Imaculada Conceição

Santa desde o primeiro instante

Conforme a sentença comum dos teólogos, Nossa Senhora, concebida sem pecado original, foi dotada do uso da razão desde o primeiro instante de seu ser. Portanto, já no claustro materno possuía altíssimos e sublimíssimos pensamentos, nele vivendo como num verdadeiro tabernáculo.

Assim, pode-se acreditar que a Bem-aventurada Virgem, com a elevada ciência que recebera pela graça de Deus, ainda no seio de Sant’Ana começou a pedir a vinda do Messias e, com Ele, a derrota de todo mal no gênero humano.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 8/9/1963)
Revista Dr Plinio 117 – Dezembro de 2007

A Imaculada Conceição

Primeiro dos augustos privilégios outorgados a Maria em vista da maternidade divina, a Imaculada Conceição sempre despertou na alma de Dr. Plinio um intenso e fervoroso enlevo. Eloquente prova dessa devoção podemos constatar nos comentários transcritos a seguir, exemplos dos inúmeros feitos por ele ao longo de sua gesta católica.

Na Bula “Ineffabilis Deus”, com a qual Pio IX definiu o dogma da Imaculada Conceição, encontra-se este trecho:

“A doutrina que sustenta que a Beatíssima Virgem Maria, no primeiro instante da sua conceição, por singular graça e privilégio de Deus onipotente, em vista dos méritos de Jesus Cristo, Salvador do gênero humano, foi preservada e imune de toda mancha de pecado original, essa doutrina foi revelada por Deus, e por isto deve ser crida firme e inviolavelmente por todos os fiéis.”

Rompida a lamentável herança da culpa original

O Sumo Pontífice afirma, portanto, que Nossa Senhora, por uma graça singular e em vistas dos méritos de Cristo, a partir do primeiro instante de seu ser foi isenta da mancha do pecado original. Essa doutrina foi revelada por Deus, e por isso deve ser “crida firme e inviolavelmente por todos os fiéis”.

Para se avaliar o extraordinário significado da Imaculada Conceição, é preciso ter em conta que, em conseqüência da queda de Adão, todos os seus descendentes haviam de nascer com o pecado original. Lamentável herança em virtude da qual os sentidos do homem continuamente se revoltam contra a sua razão, expondo-o a novos e incontáveis pecados.

Durante milênios verificou-se, inexorável, essa lei da maldição. Em determinado momento, porém, os Anjos assistem atônitos a um fato sem precedentes na história da humanidade decaída: Deus quebranta a funesta lei, e um ser é inteiramente concebido sem pecado original. É Nossa Senhora que surge imaculada, resplandecente, com todo o brilho e todo o fulgor de uma criatura perfeita, como o foram Adão e Eva ao saírem das mãos do Onipotente.

Pode-se imaginar que, nesse sublime instante, um frêmito de júbilo e de glória percorreu todo o universo, acentuado pelo fato de que Maria, isenta do pecado original, era também a obra-prima da criação. Acima d’Ela haveria de estar, apenas, a Humanidade santíssima de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Narra a Sagrada Escritura que o Padre Eterno, depois de concluída a obra da Criação, repousou na enlevada consideração do que Ele tinha feito. Descansou, porém, tendo-se proposto criar um ser que superasse em maravilha tudo o que até então sua onipotência realizara, uma mulher da qual haveria de nascer o Verbo Encarnado. E foi precisamente no momento da Conceição Imaculada de Nossa Senhora que Deus executou essa sua obra-prima.

“Como um exército em ordem de batalha”

Concebida sem pecado original, Nossa Senhora não sentia em si nenhuma inclinação para o que fosse ruim. Pelo contrário, possuía todas as facilidades para dar à graça de Deus uma perfeita e constante correspondência. De sorte que, n’Ela, as grandezas sobrenatural e natural se entrelaçavam numa profunda e maravilhosa harmonia.

Em conseqüência, Nossa Senhora tinha como ninguém uma altíssima noção da excelência de Deus, e da glória que Lhe devem render todas as criaturas. Por isso, nutria em sua alma vivíssimo horror ao pecado, que é um ultraje à mesma glória divina. Donde possuir Ela, também, uma ardorosa combatividade, no sentido de execrar toda forma de mal.

Compreende-se, à vista disto, porque Nossa Senhora é comparada a um exército em ordem de batalha: “sicut castrorum acies ordinata”. Ou, como d’Ela se diz, que sozinha esmagou todas as heresias na Terra inteira. Por quê? Exatamente porque, já no privilégio de sua Imaculada Conceição, Ela é o modelo de combate ao mal.

Início da vitória da Contra-Revolução

Porque concebida sem pecado original, Nossa Senhora, afirmam os teólogos, foi dotada do uso da razão desde o primeiro instante de seu ser. Portanto, já no ventre materno Ela possuía altíssimos e sublimíssimos pensamentos, vivendo no seio de Sant’Ana como num verdadeiro tabernáculo.

Temos uma confirmação indireta disso no que narra a Sagrada Escritura (Lc 1, 44) a respeito de São João Batista. Ele, que fora engendrado no pecado original, ao ouvir a voz de Nossa Senhora saudando Santa Isabel, estremeceu de alegria no seio de sua mãe.

Assim, pode-se acreditar que a Bem-aventurada Virgem, com a altíssima ciência que recebera pela graça de Deus, já no seio de Sant’Ana começou a pedir a vinda do Messias e, com Ele, a derrota de todo mal no gênero humano. E desde o ventre materno se estabeleceu, certamente, no espírito de Maria, aquele elevadíssimo intuito de vir a ser, um dia, a servidora da Mãe do Salvador.

Na realidade, por essa forma Nossa Senhora já começava a influir nos destinos da humanidade. Sua presença na Terra era uma fonte de graças para todos aqueles que d’Ela se aproximavam na sua infância, ou mesmo quando ainda se encontrava no seio de Sant’Ana. Pois se da túnica de Nosso Senhor — conta o Evangelho (Lc 8, 44-47) — se irradiavam virtudes curativas para quem a tocasse, quanto mais da Mãe de Deus, Vaso de Eleição!

Por isso, pode-se dizer que, embora fosse Ela criancinha, já em seu natal graças imensas raiaram para a humanidade. Naquele bendito momento, a vitória da Contra-Revolução começou a ser afirmada e o demônio a ser esmagado, percebendo que algo de seu cetro estava irremediavelmente partido.

Derrota dolorosa e pessoal para o demônio

Por isso, tem o demônio especial ódio à Imaculada Conceição. Esta singular prerrogativa de Nossa Senhora constituiu para ele uma derrota dolorosíssima e, por assim dizer, pessoal.

Com efeito, tendo Satanás conseguido arrastar nossos primeiros pais ao pecado original, as vantagens que lhe traria essa queda, caso não houvesse a futura Redenção, seriam simplesmente espetaculares. O homem, criatura nobre de Deus, ficou desfigurado pelo pecado e sujeito às más tendências. Com isso, tornou-se incalculável o número de pessoas capazes de cair, ao longo dos séculos, no Inferno. Portanto, imenso foi o êxito imediato que o demônio obteve com o pecado de Adão e Eva.

O único modo de anular esse triunfo do mal seria o Verbo se encarnar e, enquanto Homem-Deus, oferecer-se como vítima pela nossa salvação.

