos por essa forma convertiam a Europa pagã, os monges de Cluny – que não era um ramo dos beneditinos, mas uma federação de abadias beneditinas autônomas na Europa – preparavam o florescimento espiritual, cultural, artístico, político, militar da Idade Média.

Cluny foi a alma da Idade Média. Não um ramo novo, mas como que um canteiro o qual, de repente, se pôs a deitar perfumes especiais dentro da família beneditina e se irradiou por toda a Europa.

Santo Estêvão funda Cister, Nossa Senhora lhe envia um sinal equivalente ao nascer de um sol

Mas depois de uma gloriosa dinastia de abades, de ter dado ao mundo papas como São Gregório VII, os cluniacenses começaram a decair também. Neste contexto se insere esse episódio acima narrado, de Santo Estevão Harding. Um Santo que procede da Inglaterra e entra num convento beneditino em decadência, onde encontra dois outros Santos; eles não conseguem reerguer os beneditinos decadentes.

Então saem e formam outro ramo, já com uma disciplina muito mais estrita e severa que a dos beneditinos. Começa um apostolado tão pequeno, tão incerto que até o Superior ficou na dúvida se era vontade da Providência que aquilo florescesse ou não, e pediu um sinal.

Nossa Senhora, Mãe de todas as boas iniciativas da Igreja, deu, risonha, o mais belo dos sinais. Chega um cavaleiro, São Bernardo, acompanhado de trinta outros, para enriquecer essa abadia. Mas acontece que chegar São Bernardo não é uma coisa qualquer, é como nascer um sol. Ele é um dos sóis da Igreja Católica, de toda a devoção mariana. O “Doctor mellifluus”(2) que como ninguém elogiou a bondade e a misericórdia da Santíssima Virgem. Por excelência o homem da penitência, da mortificação e da polêmica, que esteve em luta estrênua com todos os adversários da Igreja do seu tempo, principalmente com o homem que pode ser considerado, a meu ver, o vanguardeiro do progressismo; uma figura imunda, heterodoxa, asquerosamente sentimental: Pedro Abelardo.

São Bernardo, com os trinta cavaleiros, deu tal estímulo a esse ramo beneditino novo, que o antigo ficou mais ou menos para trás, e começou o florescimento da Ordem beneditina sob um novo aspecto.

Esse ramo o que fazia? O que realizam ainda hoje os cistercienses: silêncio completo, trabalho manual, estudo, clausura total, apenas saindo de vez em quando para missões, perfumadas com toda a beleza e unção da vida de clausura e que trazem uma densidade de riqueza espiritual especial por causa do caráter contemplativo daqueles missionários. Eles fazem uma missão e voltam de novo para o mosteiro.

Imaginem a sensação de um povo vendo entrar na igreja, subir à tribuna um frade o qual, conforme explicou o vigário que o antecedeu, é um homem que não fala nunca, mantendo um silêncio perpétuo, um prisioneiro voluntário e nunca sai das paredes de seu próprio mosteiro. Um homem, portanto, que ao falar incute susto a milhares de pessoas, uma vez que o silêncio perpétuo é uma coisa que assusta muito, e a reclusão voluntária é uma espécie de imagem da reclusão involuntária e traz consigo as mortificações desse estado.

O homem sobe ao púlpito trazendo uma túnica branca – o contrário dos beneditinos que estão sempre vestidos de preto –, e um escapulário negro, com a tonsura característica, trazendo na face aqueles traços típicos do contemplativo verdadeiro, e que se põe a falar coisas extraordinárias, verdades elevadas, a dizer ao povo, de frente, quais são os seus vícios, a invectivá-los, a estimular à virtude, a polemizar com os adversários. Terminado o sermão, o povo vê com assombro esse homem montar num cavalo ou num burrico e partir sozinho para seu convento, deixando atrás de si as multidões atônitas. Compreende-se qual é o valor e o prestígio desse apostolado.

O reerguimento das várias congregações beneditinas

A Ordem beneditina recebeu de Cluny a sua fisionomia verdadeira. É uma ordem muito pomposa. O Abade de Cluny é um verdadeiro príncipe, usando mitra e báculo como os bispos. Dentro do seu convento, não estava sujeito às ordens do bispo diocesano, mas diretamente ao papa, e ele gozava ali de honras parecidas com a do bispo: usava cruz peitoral, anel, tinha o direito do tratamento de excelência, as pessoas se ajoelhavam para beijar sua mão; era uma miniatura de bispo.

Abadias magníficas com um cerimonial faustoso, a liturgia beneditina é riquíssima, com os objetos mais preciosos, nas igrejas os vitrais mais magníficos. Para a vida privada dos seus monges, as abadias beneditinas eram muito austeras: longos corredores com bancos de pedra, celas pobres. Mas no que diz respeito ao culto divino e à pompa com que se cercava o abade havia o maior esplendor.

Entretanto isso degenerou em abusos. E sempre que um abuso se acentua num sentido, a graça realça a nota no sentido oposto. Então apareceu a Ordem de Cister praticando a pobreza muito mais carregadamente noutro sentido. O abade cisterciense gozando de honras análogas ao abade beneditino, mas cercado de muito menos pompa. Toda a vida cisterciense era muito mais pobre. A reação contra a riqueza tomou tal porte que os cistercienses não usaram mais os vitrais coloridos que os beneditinos utilizavam, achando que aqueles vitrais eram um fator de riqueza contra o qual era preciso reagir.

Então, passaram a usar apenas uns vitrais de tons esbranquiçados para proteger contra a luz. Mas a Igreja Católica, ainda involuntariamente, sempre produz a beleza. Usando esse tipo de vitrais, os monges cistercienses arranjaram jeito de fazer vitrais com cores opalinas lindíssimas. É uma forma de beleza discreta tal que esses vitrais brancos, com tons opalinos, disputam em formosura, junto aos colecionadores e especialistas, com os vitrais policrômicos dos beneditinos da antiga observância.

O que resultou daí? Aos poucos, um reerguimento das várias congregações beneditinas. Quase todas elas receberam uma respiração nova. Apenas não recebeu, é duro dizer, a congregação de Cluny. Ela foi decaindo continuamente até a Revolução Francesa, durante a qual do grande mosteiro de Cluny não restou pedra sobre pedra(3). A cólera de Deus caiu sobre aquilo e ficou completamente arrasado. Existem apenas as relíquias dos Santos fundadores dessa Ordem religiosa e, na cidade de Cluny, alguns edifícios auxiliares – parece-me que restos de estrebaria, outras coisas assim do antigo convento beneditino; o resto desapareceu completamente.

Mas a Ordem Beneditina permaneceu, e os beneditinos da antiga observância ficaram também. Cluny, que era uma federação de conventos, desapareceu. Mas uma porção de conventos continuaram e a Ordem Beneditina começou a apresentar essa diversificação magnífica que faz dela como que um leque com várias cores: os beneditinos antigos, com toda a sua pompa, sua dignidade, com todo o seu esplendor; os cistercienses que eu acabo de descrever; os trapistas, aos quais pertencia Dom Chautard(4), que não são missionários, nem saem jamais do convento, e mantêm um silêncio que nunca interrompem. São as várias modalidades da aplicação da Regra de São Bento.

Uma das glórias da Ordem de Cister

Uma palavra sobre São Bernardo e Pedro Abelardo. São Bernardo era, ao mesmo tempo, um homem dulcíssimo e uma tocha ardente. Ninguém sabia falar de Nossa Senhora com tanta unção quanto ele. São Luís Grignion de Montfort o cita várias vezes e com os maiores elogios.

De outro lado, ele era um polemista tremendo. E como viveu numa época em que a Idade Média já decaía e as heresias se multiplicavam, ele travou tantas polêmicas com pessoas daquele tempo, que um dos papas sob cujo pontificado ele reinou – não me lembro qual – deu a ele uma ordem de voltar a seu convento e não se meter em mais nada, porque estava ateando fogo na Cristandade inteira. Ao que São Bernardo respondeu de modo muito pitoresco que não havia coisa melhor para ele do que isso, porque havia se metido nessas polêmicas apenas para servir a Igreja, mas que não queria outra coisa senão a cela dele, agradecia ao papa a reclusão que lhe impunha, e tinha a consciência tranquila porque estava obedecendo.

Era dele, se não me engano, aquela máxima: “o beata solitudo, o sola beatitudo” – ó bem-aventurada solidão, ó única bem-aventurança. Ele queria realmente apenas a solidão. Como polemista tremendo, alcançou sucessos extraordinários.

