Imaculada Conceição

A Revolução fomenta todo tipo de pecados e, no fundo, é dirigida pelo espírito das trevas. Maria Santíssima, sendo concebida sem pecado original, esmagou a cabeça da serpente, ou seja, do  demônio. A Imaculada Conceição, sob diversos pontos de vista, é a solenidade de Nossa Senhora da Contra-Revolução.

Na Bula “Ineffabilis Deus” de Pio IX, em que ele definiu o dogma da Imaculada Conceição, se encontra o seguinte trecho:

Beleza da afirmação magisterial da Igreja

Por isto, depois de, na humildade e no jejum, dirigirmos sem interrupção as Nossas preces particulares, e as públicas da Igreja a Deus Pai, por meio de seu Filho, a fim de que se dignas-se dirigir e sustentar a Nossa mente com a virtude do Espírito Santo; depois de implorarmos com gemidos o Espírito Consolador; por sua inspiração, em honra da santa e indivisível Trindade, para decoro e ornamento da Virgem Mãe de Deus, para exaltação da Fé católica, e para incremento da Religião cristã, com a autoridade de Nosso Senhor Jesus Cristo, dos Bem–aventurados Apóstolos Pedro e Pau-lo, e com a Nossa, declaramos, pronunciamos e definimos:

Vejam a pulcritude disso que vamos comentar daqui a pouco, mas a fórmula é linda.

A doutrina que sustenta que a Beatíssima Virgem Maria, no primeiro instante da sua Conceição, por singular graça e privilégio de Deus onipotente, em vista dos méritos de Jesus Cristo, Salvador do gênero humano, foi preservada imune de toda mancha de pecado original, essa doutrina foi revelada por Deus, e por isto deve ser crida firme e inviolavelmente por todos os fiéis.

[…]

Ninguém, portanto, se permita infringir este texto da Nossa declaração, proclamação e definição, nem contrariá-lo e contravir-lhe. E se alguém tivesse a ousadia de tentá-lo, saiba que incorre na indignação de Deus onipotente e dos Bem-aventurados Pedro e Paulo, seus Apóstolos.

Notem a verdadeira beleza da afirmação magisterial da Igreja que, ponto por ponto, está considerada aqui. É ainda o período dos grandes documentos pontifícios e dos grandes estilos de chancelaria. Analisemos esse texto.

Jejum e oração para preparar a alma

Por isto, depois de, na humildade e no jejum, dirigirmos sem interrupção as Nossas preces particulares, e as públicas da Igreja a Deus Pai, por meio de seu Filho, a fim de que se dignasse de dirigir e sustentar a Nossa mente com a virtude do Espírito Santo…

Realmente o Papa é infalível, mas é obrigado, sob pena de pecado mortal, a estudar profundamente o assunto antes de definir um dogma.

Quer dizer, ainda que o Papa não estudasse, tendo definido um dogma está definido e não erraria. Mas ele deve estudar, do contrário comete pecado mortal.

Ele precisa rogar a Deus que esse estudo seja bem feito e conte com as luzes do Espírito Santo. E não só deve pedir, mas também procurar obter isso por meio do jejum, da penitência. Então, por causa disso o Papa explica como preparou a sua alma para a definição do dogma: ele jejuou e rezou continuamente para obter as luzes.

Como ele pediu essas luzes? O Papa rezou e fez a Igreja inteira orar ao Padre Eterno, por meio de seu Filho, Jesus Cristo, porque o Mediador necessário que temos entre o Padre Eterno e nós é Nosso Senhor Jesus Cristo.

Vemos aqui mencionada a Santíssima Trindade. O Padre, o Filho e o Espírito Santo intervindo para orientar o Papa no acerto dessa definição.

…depois de implorarmos o socorro de toda a corte celeste…

Ele pediu a todos os Anjos e Santos do Céu e, sobretudo, Àquela que é a “Regina Sanctorum Omnium e Regina Angelorum”.

…e invocarmos com gemidos o Espírito Consolador, por sua inspiração, em honra da santa e indivisível Trindade…

Quer dizer, inspirado pelo Espírito Santo para dar honra a Deus.

…para decoro e orna-mento da Virgem Mãe de Deus…

Decoro quer dizer esplendor, uma beleza refulgente de dignidade da Virgem Mãe de Deus.

…para exaltação da Fé católica…

“Exaltare” quer dizer tornar alta; para que a Fé católica brilhe aos olhos do mundo inteiro e se levante aos olhos dos homens como um valor de primeira grandeza.

…e para incremento da Religião cristã…

Para aumentar o número de católicos.

Como as badaladas de um grande sino de bronze

Vejam a solenidade desta afirmação:
…com a autoridade de Nosso Senhor Jesus Cristo, dos Bem-aventurados Apóstolos Pedro e Paulo, e com a Nossa, declaramos, pronunciamos e definimos:
Quer dizer, é um apelo à autoridade de Deus, feito de modo magnífico. A autoridade de Cristo, de São Pedro, primeiro Papa, de São Paulo, que ajudou São Pedro na evangelização do Império Romano, e a autoridade pessoal dele, que é o Pedro redivivo e Cristo redivivo.

Com essa autoridade, o que ele faz? Declara, pronuncia e define. Isso soa como as badaladas de um grande sino de bronze: “Declaramos, pronunciamos e definimos”. Definimos o quê?
A doutrina que sustenta que a Beatíssima Virgem Maria, no primeiro instante da sua Conceição, por singular graça e privilégio de Deus onipotente, em vista dos méritos de Jesus Cristo, Salvador do gênero humano, foi preservada imune de toda mancha de pecado original…

Nossa Senhora não teve mancha do pecado original por uma graça singular, em vista dos méritos de Cristo e a partir do primeiro instante do seu ser.

…essa doutrina foi revelada por Deus e por isso deve ser crida firme e inviolavelmente por todos os fiéis.

Ela está fundamentada na Bíblia, na Revelação, na Tradição, portanto deve ser crida.

Agora vem o anátema. Depois da definição do dogma, o castigo para quem se levante contra ele.

Ninguém, portanto, se permita infringir este texto de Nossa declaração, proclamação e definição, nem contrariá-lo…

Quer dizer, depois de ter alçado o estandarte, ele o protege com suas maldições e com a energia dos meios de combate espirituais.

E se alguém tivesse a ousadia de tentá-lo, saiba que incorre na indignação de Deus onipotente, dos Bem–aventurados Pedro e Paulo e de seus Apóstolos.

Ou seja, é uma verdadeira maldição. Notem a majestade e a dignidade que isso tem. Pois bem, é uma majestade e uma dignidade invisível, mas é uma coisa verdadeiramente estupenda, quando se considera a Imaculada Conceição de Nossa Senhora.

Alegria, glória e resplendor em todo o universo

Tomem em consideração que Maria Santíssima foi preservada depois de milênios em que só nasciam homens concebidos no pecado original; pois tinha havido um fato cuja consequência natural e normal era que todos os homens nascessem com o pecado original. E esse fato era o pecado de Adão. Portanto, todos os homens carregando a tara do pecado original.

Essa espécie de dissociação entre a inteligência e a vontade, de um lado, e os sentidos, de outro lado, pela qual, a todo momento, os sentidos estão em revolta contra a inteligência e a vontade, estas capitulam e os homens ficam expostos então a cair em pecado, e de fato pecam incontáveis vezes.

Isso veio se repetindo durante milênios, mas em determinado momento cessa a lei da maldição; os Anjos assistem atônitos a um fato que era completamente sem precedentes, e que depois não houve outro igual.

Deus quebranta a lei da maldição, expulsa a maldição e, pela primeira vez, cria uma criatura inteiramente concebida sem pecado original.

Essa criatura — que é Nossa Senhora — está completamente fora dessa lei e resplandece, com todo o brilho, com todo o fogo de uma criatura perfeita, que era como Adão e Eva foram criados, sem nenhuma espécie de mancha de pecado original.

Há em todo o universo uma espécie de alegria, de glória e de resplendor especial, e que se torna ainda mais acentuado pelo fato de que a Santíssima Virgem é criada sem pecado original, é a obra-prima de Criação.

Mais alta do que Ela, só a humanidade santíssima de Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas Nosso Senhor Jesus Cristo já não é mera criatura. Na sua humanidade é uma criatura, mas na sua Pessoa, que é uma só, Ele não é uma mera criatura.

Então, se compreende a convergência dos dois fatos.

