Os Reis Magos

Na vida espiritual pode haver momentos em que pensamos trilhar um caminho incerto, sem vislumbrarmos o almejado objetivo. Dizemos: “Afinal, andamos, andamos, andamos, como se à nossa frente estivesse a estrela que guiava os Reis Magos, mas, até agora, não chegamos a Belém…”

Ora, nesse instante de dúvida procuremos nos convencer de que, se diante de nós reluz a estrela, importa confiarmos, pois logo a Providência nos confirmará em nossa certeza, assim como os Magos se viram confirmados na sua esperança: ajoelharam-se aos pés do Menino Jesus, a Quem ofereceram ouro, incenso e mirra.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 13/3/1984)

A Epifania do Senhor

A Epifania — palavra grega que significa “manifestação” — celebra a primeira aparição de Jesus a todos os povos, representados pelos Reis Magos ajoelhados diante do Menino-Deus.

Sentado no colo da Virgem-Mãe, como se fosse num trono, Nosso Senhor começou a receber a adoração de todas as nações que, no decorrer da História, haveriam de desfilar, reverentes e transidas de amor, aos pés d’Ele, em um longo cortejo. E a todas, o Redentor cumulará de graças, favores e dons celestiais.

Plinio Corrêa de Oliveira

Santa Catarina de Alexandria

Sobre a morte da Santa Catarina, virgem e mártir,  o Abbé Daras, na “Vida dos Santos”, tem essa narração:

“Maximiliano, imperador, ordenou a morte de santa Catarina. Foi ela conduzida ao lugar do suplício em meio a uma multidão, sobretudo de mulheres de alta condição, que choravam a sua sorte.

A virgem caminhava com grande calma. Antes de morrer, fez a seguinte oração: ‘Senhor Jesus Cristo, meu Deus, eu vos agradeço terdes firmado meus pés sobre o rochedo da fé e terdes dirigido meus passos na via da salvação. Abri agora vossos braços feridos sobre a cruz, para receber minha alma, que eu sacrifico à glória de Vosso Nome. Lembrai-vos, Senhor, que somos feitos de carne e sangue. Perdoai-me as faltas que cometi por ignorância e lavai minha alma no sangue que vou derramar por vós. Não deixeis meu corpo, martirizado por vosso amor, em poder dos que me odeiam. Baixai vosso olhar sobre esse povo e dai-lhe o conhecimento da verdade. Enfim, Senhor, exaltai em vossa infinita misericórdia aqueles que Vos invocarão por meu intermédio, para que Vosso Nome seja para sempre bendito’.

“Em seguida mandou que os soldados cumprissem as ordens, e sua cabeça foi decepada de um só golpe. Era o dia 25 de novembro. Numerosos milagres logo foram constatados. Os anjos, como ela o desejara, transportaram seu corpo para a santa montanha do Sinai, a fim de que repousasse onde Deus escrevera sobre pedra sua Lei, que ela guardava tão fielmente escrita em seu coração.”

Esse trecho é de uma tal elevação que quase se lamenta ter que comentá-lo. Ficaria mais satisfeito deixando assim o texto brilhando no céu, no horizonte, suspenso, sem apoio nenhum na realidade, emitindo luzes. Mas já que é preciso comentar, vamos aos pormenores.

“Ela foi conduzida ao lugar do suplício em meio a uma multidão, sobretudo de mulheres de alta condição, que choravam a sua sorte.”

Se os senhores pensarem que são sobretudo as senhoras de alta condição que encabeçam as extravagâncias hoje em dia, os senhores vêem como as situações têm mudado. E quanto ainda tem de possibilidades um país onde as senhoras de alta condição acompanham, ao lugar do suplício, solidarizando-se com ela, chorando junto com ela, uma mártir que foi fulminada pela cólera do imperador. Um imperador onipotente, que pode mandar matar todos aqueles que se desagradarem de alguma atitude dele. Entretanto, essas damas vão todas, com Santa Catarina, e vão chorando.