Ora, essa vitória do Bem teve sua primeira realização no nascimento de uma criatura excelsa, imaculada, que, apesar de todos os embustes do demônio, surgia livre da trama na qual ele pretendia envolver todo o gênero humano. Em favor dessa criatura, Deus rompeu a urdidura satânica, e Ela nasceu inteiramente fora da lei do pecado original. Essa criatura eleita é Maria Santíssima, Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Portanto, a raiz da salvação do mundo, o ponto de partida da Redenção da humanidade, foi o fato de Nossa Senhora ter sido concebida isenta do pecado original. Donde nos ser fácil compreender como o primeiro lance da Contra-Revolução foi, precisamente, a Imaculada Conceição de Maria Virgem, prelúdio da Encarnação do Verbo.

Invocação propícia aos contra-revolucionários

Compreendemos, de outro lado, como Nossa Senhora, concebida sem pecado original, realmente pisa na cabeça do demônio. E, portanto, o profundo sentido teológico que há no fato de se representar a imagem da Imaculada Conceição calcando a serpente.

Imaculada Conceição! Essa é a invocação propícia para os contra-revolucionários. O modelo para estes é Nossa Senhora que, ao contrário de Eva, não conversa com a serpente e, ademais, esmaga-lhe constantemente a cabeça. Tal é a atitude de espírito que devemos pedir a Nossa Senhora da Imaculada Conceição.

Pois, que outra coisa é o calcanhar da Virgem, senão os filhos que Ela suscitou para seu serviço, humildes, desapegados de honras e glórias mundanas, unicamente desejosos de serem instrumentos d’Ela para esmagar a Revolução?

Esse deve ser nosso maior anelo: sermos células vivas do glorioso calcanhar da Santíssima Virgem, a cuja pressão nada tem resistido ao longo da História!

Especial brilho da imaculada beleza de Maria

Na mesma Bula “Ineffabilis Deus”, o Papa Pio IX assim se exprime: “E depois reafirmamos a nossa mais confiante esperança na Beatíssima Virgem que, toda bela e imaculada, esmagou a cabeça venenosa da crudelíssima serpente, e trouxe a salvação ao mundo”.

É interessante notar como o Sumo Pontífice reúne, no mesmo pensamento, a beleza e o poder de Nossa Senhora. De outro lado, evoca ele, por contraste, a hediondez e a fraqueza do demônio, o qual é esmagado por Ela.

Portanto, uma vez que existe a diabólica serpente, a beleza e a perfeição da Santíssima Virgem só se manifestam completas porque Ela triunfa, vence e esmaga o demônio. Satanás é um escabelo aos pés d’Ela. Sendo Maria imaculada e soberanamente linda, não basta que todas as criaturas deste mundo, as do Céu e as do Purgatório Lhe prestem homenagem: importa que o inimigo esteja quebrado sob seu calcanhar.

Uma perfeita consideração do esplendor de Nossa Senhora envolve, portanto, a ideia do demônio estraçalhado e humilhado por Ela. Essa vitória sobre Satanás resulta em particular brilho na celestial beleza da Imaculada Conceição.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 8/9/1963)
Revista Dr Plinio 117 – Dezembro de 2007

Santa Joana de Chantal Profundidade e desapego

O que teria levado Santa Joana de Chantal a abandonar seus parentes, rompendo vínculos afetivos, para fundar uma Congregação religiosa de contemplativas? Dir-se-ia que da formação recebida do suave São Francisco de Sales resultariam atitudes bem diversas. A consideração de algumas características do espírito desta grande Santa e de seu formador projeta luz sobre o problema e nos ajuda a compreender os desígnios de Deus.

Santa Joana Francisca Frémiot de Chantal, que viveu de 1572 a 1641, fundou, com São Francisco de Sales, a Ordem da Visitação. Era viúva do Barão de Chantal, com quem tivera seis filhos. Depois do falecimento de seu marido, ela começou a sentir um atrativo para percorrer as vias mais altas da vida espiritual e passou, então, a ser influenciada por São Francisco de Sales(1).

Objeto de uma ”suave” formação

Este Santo, como sabemos, era famoso pela suavidade. Ele escreveu livros de vida espiritual que jamais seria suficiente elogiar, por exemplo, a “Filoteia” e o “Tratado do Amor de Deus”. Entretanto, sobre a suavidade dele muita coisa de errado se diz. Temos em Santa Joana de Chantal um exemplo a respeito do modo pelo qual ele tratava as senhoras a quem queria influenciar.

Certa ocasião, São Francisco de Sales encontrava-se com Madame de Chantal — a futura Santa Joana de Chantal — em um jantar, e ela estava muito bem vestida. Então ele perguntou-lhe: “Madame, a senhora pensaria de novo em casar-se?” E ela, um pouco assustada com a pergunta, respondeu: “Mas, Monsenhor, não!” Disse ele: “Numa casa onde não há artigo para vender, não se põe tabuleta…” Quer dizer, por que a senhora está tão enfeitada, se não quer se casar? Aí percebemos qual era a qualidade dessa doçura. O dito não deixava até de ter uma ironia bem mordiscante e beliscante!

Passou sobre o corpo de seu próprio filho

Sob o bafejo da orientação dele, Joana de Chantal foi se transformando numa grande santa. Em certo momento, ela quis adotar o estado religioso. Deu-se, então, este episódio clássico de sua vida, fruto da direção de São Francisco de Sales:

Chegado o dia de sua partida, Santa Joana, que era viúva, devia deixar os seus familiares para ir para o convento que ela ia fundar. A santa viúva, que morava com seu sogro, ajoelhou-se pedindo-lhe a bênção e que lhe perdoasse se lhe desgostara em alguma coisa, e recomendou-lhe seu filho. O ancião de 86 anos estava inconsolável, abraçou sua nora e desejou-lhe completa felicidade. Os habitantes da região de Monteron, sobretudo os pobres, acreditando que com essa partida tudo perdiam, testemunhavam publicamente a sua dor. Em Dijon, ela fortificou-se com a Santa Comunhão contra a fraqueza que ela previa aproximar-se quando da separação de seu filho.

Enfim, chegando a hora, disse adeus a todos os seus parentes. Depois, ajoelhando-se aos pés de seu pai, pediu-lhe a bênção e que cuidasse do filho que ela deixava. Monsieur Frémiot, o velho presidente do Parlamento de Bourgoin, sentia-se desfalecer. Abraçou chorando a sua filha e disse: “Meu Deus, não me compete mudar os vossos desígnios. Eu vos ofereço esta filha querida, recebei-a e consolai-me”. Depois, deu-lhe a bênção e ajudou-a a se erguer. O jovem Chantal, seu filho de 15 anos, correu para ela e prendeu-se a seu pescoço, esperando comovê-la. Não tendo êxito, deitou-se ante a porta por onde ela deveria sair e lhe disse: “Sou muito fraco, senhora, para vos reter, mas ao menos dirão que passastes sobre o corpo de vosso filho para abandoná-lo”. A santa chorou amargamente passando pelo jovem, mas instantes depois, temendo que pensasse que se arrependia de sua decisão, voltou para os que a acompanhavam e com uma face serena disse: “É preciso que perdoeis a minha fraqueza, pois deixo meu pai e meu filho para sempre, mas encontrei o meu Deus em toda parte”.