Aquela que calcou aos pés a cabeça do dragão

A Bíblia nos conta que, depois de ter feito a obra da Criação, Deus descansou encantado com o que Ele tinha realizado. Mas descansou com projeto de criar uma criatura superior, mais maravilhosa do que tudo isso: uma mulher que fosse Mãe do Verbo de Deus Encarnado. Então, essa obra-prima da Criação se faz nesse momento. E os Anjos, que compreendem toda a harmonia de tudo quanto Deus fez, o reflexo d’Ele nessa harmonia, contemplam pela primeira vez, extasiados, a alma de sua Rainha.

Para terem ideia do que é isso, imaginem uma soberana que entra pela primeira vez na capital do seu reino, numa carruagem de gala, precedida de lanceiros, de trombeteiros, seguida de toda a corte, e a cidade inteira considera extasiada a beleza da rainha.

Isso é nada em comparação com a entrada de Nossa Senhora na corte angélica. No primeiro momento em que Maria Santíssima existiu, Ela teve conhecimento inteiro e lúcido de tudo, e conheceu a Deus. E no instante em que conheceu o Criador, Ela fez um ato de amor, que foi o mais perfeito que se tenha dado a Deus até então; de tal maneira que nunca nenhum Anjo fez ao Criador um ato de amor como Ela.

Ela adorou a Deus, Lhe deu ação de graças e Lhe ofereceu uma reparação pelos pecados dos homens. E esse cântico de Nossa Senhora, um cântico novo, a mais alta oração que jamais o Céu poderia fazer, foi para os Anjos a entrada da sua Rainha. Compreendemos, então, o que foi para os Anjos a festa da Imaculada Conceição.

Nós podemos unir as nossas vozes às dos Anjos no dia da Imaculada Conceição. Segundo as revelações de Santa Gertrudes, Santa Mectilde, Santa Brígida, quando a Igreja festeja um mistério na Terra, no Céu os Anjos acompanham. Portanto, no dia da Imaculada Conceição todos os Anjos vão glorificar Nossa Senhora.

Nós também podemos dar essa glória a Maria Santíssima, dentro do nosso espírito especialmente. Por que dentro do nosso espírito? A Imaculada Conceição é Aquela que calcou aos pés a cabeça do dragão. Aparecendo, Nossa Senhora venceu o dragão porque estava concebida sem o pecado original e, então, se preparava para dar à luz o Messias.

Nossa Senhora da Imaculada Conceição é, debaixo de vários pontos de vista, Nossa Senhora da Contra-Revolução, tornando o demônio esmagado, arrasado. É nesse sentido que nós devemos celebrar mais especialmente esta festa.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/12/1966)
Revista Dr Plinio 225 – Dezembro de 2016

A Imaculada Conceição, obra-prima do Criador

Na Bula “Ineffabilis Deus” com a qual Pio IX definiu o dogma da Imaculada Conceição (cuja festa se comemora no dia 8 de dezembro), encontra-se este trecho: “A doutrina que sustenta que a Beatíssima Virgem Maria, no primeiro instante da sua conceição, por singular graça e privilégio de Deus onipotente, em vista dos méritos de Jesus Cristo, Salvador do gênero humano, foi  preservada e imune de toda mancha de pecado original, essa doutrina foi revelada por Deus, e por isto deve ser crida firme e inviolavelmente por todos os fiéis”.

O Sumo Pontífice afirma, portanto, que Nossa Senhora, por uma graça singular e em vista dos méritos de Cristo, a partir do primeiro instante de seu ser foi isenta da mancha do pecado original.

Essa doutrina foi revelada por Deus, ou seja, está na Bíblia, e por isso deve ser “crida firme e inviolavelmente por todos os fiéis”. Para se avaliar o extraordinário significado da Imaculada Conceição, é preciso ter em conta que, em conseqüência da queda de Adão, todos os seus descendentes haviam de nascer com o pecado original. Lamentável herança em virtude da qual os sentidos do homem continuamente se revoltam contra a sua razão, expondo-o a novos e incontáveis pecados.

Durante milênios verificou-se, inexorável, essa lei da maldição. Em determinado momento, porém, os Anjos assistem atônitos a um fato sem precedentes na história da Humanidade decaída: Deus quebranta a funesta lei, e um ser é inteiramente concebido sem pecado original. É Nossa Senhora que surge imaculada, resplandecente, com todo o brilho e todo o fulgor de uma criatura perfeita, como o foram Adão e Eva ao saírem das mãos do Onipotente.

Pode-se imaginar que, nesse sublime instante, um frêmito de júbilo e de glória percorreu todo o universo, acentuado pelo fato de que Maria, isenta do pecado original, era também a obra-prima da criação. Acima dEla haveria de estar, apenas, a humanidade santíssima de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Narra a Sagrada Escritura que o Padre Eterno, depois de concluída a obra da Criação, repousou na enlevada consideração do que Ele tinha feito. Descansou, porém, tendo-se proposto criar um ser que superasse em maravilha tudo o que até então sua onipotência realizara, uma mulher da qual haveria de nascer o Verbo Encarnado. E foi precisamente no momento da Conceição Imaculada de Nossa Senhora que Deus executou essa sua obra-prima.

Plinio Corrêa de Oliveira

Modelo de combate ao pecado

Concebida sem pecado original, Nossa Senhora não sentia em si nenhuma inclinação para o que fosse ruim.

Pelo contrário, tinha toda a facilidade para dar à graça de Deus uma perfeita e constante correspondência. Tinha, igualmente, uma altíssima noção das excelências  do Senhor, e da Glória que Ele devem render todas as criaturas. Por isso nutria em sua, alma vivíssimo horror ao pecado, que é um, ultraje à mesma glória divina. Donde possuir também, uma ardorosa combatividade, no sentido de execrar  toda forma do mal.

Compreende-se, à vista disto, por que Nossa, é comparada a um exército em ordem de batalha: “castrorum acies ordinata”.

Ou, como d’Ela se diz, que sozinha esmagou todas as heresias na terna inteira. Exatamente porque, já no privilégio de sua Imaculada Conceição, Ela é modelo de combate ao mal.

Plinio Corrêa de Oliveira

 

A santa intrasigência, um aspecto da Imaculada Conceição

No presente artigo, publicado pela primeira vez em setembro de 1954, Dr. Plinio descortina ante nossos olhos, as incomparáveis virtudes de Nossa Senhora e a apresenta como perfeito exemplo a ser seguido.

O vocabulário humano não é suficiente para exprimir a santidade de Nossa Senhora. Na ordem natural, os Santos e os Doutores A comparam ao Sol. Mas se houvesse algum astro  inconcebivelmente mais brilhante e mais glorioso do que o Sol, é a esse que A comparariam. E acabariam por dizer que este astro daria dela uma imagem pálida, defeituosa, insuficiente. Na ordem moral, afirmam que Ela transcendeu de muito todas as virtudes, não só de todos os varões e matronas insignes da Antiguidade, mas — o que é incomensuravelmente mais — de todos os Santos da Igreja Católica.

Imagine-se uma criatura tendo todo o amor de São Francisco de Assis, todo o zelo de São Domingos de Gusmão, toda a piedade de São Bento, todo o recolhimento de Santa Teresa, toda a sabedoria de São Tomás, toda a intrepidez de Santo Inácio, toda a pureza de São Luiz de Gonzaga, a paciência de um São Lourenço, o espírito de mortificação de todos os anacoretas do deserto: ela não chegaria aos pés de Nossa Senhora.

Mais ainda. A glória dos Anjos é algo de incompreensível ao intelecto humano. Certa vez, apareceu a um Santo o seu Anjo da Guarda. Tal era sua glória, que o Santo pensou que se tratasse do próprio Deus, e se dispunha a adorá-lo, quando o Anjo revelou quem era. Ora, os Anjos da Guarda não pertencem habitualmente às mais altas hierarquias celestes. E a glória de Nossa Senhora está incomensuravelmente acima da de todos os coros angélicos.

Poderia haver contraste maior entre esta obra-prima da natureza e da graça, não só indescritível mas até inconcebível, e o charco de vícios e misérias, que era o mundo antes de Cristo?

A Imaculada Conceição

A esta criatura dileta entre todas, superior a tudo quanto foi criado, e inferior somente à Humanidade Santíssima de Nosso Senhor Jesus Cristo, Deus conferiu um privilégio incomparável, que é a Imaculada Conceição.

Em virtude do pecado original, a inteligência humana se tornou sujeita a errar, a vontade ficou exposta a desfalecimentos, a sensibilidade ficou presa das paixões desregradas, o corpo, por assim dizer, foi posto em revolta contra a alma.