O bonito, para verem a diversidade dos dons do Espírito Santo e dos efeitos da graça, é que elas vão chorando e está bem que elas vão chorando. Mas contrasta, pela sublimidade, com isso, com esse dom das lágrimas que as mulheres tiveram nesse momento, o fato de que Santa Catarina não chorava. Ela permanecia quieta, e com uma grande calma. Ela caminhava de encontro à morte, inundada de graças do Espírito Santo de outra natureza, por onde ela não chorava para si aquilo que a graça queria que as outras chorassem para ela. E como deveria ser impressionante esse cortejo de damas, andando, no meio dos soldados, e ela no meio, a única calma, a aconselhar a todas que tivessem tranqüilidade, que tivessem consolação, até chegar o momento em que ela devia morrer.

Aí, no fim da vida, ela faz uma oração. Essa oração é muito bonita e tem aquela forma especial de beleza que tem certas coisas muito bonitas quando não são inteiramente consequentes na sua lógica. São um conjunto de afirmações, como raios de luz que procedem de um mesmo foco, mas que brilham com uma beleza própria no horizonte. Então, os senhores vêem aqui a ideia dela:

“Senhor Jesus Cristo, meu Deus”…

… é para afirmar que Ele era o Deus dela e que ela não reconhecia outro Deus senão Ele. Então, a primeira coisa que ela diz, no momento de morrer, a primeira graça, a primeira palavra, o primeiro pensamento dela é para essa primeira graça:

“Eu vos agradeço por terdes firmado meus pés sobre os rochedos da fé, e terdes dirigido meus passos na via da salvação.”

Quer dizer, eu vos agradeço por ter pertencido a vós. Vós que sois a fonte de minha salvação, Vós que sois o ponto de partida de todo o bem que pode haver em mim, Vós que, se eu sou boa, é porque Vós sois bom e porque Vós me destes o ser boa: eu vos agradeço a fé que me destes e a firmeza que me destes na fé; eu vos agradeço o amor à virtude que me destes e a firmeza que vós me destes no amor à virtude. Isso é o primeiro que vos agradeço, reconhecendo que tudo que em mim há, à vossa iniciativa eu devo.

“Abri agora vossos braços feridos sobre a cruz para receber minha alma que eu sacrifico à glória de Vosso Nome.”

Pode haver uma coisa mais bela do que isso? O Divino Crucificado, com os braços todos sangrando, que os desprende da cruz para receber a alma dela que sai também inundada do sangue do martírio, para ser recebida por Ele. Que maravilhosa intimidade! Que encontro do Mártir dos mártires com uma mártir heroica e grandiosa! Que ideia do sangue dela misturando-se ao Sangue infinitamente precioso de Nosso Senhor Jesus Cristo! Que noção do Corpo Místico de Cristo há nisso! Que sacratíssima e augustíssima intimidade com Nosso Senhor! Ela tinha de tal maneira a ideia de que a alma dela estava unida a Ele, que a morte selava essa união, que ela pedia que Ele a abraçasse, logo que ela entrasse na eternidade. Que certeza de ir para o Céu!

Depois dizia:

“Lembrai-vos, Senhor, que somos feitos de carne e sangue. Perdoai-me as faltas …” – ou seja, que somos feitos os dois! – “Perdoai-me as faltas que cometi por ignorância e lavai minha alma no sangue que vou derramar por vós”.

Quer dizer, ela tinha medo de, por ignorância, ter cometido alguma falta: era o que ela tinha para se acusar. Então, lavai a minha alma no vosso Sangue. Antes de ir para o Céu, antes de derramar o meu sangue por vós, eu quero que vós laveis a minha alma no vosso Sangue.