Vemos o trágico da cena! Santa Joana de Chantal era viúva, uma pessoa boníssima, cumpridora dos seus deveres de família e capaz de atrair toda a amizade, todo o afeto de uma família boa. Portanto, era muitíssimo estimada por todos os seus. Quando ela era o arrimo — do ponto de vista afetivo e não financeiro — de seu velho sogro, de seu pai, de seu filho, Deus a tocou com a graça da vocação e pediu-lhe que estraçalhasse aqueles vínculos de afeto constituídos em torno dela, para ser fundadora de uma nova família religiosa. E fundadora contemplativa, de maneira tal que não mais a poderiam ver. E ela, cuja bondade tinha criado aqueles vínculos, era chamada a renunciar a eles e, por assim dizer, destruí-los. Era uma superação de toda a vida anterior dela. Santa Joana até então tinha sido ótima, como membro de família. Deus pedia-lhe que oferecesse algo a mais do que a bondade que se tem na família, e era a bondade que se adquire adotando o estado religioso e rompendo com os laços de família, entretanto, tão santos. E então, se determina aqui uma situação trágica: ela vai abandonar seu sogro, seu pai e seu filho.

Uma cena que não se passaria hoje

Atualmente se perdeu o senso de gravidade das coisas. Se imaginássemos a mesma situação realizada hoje, teríamos uma diferença muito grande de ambientes que constituiria no seguinte: tudo se passaria com muito menos solenidade e gravidade. Não podemos supor hoje uma senhora viúva, moça, que deixe a casa paterna para entrar em um convento e que faz todo esse cerimonial antes de ir embora: ajoelha-se diante do ancião de 86 anos, pede-lhe perdão por tudo quanto lhe fez, e lhe roga a bênção; e o ancião, quase como uma figura de tragédia grega, se despede dela com lágrimas e a entrega a Deus. Depois, a despedida de seu velho pai: nova genuflexão, novas lágrimas. E por fim o lance dramático do filho, que se pendurou ao pescoço da mãe, pedindo-lhe para não entrar no convento. Ela recusou-se. Ele, então, deitou-se na soleira da porta e disse: “Já que eu não tive força para vos reter, ao menos se dirá que a senhora passou sobre o corpo de seu filho para ir para o convento”. Quer dizer, “a senhora está me abandonando!” Percebemos o trágico de todos esses lances.

Por que em nossos dias esta cena não se passaria com tanto cerimonial? Porque fomos habituados a não entrar no fundo do significado das coisas, e a nos incomodarmos somente conosco. Resultado, para o velho sogro o problema importante é o jornal que chega de manhã, o leitezinho que ele toma, a televisão, o chinelo, a saúde, os cuidados pessoais de toda ordem. Lê uma notícia sobre transplante de coração para ver se seria possível transplantar um nele, prolongando sua vida por mais 30 anos. Isso é o importante! A nora, que vai ou não para o convento, é uma coisa acessória, porque, se ela faltar, ele contrata uma enfermeira, e a vida continua do mesmo jeito.

Ademais, a ideia de ir para o convento não se reveste daquele aspecto semitrágico de antigamente. O senso da Cruz, da gravidade das coisas, o senso de toda a renúncia que significa alguém tornar-se religioso, o senso de toda a dignidade que a pessoa assume ao abraçar esse estado, daquele conúbio com Nosso Senhor Jesus Cristo com toda a serenidade que traz, os espíritos perderam a noção disto. O resultado é que os grandes lances não têm mais essa acuidade, esse caráter dramático; são episódios banais.

As pessoas assistem, na televisão ou no cinema, a tantos dramas, romances, tantas despedidas, tantos reencontros, que todo mundo está saturado. Assim, os atos da vida cotidiana que teriam grandeza se esvaziam completamente.

Profundidade de espírito e amor a Deus

Então, qual é a grande lição que devemos tirar daí? Antes de tudo, considerar o espírito profundo de Santa Joana de Chantal que correspondeu à vocação, compreendeu que a família é uma instituição tal que, quando Deus lhe dá tudo, ela se supera e tende a produzir religiosos, missionários, guerreiros, apóstolos que são obrigados a se separar dela. E esta espécie de superação, por onde ela se entrega completamente, é a glória da família.

Também a profundidade de espírito desta Santa — renunciando a tudo para ser religiosa — e do ambiente de Civilização Cristã em que ela vivia, onde tudo se media, se pesava, e que, por causa disso, se revestiam de solenidade e de características próprias todos os atos da vida.

Essa profundidade de espírito prepara a alma para amar a Deus. O Reino dos Céus é dos violentos(2) , está escrito no Evangelho. O Reino dos Céus é dos profundos, pois é a violência dos profundos — tantas vezes chamados de fanáticos pela linguagem da impiedade — que agrada a Deus.

Peçamos a Nossa Senhora que nos obtenha essa profundidade de espírito, e que nosso Movimento procure incutir em seus membros, de todos os modos, essa profundidade, que é a seriedade, a abnegação, e o contrário do egoísmo, de modo a termos almas capazes de encher-se da graça de Deus, nosso Senhor, concedida pelas mãos de Maria.

Suavidade e exigência

Santa Joana de Chantal fundou a Ordem da Visitação cujas freiras são estritamente contemplativas. Encontramos nessa Ordem outro traço do espírito dela e de São Francisco de Sales: o sentido de não ter propriedade particular é levado tão longe nessa Ordem, que as religiosas se consagram a serviços comuns, por exemplo, bordados, vendidos para a manutenção delas. São Francisco de Sales, que fez essa regra com Santa Joana de Chantal, determinou o seguinte: nunca uma freira faça um bordado inteiro; os bordados são rotativos dentro da casa, para ninguém ter apego ao trabalho que fez.

Vemos como, nos últimos pormenores, foi levada longe a noção de propriedade comum para produzir o desapego completo. De tal maneira o direito de propriedade é de acordo com a natureza humana, que quando um indivíduo é chamado a um estado de vida no qual não deve possuir, é necessário um grande zelo para não se apegar à propriedade. Por isso os grandes fundadores de Ordens tomam muito cuidado para evitar qualquer forma de apego, de apropriação.

Dois aspectos dignos de nota são, em primeiro lugar, a importância das Ordens contemplativas. Numa época cheia dessas Ordens e em que havia muitas vocações para elas, São Francisco de Sales funda, com Santa Joana, mais uma Ordem contemplativa. Vemos, assim, o quanto isso é um tesouro que nunca haverá na Igreja em quantidade suficiente. Não há o que baste, desde que a Ordem seja realmente fervorosa.

Outra consideração interessante é a necessidade dessas Ordens contemplativas constituírem famílias de almas na Igreja, cada uma com seu espírito próprio, formando uma espécie de mosaico onde se vê um tom diverso em cada Ordem. Na Visitação, a suavidade, mas, de outro lado, a extrema exigência em tudo aquilo que se refere à verdadeira virtude.

Temos, assim, alguns dados que podem servir para uma meditação sobre a vida de Santa Joana de Chantal.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 21/8/1965 e 20/8/1968)

 

1) Não possuímos os dados bibliográficos da ficha lida por Dr. Plinio nesta conferência.
2) Cf. Mt 11, 12.

Santo Ambrósio, Bispo e Doutor da Igreja

Foi por aclamação popular que Santo Ambrósio ascendeu à dignidade episcopal: “vox populi, vox Dei”.

A respeito de Santo Ambrósio, Bispo, Confessor e Doutor da Igreja, Dom Guéranger fornece alguns traços biográficos:

Ainda adolescente, Ambrósio apresentava gravemente sua mão para ser osculada por sua mãe e sua irmã por-que, dizia ele: “Esta mão será um dia a de um Bispo”.