Ora, pelo privilégio de sua Conceição Imaculada, Nossa Senhora foi preservada da mancha do pecado original desde o primeiro instante de seu ser. E, assim, n’Ela tudo era harmonia profunda, perfeita, imperturbável. O intelecto jamais exposto a erro, dotado de um entendimento, uma clareza, uma agilidade inexprimíveis, iluminado pelas graças mais altas, tinha um conhecimento admirável das coisas do Céu e da Terra. A vontade, dócil em tudo ao intelecto, estava inteiramente voltada para o bem e governava plenamente a sensibilidade, que jamais sentia em si, nem pedia à vontade algo que não fosse plenamente justo e conforme à razão. Imagine-se uma vontade naturalmente tão perfeita, uma sensibilidade naturalmente tão irrepreensível, esta e aquela enriquecidas e superenriquecidas de graças inefáveis, perfeitissimamente correspondidas a todo momento, e se pode ter uma ideia do que era a Santíssima Virgem. Ou antes se pode compreender por que motivo nem sequer se é capaz de formar uma ideia do que é a Santíssima Virgem.

Intransigência absoluta

Dotada de tantas luzes naturais e sobrenaturais, Nossa Senhora conheceu por certo a infâmia do mundo em seus dias. E com isto amargamente sofreu. Pois quanto maior é o amor à virtude tanto maior é o ódio ao mal.

Ora, Maria Santíssima tinha em si abismos de amor à virtude, e, portanto, sentia forçosamente em si abismos de ódio ao mal. Maria era pois inimiga do mundo, do qual viveu alheia, segregada sem qualquer mistura nem aliança, voltada unicamente para as coisas de Deus.

O mundo, por sua vez, parece não ter compreendido nem amado Maria. Pois não consta que Lhe tivesse tributado admiração proporcionada a sua formosura castíssima, a sua graça nobilíssima, a seu trato dulcíssimo, a sua caridade sempre exorável, acessível, mais abundante do que as águas do mar e mais suave do que o mel.

E como não haveria de ser assim? Que compreensão poderia haver entre Aquela que era toda do Céu, e aqueles que viviam só para a Terra? Aquela que era toda fé, pureza, humildade, nobreza, e aqueles que eram todos idolatria, ceticismo, heresia, concupiscência, orgulho, vulgaridade? Aquela que era toda sabedoria, razão, equilíbrio, senso perfeito de todas as coisas, temperança absoluta e sem mácula nem sombra, e aqueles que eram todos desmando, extravagância, desequilíbrio, senso errado, cacofônico, contraditório, berrante a respeito de tudo, e intemperança crônica, sistemática, vertiginosamente crescente em tudo? Aquela que era a fé levada por uma lógica adamantina e inflexível a todas as suas consequências, e aqueles que eram o erro levado por uma lógica infernalmente inexorável, também a suas últimas consequências? Ou aqueles que, renunciando a qualquer lógica, viviam voluntariamente num pântano de contradições, em que todas as verdades se misturavam e se poluíam na monstruosa interpenetração de todos os erros que lhe são contrários?

“Imaculado” é uma palavra negativa. Ela significa etimologicamente a ausência de mácula, e pois de todo e qualquer erro por menor que seja, de todo e qualquer pecado por mais leve e insignificante que pareça. É a integridade absoluta na fé e na virtude. É portanto a intransigência absoluta, sistemática, irredutível, a aversão completa, profunda, diametral a toda a espécie de erro ou de mal. A santa intransigência na verdade e no bem é a ortodoxia, a pureza, enquanto em oposição à heterodoxia e ao mal. Por amar a Deus sem medida, Nossa Senhora correspondentemente amou de todo o coração tudo quanto era de Deus. E porque odiou sem medida o mal, odiou sem medida Satanás, suas pompas e suas obras, o demônio, o mundo e a carne.

Nossa Senhora da Conceição é Nossa Senhora da santa intransigência.

Verdadeiro ódio, verdadeiro amor

Por isto, Nossa Senhora rezava sem cessar. E segundo tão razoavelmente se crê, Ela pedia o advento do Messias, e a graça de ser uma serva daquela que fosse escolhida para Mãe de Deus.

Pedia o Messias, para que viesse Aquele que poderia fazer brilhar novamente a justiça na face da Terra, para que se levantasse o Sol divino de todas as virtudes, espancando por todo o mundo as trevas da impiedade e do vicio.

Nossa Senhora desejava, é certo, que os justos vivendo na Terra encontrassem na vinda do Messias a realização de seus anseios e de suas esperanças, que os vacilantes se reanimassem, e que de todos os países, de todos os abismos, almas tocadas pela luz da graça levantassem voo para os mais altos píncaros da santidade. Pois estas são por excelência as vitórias de Deus, que é a Verdade e o Bem, e as derrotas do demônio, que é o chefe de todo erro e de todo mal. A Virgem queria a glória de Deus por essa justiça que é a realização na Terra da Ordem desejada pelo Criador.

Mas, pedindo a vinda do Messias, Ela não ignorava que Ele seria a Pedra de escândalo, pela qual muitos se salvariam e muitos receberiam também o castigo de seu pecado. Esse castigo do pecador irredutível, esse esmagamento do ímpio obcecado e endurecido, Nossa Senhora também o desejou de todo o coração, e foi uma das consequências da Redenção e da fundação da Igreja, que Ela desejou e pediu como ninguém, “Ut inimicos Sanctae Ecclesiae humiliare digneris, Te rogamus, audi nos”, canta a Liturgia. E antes da Liturgia, por certo, o Coração Imaculado de Maria já elevou a Deus súplica análoga, pela derrota dos ímpios irredutíveis.

Admirável exemplo de verdadeiro amor, de verdadeiro ódio.

Onipotência suplicante

Deus quer as obras. Ele fundou a Igreja para o apostolado. Mas acima de tudo quer a oração. Pois a oração é a condição da fecundidade de todas as obras. E quer como fruto da oração a virtude.

Rainha de todos os apóstolos, Nossa Senhora é entretanto principalmente o modelo das almas que rezam e se santificam, a Estrela Polar de toda meditação e vida interior. Pois, dotada de virtude imaculada, Ela fez sempre o que era mais razoável, e se nunca sentiu em Si as agitações e as desordens das almas que só amam a ação e a agitação, nunca experimentou em Si, tampouco, as apatias e as negligências das almas frouxas que fazem da vida interior um para-vento a fim de disfarçar sua indiferença pela causa da Igreja. Seu afastamento do mundo não significou um desinteresse pelo mundo. Quem fez mais pelos ímpios e pelos pecadores do que Aquela que, para os salvar, voluntariamente consentiu na imolação crudelíssima de seu Filho infinitamente inocente e santo?

Quem fez mais pelos homens do que Aquela que conseguiu se realizasse em seus dias a promessa do Salvador?

Mas, confiante sobretudo na oração e na vida interior, não nos deu a Rainha dos Apóstolos uma grande lição de apostolado, fazendo de uma e outra o seu principal instrumento de ação?

Aplicação a nossos dias

Tanto valem aos olhos de Deus as almas que, como Nossa Senhora, possuem o segredo do verdadeiro amor e do verdadeiro ódio, da intransigência perfeita, do zelo incessante, do espírito de renúncia completo, que propriamente são elas que podem atrair para o mundo as graças divinas.

Estamos numa época parecida com a da vinda de Jesus Cristo à Terra. Em 1928 escreveu o Santo Padre Pio XI que “o espetáculo das desgraças contemporâneas é de tal maneira aflitivo, que se poderia ver nele a aurora deste início de dores que trará o homem do pecado, elevando-se contra tudo quanto é chamado Deus e recebe a honra de um culto” (Encíclica Miserentissimus Redemptor, de 8 de maio de 1928).

Que diria ele hoje?

E a nós, que nos compete fazer? Lutar em todos os terrenos permitidos, com todas as armas lícitas. Mas antes de tudo, acima de tudo, confiar na vida interior e na oração. É o grande exemplo de Nossa Senhora.

O exemplo de Nossa Senhora, só com o auxílio de Nossa Senhora se pode imitar. E o auxílio de Nossa Senhora, só com a devoção a Nossa Senhora se pode conseguir. Ora, a devoção a Maria Santíssima no que de melhor pode consistir, do que em Lhe pedirmos não só o amor a Deus e o ódio ao demônio, mas aquela santa inteireza no amor ao bem e no ódio ao mal, em uma palavra, aquela santa intransigência, que tanto refulge em sua Imaculada Conceição?

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de “Catolicismo” de setembro de 1954)

Imaculada e vitoriosa

Conforme nos ensina a Bula “Ineffabilis Deus”, a beleza e a perfeição da Santíssima Virgem só se manifestam completas porque Ela triunfa, vence e aniquila o demônio. Satanás é um escabelo aos pés d’Ela.

Sendo Maria imaculada e soberanamente formosa, não basta que todas as criaturas deste mundo, as do Céu e as do Purgatório Lhe prestem homenagem: importa que o inimigo esteja esmagado sob seu calcanhar.