“Perdoai-me as faltas que cometi por ignorância… Não deixeis meu corpo, martirizado por vosso amor, em poder dos que me odeiam. Baixai vosso olhar sobre esse povo..Agora outro pensamento. Ela, depois de ter pensado em sua alma – pede que seja recebida por Nosso Senhor, que seja lavada das faltas que tenha, – pensa no corpo dela. Então pede que o corpo dela não seja deixado em mãos dos inimigos dela, daqueles que a odeiam porque odeiam a Ele.”

Vejam que respeito pelo corpo próprio! Que respeito pela santidade do corpo que foi um conosco na realização da virtude! Também, que atendimento magnífico dessa oração! Foi só ela morrer, que os anjos vieram e levaram o seu corpo. Para onde? Para a montanha mais augusta que há na terra, depois do Gólgota, depois do monte Calvário, e que é o Sinai, aonde a Lei de Deus foi dada aos homens. A coisa mais bela do Sinai é, certamente, a Lei de Deus, e para ali seu corpo foi levado. Os senhores sabem que até hoje o corpo dela está lá, e há um mosteiro de monjas contemplativas, no deserto do Sinai, que guardam esse corpo, e que meditam sobre a Lei de Deus que ali foi concedida aos homens.

“Baixai vossos olhos sobre esse povo e dai-lhe o conhecimento da verdade.”

Ela já não pensa em si, mas nos circunstantes.

“Enfim, Senhor, exaltai em vossa infinita misericórdia, aqueles que Vos invocarão por meu intermédio, para que vosso Nome seja para sempre bendito”.

Ela pede desde já a Deus que atenda a todo mundo que por meio dela pedir alguma coisa.

“Em seguida mandou que os soldados cumprissem as ordens, e sua cabeça foi decepada de um só golpe. Era o dia 25 de novembro.”

A calma e a resolução! Feita a oração, nenhum tremor, nenhum desejo de contemporizar um pouco. Também nenhuma precipitação de quem tem medo de enfrentar a morte correndo em direção a ela. Não, ela diz tudo quanto tem que dizer. E terminado isso, ela se entrega às mãos de Deus. Os soldados a matam e a oração dela se atende.

“Era o dia 25 de novembro. E numerosos milagres foram logo constatados..

Fala dos anjos que foram lá. E assim nós temos as considerações dessa grande santa, mártir, para algum efeito de caráter espiritual em nós.

Qual é o efeito que nós devemos pedir? Devemos pedir a ela que se, na luta ideológica contra o comunismo, contra outros adversários da Igreja, tivermos que sofrer riscos, ou talvez perder a vida, tenhamos aquela serenidade perante a morte que só a graça dá.

Porque perante a morte só há duas espécies de pessoas serenas: o cretino ou o homem movido pela graça de Deus. A morte é uma coisa tão tremenda – a separação entre a alma e o corpo, a liquidação do ser, o aparente afundar no nada -, que a gente só compreende a serenidade diante da morte ou do cretino, que está cronicamente habituado a não medir a importância do que lhe vai acontecer, ou então do homem que está dominado pela graça.

Vamos pedir, pois, que em todas as ocasiões da vida, tenhamos essa calma diante do risco; e calma que seja levada até o sacrifício extremo, caso essa seja a vontade de Nossa Senhora.

Plínio Corrêa de Oliveira (extraído da conferência de 24 de novembro de 1965)

São João da Cruz, mestre do amor a Deus

Baluarte e cofundador da Ordem Carmelita Descalça, São João da Cruz sublimou-se numa vida entregue à ascese e à contemplação, ensinando aos homens, como Doutor da Igreja, não existir “trabalho melhor nem mais necessário que o amar a Deus”. Algo do perfil e da doutrina desse grande Santo nos é dado a conhecer este mês, através das incisivas palavras de Dr. Plinio.

Duas almas extraordinárias foram suscitadas por Deus, no século XVI, para juntas empreenderem a reforma da Ordem do Carmo. Uma delas, a grande Santa Teresa de Jesus. A outra, São João da Cruz, contemplativo insigne, confessor e Doutor da Igreja, cuja festa é celebrada no dia 14 deste mês.