Uma vez ele esteve na Alemanha, numa cidade onde se encontrava também o Imperador do Sacro Império Romano Alemão, o mais alto dignatário temporal da Cristandade. São Bernardo entrou na cidade e a fama de santidade e das virtudes dele era tal que o povo foi todo correndo ao seu encontro. E ele teria sido esmagado pela multidão se o próprio Imperador não o tivesse tomado pelos braços e feito montar nele. De maneira que foi um Santo que se apresentou à veneração do universo, montado num imperador. Glória extraordinária para uma época que possuía, muito mais do que outras, o sentido do valor simbólico dessas coisas.

Esse Pedro Abelardo, que foi o maior inimigo de São Bernardo, era um tipo asqueroso. Tornara-se frade e ficara apaixonado por uma freira, uma tal Heloísa. E tinha por ela uns desses amores sentimentais, românticos, que já prenunciam toda a choradeira do século XIX.

Era um homem que queria encontrar o meio-termo entre o bem e o mal, entre a verdade e o erro. Por ser um antecessor da Revolução, os escritores revolucionários o admiram muito. E não ousando atacar São Bernardo de frente, fazem insinuações usando fórmulas como, por exemplo: “Pedro Abelardo teve de sofrer a oposição fogosa e implacável de São Bernardo; precisou aguentar os raios que São Bernardo deitava contra ele”. Mas ele apanhou de fato e foi derrotado pelo santo Abade de Claraval. Por causa disso a luta contra ele representa uma das glórias da Ordem de Cister.            v

 

Plinio COrrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/4/1971)

Revista Dr Plinio 264 (Março de 2020)

 

1) Não dispomos dos dados bibliográficos da obra citada.

2) Do latim: Doutor melífluo.

3) Posteriormente reconstruída.

4) Jean-Baptiste Chautard (*1858 – †1935). Abade de Sept-Fons, França, autor da obra A alma de todo apostolado.

Castidade comunicativa

São Casimiro era tão casto, que comunicava aos outros o desejo de serem puros. É bonito este fato, porque muitas vezes encontramos pessoas puras, mas a quem a Providência não deu esse dom de tornar comunicativa sua pureza. Sabe-se que são puros, admira-se, presta-se homenagem, mas sua virtude não é comunicativa.

Ora, uma das melhores formas de fazer apostolado é ter essa virtude comunicativa que passa de uma pessoa a outra como que por osmose. Às vezes isto acontece, e castidade comunicativa é um dom enormemente precioso para se fazer apostolado.

Mas como Deus está irado com o mundo, dons como esse se tornam raríssimos. Por isso precisamos recorrer a um São Casimiro no século XV para compreender o que é a pureza convidativa e irradiante, a qual atrai as pessoas para a virtude que é o contrário da impureza, da voluptuosidade também conquistadora, a qual arrasta para o mal.

A virtude arrastando para o bem é algo que pouco se vê em nossos dias e, no entanto, dá tanta glória a Nossa Senhora!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/3/1967)

Divina seriedade de Nosso Senhor

Os algozes fizeram terríveis brutalidades contra Nosso Senhor, por ódio à virtude que n’Ele transparecia de modo tão magnífico. Quem chegasse perto do lugar onde Jesus estava sendo flagelado, ouviria lancinantes brados de dor, entretanto, mais harmoniosos e belos  que os sons de qualquer orquestra.

Se considerarmos Nosso Senhor ao longo da sua peregrinação durante os três anos da sua vida pública, de um lado para outro pregando às multidões, quer no primeiro ano  que foi gaudioso, em que a obra d’Ele iniciou-se e mais ou menos encantou todo o povo de Israel; quer no segundo, quando as dificuldades começaram a aparecer; quer no  terceiro, o qual foi dramático, chegando até o Gólgota e o “Eli, Eli lammá sabactâni” (Mt 27, 46) – Meu Deus, Meu Deus, por que Me abandonaste? –; em quaisquer desses  anos, como imaginaríamos Nosso Senhor?

Majestosa e serena tristeza de Nosso Senhor

Andando alegre de um lado para o outro, satisfeito, com a fisionomia contente, comentando despreocupadamente e de modo agitado os aspectos engraçados das coisas? Ou  com um fundo de tristeza amenamente presente na sua personalidade, marcando seus divinos olhares e tudo quanto Ele dizia e fazia, exprimindo-Se aos homens em termos de um tratamento afável, doce, bondoso, mas também com um fundo de tristeza não dramática, nem lancinante, mas habitual, estável – para empregar uma comparação  que não me satisfaz inteiramente, mas que diz algo –, um olhar que tivesse algo de luminoso, resplandecente, de tristonho como o luar?

Sem dúvida, esse olhar assim tristonho, mas resignado, atento, afável, bondoso, exprimiria o fundo da alma d’Ele.

Trata-se de saber por que essa majestosa, serena, imensa, afável tristeza de Nosso Senhor enchia de tal maneira  a alma d’Ele. Começo por me perguntar que relação há entre esse olhar e a seriedade, e concluo ser esta a própria seriedade do Redentor. Não havia outro modo de ser sério. Ora, se era essa a seriedade d’Ele, não deve ser também  essa a nossa seriedade?

Se isso é assim, devemos nos indagar qual a razão pela qual sua tristeza era tão grande quanto a amplidão de suas vistas.

Na divindade d’Ele não podia haver tristeza. Deus é de tal maneira perfeito, excelso, admirável, que n’Ele não cabe consternação. Havia tristeza na humanidade santíssima de Nosso Senhor. Mas essa natureza humana estava ligada hipostaticamente à Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, constituindo uma só Pessoa continuamente na visão  direta de Deus, no oceano de suas perfeições e de sua felicidade infinita e imperturbável por todos os séculos dos séculos sem fim.

Logo, essa tristeza não poderia vir de Deus, mas só do Homem. Porque Nosso Senhor veio à Terra como Redentor e se encarnou para nos resgatar, morrendo na Cruz como   Homem-Deus e fazendo, portanto, que um Homem oferecesse um sacrifício infinitamente precioso que perdoasse o pecado original e os pecados posteriores, e abrisse o Céu.

Então, torna-se claro que esse sofrimento só poderia vir do Homem. Como um Ser que era Deus, e de tal maneira participava dessa felicidade infinita do Onipotente, podia ter tanta infelicidade, tanta tristeza a propósito dos homens que são tão menos do que Deus?

Dir-se-ia que seria mais ou menos como se eu – vou falar em termos mundanos – recebesse de repente de herança uma fortuna inestimável, imensa, e no mesmo dia, ao  partir uma fruta, corto um pouquinho o dedo. Aqui está um pequeno incômodo que coincide com uma causa de felicidade extraordinária, mas nem se pensa nele. Se à noite   o dedo estiver molestando, começa-se a dar conta de que nele houve um corte de manhã, porque se pensou o dia inteiro na felicidade e na alegria em ter ganho uma fortuna.

Com a devida reverência aplicada à comparação, poder-se-ia dizer que a tristeza causada pelos homens em Deus seria pequena perto de sua infinita jubilação. Isso se explica  da seguinte maneira: Deus ama os homens com amor infinito, e por causa disso Ele quer ter o amor dos homens. Um amor deseja a paga, a retribuição, e quando não é  retribuído sofre de um padecimento tão profundo, que chegava a penalizar desta maneira o Verbo de Deus encarnado. Ele possuía um conhecimento direto, imediato de  todas as coisas. Olhava para todos os homens e conhecia – nem sei se se pode chamar discernimento dos espíritos – os estados de espírito deles.

Ponto de gravidade em torno do qual todos os homens devem girar

Deus via essa atitude dos homens que era de não O amarem: o povo eleito voltado completamente para as abominações que conhecemos; os outros povos para idolatrias e  pecados que enchiam todo o mundo de então. E Ele se sentia não retribuído no seu amor infinito, que não é o sentimento comum, por exemplo, de um professor que se  dedica muito aos alunos e vê que estes não reconhecem.

É uma coisa muito diferente. Sendo Deus, Ele era infinitamente digno do amor dos homens; e estes, recusando o amor do Redentor, ficavam péssimos, totalmente  recusáveis, porque o ponto de gravidade em torno do qual todos os homens, e cada homem em concreto, devem  girar é Ele, que é infinitamente bom, infinitamente santo, e  em função do qual todos nós devemos fazer gravitar a nossa vida. Ele é o Astro divino, o Sol divino. Nós somos os planetas que satelitizam em torno do Sol, e não olhamos  para Ele, nem queremos olhar. Vendo assim as criaturas que Nosso Senhor ama tanto, chega a causar n’Ele essa tristeza.