Vemos o que é a compenetração da dignidade episcopal: Como essa mão viria a ser um dia a de um Bispo, beije-a desde já. E fazia isso não por vaidade, nem por orgulho, mas por amor à dignidade episcopal. É realmente magnífico!

A honra de pertencer à Igreja

Pode-se crer que se a vontade divina não tivesse irrevogavelmente condenado o Império Romano a perecer, influências como as de Ambrósio, exercidas sobre um príncipe de coração reto, teriam evitado sua ruína. Sua máxima era firme, mas ela não devia ser aplicada senão nas sociedades novas, que surgiriam depois da queda do Império.

Santo Ambrósio dizia: Não há titulo mais honroso para um imperador do que “filho da Igreja”. O imperador é membro da Igreja, e não está acima dela.

Santo Ambrósio e outros Doutores da Igreja precisaram lutar contra uma tradição que permaneceu entre os imperadores romanos cristãos, a qual procedia do tempo do paganismo.

Na época do paganismo clássico, não havia propriamente uma igreja pagã, nem a distinção entre as duas sociedades, igreja e Estado, como Nosso Senhor Jesus Cristo instituiu. Mas o Estado pagão era um Estado-igreja, que, ao mesmo tempo, promovia a vida temporal, o culto e dispunha a respeito de todos os assuntos religiosos. De maneira que os imperadores romanos  habitualmente se consideravam chefes da religião. E, quando eles morriam, eram até “deificados”, elevados à condição de deuses.

Quando surgiu o Cristianismo, muitos imperadores romanos, por hábito mental, se consideravam os chefes da Religião Católica, dando origem a enormes atritos, como o de Santo Ambrósio com o Imperador Teodósio.

É conhecido o fato de que o Imperador Teodósio, não querendo subordinar-se à ordem de Santo Ambrósio, Bispo de Milão, foi à igreja, acompanhado de todo o seu séquito, depois de ter sido excomungado. Ele encontrou Santo Ambrósio com seu clero na entrada do templo, que lhe proibiu entrar. E Teodósio retrocedeu.

Então, Dom Guéranger comenta esta máxima de Santo Ambrósio: “Nada é mais honroso para o imperador do que ser filho da Igreja. O imperador está na Igreja, e não acima da Igreja”. Quer dizer, para o imperador o grande título de honra é o de católico. Por isso, após a queda do Império Romano, os soberanos católicos colocavam toda a sua honra em ligar seus cargos a títulos religiosos. Assim surgiram o Sacro Império Romano Alemão e os títulos de Rei Apostólico para os reis da Hungria; Rei Cristianíssimo aos da França; Defensor da Fé, concedido a Henri-que VIII da Inglaterra, antes de ele apostatar; Reis Católicos aos soberanos da Espanha; Rei Fidelíssimo ao monarca de Portugal.

É bonita a observação feita por Dom Guéranger, pois o título imperial ou real, que é o mais alto dos títulos humanos, vale pouco se não vem conjugado de alguma forma com a Igreja Católica.Entusiasta da virgindade

Santo Ambrósio é um dos Padres do quarto século que mais vivamente exprimiu as grandezas do ministério na pessoa de Maria. Esta terna predileção por Nossa Senhora explica o entusiasmo de que Ambrósio estava repleto pela virgindade cristã, da qual ele merece ser considerado o doutor especial. Nenhum dos Padres o igualou no encanto e na eloquência com os quais ele proclamou a dignidade e a felicidade das virgens.

Esse é um lindo título que cabe a Santo Ambrósio. De todos os Doutores da Igreja, foi o que melhor estudou a virtude da virgindade; aquele que, com delicadeza de linguagem e de alma inexcedível, soube tratar do tema de maneira a não só firmar a convicção de que a virgindade é uma virtude excelsa, mas ainda proporcionar uma verdadeira apetência da virgindade. Valeria a pena, algum dia, comentarmos aqui os sermões de Santo Ambrósio sobre a virgindade; é tudo quanto há de mais belo.

Zeloso pela dignidade externa

Santo Ambrósio preocupava-se com que os ministros da Igreja apresentassem grande dignidade externamente. Não aceitava em seu clero quem não tivesse uma presença respeitosa. Assim, não admitiu um seu amigo porque notou em seu modo de andar algo menos próprio.

Conheço o caso de uma senhora, cujo filho estava querendo ser padre. Certa vez ela entrou num bonde e viu um padre tão sujo de tabaco, com o cabelo tão despenteado, que essa senhora disse o seguinte: “Meu filho jamais será padre.”

Era um raciocínio errado, mas com certo fundo de razão. Quer dizer, se numa classe os homens se apresentam assim, não convém pertencer a essa classe. A ideia é muito verdadeira: quando uma pessoa é altamente respeitável, até no seu físico uma respeitabilidade transparece. Compreende-se, portanto, como Santo Ambrósio tinha profundamente razão.

Apostolado de presença

Santo Ambrósio combateu os hereges e converteu Santo Agostinho.

Santo Agostinho conta que ele tinha verdadeira fascinação por Santo Ambrósio. Então, de vez em quando, ele ia à casa do santo Bispo de Milão, metia-se na sala onde ele estava escrevendo e ficava sentado, na esperança de que Santo Ambrósio lhe dissesse alguma palavra. E Santo Ambrósio, muito ocupado com os trabalhos, não dava entrada a Santo Agostinho. Mas, pelo fato de ver Santo Ambrósio trabalhar, estar ali na atmosfera criada pelo Bispo de Milão, ele sentia que aquilo fazia muito bem para sua alma.

Por isso, e devido a alguns colóquios que eles tiveram, bem como por causa das obras de Santo Ambrósio, algumas das quais Santo Agostinho conheceu antes da conversão, se pode dizer que Santo Ambrósio cooperou constantemente para esse fato que talvez seja o mais importante da sua vida: não foram os livros que ele escreveu, nem as obras que realizou, mas ter convertido Santo Agostinho. Somente essa conversão é um capítulo na História do mundo e na História da Igreja.

Vemos aqui duas coisas bonitas em Santo Ambrósio: em primeiro lugar, o apostolado de presença.

Insistimos tanto sobre o alcance desse apostolado. Muitas pessoas pensam que valem para o nosso Movimento na medida em que falam, atuam, trabalham. Claro está que isso tudo é muito bom.

Mas há um apostolado de presença, que pode ser muito melhor; e desse fato deu provas muito eloquentes Santo Ambrósio em face de Santo Agostinho.

De outro lado, notamos a confiança na Providência Divina. Se Santo Ambrósio fosse superficial, ele cessaria todos seus trabalhos para fazer uma pescaria apostólica com Santo Agostinho. Depois ele iria trabalhar desordenadamente; pior, minguaria seus livros e escreveria uns “livrequinhos” superficiais, para ter tempo de conversar com Santo Agostinho.

Porém, confiante na Providência, no amor de Deus, na Igreja Católica, ele fazia o que estava dentro de suas possibilidades. Era vontade de Deus que Santo Ambrósio escrevesse um livro, e ele o fazia com perfeição. E que Santo Agostinho aproveitasse as beiradas que encontrasse; Deus haveria de prover. E, de fato, proveu.