“Uma das almas mais puras que há na Igreja”

Dele sabemos que, assim como Santa Teresa, nasceu na província de Ávila, Espanha, e sua primeira formação se deu em Medina Del Campo, onde estudou com os padres jesuítas. Desejava, porém, tornar-se carmelita e nesta Ordem ingressou aos 21 anos, recebendo sua educação teológica em Salamanca. Em 1567 ordena-se sacerdote e celebra sua primeira missa.

Chamado a uma austera e sublime vida contemplativa, o jovem religioso logo se decepcionou com o relaxamento monástico dos conventos carmelitas. Quando tencionava procurar a Ordem dos Cartuxos, na qual poderia expandir seus anseios de alma, encontrou-se com Santa Teresa e aceitou dela o desafio de promoverem a reforma do Carmelo.

Como sói acontecer, o zelo com que trabalhou pela observância religiosa lhe angariou maus tratos e difamações, chegando mesmo a ser encarcerado em Toledo. Nesse período de duras provações acendeu-se nele a labareda de sua poesia mística. Datam de então os célebres escritos, como a “Subida do Monte Carmelo”, Noite escura da alma”, “Cântico Espiritual”, “Chama de amor viva”, etc.

Por mais de vinte anos consagrou-se à uma existência semeada de ascese e fecunda contemplação, vindo a falecer aos 49 anos de idade, no dia 14 de dezembro de 1591. Canonizado em 1726, é também cultuado como o Patrono dos poetas espanhóis.

Santa Teresa o considerava “uma das almas mais puras que Deus tem em sua Igreja”, e outro de seus contemporâneos assim o descreve: “Homem de estatura mediana, de boa fisionomia, rosto sério e venerável. Seu trato era muito agradável e sua conversa bastante proveitosa para os que o ouviam. Foi amigo do recolhimento e falava pouco. Quando repreendia como superior, que o foi muitas vezes, agia com doce severidade, exortando com amor paternal”.

Quem saboreia ninharias não pode deleitar-se com Deus

Tendo conhecido esses breves traços biográficos e morais de São João da Cruz, analisemos agora algumas de suas máximas espirituais, valiosos ensinamentos que ele nos legou ao lado de seus grandes escritos.

Não conhecia eu a Vós, meu Senhor, porque queria ainda saber e saborear ninharias. Secou-se meu espírito porque se esqueceu de se apascentar em Vós. Essa sentença é uma verdadeira maravilha.

De fato, o amor à ninharia é das coisas mais invisceradas no gênero humano. E mesmo quando se trata de assunto sério, este geralmente é considerado sob o ponto de vista da bagatela. E não será exagero afirmar que muitos se comprazem em conversar sobre trivialidades.

Por exemplo, os que se acham num restaurante, numa praça pública, num veículo de transporte coletivo, etc., ou estão quietos, pensando em ninharia, ou conversam sobre a bagatela na qual cogitavam quando em silêncio. Mas, o gosto, o apego é pensar a respeito de ninharias.

Então, diz São João Cruz com muita propriedade: Não vos conhecia eu a Vós, meu Senhor, porque ainda queria saber e saborear ninharias.

Quer dizer, quem degusta ninharias, não pode se deleitar com Deus. Porque não é possível gostar de duas coisas opostas ao mesmo tempo. Ora, Deus é infinito, altíssimo, insondável, transcendente. A ninharia, pelo contrário, é a insignificância, a bagatelinha. Assim sendo, compreende-se que uma pessoa afeita às trivialidades não tem o espírito voltado para saborear Deus. Quem notar em si mesmo esse defeito, não deve tomar uma atitude mesquinha, dizendo: “Ah, então não tem remédio, porque gosto tanto de ninharia, que nunca me descolarei dela”. Importa, sim, fazer uma oração: “Meu Deus, dai-me o vosso espírito, o Espírito Santo, que me fará sentir apetência das coisas grandes e horror da ninharia”.