É uma tristeza por ver a falta de virtude; dos homens o Criador só quer virtude. O homem pode ter o que quiser, se não possuir virtude, por assim dizer, não interessa a Deus. E se Ele toma posição face ao homem é apenas com desejo de que se torne virtuoso e semelhante a Deus para se amarem. Ele rejeitado, a sua tristeza enche a Terra, mais ou  menos como  a luz do luar cobre de tristeza o céu.

Devemos querer que tudo seja semelhante a Jesus Cristo

Isto é um dos traços da divina seriedade de Nosso Senhor Jesus Cristo. E nós vamos ver que os Apóstolos, os mais chegados a Ele, antes de Pentecostes estavam cheios de  coisas destas.

Prestavam atenção em coisas terrenas, humanas, e tendo entre eles Nosso Senhor Jesus Cristo, levaram um tempo enorme para perceber e reconhecer que Ele era o  Homem-Deus, simplesmente porque não tinham apetência daquelas virtudes, não as amavam, e por isso seu entusiasmo não era ascendente, alpinístico, não escalava os cumes. Mas era um entusiasmo dos charcos, dos pântanos. Por exemplo, quando os Apóstolos caminhavam com Jesus para o Horto das Oliveiras, é possível que Ele os tenha  repreendido, dizendo: “Daqui  a pouco iremos orar e vocês vão dormir, enquanto o Filho de Deus começará a padecer.” Naturalmente, os Apóstolos, ligados a   brincadeiras e coisas semelhantes, dormiram. Depois, o resto nós conhecemos… Vamos transladar isso para nós.

Somos meras criaturas. Não temos, portanto, a união hipostática com Deus, mas fomos batizados e em consequência do Batismo começou a viver em nós a graça, que é uma participação criada na própria vida incriada de Deus. E há alguma coisa que não deixa  de ter vaga semelhança com a união hipostática. Nós somos os templos do Espírito  Santo. Isto posto, a grande preocupação nossa na vida é de notar na Igreja Católica, nos  Santos que Ela gerou, nos seus Institutos, nas páginas luminosas de sua História, aquilo que é santo e, portanto, lembra a Deus, a Nosso Senhor Jesus Cristo, porque nós amamos o que é parecido com Ele. Isso é o mais importante de nossa existência, como para Ele o centro da vida terrena era viver  na união hipostática e querer que os   homens recebessem a graça e O adorassem como Homem-Deus.

E, portanto, a nossa grande alegria – se somos fiéis ao nosso Batismo e coerentes na nossa Fé – deve ser ver que os homens estão amando Nosso Senhor, e que tudo no  mundo se passa de acordo com o Espírito, a Lei d’Ele, como se Jesus estivesse presente. Não queremos para nós outra coisa: que tudo seja semelhante a Ele.

Devemos ter um fundo de seriedade luminosamente triste

Sem dúvida, eu admiro Paris, descontados todos os aspectos mundanos. Porém, se me dessem para escolher entre viver naquela cidade, onde o pecado deixou tantas marcas e o amor de Deus algumas coisas tão maravilhosas – a Catedral de Notre-Dame, por exemplo –, ou numa localidade habitada pelo povo mais vulgar, mais desvalido, mais inculto da Terra, mas onde todos  amassem verdadeira e sinceramente a Deus, eu preferiria viver naquele povo, e sairia de Paris voando.

Porque, embora Paris seja tudo quanto é, e Notre-Dame signifique tanto para mim, prefiro ver almas e não apenas pedras, inteiramente segundo Deus, que amam o Criador em espírito e verdade, e tratando com elas tenho a impressão fundada e viva de discernir o Espírito Santo presente em cada uma. Por isso, quero ir para lá ainda que as  pessoas só usem uns tecidos grosseiros feitos de palmeira, comam apenas uns peixes ordinários que se pescam no rio local. Se nelas estais Vós, meu Senhor e meu Deus, é lá que eu quero estar!

Não sei se cada um de nós teria a mesma reação, e se faz assim de Deus o sol de sua própria seriedade.

Mas o fato concreto é que na alma do católico deve haver um fundo de seriedade, vaga e luminosamente triste pelas condições abjetas, altamente censuráveis do mundo  contemporâneo. Nós devemos nos sentir censurados, rejeitados, detesta odiados, e – oh, dor! – não porque é nossa pessoa, que pouco vale, mas porque rejeitam o Espírito  Santo que está em nós, recusam em nós a condição de membros do Corpo Místico de Cristo, que é a Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

Se conhecessem os meus defeitos e me rejeitassem por essa causa eu os amaria, mas eles têm conhecimento de minhas qualidades e me recusam; então eu me sinto rejeitado no que é mais internamente  meu, naquilo por onde sou mais eu e pertenço a Nosso Senhor como ente batizado e que tem Fé, membro da Santa Igreja Católica. E então há em mim um fundo constante de tristeza, de seriedade triste.

Em Jesus, a seriedade não excluía, por exemplo, que Ele fosse de vez em quando à casa de Lázaro para tomar alguns dias de sossego, de tranquilidade, de bem-estar, de sentir o amor por Ele. Santa Maria Madalena O adorava, como sabemos, Marta O queria, Lázaro O amava e isso Lhe enchia a alma. Mas por toda parte, assim como a lua acompanha os passos do homem que anda pela noite, via-se a tristeza enluarada: “Os homens não querem a Mim porque não amam a Deus. Isto é uma espada que Me vara de alto a baixo.”

Gemidos de Jesus por causa de nossa indiferença

Se nós, uns nos outros, procurássemos apenas o amor de Deus e nos regozijássemos sempre, pensando nesse amor que há em nós, e quando notássemos em alguém uma falta de amor de Deus nos entristecêssemos, como Nosso Senhor, de uma tristeza cheia de amor, de vontade de extravasar- se para aquele a fim de trazê-a Deus; se assim   agíssemos, como a atmosfera em nossas Sedes seria, então, mais próxima do ideal de seriedade que tomamos quando nós participamos de um Retiro, como compreenderíamos mais completamente o que é a seriedade!

Não é porque desejamos que queiram odiassem, eu lhes oscularia as mãos e os pés e lhes agradeceria, porque  execro os meus defeitos. Mas essa gente, que tem a proibição de escrever o meu nome num jornal, odeia o que eu tenho de bom; isso me faz sofrer, me indigna. Não por mim, mas por Nosso Senhor, porque é Ele que estão rejeitando.

Aqui está a matéria-prima, a tintura- mãe de nossa seriedade. Entrando agora na Semana Santa,  contemplaremos as brutalidades, a injustiça, a crueldade que tiveram para com Ele, e teremos presente o tempo inteiro que fizeram isso por ódio à virtude que em Nosso  Senhor transparecia de um modo tão magnífico.

De maneira que, por exemplo, se algumas pessoas chegassem perto do lugar onde Jesus estava sendo flagelado, ouviram lancinantes gritos de dor d’Ele. Mas esses gritos eram mais  harmoniosos e mais bonitos que os sons de qualquer orquestra, mais atraentes que as exclamações de qualquer orador, por mais famoso que fosse.

Ele naquela púrpura de seu sangue, jorrando sobre todo o seu Corpo sagrado, era mais majestoso do que um rei na púrpura de seu manto real. Os carrascos viam isso e O  flagelavam porque queriam a vulgaridade, a indecência, a imoralidade. Então mais flagelavam, e Jesus gemia. Gemia por seu Corpo sagrado – um homem geme quando  sente isso –, porém muito mais por causa das almas tão ruins que O açoitavam, como Ele via o que aconteceria até o fim dos séculos.

Nosso Senhor nos olharia passando a  Semana Santa indiferentes aos gemidos, às dores d’Ele, e diria: “Até vós, a quem Eu chamei para um amor especial? Vós ouvis os meus gemidos, Me contemplais coroado de espinhos, como em outros episódios da minha Paixão, e também sois indiferentes!” E Jesus dando brados e gemidos por causa de nossa indiferença.

Maria Santíssima, fixai em mim as chagas do Crucificado!

Pensem na tristeza de Nossa Senhora diante disso. Provavelmente Ela sofria porque tinha algum conhecimento do que se passava com Jesus. Em suas santas intuições,  contemplando cada brado, cada gemido d’Ele, cada pedaço de carne que os açoites arrancavam e jogavam no chão – a união hipostática continuava com aqueles pedaços de  carne –, Ela, completamente transida de dor, sabia como seria a nossa Semana Santa. Quantas vezes, no lugar onde deveria estar o amor a Ele está o amor a outras coisas, ou quiçá a outras pessoas. Para pegar exemplos que não sejam amizades e afetos de si pecaminosos, suponhamos um amigo de quem gostamos porque é engraçado; de outro  porque é prestigioso e nos prestigia; de um terceiro porque nos admira. São essas as razões pelas quais se deve gostar dos outros, ou é porque eles se parecem com Nosso Senhor?