Quer dizer, essa confiança na Providência, não querer fazer loucuras, absurdos, mas ser temperante, inclusive no próprio zelo apostólico, é rica em lições para nós.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 7/12/1964 e 6/12/1966)

Síntese esplendorosa

Conforme nos ensina a Bula “Ineffabilis Deus”, a beleza e a perfeição da Santíssima Virgem só se manifestam completas porque Ela triunfa, vence e aniquila o demônio. Satanás é um escabelo aos  pés d’Ela.

Sendo Maria imaculada e soberanamente formosa, não basta que todas as criaturas deste mundo, as do Céu e as do Purgatório  Lhe prestem homenagem: importa que o inimigo esteja esmagado
sob seu calcanhar.

Uma perfeita consideração do esplendor de Nossa Senhora envolve, portanto, a ideia do demônio inteiramente subjugado e humilhado por Ela. Essa vitória sobre Satanás dá um particular brilho à celestial beleza da Imaculada Conceição.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Herói na luta contra os inimigos da Igreja

Devido a tramas efetuadas por hereges contra São João Damasceno, sua mão direita foi amputada por ordem do califa. O Santo recorreu a Nossa Senhora e a mão milagrosamente uniu-se ao  antebraço. Ele tornou-se um dos maiores Doutores da Igreja, famoso por seu talento, sua doçura e implacável heroicidade na luta contra os inimigos da Igreja.

Comentaremos uma ficha tirada do livro “Vie des Saints”, de Emanuel d’Alzon, a respeito de São João Damasceno.

Um eremita muito culto é salvo da morte

A narração explica que São João Damasceno era do Oriente Próximo. Seu pai, Sérgio Mansur, católico e ministro de um califa maometano, Abdal Malique, homem terrível, mas que gostava muito de Mansur porque este era um personagem de muito valor, criterioso.

Certo dia, Mansur saiu à rua e viu um número enorme de católicos sendo conduzidos para a morte. Então prometeu interceder por eles e salvá-los, o que efetivamente conseguiu do califa, junto a quem gozava de enorme prestígio.

Mas ele notou entre os prisioneiros – vejam os vaivéns da Providência – um que portava os trajes e tinha todo o jeito de um eremita. Naquele tempo, os eremitas usavam uma roupa que  vagamente lembrava o burel de um franciscano, moravam no deserto, em grutas, inteiramente sós, e eram personagens grandiosos. Ele notou que esse eremita estava com muito receio de morrer, e lhe disse:
– Eu compreendo que os outros estejam receosos; mas o senhor, um homem que abandonou o mundo, com medo de morrer? Confesso ao senhor o desapontamento que isso me causa. E o eremita deu-lhe esta resposta:
– “De morrer não tenho medo. Mas o que me causa apreensão é tudo quanto estudei em minha vida, e que o senhor não sabe.

Então vem uma dessas enumerações orientais pitorescas de tudo quanto ele estudou. Um homem sozinho, numa toca qualquer, tinha, além de tudo, aprendido oratória. Subia num montículo e falava para populações inexistentes.

Continuou o eremita:
– “Eu achava que tudo isso era para o serviço de Deus. E eis que agora estou fadado a morrer com a inutilidade de tudo que aprendi.

– Mas eu obtive do califa libertação de todos: o senhor está salvo – tranquilizou-o Mansur.

O eremita deu extraordinárias manifestações de contentamento. Mas o benfeitor lhe disse:
– Há uma condição: tenho dois filhos, e queria que o senhor viesse morar comigo e utilizasse toda a sua ciência para ensiná-los. Um desses filhos, o do segundo casamento, era João, futuro Doutor da Igreja e conhecido como São João Damasceno.

O eremita respondeu:
– Depois de o senhor salvar minha vida, estou ao seu dispor.

Hereges envolveram São João Damasceno numa intriga

Pelos desígnios da Providência, esse homem tinha sido chamado para uma ermida e ali encher-se de uma ciência extraordinária, sem saber definidamente o que Deus queria dele. Possuía, porém, uma noção interior tão grande e firme de se tratar realmente de um desígnio divino, que quando ele se viu condenado à morte, sem que esses conhecimentos fossem utilizados, sofreu um verdadeiro golpe.

Ele não sabia que essa tragédia a qual iria aproximá-lo da morte e consagrar a inutilidade de todos os seus esforços, na realidade fá-lo-ia encontrar o aluno em ordem a quem toda essa sabedoria tinha sido acumulada. E que ele seria célebre enquanto São João Damasceno o fosse, exatamente por causa do seu papel nessa celebridade. Esse anacoreta era como uma abelha, dotada de todo o mel da cultura antiga para nutrir um Doutor da Igreja.

A nota biográfica conta que São João Damasceno era muito bom aluno, inteligente, e aproveitou profundamente a ciência de seu preceptor. Entretanto, como se tratava daquele regime de politicagem do Oriente, os hereges envolveram São João Damasceno numa intriga.

O Imperador de Constantinopla estava em guerra contra o Califa de Damasco ao qual servia o pai de São João Damasceno. Um inimigo de Mansur, querendo comprometê-lo para que ele – ou seu filho João – fosse morto, escreveu uma carta falsa em nome de São João Damasceno ao Imperador de Constantinopla, na qual dizia admirar muito o Imperador, e que sendo católico não podia resignar-se diante da ideia de que os católicos fossem presos. Então, convidava o Imperador a invadir e tomar conta do califado, pois João e seu pai se levantariam para derrubar o califa.

O Imperador – herege iconoclasta chamado Leão III, o Isáurico – mandou a carta para Abdal Malique, dizendo estimá-lo tanto que lhe enviava aquela missiva como prova de lealdade, pois, podendo levantar esses súditos contra o califa, enviava-lhe a carta para que ele pudesse exterminar aqueles traidores.

O califa manda cortar a mão direita de São João Damasceno

Ao receber a carta, o califa ficou indignado e, sendo um homem de temperamento explosivo, mandou que carrascos agarrassem São João Damasceno e lhe cortassem a mão direita, como castigo. E só não o mandava matar por causa do grande prestígio que Mansur tinha junto a ele.

A ordem foi cumprida e São João Damasceno perdeu a mão, mas pediu ao califa que, ao menos, lhe entregasse o membro amputado para enterrá-lo. O califa acedeu ao pedido, pensando em tudo, menos no que poderia vir a acontecer.

São João Damasceno, de posse da mão cortada foi para o Oratório e começou a rezar, pedindo a Nossa Senhora que lhe restituísse a mão perdida. Deu-se, então, um milagre espetacular: a mão uniu-se ao corpo.

Diante do milagre, o califa contemporizou, soltou São João Damasceno que retomou seus escritos e sua pregação, tornando-se um dos maiores Doutores da Igreja, famoso por seu talento, por sua doçura e por sua implacável heroicidade na luta contra os inimigos da Igreja.

Imaginem o golpe para a Cristandade se São João Damasceno não pudesse expandir em todo o seu esplendor o brilho de sua palavra, em defesa da Igreja nas crises daquela ocasião.

Por outro lado, com o mestre se dá algo à maneira do que se passou com o discípulo: condenado à morte, vai perder todo o seu talento. Nesse episódio o mestre conhece o discípulo para o qual ele nasceu, e seu talento se eterniza na pessoa de São João Damasceno. Este, por sua vez, tem a mão cortada, a carreira prejudicada, a vida golpeada. Depois, um magnífico milagre e a prova de que Deus estava com ele. Admiração para todos os católicos da Ásia Menor e para a catolicidade inteira, ficando assim com um grande prestígio para pregar a palavra de Deus. Antes disso, porém, Deus quis levá-lo às sombras da morte.