No Evangelho, Nosso Senhor diz que, de todas as orações, a mais certamente atendida é aquela na qual pedimos o Espírito Santo, o bom espírito. Portanto, o oposto à bagatela e à ninharia. Esta deve ser a nossa súplica.

Secou-se meu espírito, porque se esqueceu de se apascentar em Vós.

Qual é o espírito que se apascenta em Deus? Aquele que se compraz em pensar nas belezas da Igreja Católica, na doutrina e na vida de nosso movimento, que são expressões da Igreja e seus princípios. Este se apascenta em Deus, ou seja, é como uma ovelha que se nutre da relva divina e das maravilhas do Criador. Ao contrário daquele cujo espírito secou porque não se deteve na contemplação dessas grandezas, preferindo saborear ninharias.

A alma unida a Deus incute temor ao demônio

Outro ditame de São João da Cruz:
Se queres chegar ao santo recolhimento, não hás de ir admitindo, mas negando.

Frase magnífica. Quer dizer, os espíritos polêmicos, que negam tudo quanto seja revolucionário, isolam-se, rompem com as coisas más e chegam ao recolhimento. Porém, aqueles que aprovam, admiram e se abrem para tudo que é mau, esses são incapazes de recolhimento.

Sejas avesso em admitir em tua alma coisas destituídas de substância espiritual, para que não te façam perder o gosto da devoção e o recolhimento.

É o mesmo princípio enunciado na sentença anterior. A alma que está unida a Deus incute temor ao demônio como o próprio Deus.

Mais uma linda afirmação do Santo carmelita. Realmente, vê-se que o demônio teme o verdadeiro católico, e o ódio que demonstra contra este último é feito de temor. Ele estremece diante do que pratica a religião de modo íntegro, pois é uma alma unida a Deus.

Não devemos nos fiar de nós mesmos

Outra extraordinária proposição é esta:
O mais puro padecer traz e produz o mais puro entender.

Com tal pensamento São João Cruz nos ensina que só entendem profundamente as coisas aqueles que sabem sofrer até o fim. Aqueles aos quais aborrece o sofrimento, não compreendem coisa alguma.

Quem se fia de si mesmo é pior que o demônio.

Uma frase dura aos nossos ouvidos, mas brotada do coração e dos lábios de um Santo, Doutor da Igreja.

Fiar-se de si mesmo significa julgar não ser necessário recorrer a Nossa Senhora, porque tudo se consegue pelo próprio esforço. Por exemplo, quanto à virtude da castidade, a pessoa diz: “Ah, eu consigo praticá-la por mim mesmo. É só uma questão de força de vontade. Diante da ocasião perigosa, eu me transformo num colosso, e não preciso pedir auxílio à Virgem Maria. Vocês são um beatério e ficam implorando a ajuda d’Ela. Mas eu, com a minha força de vontade e minha inteligência, não tenho necessidade de pedir. Na hora eu enfrento!”

Na realidade, essa pessoa se estatela no chão; são derrubados cavalo e cavaleiro. E, segundo uma expressão arcaica que conheci, “cai de costas e quebra o nariz”, tão grande é o tombo. Por quê? Porque confiou em si mesma.

Melhor sofrer por Deus que fazer milagres

Quem opera com tibieza, perto está da queda. É um fato evidente.

Certa vez alguém me disse (referindo-se a outro, e no fundo fazendo o elogio de si próprio): “Fulano é tíbio, mas é muito correto”. Retruquei-lhe: “Sim, muito correto, porém está se desmilinguido”. Seria uma situação análoga à de quem, considerando um agonizante, afirmasse: “Ele está vivinho e inteiro”. Realmente o moribundo ainda não faleceu, mas a vida o está abandonando…

Como é possível negar a evidência? Por isso São João da Cruz adverte os tíbios: estão próximos da queda.

Escreve ainda o Santo:
É melhor vencer-se na língua, do que jejuar a pão e água.

Outra grande verdade. E esta nos leva a perguntar quais vitórias devemos conquistar no uso de nossa língua.