São Tiago era, por uma razão natural de parentesco intencionada por Deus, muito parecido com Nosso Senhor. De maneira que quando os algozes tiveram medo de errar na escolha e pediram para Judas indicar quem era, ele disse: “Aquele que eu oscular, esse é o Homem” (cf. Mt 26, 48).

Por isso, após a morte de Nosso Senhor havia quem percorresse distâncias enormes para ver o Apóstolo que se parecia com o Redentor. Ora, nós temos a Ele presente na  Sagrada Eucaristia… É Semana Santa. O que fazemos? O que isso arranca de nossas almas? Nós rezamos a Nossa Senhora pedindo- Lhe que ponha em nós as disposições de  alma d’Ela para vivermos a Semana Santa como deveríamos viver?

Há um hino da Liturgia que diz: “Sancta Mater, istud agas, crucifixi fige plagas” – Santa Mãe, fazei isso, prendei em mim as chagas do Crucificado. Isso nós deveríamos  afirmar durante  a Semana Santa. E quando chegar as três horas da tarde de Sexta-Feira Santa e adorarmos a Nosso Senhor na Santa Cruz, pensemos na seriedade e  procuremos sentir fixas em nós as chagas do Divino Redentor. Então peçamos a Nossa Senhora que faça de nós homens que vivam da tristeza de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/3/1988)

Revista Dr Plinio 240 (Março de 2018)

 

 

São Romão, doçura e força de oração

Pregar apenas a misericórdia e silenciar a justiça é tão errado quanto fazer o contrário, pois ambas as virtudes são necessárias para as almas. Dois irmãos santos, Romão e Lupicino, nos deram significativo exemplo de como a justiça e a misericórdia se harmonizam.

 

Em 28 de fevereiro, comemora-se a festa de São Romão, abade. A ficha biográfica que irei comentar é tirada do Pe. Édouard Daras, “Les vies des Saints”(1).

Chuvas de pedras cortantes provocadas pelo demônio

São Romão, nascido em 399 na Borgonha, foi fundador de um famoso convento na região do Franco Condado. Desde jovem retirou-se para a solidão, sendo mais tarde seguido por seu irmão, São Lupicino. Conta-se que levavam uma vida que consideravam de paz e felicidade, quando o demônio resolveu interrompê-la. Cada vez que se punham de joelhos para rezar, o demônio fazia cair sobre eles uma chuva de pedras cortantes, que os feria e impediam de continuar. Ambos resistiram por algum tempo, mas vendo que nada conseguiam decidiram abandonar o retiro. Ao chegarem a uma aldeia, foram hospedados por uma pobre mulher, que lhes perguntou de onde vinham. Não sem alguma vergonha, narraram toda a verdade.

“Vós deveríeis, disse a mulher, lutar corajosamente contra o demônio e não temer os embustes e ódio daquele que tão frequentemente foi vencido pelos amigos de Deus. Se ele ataca os homens, é por medo de que eles, por suas virtudes, subam ao lugar de onde a perfídia diabólica os fez cair.”

Ao saírem dessa casa, consideraram a sua fraqueza e quão pouco haviam combatido. Voltaram sobre seus passos e, com orações e paciência, venceram o inimigo.

Dois métodos diferentes no trato com as almas

Mais tarde, tendo já fundado numerosos mosteiros, os dois irmãos visitavam essas fundações com frequência. São Lupicino era severíssimo, não perdoando o menor deslize. São Romão, ao contrário, era bem mais misericordioso.

Aconteceu que São Lupicino, visitando um convento na Alemanha, encontrou na cozinha excessiva quantidade de legumes e peixe. Escandalizado com aquilo, fez cozinhar tudo junto para castigo dos monges. A comida saiu tão repugnante que doze religiosos deixaram a casa, não suportando a penitência. São Romão teve uma visão sobre esse acontecimento, e quando Lupicino voltou, disse-lhe:
— Meu irmão, é melhor não visitar as ovelhas do que ir vê-las para dispersá-las.

Resposta de São Lupicino:
— Não tenhais pena, meu caro irmão. Não é preciso purificar o campo do Senhor e separar a palha do bom grão? Os que foram eram doze orgulhosos em quem o Senhor não mais habitava. São Romão concordou. Mas daí em diante chorava tão profundamente, magoado com a partida dos monges, que Deus, atendendo suas preces, reconduziu mais tarde os doze recalcitrantes ao convento. E a ele se apresentaram voluntariamente para fazer penitência.

Num ambiente sereno, surge a provação

Aqui há uma série de fatos interessantes para considerar, e cada um deles, portanto, vai ter um comentário à parte. Em primeiro lugar, nos encontramos em face dessa admirável floração de santos, depois da queda do Império Romano do Ocidente. Vemos aqui dois irmãos que levam uma vida de grande santidade. E aparece esse episódio deles residindo no ermo, sem amolação nenhuma, sem ver nada das coisas da cidade, nem do mundo, numa natureza amena, bucólica, vivendo felizes.

Então podemos imaginar, nas horas de oração, os irmãos ajoelhados bem direitinho, um ao lado do outro — assim é que os representaria uma iluminura —, e rezando a Nossa Senhora que aparece no alto, sorrindo para eles. Esse seria o primeiro ato. É o ato da felicidade eremítica e bucólica desses dois irmãos que vivem numa atmosfera terrena, encimada por um céu parecido com o ar diáfano daqueles céus azuis de Fra Angelico, o qual poderia perfeitamente ter pintado essa cena.

Vem depois a provação. O demônio tem ódio deles e o modo de castigá-los também é muito interessante: a chuva de pedras cortantes. Sobre eles, tão bonzinhos, tão direitinhos, cai uma chuva medonha de pedras cortantes que os molesta. Os irmãos então procuram rezar direito, mas afinal de contas as pedras caem em tal quantidade que eles resolvem sair.

Lição de uma virtuosa mulher

Por fim, surge uma mulher, a qual é, naturalmente, uma boa mulher, que habita no campo, numa choupana. Ela perdeu o marido e tem apenas um filho, que é monge e reside num lugar distante, e de quem, de vez em quando, recebe uma carta; essa mulher é reumática, tem uma perna inchada, mas reza o tempo inteiro e vive só para Deus. Assim poderíamos imaginar a mulher, pois esse era o ambiente pitoresco da época, o modo pelo qual a graça operava. Não é lenda. É o estilo da ação de Deus naquele tempo.

Então a mulher, provada em dores e cheia de sabedoria, recebe os dois. Naturalmente, primeiro oferece a eles alguma coisa para comer. Ajuda a curar alguma ferida provocada pelas pedras. Depois pergunta o que há. Fora está chovendo torrencialmente, eles estão abrigados na casinha da mulher e contam para ela o ocorrido. A mulher suspira, põe os olhos num Crucifixo e diz: “Irmãos, mui errados andais!” E fala a verdade.

Compungidos, eles passam a noite em prece. Na manhã seguinte, voltam para o ermo e vão lutar contra o demônio. São dois cavaleiros, dois guerreiros contra o demônio, que emergem dessa atmosfera azul-claro, rosa-claro, ouro-rutilante, e que a partir desse momento se transformam em lutadores varonis. É a formação deles que assim se enuncia.

Severidade e brandura

Depois se saltam vários anéis intermediários, e eles nos aparecem numa posição pomposa, majestosa. São dois santos veneráveis, cuja fama de santidade reuniu em torno de si vários monges que lhes obedeciam. Eles são patriarcas, provavelmente já de barba branca, mais sábios e mais provados na vida do que aquela mulher, derrotaram os demônios, enfrentaram os adversários, fizeram viagens perigosas passando por lugares onde havia feras, pontes mal construídas, bandidos, tempestades, tudo enfrentaram por causa de Deus Nosso Senhor. Os dois estão no zênite da vida deles. Porém, mais uma vez, um episódio entre eles se dará.

Há certa medida de severidade e de brandura que deve ser utilizada de acordo com o sopro da graça, e com o modo pelo qual Deus Nosso Senhor quer conduzir os espíritos. Existem certos espíritos que só sabem fazer bem por meio da severidade suma, e realizam um bem admirável. Há outros espíritos que, dentro da medida do razoável, quase se diria que estão no extremo oposto: são muito brandos, muito suaves, e fazem bem pela sua brandura e suavidade. Uns imitam mais Nosso Senhor enquanto expulsava os vendilhões do Templo; outros O imitam mais enquanto perdoava Santa Maria Madalena.