“Em tua luz veremos a Luz”

Não posso me esquecer de que na Faculdade “Sedes Sapientiæ”, onde fui professor, havia uma capela que não era bonita, mas na qual existiam coisas muito bonitas: um vitral representando Nosso Senhor e, embaixo, esta frase da Escritura: “Ainda que eu caminhe nas sombras da morte, não temerei os males” (Sl 22, 4). Depois, outro vitral, do qual não me lembro a figura, com uma frase belíssima: “Iluminados por tua luz, veremos a Luz” (Sl 35, 10).

“Ainda que eu caminhe nas sombras da morte, não temerei os males”. O que significa isso para nossa vocação? Mesmo que os mais tenebrosos obstáculos se oponham ao caminhar da nossa vocação, não temeremos os males e continuaremos a andar serenamente, porque Nossa Senhora abrirá os caminhos e nós os transporemos, e chegaremos até o fim, desde que sejamos verdadeiramente devotos d’Ela.

“Iluminados por tua luz, veremos a Luz”. Embora eu não seja um exegeta, creio que essa frase pode ser aplicada a Maria Santíssima. Ela é uma luz, e à luz d’Ela vemos a Luz de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Essas duas frases têm relação com a vida de São João Damasceno. As sombras da morte rodearam o preceptor dele, mas este encontrou a vida achando seu discípulo. O mesmo na vida de São João Damasceno. As sombras da morte o rodearam nesse golpe tão duro. Ainda aí ele não temeu os males; sua mão se recompôs e ele recomeçou.

Isso nos leva a uma confiança cega em Nossa Senhora. Se confiarmos, teremos tudo; se não confiarmos, nada possuiremos.

A expressão “Em tua luz veremos a Luz”, como é adequada quando estamos diante de uma imagem da Santíssima Virgem tendo ao colo o Menino Jesus! É uma luz e, junto a Ela está a Luz das luzes. E à luz de Nossa Senhora de Coromoto, vemos o Menino Jesus. Não pode haver nada mais bonito do que isso! Aí fica a figura enternecedora dessa imagem e a graça dada a um índio da América do Sul, fixadas no firmamento da Igreja à memória gloriosa de São João Damasceno.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/5/1976)
Revista Dr. Plinio 237 – Dezembro de 2017

São Silverio – O ódio sacral da Igreja militante

Está na índole da heresia ser brutal, falsa, visar o extermínio. Os hereges empreenderam tudo contra São Silvério, entretanto nada conseguiram porque ele se manteve firme e fiel.

A má-fé do herege deve ser vencida por meio de atitudes que o desmoralizem aos olhos de terceiros, para que ele não possa ser nocivo. A Igreja é militante, e é com espírito de luta que se deve combater as heresias.

Nós estamos numa guerra declarada e a mais terrível de todas, porque é a guerra entre os filhos da serpente e os filhos da Virgem.

São Luís Grignion de Montfort disse muito bem que essa inimizade sempre existirá, pois tudo quanto Deus faz é perfeito, e essa é a única estabelecida por Ele: “Inimicitias ponam” (Gn 3, 15). É uma inimizade perfeita que ressalva o desejo de salvar as almas dos hereges, mas vai até o extremo do ódio sobrenatural. Desse ódio sacral as nossas almas devem estar cheias, fazendo de nós os apóstolos dos últimos tempos, combativos, zelosos, intransigentes; e nunca apóstolos abobados e traidores da causa que deveriam defender. Eis a grande lição que se desprende da bela vida de São Silvério.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/6/1967)
Revista Dr Plinio 261 (Dezembro de 2019)

Santa desde o primeiro instante

Conforme a sentença comum dos teólogos, Nossa Senhora, concebida sem pecado original, foi dotada do uso da razão desde o primeiro instante de seu ser. Portanto, já no claustro materno possuía altíssimos e sublimíssimos pensamentos, nele vivendo como num verdadeiro tabernáculo. Assim, pode-se acreditar que a Bem-aventurada Virgem, com a elevada ciência que recebera pela graça de Deus, ainda no seio de Sant’Ana começou a pedir a vinda do Messias e, com Ele, a derrota de todo mal no gênero humano.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 8/9/1963)

São Nicolau

Personagem envolto na áurea e inocente legenda natalina, São Nicolau foi um modelo de caridade cristã, desvelado benfeitor do próximo mais necessitado, ao qual prodigalizava seu auxílio, sem que ele soubesse de onde viera o inestimável socorro.

Príncipe da Igreja, sucessor dos Apóstolos, sua compaixão e generosidade o tornaram para sempre essa figura mítica, repassada de bondade e carinho, fonte das alegrias e sorrisos com que as crianças festejam seus presentes de Natal.

Também eu, quando menino, aguardava ansioso a manhã do 25 de dezembro, na certeza de que o bom São Nicolau viria durante a noite depositar aos pés de nossa cama os brinquedos que tanto desejávamos. E ele os trazia sempre…

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Santo Annon: energia e astúcia

Utilizando sapiencialmente as qualidades que Deus lhe havia concedido, Santo Annon salvou a Reforma Gregoriana que estava passando por um gravíssimo período. Sua figura nos ajuda a compreender melhor a verdadeira fisionomia da Igreja.

Santo Annon, bispo e confessor, é um dos grandes e pouco conhecidos Santos da Idade Média. A seu respeito, temos a seguinte ficha preparada por um dos membros de nosso Movimento.

Pessoa de trato verdadeiramente agradável

Santo Annon é um dos grandes santos dos primeiros anos do Sacro Império Romano Alemão. Seus altos feitos ficaram registrados não só na História, como na Literatura, pois sobre a sua vida foi escrito um poema em 876 versos, clássico da literatura medieval alemã.

Professor da escola de Bamberg, Arcebispo de Colônia e Chanceler do Sacro Império, fundador de mosteiros, a ele se deve também, em grande parte, a introdução da reforma cluniacense na Alemanha.

Era uma personalidade invulgar. De porte majestoso, bem proporcionado, seus contemporâneos o descreviam como um belo homem, grande orador, e não menor “causeur”, suas aulas e sua prosa prendiam a atenção de todos os que o ouviam, nele admirando não só a ciência, como a ortodoxia de seu pensamento. A amenidade de seu trato e a extraordinária, e mais tarde legendária, energia impunham a todos respeito e veneração.

É uma bonita descrição de um desses homens completos, muito bem constituídos fisicamente e com essa dupla qualidade: um trato muito ameno, orador, “causeur” brilhante, e homem muito enérgico. Isto demonstra quanto é verdade aquilo que o liberalismo procura ignorar: a pessoa seriamente enérgica, quando não é ocasião de usar de energia, deve ser de um trato muito agradável. E a pessoa de um trato verdadeiramente agradável, nas horas de energia, sabe ser enérgica.

O que vem a ser um trato verdadeiramente agradável? Não o de um palhaço qualquer que conta anedotas, mas é um relacionamento elevado, nobre que, ao mesmo tempo, distrai, agrada e deixa a pessoa dignificada, enobrecida. Esse era o trato de Santo Annon.

Glorioso cooperador da Reforma Gregoriana

Continua o texto:
Em 1062, num período difícil da Reforma Gregoriana, ele a salvou de uma crise que poderia ter sido fatal.