A primeira é não dizer coisas impuras; mas a maior é não falar algo que represente uma fraqueza diante da Revolução. Agrados, gentilezas, atitudes que deem a impressão de sermos filhos deste século, isso é que se trata de não dizer. E é esta a imensa vitória sobre a utilização da língua que devemos obter.

Por fim, essa bela e não menos verdadeira sentença de São João da Cruz:
É melhor sofrer por Deus do que fazer milagres.

Pode haver pessoas que realizaram milagres e, após a morte, foram para o inferno. Mas, não é possível que alguém sofra a vida inteira por Deus e depois se condene.

E o maior, o mais evidente é o milagre moral que se opera quando o homem padece de todas as maneiras, mas, por Deus, aceita o sofrimento e não volta atrás. Esse é o milagre por excelência!  Devemos, portanto, ter sempre em vista essa máxima do insigne São João da Cruz, expoente da ascese e da mística católicas: é realmente melhor sofrer por Deus do que fazer milagres.

Plinio Corrêa de Oliveira

Santa Adelaide: pecadora por natureza, imperatriz pela graça

Geralmente tem-se a ideia de que uma santa sempre se conforma com a situação na qual se encontra, por pior que seja, e nunca ousa enfrentar as dificuldades com heroísmo. Bem o contrário disso, Santa Adelaide empregou todos os meios legítimos para libertar-se do jugo em que se achava.

No dia 16 de dezembro celebra-se a memória de Santa Adelaide, Imperatriz, a respeito da qual Omer Engerbert, na “Vida dos Santos”, diz o seguinte:

Esposa do Imperador Oto I

Santa Adelaide foi uma maravilha de graça e de beleza, segundo escreveu Santo Odilon de Cluny, que foi seu diretor espiritual e biógrafo.

Filha de Rodolfo II, Rei da Borgonha, nasceu em 931, casando-se aos 15 anos com Lotário II, Rei da Itália. A filha deste casamento foi, mais tarde, Rainha da França. Adelaide tinha 18 anos quando seu marido morreu, segundo se crê envenenado por seu rival Berengário. Este, em breve, proclamou-se Rei da Itália e ofereceu a mão de seu filho à viúva de sua vítima. Recusando-se Adelaide a fazer-lhe a vontade, Berengário apoderou-se de seus Estados e conservou-a presa no castelo de Garda. Aí ela sofreu os maiores ultrajes, mas ninguém conseguiu demovê-la.

Conseguindo fugir, dirigiu-se ao castelo de Canossa, propriedade da Igreja. Dessa fortaleza inexpugnável enviou um apelo a Oto I, Rei da Germânia, que correu em seu auxílio com um poderoso exército. Cingiu ele a coroa da Itália em Pavia, e foi mais tarde sagrado Imperador em Roma. E casou-se com Adelaide. O filho desse segundo casamento, Oto II, sucedeu seu pai e, a princípio, revoltou-se contra sua mãe. Temendo pela vida, ela refugiou-se na Borgonha. Foi então que conheceu Santo Odilon, e espalhou benefícios pelos mosteiros franceses. Mais tarde, voltando à Alemanha, mandou ao túmulo de São Martinho o mais rico dos mantos usado por seu filho, já então arrependido.

“Quando chegardes ao túmulo do glorioso São Martinho — escreveu ela àquele a quem encarregara dessa missão — dizei: ‘Bispo de Deus, recebei esses humildes presentes de Adelaide, serva dos servos de Deus, pecadora por natureza, imperatriz pela graça. Recebei também esse manto de Oto, seu filho único, e vós, que tivestes a glória de cobrir com vosso próprio manto Nosso Senhor na pessoa de um pobre, orai por ele.”

Logo que pressentiu chegar o seu fim, Adelaide se fez transportar a um mosteiro para morrer e repousar junto ao túmulo de Oto, o Grande, seu segundo marido.