De qualquer forma, ei-los que começam a governar esses mosteiros. E um deles, São Lupicino, muito severo, muito duro, vai ao mosteiro e faz o que todos os instintos de minha alma me pediriam para fazer, se estivesse em situação análoga: “Isso aqui não está direito? Está bem, eu vou ensinar.” É reto, rápido, não faz os outros perderem tempo, resolve as coisas diretamente e resolve mesmo. Erradica e põe fora. Está acabado.

Mas exatamente a Igreja é multíplice, e São Romão, o qual tinha o espírito diverso, começa a lamentar o que fez São Lupicino.

Notem a sutileza e o conteúdo teológico interessantíssimo do fato: São Romão começa a lamentar o que realizou São Lupicino e lhe faz uma censura. Este dá uma resposta à sua maneira, esplêndida, e explica tudo. São Romão dá um suspiro e concorda, teve boa-fé. Isso é verdade.

A justiça e a misericórdia se oscularam

Mas a Providência quis que a misericórdia não saísse derrotada. E onde São Lupicino tinha feito bem em expulsar, São Romão fez bem em pedir que os monges voltassem. Este se pôs a chorar. Vê-se, então, o velho com as barbas brancas numa atitude enternecida, pensando naquelas almas, as lágrimas cristalinas de olhos cristalinos que correm ao longo de uma face alva e emaciada, chegam a cair no chão e enternecem o Anjo da Guarda, encontram eco diante de Nossa Senhora, a qual, por sua vez, tem sempre eco diante de Deus. E Maria Santíssima pede pelos monges.

Resultado: o pessoal, que São Lupicino com tão boa vassoura varrera, volta. Mas não regressa como era quando foi varrido. Volta emendado por uma ação excepcional da graça, uma ação que está para além das vias normais da graça; que não é o corretivo de São Lupicino, mas é uma bela superação desse santo. A graça conseguiu a conversão daqueles que a justiça, a tão bom título e tão oportunamente, tinha castigado.

A justiça e a paz se oscularam, diz o Salmo(2). Aqui se poderia dizer que a justiça e a misericórdia se oscularam. E termina assim, num encantador “happy end”, esta ficha.

Que São Romão nos consiga um pouco dessa candura de alma; que no interior de nossas almas haja um pouco desse rosa-claro, desse verde, desse florilégio que é tão extraordinariamente agradável para carregarmos a virtude. E que tenhamos a compreensão dos métodos de São Lupicino, e não apenas a ternura para com os modos de agir de São Romão. Que ambos nos façam parecidos com eles. Que São Lupicino nos dê toda a sua braveza. E São Romão nos conceda sua doçura com sua força de oração; porque, sem sua força de oração, nada faria com sua doçura.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 28/2/1967)

1) Cf. DARAS, Édouard. Les vies des Saints. Volume II. 7ª edição. Paris: Louis Vivès, 1872. p. 465-471.
2) Cf. Sl 85, 11.

A obediência e o espírito de epopeia

A virtude da obediência faz com que o homem vença a si mesmo. Quem pratica essa virtude na perfeição adquire o espírito de epopeia, pronto a enfrentar os maiores obstáculos.

Temos para comentar uma ficha tirada do livro de Emanuel Dalzon, “La Vie des Saints”, a respeito de São Dositeu.

Conversão a partir de uma terrível ameaça do Inferno

Este santo, cuja vida é pouco conhecida, viveu nos primeiros séculos da Idade Média, sendo um exemplo perfeito de santidade conquistada pela renúncia à própria vontade. Educado de forma mundana, talvez tivesse se desviado do reto caminho se um acontecimento não o levasse à conversão.

Percorrendo um dia a Palestina, viu em Getsêmani um quadro que representava o Inferno. Contemplava-o aterrorizado, quando uma Senhora de surpreendente majestade e beleza lhe apareceu, explicando-lhe o que via. Impressionado com a terrível ameaça do castigo eterno, Dositeu perguntou à desconhecida o que ele deveria fazer para nele não cair.

“É preciso — respondeu a Senhora — fugir do pecado e rezar”. E desapareceu.

O jovem buscou o mosteiro dirigido por São Sérido, um dos mais florescentes da Palestina. O abade entregou o neófito a um de seus melhores religiosos, São Doroteu. Este percebeu logo que o  noviço não fora chamado para acompanhar as austeridades do convento, então decidiu inspirar-lhe o sacrifício completo da vontade.

Começou por ensinar-lhe o jejum gradativamente. Depois, encarregou-o da enfermaria. Nesse trabalho, Dositeu irritava-se às vezes com os enfermos.

Era então tomado de enormes escrúpulos. Ia para a cela chorar, e aí permanecia dias se São Doroteu não aparecesse e o acalmasse. Imediatamente o santo confiava na palavra do diretor e  reiniciava o trabalho, afastando suas dúvidas.

São Doroteu nunca lhe impôs rudes penitências corporais, mas o repreendeu continuamente, humilhava- -o sempre que podia, e o obrigava a renunciar às menores coisas.

Aprendendo a renunciar à própria vontade

Um dia em que Doroteu visitava a enfermaria, o noviço perguntou-lhe: “Estais contente, meu pai, com os leitos dos doentes, em ordem e limpos?”

— É verdade — replicou o religioso — que vós sois bom enfermeiro. Mas não sei se sereis um dia bom religioso. Quando nosso Santo precisava de uma roupa, seu mestre dava-lhe o tecido para fazê-la. Mas quando ele a terminava, obrigava-o a dá-la para um de seus irmãos, e fazer outra para si.

Em certa ocasião, um monge deu a São Dositeu uma faca que ele achou muito boa para seu trabalho na enfermaria. Ao pedir permissão para usá-la, o diretor respondeu: “É assim que colocais  vossa satisfação na posse dessas bagatelas?

Quereis ser senhor de uma faca ou servidor de um Deus? Não vos envergonhais, Dositeu, de fazer de um objeto o senhor de vosso coração?”

E o obrigou a desfazer-se do presente. São Dositeu gostava muito de ler as Escrituras, e sua alma muito reta fazia com que compreendesse trechos muito obscuros. Mesmo assim, quando tinha dúvidas, recorria a seu superior que não perdia ocasião de repreendê-lo rudemente e não responder às suas perguntas. Um dia, em vez de atendê-lo, enviou-o a São Sérido. O abade, já prevenido, olhou o discípulo severamente.

“Não vos compete — disse — ignorante que sois, falar sobre coisas tão elevadas. Refleti antes em vossos pecados e na vida mundana que levastes.” E o despediu com duas bofetadas. E Dositeu,  após essa humilhação, voltou tranquilamente ao seu trabalho.

Após cinco anos de noviciado, o Santo adoeceu gravemente dos pulmões. Recebendo a visita de São Barnassufo, um dos religiosos mais eminentes do convento, como estivesse sofrendo demais, implorou ao visitante:
“Meu pai, ordenai-me que morra, porque não posso mais”.

“Tenha ainda paciência” — respondeu o ancião. Após alguns dias, pediu novamente Dositeu: “Meu pai, não posso mais viver”.

E o religioso respondeu: “Ide então agora em paz, meu caro filho, apresentar- vos ante o trono da Santíssima Trindade”. Então, diz a vida dos Padres do deserto, esse bem-aventurado filho da  obediência adormeceu o sono dos justos, no seio desta bela virtude que fora como sua mãe no caminho da perfeição.

Modo errôneo de escrever hagiografias

Creio que para a grande maioria dos meus ouvintes essa vida deve ser rica em conotações um pouco estranhas. Com efeito, vemos aqui um jovem que olha para um quadro representando o Inferno, e temos a impressão de um rapaz um pouco embasbacado, tímido, que se assusta com qualquer coisa. Vem uma linda Senhora e aparece para ele. Extasiado e perplexo, ele fala com a  Senhora que, em seguida, desaparece. Então, o jovem, todo tímido e fugitivo,  vai correndo para um convento e se mete ali dentro.

Não é um homem que enfrenta a vida. No convento, ele se introduz num casulosinho, numa coisinha, numa vidinha que é a vidinha interna do convento. E vai tratar de doentes.

Então há uma transposição da vida que ele levava para uma vida muito suave, muito tranquila… Toda manhã ele entra na enfermaria, onde os doentes esticados na cama o olham com alegria. Então vai dar papinha para um, remedinho para outro; ele os agrada e todos o agradam também, deixando- o tão contente! Quando acaba o serviço, ele fica esperando o almoço, alegrinho,  satisfeito até à tarde.

Depois trata de mais uns doentinhos e acabou-se. Ele tem, é verdade, uns superiores que assustam um pouco. O episódio das bofetadas, por exemplo, é um pouco desconcertante. Mas também é verdade que aquilo entra um pouco nas regras do jogo, ele sabe que os superiores são muito bons, que fazem aquilo para quebrar sua vontade; ele então ficou com a vontade quebradinha, um  bobinho que a gente leva pela ponta do nariz.