Antes de São Gregório VII, a Igreja passou por vacilações enormes, por crises, por depressões morais tremendas. E essas crises morais foram todas elas contrariadas pelo movimento de Reforma Gregoriana, que São Gregório VII, então cardeal, impôs através de vários Papas que eram discípulos dele, e depois ele mesmo, elevado ao Pontificado, com uma energia não excedida e talvez não igualada, levou à sua perfeição. A esse movimento restaura-dor, um dos maiores que tenham havido dentro da Igreja, costuma-se chamar de Reforma Gregoriana. E foi uma glória de Santo Annon ter cooperado para essa reforma.

Dificuldades em época de sucessivos papas

Com efeito, Estevão IX, o primeiro Papa eleito pelo povo romano sem consulta ao Imperador, enviou ao Sacro Império o monge Hildebrando para convencer a Imperatriz Inês, que governava na menoridade do filho, futuro Henrique IV, a reconhecer a eleição. A Imperatriz Inês, que era Condessa de Poitiers e foi educada num ambiente cluniacense, não opôs dificuldades em aceitar. Mas Estevão IX morrera antes da volta de Hildebrando. Na hora da morte, o Papa fizera o clero e a nobreza jurarem que não elegeriam um novo soberano pontífice antes de Hildebrando chegar. Não respeitando o juramento, o clero e a nobreza se reuniram logo depois dos funerais, e elegeram o Santo Padre.

São Pedro Damião, Cardeal-Arcebispo de Óstia, protestou e fugiu de Roma, indo ao encontro de Hildebrando, que estava em Florença, e logo reuniram um Sínodo. Foi eleito Nicolau II, que a Imperatriz também reconheceu. As dificuldades começaram quando Nicolau II decretou que a eleição dos Papas seria feita pelo Colégio dos Cardeais.

A nobreza romana revoltou-se. E os adversários da Reforma Gregoriana conseguiram convencer a Imperatriz de que não devia aceitar o decreto. Pouco depois morreu Nicolau II, e Hildebrando fez o Sacro Colégio elevar ao sólio pontifício Alexandre II. O episcopado da Lombardia e alguns bispos alemães, com a anuência da Imperatriz, reuniram-se e elegeram o antipapa Cádalo, Bispo de Parma, que tomou o nome de Honório II.

Quem deve eleger o Papa? Questão decisiva para o êxito da Reforma Gregoriana

Aqui estava em jogo uma questão muito importante. A eleição do Santo Padre foi, em todos os tempos, um dos elementos decisivos da política mundial, tanto mais na Idade Média, quando o mundo era muito mais católico do que hoje e, portanto, muito mais sensível a qualquer pensamento, vontade, pronunciamento ou ato do Sumo Pontífice.

Porém, se tinha importância a eleição de um Papa, outra pergunta também era muito importante: quem o elegeria? Vemos definirem-se duas tendências diversas: uma que considerava estarem os nobres e o clero de Roma habilitados a eleger o Pontífice; outra julgava que este deveria ser escolhido pelo Sacro Colégio.

Em rigor, não era contra a instituição divina que o Papa fosse eleito pelos nobres e clero de Roma. O Direito Canônico pode atribuir-lhes tal faculdade como poderia concedê-la também ao povo romano. Mas do ponto de vista da conveniência, quer dizer, para assegurar melhor a eleição de um Papa digno do cargo, era muito preferível naquele tempo — e o é em tempos normais — que a escolha fosse feita pelo Sacro Colégio, pois este representa uma aristocracia, uma elite dentro da Igreja, sendo um conjunto de clérigos considerados mais eminentes, pre-claros e seguros pelos Pontífices anteriores.

A palavra “cardeal” vem de cardo, em latim, que significa o gonzo da porta. Os cardeais estão para a Igreja como os gonzos para uma porta: sustentam-na, permitindo e facilitando-lhe o movimento. Era, pois, natural que esse escol de colaboradores dos vários Papas, participando em grau subordinado do governo e conhecendo melhor do que ninguém o ambiente eclesiástico e as necessidades da Igreja, elegessem o Santo Padre.

Isso seria certamente mais adequado do que se a eleição ficasse a cargo de clérigos de uma ordem inferior, incumbidos da direção ou do exercício de atividades na diocese mais importante do mundo, é verdade, mas voltados para problemas locais, circunscritos à Diocese de Roma; enquanto os cardeais são uma elite internacional. Ora, a missão do Papa não é apenas local, mas principalmente mundial.

Por outro lado, os nobres romanos eram os senhores de pequenos feudos nos arredores de Roma, e que muitas vezes guerreavam por seus interesses. Havia o risco de escolherem um Papa de acordo com suas conveniências pessoais ou familiares.

Portanto, era natural que os partidários da Reforma Gregoriana quisessem transferir essa atribuição para os cardeais.

Vemos que se pronuncia um incidente no qual o monge Hildebrando, cardeal e futuro Papa São Gregório VII, convenceu o Pontífice novo de transferir os poderes de eleição para o Sacro Colégio. Naturalmente, o clero e a nobreza de Roma ficariam indignados com isso, pois perdiam um poderoso elemento de influência política. Então, foram logo ao encontro da Imperatriz do Sacro Império Romano Alemão para obter que ela se solidarizasse com eles.

Debaixo de certo ponto de vista, a Imperatriz tinha interesse nisso porque, no sistema anterior, o imperador — ou a imperatriz, quando o imperador era menor de idade — interferia na eleição. Entretanto, feita a eleição pelo Sacro Colégio, as possibilidades de interferência do poder imperial se tornavam muito menores.

Esse choque de interesses comprometia a Reforma Gregoriana que, sendo um movimento de reestruturação e reorganização da Igreja, estava maximamente empenhada em que o órgão adequado elegesse o Sumo Pontífice.

Num momento crucial, Santo Annon intervém com astúcia

Alexandre II e Cádalo foram para Roma e disputaram a cidade. O Papa tinha contra ele o Sacro Império, boa parte da nobreza, e não podia contar com o auxílio do chefe normando Roberto Giscard, que não estava em bons termos com a Santa Sé. Havia até indícios de que ele simpatizava com a causa de Cádalo, por interesses pessoais.

Foi nesse momento crucial que Santo Annon resolveu intervir. Combinou com alguns nobres alemães um golpe de Estado.

Sabia que a Imperatriz Inês gostava de parar em determinada ilha quando viajava pelo reino.

Era uma ilha aprazível e lá costumava ela repousar das fadigas da viagem.

Santo Annon mandou construir uma barca esplêndida, riquíssima, adornada com toda espécie de obras de ar-te: finíssimos tapetes cobriam o chão e as paredes; cortinas dos mais preciosos tecidos vedavam as janelas. Toda a barca estava revestida de boa madeira, com incrustações de ouro e pedras preciosas.

Quando a barca ficou pronta, Santo Annon permaneceu à espera de uma ocasião propícia para utilizá-la.

Notem a atmosfera bonita em que essas coisas se passavam: uma ilha aprazível, uma barca linda, com cortinas e incrustações de pedras preciosas, à espera da Imperatriz. Que lindo teatro para uma cena histórica! Como isso é mais bonito do que um avião para se passar qualquer episódio da História humana!

Essa ocasião se apresentou pouco depois, quando a Imperatriz anunciou uma viagem a Nimegue. Santo Annon, com outros conjurados, viajou diretamente para a referida ilha, chegando lá antes da corte. Quando esta lá aportou, na hora do almoço, Santo Annon, como Chanceler do Império, sentou-se ao lado de Henrique IV, que tinha então seis anos. Fez a conversa cair sobre a barca, e a descreveu com toda a minúcia, maravilhando o menino. Logo depois do almoço, Henrique IV manifestou o desejo de visitar a barca. Recebido com todas as honras, assim que o rei subiu a bordo, os remadores, já avisados, puseram a embarcação em movimento, afastando-a da ilha.