Uma perfeita consideração do esplendor de Nossa Senhora envolve, portanto, a ideia do demônio inteiramente subjugado e humilhado por Ela. Essa vitória sobre Satanás dá um particular brilho à  celestial beleza da Imaculada Conceição.

Plinio Corrêa de Oliveira

Coordenação do Blog: João Sérgio Guimarães

Prece junto ao presépio

Nosso Salvador, Rei do Universo, quis vir até nós, colocando-Se na nossa proporção. Reclinado na pobre manjedoura, Ele nos olha cheio de bondade, à espera do que tenhamos a Lhe dizer. Vamos, pois. Conduzidos pelas mãos de Dr. Plinio, aproximemo-nos do presépio.

A vizinha-se mais uma vez, Senhor, a festa de vosso santo Natal. Mais uma vez, a Cristandade se apresta a Vos venerar na manjedoura de Belém, sob a cintilação da estrela, ou sob a luz ainda mais clara e fulgente, dos olhos maternais e doces de Maria. A vosso lado está São José, tão absorto em Vos contemplar, que parece nem sequer perceber os animais que Vos rodeiam, e os coros de Anjos que rasgaram as nuvens, e cantam, bem visíveis, no mais alto dos Céus. Daqui a pouco, se ouvirá o tropel dos Magos que chegam, trazendo presentes de ouro, incenso e mirra no dorso de extensas caravanas guardadas por uma famulagem sem conta.

Todos os povos da terra em torno do presépio

No decurso dos séculos, outros virão venerar vosso presépio: da Índia, da Núbia, da Macedônia, de Roma, de Cartago, da Espanha, gauleses, francos, germanos, anglos, saxões, normandos. Aí estão os peregrinos e os Cruzados que vieram do Ocidente para beijar o solo da gruta em que nascestes. Vosso presépio encontra-se agora em toda a face da terra. Nas grandes catedrais góticas ou românicas, nas mesquitas conquistadas ao mouro e consagradas ao culto verdadeiro, multidões imensas se acumulam em torno de Vós, e Vos trazem presentes: ouro, prata, incenso, e sobretudo a piedade e a sinceridade de seus corações.

Abre-se o ciclo da expansão ocidental. Os benefícios de vossa Redenção jorram abundantes sobre terras novas. Incas, astecas, tupis, guaranis, negros de Angola, do Cabo ou da Mina, hindus bronzeados, chins esguios e pensativos, ágeis e pequenos nipões, todos estão em torno de vosso presépio e Vos adoram. A estrela brilha agora sobre o mundo inteiro. A promessa angélica já se fez ouvir a todos os povos, e sobre toda a terra os corações de boa vontade encontraram o tesouro inapreciável de vossa paz. Superando todos os obstáculos, a palavra evangélica se fez ouvir por fim aos povos do mundo inteiro. No meio da desolação contemporânea, esta grande afluência de homens, raças e nações em torno de Vós é, Senhor, a única consolação, a esperança que resta.

Quem somos nós?

E no meio de tantos, eis-nos aqui também. Estamos de joelhos, e Vos olhamos. Vede-nos, Senhor, e considerai-nos com compaixão. Aqui estamos, e Vos queremos falar.

Nós? Quem somos nós?

Os que não dobram os dois joelhos, e nem sequer um joelho só, diante de Baal. Os que temos a vossa Lei escrita no bronze de nossa alma, e não permitimos que as doutrinas deste século gravem seus erros sobre este bronze que sagrado vossa Redenção tornou.

Os que amamos como o mais precioso dos tesouros a pureza imaculada da ortodoxia, e que recusamos qualquer pacto com a heresia, suas obras e infiltrações.

Os que temos misericórdia para com o pecador arrependido, e que para nós mesmos, tantas vezes indignos e infiéis, imploramos vossa misericórdia, mas que não poupamos a impiedade insolente e orgulhosa de si mesma, o vício que se estadeia com ufania e escarnece a virtude.

Os que temos pena de todos os homens, mas particularmente dos bem-aventurados que sofrem perseguição por amor à vossa Igreja, que são oprimidos em toda a terra por sua fome e sede de virtude, que são abandonados, escarnecidos, traídos e vilipendiados porque se conservam fiéis à vossa Lei.

Aqueles que sofrem sem que a literatura contemporânea se lembre de exaltar a beleza de seus sofrimentos: a mãe cristã que reza hoje sozinha diante de seu presépio, no lar abandonado pelos filhos que profanam em orgias o dia de vosso Natal; o esposo austero e forte que pela fidelidade a vosso Espírito se tornou incompreendido e antipático aos seus; a esposa fiel que suporta as agruras da solidão da alma e do coração, enquanto a leviandade dos costumes arrastou ao adultério aquele que deveria ser para ela a coluna do lar, a metade de sua alma, “um outro eu mesmo”; o filho ou a filha piedosa, que durante o Natal, enquanto os lares cristãos estão em festa, sente mais do que nunca o gelo com que o egoísmo, a sede dos prazeres, o mundanismo paralisou e matou em seu próprio lar a vida de família. O aluno abandonado e vilipendiado pelos seus colegas, porque permanece fiel a Vós. O mestre detestado por seus discípulos, porque não pactua com seus erros. O Pároco, o Bispo, que sente erguer-se em torno de si a muralha sombria da incompreensão ou da indiferença, porque se recusa a consentir na deterioração do depósito de doutrina que lhe foi confiado. O homem honesto que ficou reduzido à penúria porque não roubou.

O dom mais excelente que se pode oferecer ao Senhor

Estes são, Senhor, os que no momento presente, dispersos, isolados, ignorando-se uns aos outros, entretanto, agora, se acercam de Vós para oferecer o seu dom, e apresentar a sua prece.Dom tão esplêndido na verdade que se eles Vos pudessem dar o sol e todas as estrelas, o mar e todas as suas riquezas, a terra e todo o seu esplendor, não Vos dariam dom igual.

É o dom de si, íntegro e feito com fidelidade. Quando eles preferem a ortodoxia completa às palmas dos fariseus; quando escolhem a honestidade de preferência ao ouro; quando preferem a pureza à popularidade entre os ímpios; quando permanecem na vossa Lei ainda que por isto percam cargos e glória, praticam o amor de Deus sobre todas as coisas, e atingem a perfeição espiritual, rija e verdadeira dileção. Não, por certo, do amor como o entende o século, amor todo feito de sensibilidade esparramada e ilógica, de afetos nebulosos e sem base na razão, de obscuras condescendências consigo mesmo, e escusas acomodações de consciência. Mas o amor verdadeiro, iluminado pela Fé, justificado pela razão, sério, casto, reto, perseverante; em uma palavra, o amor de Deus.

Prece pela Igreja e pelo Papa

E eles Vos formulam uma prece. Prece, antes de tudo, por aquilo que mais amam no mundo, que é a vossa Igreja santa e imaculada. Pelos pastores e pelo rebanho. Sobretudo pelo Pastor dos Pastores e do rebanho, isto é, por Pedro que hoje se chama Pio. Que vossa Igreja, que geme cativa nas masmorras desta civilização anticristã, triunfe por fim deste século de pecado, e plasme para vossa maior glória uma nova civilização. Pelos santos, para que sejam cada vez mais santos. Pelos bons, para que se santifiquem. Pelos pecadores, para que se tornem bons, pelo ímpios, para que se convertam. Que os impenitentes, refratários à graça e nocivos às almas, sejam dispersados por vossa punição. Que as almas do Purgatório quanto antes subam ao Céu.

Prece, depois, por si mesmos. Que os façais mais exigentes na ortodoxia, mais severos na pureza, mais fiéis na adversidade, mais altivos nas humilhações, mais enérgicos nos combates, mais terríveis para com os ímpios, mais compassivos para com os que, envergonhando-se de seus pecados, louvam de público a virtude e se esforçam seriamente por a conquistar.

Prece, por fim, para que vossa Graça, sem a qual nenhuma vontade persevera duravelmente no bem e nenhuma alma se salva, seja para eles tanto mais abundante quanto mais numerosas forem suas misérias e infidelidades.

 

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr. Plinio 45 – Dezembro de 2001

(Transcrito de “O Legionário”, nº 750, de 22/12/1946. Título e subtítulos nossos.)

Devoção mariana contrarrevolucionária

A devoção mariana deve se caracterizar também pelo espírito combativo, como o demonstra uma escultura medieval representando Nossa Senhora, com espada na mão, investindo contra o demônio. A piedade adocicada e sem luta surgiu com o Renascimento, fazendo com que os contrarrevolucionários se tornassem moles.

 

A consideração da Imaculada Conceição de Maria toca no tema do embate entre a Revolução e a Contra-Revolução no que tem de mais profundo.