E depois, na hora de morrer, pediu licença para expirar; deram a licença, ele foi para o Céu e está acabado. Orientarei meus comentários no  sentido de mostrar que essas conotações são erradas,  mas não em sua globalidade. A questão é que o modo pelo qual certas hagiografias são redigidas, de fato suscita essas conotações.

Trata-se de uma biografia que não tem nada de errado, exceto o seguinte: o essencial, o essencialíssimo, aquilo que explica todo o resto e lhe confere sua beleza e sua verdadeira grandeza, vem  contado tão de passagem, quase de contrabando, que se o leitor não atinar bem para isso, a perspectiva toda da vida do Santo fica errada.

Todo verdadeiro católico deve ser pessoa de profunda reflexão

Como diz a ficha, embora fosse um rapaz de poucos estudos, São Dositeu se interessava muito pela Sagrada Escritura e considerava os seus mistérios, a ponto de, às vezes, interpretar trechos   muito obscuros com uma sabedoria que espantava, porque mesmo os melhores especialistas na Bíblia não tinham alcançado aquela interpretação.

Aqui está a chave dessa alma e a explicação dessa vida religiosa. O resto é muito bonito, mas o é por causa disto, e encontra sua explicação nisto. Isto ilumina todo o resto. O que isto quer dizer? Interpretar a Sagrada Escritura retamente, penetrando nas suas profundidades,  encontrando um sentido que não ocorre muitas vezes a exegetas, cientistas experimentados, é um carisma. Para que a pessoa tenha esse carisma, é preciso um alto grau da virtude da contemplação.

Quer dizer, que seja um espírito muito profundo, sempre voltado para a cogitação das coisas elevadas e  profundas, e cuja mente está, portanto, sempre posta a considerar tudo quanto faz do modo mais elevado, a não pensar principalmente no que realiza, mas nas grandes verdades eternas e ter o seu espírito fixado nelas.

Quer dizer, devemos antes de tudo ver nele uma pessoa que, depois de ter fixado a sua atenção num quadro representando o Inferno e ter recebido uma visão de Nossa Senhora que o confirmou na virtude do temor de Deus — que São Bento considera o começo de toda sabedoria —, com um ato de reflexão lucidíssima, compreendendo quanto as coisas do mundo são traiçoeiras, quanto elas podem levar o homem para o Inferno, resolveu, por um chamado especial, abster-se de todas as coisas da Terra para levar uma vida de contemplação.

E entrou nesse mosteiro para ser eminente e fundamentalmente um homem de contemplação como, aliás — é preciso que notem bem —, deve ser todo religioso e, acrescento mais, todo bom  católico. A vida interior de que D. Chautard fala é uma vida de contemplação, de reflexão sobre as verdades eternas e sobre as coisas desta Terra à luz das verdades eternas. E todo religioso, todo sacerdote, deveria ser, antes de tudo, um homem deste tipo de reflexão, um homem de contemplação neste sentido da palavra. Todo verdadeiro católico praticante, em qualquer função, deve ser  primeiro um homem de profunda reflexão.

No nosso caso concreto, temos uma vocação diferente da de São Dositeu e, consideradas as circunstâncias, os matizes individuais que possa haver, devemos ter continuamente diante dos olhos as verdades eternas, o problema da Revolução e da Contra-Revolução. Precisamos saber ver a virtude e o pecado; quer dizer, a Lei de Deus e a violação dessa Lei, as vias de Deus e as vias do demônio  em todos os fatos que nos cercam, desde uma nova forma de microfone até uma chuva que cai e o simbolismo que a chuva tem na ordem do universo. Tudo isso devemos considerar em meditações que não são obsessiva e exclusivamente sobre a Revolução e a Contra-Revolução,

mas que, quando se fixam sobre as coisas terrenas, têm como polo natural, espontâneo, harmônico de atração a Revolução e a Contra-Revolução.

Uma vida de altíssima contemplação

São Dositeu era um homem assim. E por causa disto ele, no convento, tratando dos doentes, levava uma vida de altíssima contemplação. E, com certeza, mil e mil vezes, cuidando dos enfermos, ele teve ocasião de refletir a respeito do simbolismo moral das várias doenças, como as enfermidades do corpo simbolizam as da alma; como, de outro lado, a saúde do corpo simboliza a da alma, qual é o valor penitencial da doença  para a formação espiritual do homem; como ela pode enobrecer, formar os caracteres, e mil outras coisas desse gênero; como as almas dos doentes, ou dos monges, se iam santificando; como eles eram chamados, quer os doentes, quer os monges, a irem se transformando para cada vez mais ficarem semelhantes a Deus, obedecendo ao preceito dado por Nosso Senhor Jesus Cristo: “Sede  perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5, 48).

Tudo isso povoava o espírito de São Dositeu. E enquanto ele desempenhava a mais humilde das funções, como dar um remédio, trocar um travesseiro, aprontar uma cama limpa, não devemos  imaginá-lo monoliticamente absorto nisto, mas fazendo  tais trabalhos na perfeição, não desdenhando esta função, mas achando-a muito bela porque era uma obra de misericórdia. Contudo, longe de ficar só nisto, elevava-se aos mais altos graus da cogitação e da meditação, unindo-se com Deus Nosso Senhor.

Então, o verdadeiro perfil moral dele não é o de um bobinho que ao ser agradado fica tão contentinho, mas é o de um espírito recolhido, interior, em cujo olhar se perceberia todo um universo de  pensamento, e que, ao fazer as menores coisas, tinha em vista a grandeza a que essas coisas se dirigem, como elas de algum modo estão ordenadas a algo de mais nobre, de mais nobre, de mais  nobre, até a última perfeição que é Deus Nosso Senhor.

E é assim que devemos imaginar, na sala ou dormitório dos doentes desse convento, nosso Santo passando como uma espécie de turíbulo queimando um incenso perfeitíssimo, que elevasse todas as almas para o Céu. Assim ele deixava um sulco de recolhimento, de piedade, de vontade de sofrer, de generosidade, de conformidade com as intenções de Deus, em todos os doentes.

É desse modo que precisamos considerar este homem. Assim também o devemos observar na hora da obediência. Quando se leem essas histórias, tem-se a impressão de que são historietas. De fato são coisas sublimes. Porque não se trata de um ato isolado, de uma vez na vida de um homem um superior dizer-lhe que faça tal coisa, a qual ele não tem vontade de fazer. Estas são pequenas amostragens de uma vida inteira vivida sob a obediência, e a obediência de superiores sábios, que sabem, por causa disso, ser necessário contrariar a vontade do homem naquilo que o afasta de  Deus.

Creio ter sido São Nicolau de Flue, um santo suíço, que rezava uma jaculatória que outrora comentamos juntos: “Ó meu Deus, dai-me tudo que me une a Vós e tirai tudo que de Vós me separa.”  Esta é a obediência. O superior verdadeiro, que tem a felicidade de mandar no súdito verdadeiro — porque não basta só o superior verdadeiro —, deve a toda hora afastar do súdito as coisas que o separam de Deus, e aproximá-lo das coisas que o unem a Ele.

Despojar-se completamente do apego a si mesmo

Alguém dirá: “Mas, Dr. Plinio, haverá uma bagatela maior do que uma faca? Que importância tem tirar uma faca de um homem?” Tirar facas de um homem a vida inteira, ou coisas à maneira de  faca, de modo que sempre que se percebe que um homem tomou, ou pode vir a tomar, capricho por uma coisa dizer-lhe: — Fulano, venha cá! — Pois não, Padre Superior, o que deseja? — O que você iria fazer agora?

— Tal coisa.
— Está bom, então faça o contrário: se ia subir, desça! Embaixo eu lhe dou instruções sobre o que deve fazer.

O homem fica cinco horas embaixo esperando, sem receber as instruções, mas recolhido e sem resmungar.

Passa o Superior por lá e diz, para prová-lo:
— Oh, é verdade, você está esperando aqui! Não preciso mais de você, faça agora outra coisa.
— Pois não, Padre Superior. E sobe a escada…

Qual é o valor disso? O valor é exatamente a pessoa praticar o seguinte ato contínuo: subir ou descer, esperar ou não esperar, ter a faca ou não ter a faca, são coisas boas na medida em que me unem a Deus. E se a vontade de meu superior, que é a voz de Deus para mim, me manda fazer uma coisa, eu, que não tenho vontade própria, fazendo a de meu superior, me uno a Deus.