Encarcerada, consegue fugir da prisão

Vemos aqui um outro tipo de iluminura medieval. Não é mais a da santa que vive no convento, portanto, no recolhimento e na paz do claustro, mas a da heroína. A Idade Média é fecunda em heróis e heroínas que passam pelas maiores aventuras, pelos maiores riscos, e não têm nenhum ideal de segurança social, de aposentadoria, mas querem e veem no risco, na luta, na incerteza — quando a serviço de uma causa elevada, em defesa de direitos efetivos e legítimos —, algo que dá à vida o seu sentido.

A existência de Santa Adelaide foi uma sucessão de altos e baixos. Era filha de Rodolfo II, Rei da Borgonha, e casou-se com Lotário II, Rei da Itália; teve uma filha que foi Rainha da França. Quando a santa tinha 18 anos, seu marido morreu, e Berengário, ao que parece, havia mandado envenená-lo.

Este se proclamou Rei da Itália e quis que ela se casasse com um filho dele. Ela deveria, portanto, contrair matrimônio com o filho do assassino do seu próprio esposo; teria uma vida fácil, agradável, e certamente não sofreria o que sofreu. Tendo ela recusado, foi encarcerada e durante muito tempo ficou exposta aos piores ultrajes. Mas, de repente, fugiu.

Como me agrada a fuga dessa santa! Como isso é diferente da ideia que habitualmente se faz de uma bem-aventurada! Segundo essa concepção, a santa presa fica sentada de lado, chorando, pensando em tudo, menos em fugir, e incapaz de fazê-lo; ela tem dificuldade em se mover, e não tem esperteza nenhuma, não sabe iludir os carcereiros, nem ter um gesto hábil para pular um obstáculo qualquer e sair correndo.

Inocência da pomba e astúcia da serpente

Mas essa é uma santa diferente. Infelizmente, o autor não nos conta como foi sua fuga. É uma santa que corresponde à imagem verdadeira dos santos, e não a essa figura caricaturada que eu fiz. O santo tem a virtude da fortaleza e a da prudência. E com fortaleza e prudência a pessoa foge de todos os lugares de onde deve e possa fugir. Santa Adelaide, portanto, precisava fugir do lugar onde estava presa, desde que materialmente fosse possível. Ela foge, e assim liberta-se do tremendo jugo em que se encontrava.

Entretanto, ela soube para onde fugir, porque em vez de ir para um lugar qualquer, dirigiu-se para Canossa, a terrível fortaleza da Idade Média, a qual se tornou ilustre pelo fato de que São Gregório VII ali recebeu Henrique IV, que lhe foi beijar os pés, pedindo-lhe perdão. Canossa era um feudo da Igreja e, por isso, não podia ser invadido por um soberano temporal. Santa Adelaide ali estava, portanto, inteiramente tranquila; ela não só sabia fugir, mas também onde refugiar-se. Era boa política; tinha a inocência da pomba e a astúcia da serpente.

Força de alma, denodo, intrepidez

E nesse lugar ela fez uma coisa que também não se esperava de uma santa: arranjou um marido e bem escolhido. Escreveu para o Rei da Germânia, que era o herdeiro presuntivo do Imperador do Sacro Império Romano Alemão, rogando-lhe para ir defendê-la. Ele foi e depois a pediu em casamento. Então começa para ela uma nova vida.

Notem quantas mudanças nessa existência, quanta força de alma, quanto denodo, quanta intrepidez essas alterações supunham e quanta verdadeira virtude nessa magnífica santidade!

Ele foi sagrado Imperador em Roma e casou-se com a santa. O filho desse casamento, entretanto, foi um homem mau e começa aí mais outra tragédia; revoltou-se contra sua própria mãe, e por isso ela teve novamente que fugir e dirigiu-se para a Borgonha. Foi nessa região da França que ela conheceu Santo Odilon, e se tornou célebre; com certeza Santa Adelaide possuía bens, pelas liberalidades que fez aos conventos da Borgonha.