Em relação à Revolução, é preciso ter uma oposição total e vigorosa

Se há tanta gente que é preguiçosamente contrarrevolucionária, isso se deve exatamente ao fato de que para ser contrarrevolucionário é preciso realizar um esforço. O homem, por sua própria natureza, pode ter algumas tendências contrarrevolucionárias. Entretanto, por outro lado, possui várias tendências revolucionárias e, por causa disso, é obrigado a desenvolver uma ação em si mesmo muito categórica, profunda, pela qual não só ele se abstenha de todas as ações revolucionárias, mas também de todos os pensamentos revolucionários, bem como de qualquer forma de simpatia ou menor rejeição para com coisas revolucionárias.

Assim, detestar uma coisa qualquer revolucionária – um monumento, por exemplo – menos do que a carga de Revolução existente naquilo exige, já é um fator para que a atitude contrarrevolucionária da alma amoleça e não tenha todo o vigor devido.

Em presença do mal e, portanto, da Revolução que se exprime, se simboliza por tal objeto ou se manifesta em tal indivíduo, escola literária, de pintura, etc., deve-se conhecer todo o mal que há ali e detestá-lo tanto quanto precisa ser detestado. Se uma pessoa tomar perante esse mal uma posição preguiçosa, indolente, que proporcione uma rejeição menor do que aquela que ele merece, naquilo em que o mal não foi detestado tanto quanto merece a pessoa acaba gostando de alguma coisa revolucionária.

Essa pílula de Revolução que a alma assim engole é suficiente para amolecer nela todas as energias contrarrevolucionárias, e fazer com que o indivíduo desenvolva um esforço que ele imagina colossal para ser contrarrevolucionário, mas não consegue ser se ele não se esforçou para combater tendências más, revolucionárias, que há nele. Porém esse combate é inútil enquanto o homem não combate tudo, não elimina tudo, porque um pouquinho que fique cria uma insistência revolucionária colossal diante dele. Ele é obrigado a desenvolver um esforço enorme para não capitular, mas está sempre voltando ao pé da mesma luta. O indivíduo toma uma atitude contrarrevolucionária, mas não é inteiramente contrarrevolucionário. Na primeira ocasião, ele vai estimar uma coisa revolucionária ou detestá-la menos do que ela merece porque, num outro ponto, foi mole com a Revolução.

Quer dizer, ou existe em relação à Revolução uma oposição total, tão vigorosa quanto ela merece em cada ponto dela, ou o indivíduo amolece.

Análise de um busto de Maria Antonieta

Isso um pouco se dá com o bem e o mal em geral, por exemplo a pureza. Eu já tenho visto pessoas que lutam seriamente para manter a castidade. Às vezes combatem de um modo a ficarmos espantados de ver como elas mantêm a pureza. Mas é uma luta que não é tão séria porque, em muitos casos – não quero dizer que seja sempre assim –, a pessoa em algum ponto conserva uma certa complacência para com a impureza. E isto faz com que, em outros pontos, ela tem para com a impureza uma moleza que não deveria ter. Então ela possui uma tendência para o pecado que não se explica à primeira vista, porque ela consegue com esforço enorme não cometer uma ação pecaminosa, mas vai-se ver no fundo esse esforço é tão grande por causa de uma conivência, uma complacência em que ela consentiu e que determina todo o resto.

Recentemente vi a fotografia de uma porcelana, feita pela famosa fábrica de Sèvres, representando um busto de Maria Antonieta com toda a grandeza que ela tem, mas com uma frieza extraordinária e uma espécie de desdém o qual afasta as pessoas que não estejam inteiramente à altura de estar na presença de uma Rainha da França como ela.

Maria Antonieta provavelmente teve atitudes de alma que correspondiam a isso, mas ela não era só isto nem principalmente isto. O charme e a graça dela foram aclamados e festejados pela Europa inteira. E quem fala em charme e em graça fala evidentemente em afabilidade, em gentileza, em aprazibilidade; uma presença que tem charme é agradável. E em algo a presença desse busto de Maria Antonieta não é agradável porque é de uma rigidez que deixa aparecer a majestade dela em toda a linha, mas sem aquilo que é o complemento harmônico da majestade régia o qual, antes de começar a “máfia” revolucionária contra ela, foi cantado em prosa e verso pela nação francesa, de todos os modos possíveis.

Resultado, a pessoa pega um busto desses, olha e diz:

“Está vendo? Aqui é evidente que ela foi isto. Esses revolucionários, coitados, certa razão tinham para fazer o que fizeram ou para serem como foram. E não se deve ser tão rigoroso no julgamento deles.”

Essa é uma conclusão injusta, não tem fundamento e leva a achar que o crime praticado pela Revolução contra Maria Antonieta tinha alguns lados de um ato de justiça. E em algo se deve ter pena daqueles agitadores ululantes e facinorosos que levaram Maria Antonieta à situação extrema a que ela foi conduzida.

Rainha que foi morta devido às qualidades que possuía

Ao olhar para uma fotografia desse busto, trazida por um amigo, e considerando tratar-se de um busto que, do ponto de vista artístico, é muito apreciável, a pessoa pode conservá-la como um marcador de livros, por exemplo. Uma vez ou outra, ao ler aquele livro, ela vai olhar a fotografia e aquela impressão se radica nela. Quando chegar a ocasião em que essa pessoa precise dar um curso de História, isso vai pesar de um modo revolucionário nesse curso.

Isso porque a pessoa foi mole no considerar esse busto, não tomou em consideração que era unilateral, apresentava um aspecto de Maria Antonieta, que a sua pessoa não podia ser julgada só segundo esse lado, pois ela tinha muitos outros aspectos relevantíssimos. E, sobretudo, é certo que não foi por isso que ela foi morta pela Revolução, mas pelas qualidades que ela possuía, pelo que havia de bom nela, porque a Revolução nunca combate o mal e jamais executa um ato de justiça contra o mal. Quando ela aponta um mal em alguém e finge combater esse mal é porque, no fundo, está combatendo um bem que existe naquela pessoa. Porque a Revolução é um movimento satânico, e satanás não é capaz de outro procedimento.

Portanto, a priori, sabendo o que foi a Revolução, devemos entrar no julgamento da coisa revolucionária certos de que, embora naqueles em que a Revolução executou violências havia coisas a punir, não foi esta a razão da punição; e nem sequer foi uma punição. Essas pessoas foram perseguidas pelos seus lados bons. Não considerar isso é ver a Revolução como ela não é.

Onde falta a luta há um dolo, uma fraude

Ora, isso exige uma firmeza, uma retidão de vontade, uma disposição de combater, uma oposição contrarrevolucionária completa que a maior parte das almas tem preguiça de ter. E por causa disso essas almas se deixam levar para baixo.

É por isso também que, por exemplo, chegando festas como a Imaculada Conceição, nós não tomamos em consideração as coisas que sabemos como teologicamente são, ou pelo menos podem ser vistas debaixo de um certo aspecto e que assim devem ser examinadas.

A imagem da Imaculada Conceição mais frequentemente difundida é a de Murillo. Esse quadro representa Nossa Senhora em pé sobre nuvens, num gesto de completo enlevo para com Deus, com as mãos postas e pensando só n’Ele. Como Rainha que está presente no seu reino e, portanto, completamente distendida, despreocupada, no terreno que Ela domina inteiramente, sentindo-Se objeto de todo o amor e comprazimento de Deus, de maneira que o amor que o Criador tem a todas as outras criaturas somadas não dá o amor que Ele tem a Ela, nem de longe.

A pessoa olha esse quadro e diz: “Que admirável!”

O contrarrevolucionário completo afirma: “É um quadro onde o combate não está presente, portanto, na realidade total, falta-lhe alguma coisa. E no representar a Imaculada Conceição alguma coisa falta. Tudo o que o quadro quer representar, Nossa Senhora tem, está presente. Mas, há algum lado para o qual não se pode fechar os olhos: a luta”.

Onde falta a luta o contrarrevolucionário percebe que há um dolo, uma fraude, que a verdade inteira não está ali.

Na realidade o que nos diz Cornélio a Lápide?