Quando um homem destes se levanta de manhã, ele sabe que o dia inteiro lhe vão mandar executar coisas que ele não quer. Mas ele sabe também que é Deus que está querendo.

Porque Deus o chama para o estado sublime de não ter vontade própria. E de, por causa disso, a toda hora conhecer a vontade de Deus. Isso, evidentemente, é uma verdadeira maravilha, porque significa despojar-se completamente do apego a si, e estar vivendo apenas para a vontade de Deus.

Mas, para aguentar isso, é preciso ter um espírito elevadíssimo. Não ver nisso as birras e manias de um superior, mas o desígnio da Providência, e obedecer constantemente, constantemente, constantemente.

Encontramos um exemplo admirável disso em Santa Teresinha do Menino Jesus, com aquela obediência contínua aos superiores, e uma superiora como a Madre Maria de Gonzaga… Para obter  uma licença dela, era preciso agradar o seu gato.

Santa Teresinha não agradava o gato. Mas é para compreenderem quanta injustiça de um superior é preciso aguentar, de vez em quando. Porque não é só o superior santo para o discípulo santo, mas o bonito às vezes é ver o superior não santo ridicularizando o pobre discípulo santo, e com isso crucificando o discípulo santo e levando-o para o Céu.

Há nisso uma trituração de si mesmo e um exercício de energia e de força de vontade, que tempera os homens mais fortes.

Homens capazes de derrotar a Revolução

Alguém me dirá: “Mas, Dr. Plinio, isso tem alguma relação com o espírito de epopeia que o senhor tanto admira?

Não seria muito mais razoável que esse homem fosse fazer apostolado, saísse às ruas, enfrentasse os adversários?” A única coisa razoável seria que  ele fizesse o que Deus lhe mandou fazer. E se Deus lhe deu uma atração santa e verdadeira para a vida contemplativa, é porque Ele queria que aquele homem, na contemplação, ensinasse aos outros, fizesse aos outros o admirável apostolado que é de alguém ver que alguns renunciam a tudo. Não podemos ter ideia do bem que faz a alguém, que é apegado, ver que alguns renunciam palpável e materialmente a tudo, e vivem numa vida  de renúncia contínua. Isso é um verdadeiro guindaste que leva as almas para o Céu!

Tenho notado este fato curioso: vão pessoas conversando pela rua e quando passam em frente a um convento, muitas vezes não olham; e nem dá muito para observar porque o muro é alto; e,  exceto na hora de passar diante da porta, só se vê o alto do prédio.

Mas há uma influência qualquer que parece obrigar todo mundo a falar mais baixo, a andar mais devagar, a se recolher até chegar ao outro lado. Quer dizer, há uma irradiação, uma graça que vai e volta daquilo tudo, e que unge as cercanias. Todas aquelas almas levam uma certa quietude nas paixões agitadas, depois de terem passado ali por perto.

E é apenas a carcaça, o vulto externo de um prédio que abriga uma Ordem religiosa que não se conhece, mas que se têm razões para recear que genericamente sofra dos males de que tantas outras Ordens sofrem.

São Dositeu recebeu esta vocação; portanto, era levado a cumpri-la. Mas — e isto é o que acho capital notarem —, sendo um Santo, é fora de dúvida que se a vontade de Deus exigisse a saída dele do convento para lutar contra o respeito humano, contra o mundo, contra a Revolução — que, aliás, naquele contexto histórico ainda não tinha aparecido — para lutar contra o pecado, para  batalhar de armas na mão, como um cruzado contra os maometanos, ele o faria como os homens mais vigorosos o fazem.

Como tenho certeza de que, se Nossa Senhora tivesse querido que Santa Teresinha saísse do convento para capitanear uma sublime “Chouannerie”, ela não teria estado atrás de Joana d’Arc nos  êxitos militares. Porque a alma capaz de, com profundidade de espírito, com enlevo, dominar-se a si própria, ela é capaz de tudo. E são os homens capazes de tudo que têm capacidade de derrotar a Revolução.

O espírito de epopeia nasce da vitória do homem sobre si

Por que afirmo isto? Porque quando um homem não consegue fazer o que deve, não é porque o obstáculo foi grande, mas porque ele não conseguiu vencer em si os obstáculos proporcionados àquela obra. Tomem um homem que não consegue subir uma montanha: se é um homem normalmente constituído, ele não sobe a montanha porque é alta, mas porque sua preguiça é alta. Porque se ele tem pernas e vontade de subir, sendo normalmente constituído, ele chega ao alto.

Isto se dá também com as batalhas e com as lutas de toda ordem. “Ah! eu fiquei muito acabrunhado e não pude lutar… Sabe como é… o ambiente era muito contrário…” Então me diga direito: você  não lutou, não contra o ambiente, mas contra o respeito humano que estava dentro de você, não lutou contra seu apego, sua vaidade, seu egoísmo. O segredo de sua luta era você, e como não quis lutar contra si, você diz que o adversário foi forte. Não seja hipócrita, e diga pelo menos a verdade: o adversário foi forte porque você foi fraco. A sua fraqueza é a causa de sua derrota.

Se você soubesse vencer-se com o auxílio do sobrenatural, se rezasse — e não rezou por preguiça, por espírito naturalista de que tem culpa —, se confiasse como deveria confiar, se você lutasse  contra si seria tudo completamente diferente.

O espírito de epopeia não se realiza por meio de arrancos: o indivíduo que, de repente, dá a louca e faz uma coisa extraordinária. Isto é epopeia decadente do século XV. O espírito de epopeia nasce da vitória do homem sobre si. E esta vitória o homem alcança por esta via. Deveríamos compreender bem o que é não fazer a vontade própria desde a manhã até a noite, não ter ideias esdrúxulas nem caprichos: “Agora, vou deixar esse serviço para tal hora; deram-me recado pelo telefone, mas eu esqueci porque não anotei; tal serviço deixarei para o dia seguinte…”

Por quê? Vem a resposta com a boca mole, miolo mole, dedo mole: “Ah! É porque eu achei que dava tempo…”

Precisamos estar adestrados à ideia de que devemos fazer sempre e imediatamente o dever inteiro, nunca deixá-lo para depois porque pode não dar tempo, porque pode haver preguiça. Devemos saltar como um leão em cima das obrigações desagradáveis, e fazê-las logo, desde que elas sejam inevitáveis, porque, do contrário, podemos perder o ânimo e a coragem de cumpri-las. Não se adia um trabalho só porque não se teve vontade de fazê-lo; isso é uma concessão para a preguiça. Só se adia um trabalho por causa de oração ou de saúde.

A vontade daquele que dirige os serviços aos quais estamos sujeitos é para nós a vontade de Deus. Ainda que ele esteja errado, Deus quer que obedeçamos a ele. Se compreendêssemos isto, o nosso Instituto Secular nasceria como um lírio magnífico pode nascer de um terreno abençoado. Mas, sem esse espírito de obediência, que é um espírito de luta abrangendo tudo — porque não fazer a  vontade própria é lutar em todos os campos —, estar radicado em nós, não estamos à altura do sublime ideal de um Instituto Secular. Por quê? Porque para isto não estamos ainda prontos.

Muitos me falam em preparação para os castigos prenunciados em Fátima. Se todos fôssemos homens de estar sempre nos perguntando só isto: “Qual é o sentido mais alto daquilo que devemos fazer? No que serve à causa da Revolução e da Contra-Revolução?”

E depois fizéssemos tudo por amor à causa da Contra-Revolução, e por ódio à Revolução. Se compreendêssemos que todo ato de obediência quebra o poder do demônio, lhe arranca as garras,  facilita a descida dos Anjos e transforma o aspecto da Terra, se fôssemos duros conosco no cumprimento da vontade de nossos superiores, estaríamos inteiramente preparados para os  acontecimentos  futuros. Porque o adversário jamais poderá com um punhado de homens inteiramente recolhidos e obedientes, inteiramente sobrenaturais. Esses são os homens invencíveis.

A vida de obediência faz do homem um herói

Montalembert, no prefácio da “Vida de Santa Isabel da Hungria”, conta um fato que já comentei várias vezes: um  daqueles maometanos, preso durante as guerras de Cruzadas e outras, viajando pela França, começou a observar as catedrais com aquelas torres magníficas e altivas e perguntou quem construía  esses edifícios.

Responderam que eram os irmãos  leigos de tal convento. Ele os olhou… eram homens tão humildes… E perguntou: “Mas como podem construir monumentos tão altivos homens de alma tão humilde?”

Esse maometano não tinha acertado com a solução, mas tinha compreendido o problema. A altivez perfeita, a altaneria completa e sacral como a torre de uma catedral ou de um castelo gótico dos grandes estilos, esta altaneria só as almas que  têm essa forma de humildade são capazes dela. Esses são os verdadeiros heróis das verdadeiras epopeias.