A Imperatriz e os nobres, que tinham ficado na ilha, promoveram um grande tumulto, e o menino-rei, amedrontado, atirou-se ao rio.

O menino-rei era uma víbora; foi o grande inimigo de São Gregório VII, mais tarde.

O Conde Egbert de Brunswick se jogou na água e o trouxe de volta para a barca. Santo Annon levou Henrique IV para uma das salas e teve com ele uma longa conversa, convencendo-o de ir para Colônia, onde seria convocada uma assembleia de nobres para discutirem a situação.

Faço um comentário colateral a respeito da mentalidade dos meninos naquele tempo. Às vezes, aos 14 ou 15 anos, meninos começavam a comandar exércitos, ou dirigir impérios; e, muitas vezes, dava certo. Vemos aqui Santo Annon tratando seriamente com um menino de seis anos sobre política e convencendo-o.

Alguém poderá objetar: “Mas o menino não tinha nenhuma resistência possível a oferecer a um homem da qualidade de Santo Annon”.

É possível. Em todo caso, Santo Annon julgou que não podia resolver o caso só com brinquedinhos e fazendo cocegasinhas no queixo do rei; mas precisava dar uma argumentação política. Deu, e o monarca aceitou. Quer dizer, trata-se de um nível de menino que não é comum.

Para se compreender bem essa atitude de Santo Annon é preciso esclarecer que, em caso de regência, a posse do rei pelo chanceler já era um bom título para que ele se tornasse regente. Portanto, quando o rei era menor, o regente do reino era a mãe, mas também podia ser o chanceler, se este estivesse na posse do rei-menino. E o golpe dele foi roubar o rei-menino dentro dessa “ratoeira” de madeiras preciosas, seda e pedrarias. Uma coisa que nos deixa um pouco interditados quanto à liceidade, se não fosse o fato de que é Santo Annon quem fez, e, portanto, isso deve ter suas razões históricas que provavelmente não aparecem na ficha.

Sínodo em Colônia

Em Colônia, os grandes da Alemanha se reuniram e, depois de se informarem dos acontecimentos, decidiram que a regência caberia ao arcebispo, em cuja diocese estivesse o rei. Como Henrique IV estava em Colônia, o regente seria Santo Annon. Que era Arcebispo de Colônia…

A 27 de outubro de 1062, reunia-se um sínodo presidido por Santo Annon, que aceitou o decreto de Nicolau II e reconheceu a eleição de Alexandre II; o Duque Godofredo de Lorena foi designado para levar o Papa a Roma, e dar-lhe posse da cidade. A Reforma Gregoriana estava salva.

Esse é um dos inúmeros atos que mostram não só o papel decisivo de Santo Annon numa crise gravíssima, mas também sua astúcia diplomática que repetiu em muitas outras ocasiões.

É lamentável ver como a notícia dessas grandes figuras se apaga. Como ela faria bem num livro de piedade! Como seria interessante ensinar alguém a dizer: “Meu Deus, dai-me a energia e a astúcia de Santo Annon! Santo Annon, rogai a Nossa Senhora por mim, para que eu me pareça convosco!” E rezar essa jaculatória diante de uma imagem de Santo Annon “bon parleur”, de espada na mão, olho de raposa e alma de bem-aventurado, organizando as coisas. Como isso faria bem!

Diferença entre o pecador medieval e o pecador filho da Revolução

Alguns anos depois, a Imperatriz Inês, que se tinha recolhido a um mosteiro, arrependeu-se do que fizera. Um dia a cidade de Roma surpreendeu-se, assistindo a um espetáculo só possível na Idade Média: a Imperatriz apresentou-se às portas da cidade, vestida como penitente, descalça e com uma corda ao pescoço, rogando permissão para entrar e pedir perdão ao Santo Padre por tudo quanto tinha feito. Recebida por São Pedro Damião, este a absolveu de todos os pecados e daí em diante, até a morte do Cardeal, foi seu confessor.

Ela, que tinha sido a grande inimiga de São Pedro Damião, reconheceu ter andado mal criando entraves ao movimento salvador da Reforma Gregoriana. Mas assim era a penitência na Idade Média, época que se poderia caracterizar pela radicalidade:  O indivíduo cometia, às vezes, pecados de arrepiar; mas, quando se arrependia, praticava também penitências de arrepiar.

Esta Imperatriz deixa todas as pompas terrenas, recolhe-se a um convento para cuidar de sua vida espiritual e, meditando, reconhece ter procedido mal. Em rigor, ela não seria obrigada a esse ato público de penitência. Que ela devesse procurar São Gregório VII ou São Pedro Damião para pedir perdão, era inteiramente cabível. Mas podia fazer isso reservadamente. Não, ela quis praticar um ato público de reparação, porque público tinha sido o seu pecado. Apresenta-se, então, às portas de Roma, vestida de saco, com uma corda ao pescoço, e se dirige a uma igreja para pedir perdão.

Depois de ter sido perdoada, torna-se amiga e penitente daquele a quem ela ofendera, confiando sua alma à direção dele. Que beleza há nessa reconciliação!

São Pedro Damião — vendo aquela Imperatriz vestida pobremente, ajoelhada perto dele, e recordando-se do tempo em que ela lhe dava dor de cabeça, introduzida ali como um cordeiro, e encantando, por esta sua atitude humilde, a alma deste santo Cardeal — louvava a grandeza da graça que opera tais transformações nas almas humanas. Isto é Idade Média!

Talvez nunca se tenha falado tanto a respeito do perdão quanto em nossos dias. Fala-se, por vezes, até o abuso. A propósito de qualquer coisa se repete: “Ah, Deus perdoa!”  Mas esse perdão que todo mundo está certo de receber, poucos pedem; e, quando pedem, fazem-no mais ou menos às ocultas. O senso da gravidade do pecado desapareceu. As pessoas perderam este senso, não são lógicas, falta-lhes coerência, não têm Fé viva. Elas só se lembram do pecado para dizer que vai ser perdoado; e só se recordam do perdão para poderem pecar mais tranquilamente. Essa é a mentalidade do homem contemporâneo.

Comparem o pecador medieval com o pecador filho da Revolução, e verão a enorme diferença: um é suscetível de grandes arrependimentos à maneira de Davi; grandes regenerações e, eventualmente, até grande santificação. O outro, se é que tem um arrependimento sério, pede um perdãozinho superficial.

Qual a causa desta diferença de atitude? Em última análise, este é o efeito da Revolução. É ela que exacerba no homem o orgulho, a vontade de não reconhecer a gravidade dos pecados e de não fazer penitência, criando-se o estado de dureza que vemos tão generalizado nos dias de hoje.

Quantos pecados cometidos em nossos dias mereceriam uma penitência pública! Nesses casos, um padre, antes de conceder a absolvição, agiria muito bem se exigisse uma reparação pública.

Entretanto, a debilidade, o liberalismo, tantas vezes até no próprio confessor, criam esse clima crepuscular no qual estamos…

Olhemos para figuras como a de Santo Annon e compreenderemos melhor a verdadeira fisionomia da Igreja.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de Conferência de 29/3/1974)
Revista Dr Plinio 213 – Dezembro de 2015