Ele não dá – tanto quanto eu me lembro, pelo menos – uma sentença como certa, mas apresenta como sentença aceita por muitos teólogos eminentes, cujos nomes e obras ele indica, o seguinte: Os que estão no Inferno têm um conhecimento sem delícias, sem alegria, sem amor, amargurado que, pelo contrário, dá-lhes uma situação de desagrado profundo do que se passa no Céu. Eles veem, quer dizer, conhecem Nossa Senhora posta na presença do Altíssimo e inundada de felicidade, etc., e o ódio neles aumenta. E do fundo do Inferno blasfemam contra Ela. Em oposição a essas blasfêmias Maria Santíssima executa neles um ato de justiça, mandando que outros Bem-aventurados respondam a elas. E se trava uma espécie de polêmica, de luta, não à maneira da batalha que houve no Céu quando satanás foi mandado embora por São Miguel Arcanjo, mas uma controvérsia em que os Bem-aventurados aclamam ainda mais a Ela por causa das blasfêmias que os precitos soltaram, e uma atmosfera de combate se torna notória no Céu, e Nossa Senhora é a vencedora que esmaga com o seu calcanhar a cabeça da serpente.

Assim o quadro da Imaculada estaria completo.

Guerra atormentante contra o maligno

Alguém poderá dizer: “Não, Dr. Plinio, devagar! O quadro de Murillo apresenta Nossa Senhora esmagando a cabeça da serpente”.

Não me lembro, mas é facilmente possível. Entretanto, Murillo A pinta como tão enlevada com Deus que nem toma conhecimento dos insultos do demônio. Aquilo é a última ralé para a qual Ela não liga e, portanto, é muito teológico que Ela seja apresentada não pensando no demônio. Se Ela tem a sua glória em que o demônio seja escarnecido, receba o ato de justiça com o vilipêndio atirado sobre ele, é justo que Ela tenha consciência disto. E que em reparação a Deus, que Maria Santíssima sabe estar sendo insultado por esse ato do demônio, Ela faça um ato de adoração. Um ato de adoração pleno como só Ela é capaz de fazer e tem os recursos para realizar, mas no qual o conhecimento da situação belicosa e a participação nesta guerra atormentante do demônio esteja presente dentro d’Ela.

Suponhamos que um católico coloque um quadro desses no retábulo da capela do seu oratório particular em casa. Ao rezar ele não tem a noção da atmosfera de luta em que todos os precitos, todos os demônios que estão no Inferno uivam contra Nossa Senhora, ao menos em certas ocasiões em que Ela majestaticamente, eu ousaria dizer – é impróprio porque Ela é tão maior do que qualquer outra criatura, que a comparação não está bem – “carolingiamente”, mete o pé em cima deles e os esmaga, e isso se dá gloriosamente.

O católico deve ter isso diante dos olhos pelo menos algumas vezes, e precisa sentir que falta alguma coisa quando, na sua devoção mariana, isso jamais lhe passa pela mente.

A Santíssima Virgem, usando um gládio, luta contra o demônio

Nunca me ensinaram isso e eu sentia que, na minha devoção à Nossa Senhora, faltava alguma coisa que procurava e não entendia o que era. Até que os meus olhos caíram sobre esse texto de Cornélio a Lápide.

Eu ali senti que havia um recôncavo da minha alma que estava vazio do necessário da devoção à Santíssima Virgem, e exultei porque me senti cheio de Nossa Senhora. E acho que a devoção contrarrevolucionária a Ela comporta este aspecto de um modo relevante.

Não quero dizer que a imagem ou o quadro, enfim a reprodução, que não se refira a isto seja censurável. Afirmo outra coisa: que quase nunca se veja isto é censurável.

Há uma escultura medieval, representando uma lenda, em que Nossa Senhora está defendendo, com espada na mão, uma alma que o demônio quer roubar. É, portanto, a Santíssima Virgem em luta contra o demônio, mas usando um gládio.

O efeito do Renascimento foi o de passar um pano molhado sobre todas essas realidades. E daí haver essa forma de piedade adocicada e sem luta, fazendo com que a Contra-Revolução não tenha lutadores. Os contendores estão do lado de lá, eles são ferozes; do lado de cá tem essa água com açúcar que conhecemos.

Mas volto a dizer, não é porque quando uma explanação de Nossa Senhora não se refere a isso seja água com açúcar, isso não é verdade. Mas é verdade que no conjunto das noções sobre Nossa Senhora deve-se ter isto presente, sob pena de não sermos verdadeiramente contrarrevolucionários. Tenho certeza de que o nosso espírito contrarrevolucionário brilha especialmente se tivermos o cuidado de sempre ter em vista que Nossa Senhora é assim.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 6/12/1992)

Aspecto militante do privilégio da Imaculada Conceição

Quando Adão e Eva pecaram, antes que Deus os expulsasse do Paraíso e promulgasse as penas às quais estariam sujeitos, revelou-lhes a missão de Maria Santíssima, que viria ao mundo para esmagar a cabeça da infernal serpente.

Esta inimizade, criada pelo próprio Deus, permanece viva ao longo dos séculos entre os que são da Virgem e os sequazes de satanás. Por isso, não é de admirar que o dogma da Imaculada Conceição tenha causado não pequeno rebuliço. Sobre este aspecto, comenta Dr. Plinio:

Quando o dogma da Imaculada Conceição foi definido por Pio IX, houve uma verdadeira tempestade de ódios, protestos, indignação. Como explicar esse furor?

Vejam o conteúdo do dogma: Maria Santíssima foi concebida sem pecado original, desde o primeiro instante de seu ser.

Ela, como Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, mais recentemente também como Mãe da Igreja, é odiada pelo ódio igualitário de vê-La colocada no ponto mais alto em que uma mera criatura possa estar. Ainda mais sendo uma mulher, e onde, portanto, o arbítrio de Deus se apresenta de um modo muito mais forte.

Isso fere enormemente o igualitarismo, como também a ideia de que esta criatura tenha sido objeto de uma exceção a uma regra para a qual nunca houve exceção, e tenha sido concebida sem pecado original desde o primeiro instante de seu ser.

Não é só a aversão ao aspecto anti-igualitário, mas é um ódio em relação ao que é sublime. Nossa Senhora concebida sem pecado original, Mãe de Deus, tudo isso considerado no seu conjunto é de uma sublimidade de tal maneira pura, imaculada, elevada, virginal, que transcendente a tudo em matéria de sublimidade.

O espírito revolucionário odeia tudo quanto é sublime, tudo quanto é elevado, e não somente por ser ele igualitário, mas por outra expressão que é o amor ao banal, ao trivial, quando não é o amor ao degradado. Daí decorre um verdadeiro ódio contra a Imaculada Conceição de Nossa Senhora.

Ao considerar a Festa da Imaculada Conceição, devemos pedir Maria Santíssima que nos dê cada vez mais essa bem-aventurança: sermos de tal maneira unidos a Ela, de trazermos em torno de nós de tal maneira a expressão d’Ela, que se possa dizer que realmente é por causa d’Ela que somos odiados, por causa daquilo que em nós existe de semelhante a Ela. Isto nós devemos pedir com muito afinco.

Imaculada Conceição, intransigência e combatividade

Uma incomparável noção do bem e do mal. Nascidas desta altíssima noção, a intransigência e a combatividade de Maria servem de modelo para toda a humanidade.

Um comentário que poderíamos fazer a respeito da Imaculada Conceição de Maria seria considerá-La enquanto modelo de insuperável combatividade e intransigência. No que consiste a combatividade e a intransigência, e por que podemos dizer que Nossa Senhora é, enquanto concebida sem pecado original, o modelo dessas virtudes?

Da compreensão e do amor a um nobre ideal nasce a intransigência

A intransigência consiste no seguinte: quando temos inteiramente claro no espírito o que é o bem e como algo deve ser para podermos considerá-lo bom; e quando temos essa noção levada até o ponto de sublimidade, compreendendo a mais alta expressão do bem a respeito daquilo, nasce, então, na defesa desta ideia, a intransigência.

Tomemos, por exemplo, a figura de um bom sacerdote. Uma pessoa que compreenda, em toda a sua sublimidade, a vocação sacerdotal, a virtude de que deve estar imbuído o sacerdote, e forme uma ideia profunda — não uma mera impressão colhida superficialmente — da alta realidade contida nesse estado de vida, ela se torna verdadeiramente intransigente em relação a tudo quanto toca no sacerdócio. Porque, como a pessoa compreendeu e amou um ideal altíssimo, necessariamente ela lançará uma condenação severíssima sobre aquilo que contradiga esse ideal. Por ter compreendido e amado esse bem até o fim, a pessoa pode perceber e sondar toda a malícia que há no contrário, rejeitando este completamente, de modo intransigente, ou seja, não o tolerando.

No contraste com o mal se percebe melhor a excelência do bem

Esta é a intransigência que procede, precisamente, dessa elevada concepção e nobre aceitação da coisa verdadeira e boa, e que gera, então, a rejeição daquilo que é ruim.

Por causa da estrutura do espírito humano, pode-se dizer que de algum modo, formada a intransigência, a visão e a consideração do mal reforçam o amor ao bem. Porque, no contraste com o mal, a pessoa percebe melhor a excelência do bem, encontrando assim um meio de amá-lo ainda mais.