Aqui está um dado a mais para compreendermos o espírito de epopeia. Por detrás ou dentro do conceito “tempo inteiro e alma inteira”, há o seguinte elemento: vontade inteira, sem divisão, que não hesita e não vacila; que se entregou uma vez com firmeza e que frutifica na direção em que ela se deu. Esta é a raiz do espírito de epopeia. Quando se tem vontade assim não se recua diante de nada. Aquela frase de Santa Teresinha: “Para o amor nada é impossível”, diz o seguinte: Para uma alma que quer mesmo — porque amar é querer; amor não é sentimento — e a quem Deus ajuda,  nada é impossível.

Isto é o suco da epopeia. São Dositeu praticou a mais absoluta e heroica obediência, o que também é um modo de adquirir a força de vontade própria aos verdadeiros heróis das verdadeiras  epopeias.

Fazer continuamente a vontade de outros, ou seja, dos superiores para obedecer a Deus, é desapegar-se continuamente de manias, fobias, venetas e caprichos, o que supõe uma força de vontade  sobrenatural.

A vitória de um homem contra obstáculos é, principalmente, uma vitória contra si mesmo, ou seja, contra todos esses defeitos. Quando um homem não leva a cabo uma tarefa que Deus quer dele,  não é porque o obstáculo foi grande, nem porque o inimigo foi forte, ele é que foi pequeno.

Conclusão: a vida de obediência faz do homem um herói porque, vencendo-se a si próprio, com o auxílio de Deus, não há o que ele não vença. No dia em que tivermos essa plenitude de orientação   de espírito para a Revolução e a Contra-Revolução, a escravidão a Nossa Senhora, saberemos obedecer como São Dositeu, e estaremos preparados para todas as epopeias.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/2/1972)

Santo Edelberto, Rei de Kent

A história da conversão e santificação do primeiro rei católico inglês oferece a Dr. Plinio oportunidade de nos aconselhar a prática da prudência e da sabedoria semelhantes às exercitadas por Santo Edelberto, pelas quais seremos sempre capazes de escolher o bem e rejeitar o mal.

 

No dia 24 de fevereiro a Igreja celebra a festa de Santo Edelberto, Rei de Kent, na Inglaterra. Segundo nos relata o Martirológio, foi o primeiro dos príncipes dos anglos que se converteu ao cristianismo, pela evangelização do Bispo Santo Agostinho, em Canterbury, no ano de 616.

Os missionários do Papa recebidos com procissão

Sobre Santo Edelberto, diz Rohrbacher, na sua Vida dos Santos:

Em 596, o Papa São Gregório Magno enviou, sob a chefia de Santo Agostinho, um grupo de missionários à Inglaterra, então pagã. Aportando à ilha, os apóstolos fizeram saber ao Rei Edelberto de sua chegada e que lhes traziam uma mensagem de vida eterna. O soberano, que por intermédio de sua esposa já ouvira falar da religião católica, prometeu recebê-los numa entrevista pública.

Os monges chegaram em procissão, trazendo como estandarte uma cruz de prata e a imagem do Salvador pintada num quadro, entoando ladainha a Deus em prol da salvação deles e do povo pelo qual haviam se dirigido à Inglaterra. Mandou o soberano que se sentassem e eles começaram a lhe anunciar o Evangelho.

Prudente atitude do Rei Edelberto

Respondeu Edelberto: “As vossas palavras e promessas são belíssimas. Mas por serem novas e incertas, não me é dado aquiescer e deixar o que tenho observado há tão longo tempo com a nação dos ingleses. Todavia, como viestes de longe e como se me afigura perceber que desejais participar-me aquilo que julgais ser mais verdadeiro e melhor, em vez de vos opor obstáculo, vos recebemos bem e vos damos o que é necessário à vossa subsistência. Não vos impediremos de atrair para vossa religião todos quantos puderdes persuadir”.

Protegeu os cristãos, converteu príncipes e edificou igrejas

Cedeu-lhes, então, um abrigo na ilha que receberia, no futuro, o nome de Cantuária. Algum tempo depois, impressionado com o exemplo dos monges e com sua doutrina, o rei converteu-se e foi batizado. E dos vinte anos em que ainda viveu, dedicou-os à propagação da fé entre seus súditos, apoiado e exortado pelo pontífice Gregório Magno.

Protegeu os cristãos, levantou templos, fez leis admiradas e imitadas durante séculos, aplicou-se também à conversão dos príncipes vizinhos e conduziu dois deles ao cristianismo.
Faleceu Santo Edelberto em 606. Seu exemplo frutificou, pois nunca nação alguma deu à Igreja tantos reis santos quanto a Inglaterra.

Grandes figuras de fundadores da Idade Média

Aparecem-nos aqui duas grandes figuras de impulsionadores da Idade Média. Por essa breve e bela narração, podemos conceber o encontro de um insigne missionário, que é Santo Agostinho da Cantuária, com um extraordinário monarca fundador, Santo Edelberto.

Refiro-me a ele como fundador, porque da Inglaterra anterior à conversão pode-se dizer não passava senão de uma nação ainda em seus primórdios. Não havia uma civilização britânica, nem uma Inglaterra propriamente dita. Existiam apenas os germes da futura Inglaterra que, em contato com Santo Agostinho, floresceram e deram na nação em que ela se tornou posteriormente.

Magnífico preâmbulo de evangelização

A solenidade que o historiador nos descreve é, na verdade, maravilhosa. Podemos imaginar aquele rei e seus guerreiros semi-bárbaros, congregados na clareira de uma floresta, e, admirados uns, céticos outros, vêem chegando ao longe, entoando cânticos e ladainhas, Santo Agostinho com os seus monges e seguidores. Os enviados do Papa São Gregório Magno se aproximam, cumprimentam-se, são convidados a se sentar e começam as conversas entre apóstolos e futuros convertidos.

Sabedoria e simpatia

Percebe-se claramente a atitude ao mesmo tempo sábia e simpática do Rei Edelberto. Com efeito, embora se veja o coração dele tocado pela doutrina e exemplos de Santo Agostinho, ele responde com muita liberdade de movimentos e de palavras, dizendo: “Tudo o que vós nos dizeis é muito belo, mas não posso mudar de ideia tão depressa, abandonando as crenças que herdei de meus maiores. Desejo estudar melhor essas novidades que nos trazeis”.

Porém, ele o disse com notória benevolência e inclinação para aceitar o Evangelho, pois em seguida, ele agradece a Santo Agostinho e aos que o acompanhavam por terem vindo de tão longe para lhes falar, oferece-lhes um bom abrigo e lhes concede liberdade para pregarem e converterem à religião deles quantos o quisessem.

Ou seja, a posição dele em relação a Santo Agostinho revela um primeiro passo de sua alma em direção àquela verdade cujo precônio ele estava ouvindo naquele momento.

Confirmando essa sua intenção, ele facilita todas as coisas para a missão apostólica de Santo Agostinho, e este logo dá início à tarefa de evangelizar o povo e instaurar a religião católica na Inglaterra. Santo Edelberto, depois de examinar devidamente a nova doutrina, como homem consciencioso que era, abraçou-a de toda a alma. Converteu-se, tornou-se um modelo de soberano cristão, edificou igrejas, trouxe para o catolicismo outros príncipes ingleses e protegeu os súditos que foram acolhidos no grêmio da Santa Igreja Católica.

Pela ação da graça, discernimos a religião autêntica

O exemplo da conversão de Santo Edelberto nos faz deitar a atenção sobre um ponto que merece ser considerado. Trata-se de que, as condescendências primeiras que manifestamos em relação a alguma doutrina, revelam nossa simpatia: boa, quando para o bem; má, se tende para o mal.

Assim, quando alguém, de bom espírito, estranho à religião católica toma contato com esta, ver-se-á sob uma especial ação da graça, pela qual lhe é dada a possibilidade de vislumbrar — de propósito não afirmo que é dada uma certeza absoluta, mas um vislumbre — que ela tomou conhecimento da religião verdadeira. Donde, será bom todo movimento que essa pessoa faça no sentido de abraçar essa religião.

Pelo contrário, quando um católico trata com uma religião falsa, tem todos os elementos para se saber em presença de uma doutrina errônea. E, por conseguinte, todo movimento de simpatia para com tal doutrina será ruim.

Peçamos a Nossa Senhora, pelos rogos de Santo Edelberto, que nos conceda uma prudência e uma sabedoria semelhantes àquelas de que ele nos deu exemplo, e saibamos desse modo sempre escolher o bem e rejeitar o mal.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 23/2/1966)