O contrarrevolucionário, entendendo bem, nos seus mais altos aspectos, toda a grandeza da causa à qual se dedica, pode também perceber perfeitamente a dignidade e a excelência dessa vocação, e o que ela exige de quem a recebe. Por isso, ele forma dessa vocação uma ideia altíssima e muito amada por ele, o que o torna intransigente em relação a todas as fraquezas, todas as deficiências na vocação, e para com todos aqueles que, de fora, procuram atrapalhá-la.

Portanto, dessa alta ideia nasce uma recusa ao oposto, mas, na consideração do mal, essa mesma ideia ainda recebe um reforço.

Combatividade, filha da intransigência

A combatividade é uma consequência da intransigência. Quem é inteiramente intransigente deve querer o extermínio completo do mal que ele tem em vista. Do contrário, ele não seria intransigente. Por isso, o desejo de extinguir aquele mal deve encher sua vida como um verdadeiro ideal, não sossegando enquanto não tiver liquidado aquele erro que, de fato, ele queria liquidar.

Surge, então, a combatividade, isto é, aquele desejo de eliminar o mal efetivamente, sem deixar vestígios nem raízes, de maneira que nunca mais possa renascer. Derrotar o mal a ponto de envergonhá-lo, causando em quem considere essa derrota, um horror ao mal e um amor ao bem ainda maiores. Esta posição é, propriamente, a combatividade, filha da intransigência.

”Reduzir a pó pelo fogo”

No Direito português antigo havia uma expressão que indicava de um modo muito sintomático essa execração ao mal: “reduzir a pó pelo fogo”. Na época em que se aplicava a pena de morte, quando um réu era condenado por um crime horroroso, matavam-no — às vezes de um modo cruel, aos poucos, com pauladas ou por meio do tormento da roda —, queimavam seu corpo até reduzi-lo a cinzas, as quais eram, depois, jogadas no mar. Quer dizer, não sobrava nada.

Eis uma imagem da combatividade verdadeira que não quer que reste nem as cinzas, mas apenas uma recordação de horror daquele mal praticado.

Não me refiro à eliminação da pessoa, mas tenho em vista algo muito mais importante e difícil: é a extinção de um mau costume, de uma lei iníqua, de uma ideia má, de uma doutrina falsa. Matar um homem, numa hora de cólera, qualquer um é capaz de matar; há muitos criminosos que assassinam pessoas por aí. Mas querer acabar com uma instituição perversa, uma ideia errada, enfim, com o mal, este é o ponto característico da combatividade nascida da intransigência. Por vezes, essa combatividade poderá ser fria, porém será sempre inexorável.

Modelo de intransigência e combatividade

Qual a relação entre o que até aqui foi exposto e a Imaculada Conceição?

Nossa Senhora, sendo concebida sem pecado original, não tinha em Si absolutamente nada que fosse ruim. E possuía, nesta Terra, todas as facilidades para dar à graça de Deus uma correspondência perfeita a todo momento. De maneira que n’Ela a grandeza natural e a grandeza sobrenatural entravam em uma fusão, em uma harmonia profunda e estupenda.

Em consequência, a Santíssima Virgem estava dotada, como ninguém, de uma elevadíssima noção da glória e da santidade de Deus, da obrigação que têm todas as criaturas de darem glória a Deus; e, por causa disso, um altíssimo horror àquilo que o pecado representa. Donde uma combatividade acendrada, no sentido de execrar toda forma de mal.

Compreendemos, assim, por que Nossa Senhora é comparada a um exército em ordem de batalha: “castrorum acies ordinata”. E também a razão pela qual d’Ela se diz que, sozinha, esmagou todas as heresias em toda a Terra: é exatamente porque Maria Santíssima é o modelo da intransigência e da combatividade, virtudes estas que podemos compreender melhor através do privilégio de sua Conceição Imaculada.

Ao comemorarmos, pois, a Imaculada Conceição de Maria, devemos pedir um altíssimo grau de amor que nos leve a querermos ser intransigentes de um modo insondável, a um ponto inconcebível.

Lembro-me de Santa Teresinha do Menino Jesus manifestar, na “História de uma alma”, o pesar que ela sentia por não poder ser um guerreiro que, até nos confins da Terra, estivesse manejando a lança contra os inimigos de Deus. É assim a alma de um santo! Em todo lugar, quer verdadeiramente combater nas formas mais adequadas e legítimas do combate.

Portanto, nós devemos pedir hoje esse lampejo de combatividade ligado à santidade, correspondente à forma especial de pureza daqueles que verdadeiramente são filhos e procuram ter o espírito de Nossa Senhora.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/12/1966)

A Sabedoria do Menino Jesus na Manjedoura

Será que ao dirigir-se a Jesus Menino devemos fazê-lo como a uma criança sem discernimento? Ou como a Alguém dotado de extraordinária Sabedoria? Tal Sabedoria existe na alma de uma criança? O que pedir a Ele no dia do Natal? Com profunda piedade unida à doutrina, Dr. Plinio discorrerá sobre estas e outras questões.

Diante da proximidade da festa supremamente significativa do Santo Natal de Nosso Senhor, parece-me que deveríamos nos perguntar: Como devemos nos preparar para o dia de Natal? E, sobretudo, como prepararmo-nos para o momento culminante deste dia, a Santa Missa? E ainda como nos prepararmos para os dois momentos auges dentro dela, a Consagração, e a Comunhão?

Como preparar-se para o Natal

Para esta preparação há uma dificuldade. Creio existir em muitas pessoas a ideia, apresentada pela iconografia comum, de que ao adorar o Menino Jesus, adora-se uma criança com todas as suas características e, portanto, até mesmo com a inteligência e falta de discernimento próprias a todo recém-nascido. Torna-se assim difícil a adoração de um ente em relação ao qual não se tem nenhuma comunicação de pensamento; e que sendo verdadeiro Deus é também homem, e em sua natureza humana não tem a sabedoria, a inteligência e a penetração de espírito do homem adulto. De tal maneira que a fisionomia humana que nós temos representada diante de nós, não nos convida a uma comunicação de alma como diante de uma pessoa que começa a pensar e a refletir. Por isso, a meditação clássica que se faz diante de um presépio consiste em ver o Menino Jesus tão criança, tão pequeno, tão frágil, e estabelecer o contraste entre a imensidade de Deus e aquela pequena criatura na qual Nosso Senhor Jesus Cristo se encarnou, com a qual Ele assumiu a união hipostática.

Jesus, apesar de menino, possuía toda a inteligência e discernimento

Então se faz geralmente uma meditação a respeito da humildade de Deus, ou do desejo extremo de nos salvar que levou Nosso Senhor a Se reduzir àquela condição de frágil criatura posta numa manjedoura. Esta ordem de ideias é muito boa, ao ponto de ter se tornado comum, talvez demasiado comum. É possível, portanto, que se queira para esse Natal uma ordem de ideias mais perfeita, ao menos ao nosso modo de ver.

Deveríamos então nos perguntar se a iconografia católica, que nos apresenta Nosso Senhor Jesus Cristo como uma criança sem discernimento, olhando para as coisas sem ver bem o que é que são, sem entender o que está em torno de si, se essas imagens correspondem a algo de verdadeiro e, portanto, se é verdade que Nosso Senhor Jesus Cristo tinha essa inteligência própria à primeira infância.

A isso se deve responder o seguinte: Nosso Senhor Jesus Cristo, de algum modo, realmente teve as várias idades pelas quais Ele passou. Portanto, possuiu verdadeira alma infantil, de adolescente, de moço e de homem maduro. Porém, isso não quer dizer que Ele, em sua infância, tivesse a fraqueza e a falta de discernimento próprias a este estado.

Sapientíssimo desde o ventre materno

Ensina a Teologia que desde o momento da Encarnação, ainda mesmo no ventre de Nossa Senhora, Jesus já possuía toda a inteligência e lucidez, sendo, portanto, uma criança sapientíssima, embora a manifestação de sua sabedoria se desse de acordo com o comum de uma criança. Portanto, ainda que inteligentíssimo, Ele era realmente uma criança.

Assim sendo, vê-se que a iconografia católica não erra, porém mostra apenas um aspecto da verdade. Com certeza, para aqueles que tratavam com o Menino Jesus, Ele deveria causar a impressão de uma criança sujeita às condições comuns de criança. Porque o milagre não podia aparecer n’Ele de um modo irrecusável. Mesmo em sua vida pública, Ele praticou numerosos milagres que não possuíam o caráter de evidência; eram milagres mais ou menos como os que se dão em Lourdes; claros o bastante para que uma pessoa de boa-fé possa crer, mas não tão manifestos que excluam a necessidade da Fé. Pois, se o Menino Jesus, posto numa manjedoura, começasse a falar e dissertar, como se fosse um homem dotado de uma sabedoria extraordinária, seria patente tratar-se de um menino inteiramente incomum, e a Fé teria que ceder lugar à certeza. Por isso, Ele possuía as aparências de criança, pois por humildade Ele quis respeitar o tempo necessário e ir gradualmente Se revelando.

Jesus veio ao mundo conhecendo todo o passado, o presente e o futuro

Quando consideramos Nosso Senhor Jesus Cristo Menino, devemos considerar este mistério: Sendo verdadeira criança, parecendo possuir apenas um discernimento pueril, tem em Si toda a sabedoria da qual a natureza humana é capaz. De maneira que aquela Criança na manjedoura tinha incomparavelmente mais inteligência, conhecimento e santidade do que tiveram todos os entes que existiram antes e depois d’Ele sobre a Terra.

Devemos por isso considerar que ali deitado na manjedoura, Nosso Senhor Jesus Cristo via tudo quanto deveria fazer na Terra. Ele conhecia tudo o que em torno d’Ele se passava. Pela vontade d’Ele, todas as coisas eram de forma tal qual Ele queria. Ao contemplar Nossa Senhora, o Menino Jesus sabia ser Ela como era por vontade sua. Enquanto Maria O adorava, Ele percebia claramente que por sua vontade Ela o fazia e correspondia a essa adoração com uma generosidade, uma bondade perfeita, que inundava Nossa Senhora de gáudio.

Por sua vez, olhando para Ele, Nossa Senhora conhecia o grau de discernimento e santidade que havia n’Ele. Travava-se assim um diálogo mudo, mil vezes mais eloquente do que um diálogo falado, diálogo maravilhoso e insondável, no qual a Virgem Mãe se comunicava com seu Filho que revelava a Ela os mistérios de sua sabedoria e santidade, deixando-A arrebatada de enlevo, e fazendo-A crescer cada vez mais em santidade.

No primeiro Natal, Jesus via todos os Natais da História

Talvez o primeiro diálogo de Nosso Senhor com Nossa Senhora tenha consistido em considerar o seguinte: Pela vontade de Jesus, que acabava de nascer, é que estavam naquele lugar pobre. Pela vontade d’Ele os pastores vieram visitá-Lo. Ele sabia, já ao encarnar-se, que deveria morrer na Cruz, e talvez naquele momento tenha oferecido ao Padre Eterno tudo quanto Ele faria nesta Terra, para o cumprimento de sua missão.

É preciso ressaltar que Ele não pensava apenas em sua vida terrena, mas pensava na missão da Igreja por todos os séculos. Ele tinha a intenção de que seu nascimento fosse o primeiro Natal, e conhecia todos os Natais que viriam depois, até o fim do mundo. Sem dúvida, sabia de todas as magníficas festas de Natal nas esplêndidas catedrais da Idade Média; nas belas e nobres festas, em tantas igrejas do “Ancien Régime”; nas comovedoras e veneráveis igrejas dos séculos passados.

Ele viu também os Natais modernos, carentes de sentido sobrenatural, e celebrados talvez com um estado de espírito oposto ao que se deveria ter. Mas, sem dúvida, viu com imenso agrado os que permaneciam fiéis ao verdadeiro espírito do Natal, mantendo-se verdadeiramente católicos apesar das perseguições, das lutas e das dificuldades.

Quem sabe se o último dia do mundo não será um Natal?

Ele previu os esplêndidos Natais do Reino de Maria, e conheceu também os tristes Natais no tempo em que a humanidade do Reino de Maria começará a decair inexoravelmente, talvez entrando pelo caminho que levará ao fim do mundo. Ele previu até mesmo o último Natal.

Como será este último e grandioso Natal?

Eu o imagino da seguinte maneira: poucos fiéis esparsos pela face da Terra, festejando sozinhos o verdadeiro Natal, talvez sem se conhecerem, e percebendo que nada mais pode durar porque a Igreja Católica está em seus últimos haustos…

Quem sabe se à meia-noite do dia vinte e quatro do último dezembro da História, quando tudo parecer completamente perdido, um raio percorrerá o céu do Oriente ao Ocidente, um terror se apoderará dos povos, os anjos aparecerão, a abóbada celeste se enrolará como um pergaminho, e virá o Filho do Homem, em toda a sua majestade, para julgar vivos e mortos. Talvez enquanto alguns poucos fiéis, ao som do “Stille Nacht”, comemoram o nascimento de Cristo Nosso Senhor, Ele volta à Terra em meio às glórias do Natal e, de repente, começa a surgir a aurora, os mortos começam a ressuscitar, os justos aclamam Nosso Senhor, Nossa Senhora aparece à frente do cortejo das almas eleitas, e começa o julgamento.

Pedir a graça de permanecer fiel ao verdadeiro espírito de Natal

E, se admitirmos essa hipótese, é conveniente deitarmos o olhar para esses últimos irmãos, vítimas da última perseguição, e procurarmos compreender o sentido profundo do Natal para os que são perseguidos, desde o Natal das catacumbas até o Natal do fim dos tempos.

De tudo isso nos devemos lembrar ao aproximarmo-nos do Santíssimo Sacramento, quando O adorarmos após o milagre da Transubstanciação e quando O recebermos na Santa Comunhão. Então, por meio de Nossa Senhora, Medianeira de todas as graças, roguemos a Nosso Senhor que nos prepare espiritualmente para as provações que podem sobrevir.

Posto na manjedoura só para mim

Peçamos a Nosso Senhor perdão pelas faltas que tenhamos cometido, e supliquemos-Lhe que Se digne misericordiosamente fechar os olhos para nossos pecados, da mesma forma que nascendo fechou os olhos para as infidelidades do povo eleito e do mundo antigo. Roguemos que Ele assim inicie conosco uma nova era de graças, de misericórdia e de bondade, uma era de paz, na qual, inteiramente reconciliados com Ele, possamos ser os filhos que Ele nos convida a ser. Essas são algumas das orações que podemos oferecer a Ele, unidas a gemidos de arrependimento e manifestações de esperança, confiança e certeza de que, se Ele veio à Terra para salvar os homens, veio para nos salvar a nós; e que se Ele esteve na manjedoura para o bem dos homens, lá esteve para o meu bem.

Ainda que não houvesse senão um homem, e esse fosse eu, Ele teria Se encarnado e seria posto na manjedoura por amor a mim. De maneira que é legitimo imaginar que o Menino Deus lá está por causa de mim. Por isso devemos pedir a Ele que esse ato de amor maravilhoso não seja estéril em nossas almas, e que a bondade d’Ele passe por cima de nossos pecados e arrase os obstáculos edificados por nós, e, finalmente, nos converta fazendo-nos pertencer completamente a Ele. É isso que por meio de Nossa Senhora aconselho pedir na noite de Natal.

Oferecer os pedidos numa bandeja de ouro

Tenhamos em conta que bem junto ao presépio estava Nossa Senhora. Diz o Evangelho que os pastores O encontraram com Maria, indicando que só com Nossa Senhora, e junto a Ela, se encontra Nosso Senhor. Consideremos também que no momento em que veio ao mundo o Salvador, Ela conhecia que tudo quanto Ele deveria sofrer, o faria por nós. Ela pediu a Ele todas as graças necessárias para cada um de nós. E ainda agora no Céu continua a pedi-las.

Unamo-nos a esse pedido. Usando a expressão de São Luís Grignion, coloquemos nosso pedido nas mãos de Nossa Senhora, como um camponês que põe uma fruta comum numa bandeja de ouro, para oferecer ao rei. A salva de ouro são as mãos e o Imaculado Coração de Nossa Senhora. Peçamos que Ela recolha nosso pedido e o apresente a seu Divino Filho.

Com a certeza de sermos bem recebidos e atendidos, pois Nossa Senhora nunca recusa coisa alguma do que lhe peçamos, podemos transpor o Natal.

Oração para o momento da Transubstanciação

No auge do Natal, no momento da Transubstanciação, para mim a oração ideal é a “Salve Regina” ou o “Memorare”, pedindo a Nossa Senhora que me torne bem consciente de que nunca se ouviu dizer que Ela tenha recusado um pedido, e, portanto, naquela hora sacrossanta não recusaria o meu. E então peço a graça de ser inteiramente d’Ela. Apesar dos meus defeitos e ingratidões, que Ela tome conta de mim, e me faça inteiramente d’Ela, para eu ser o herói e o santo que Ela quer que eu seja. Esta é, em especial, a oração que nós devemos fazer na noite de Natal.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/12/1971)