Mas seu filho se arrependeu, e creio que foi devido às orações de Santa Adelaide. Porque o fato de ela mandar um manto para São Martinho tem todo o aspecto de um pagamento de uma promessa, como quem dissesse a esse santo: “Se vós converterdes o meu filho, eu vos enviarei o manto dele”.

Tomar a iniciativa da luta

Então ela escreveu uma magnífica mensagem, da qual o fato mais bonito é o título que ela arranjou para si: “Adelaide, pecadora por natureza, imperatriz pela graça”. É um tal contraste de títulos, há uma tal grandeza na simplicidade desse contraste, que mereceria ser o epitáfio dela: “pecadora por natureza”, porque todos os homens por natureza são pecadores; ainda quando santos e não pecam, na sua natureza são pecadores; “imperatriz pela graça”. É uma coisa que ficaria bem num vitral, debaixo da figura nobre, serena e forte dela: “Santa Adelaide, pecadora por natureza, imperatriz pela graça”.

Peçamos a Santa Adelaide que nos dê uma graça que tenha relação com isso: é o espírito de luta, de intrepidez e — não hesito diante da expressão — o espírito de aventura.

São Tomás de Aquino diz que o suprassumo da virtude da fortaleza ocorre quando, sendo necessário, oportuno e criterioso, o homem não espera o inimigo vir a ele, mas toma a iniciativa da luta, cria a situação e investe contra o adversário.

Devemos pedir esse espírito de fortaleza, mas ao mesmo tempo, esse espírito de prudência, essa sagacidade, essa capacidade de discernir, de perceber, de escolher as situações, de dispor dos meios adequados para chegar aos fins que temos em vista.

E então, no nosso epitáfio, poderá ser escrito: “Nós fomos lutadores e amamos inclusive o risco, levado não até a temeridade, mas a um extremo que os tontos diriam ser temeridade. Teremos sido pecadores por natureza; mas, pela graça soldados intrépidos de Nossa Senhora”.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 16/12/1968)

Natal

Após Dona Lucilia anunciar que a festa de Natal ia começar, todos — umas vinte crianças — dávamo-nos as mãos e começávamos a entoar o “Stille Nacht”. Íamos, então, levando o presépio com o Menino Jesus, desde a saleta onde estávamos até a sala dos brinquedos, na qual havia uma árvore de Natal.

Ali cantávamos canções de Natal, girando em torno da árvore, mas já sentindo o cheiro do chocolate com o qual se iam enchendo as xícaras, acompanhado de creme “chantilly”; e o odor do pinheiro um pouco queimado por algumas velas, que deitava um perfume de resina especial.

Havia uma alegria cândida, pura, eu ousaria dizer virginal, que não era perturbada por qualquer intemperança. Nenhuma criança fazia uma travessura, uma peraltagem, todas brincavam entre si com a maior calma, dentro daquela paz que parecia sair das imagens de Nossa Senhora e do Menino Jesus que estavam no presépio, e se difundia por toda a sala.

Essa alegria proporcionava uma coisa que eu não sei exprimir. Mas era a ideia do “Puer natus est nobis” — Foi-nos dado um Menino —, e uma grande alegria tinha nascido no Céu. O Menino era Jesus. E ali se realizava algo de único, como que a repetição do Natal; parecia-nos estar vivendo as graças do Natal.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 25/12/1976)

Noite santa, Silenciosa…

Ao longo dos séculos da história cristã, as noites de Natal têm recordado aos homens e lhes feito compartilhar as bênçãos inefáveis do augusto momento em que o Redentor nasceu para o mundo. Sobretudo antes das festas laicas e comercializadas de hoje, as celebrações natalinas possuíam um néctar, uma poesia, um encanto, um discernimento de espírito por onde todos como que sentiam e conheciam a graça de Deus e de Cristo que desce como um orvalho do mais alto do céu, ou seja, do claustro sacratíssimo de Nossa Senhora, e sem transgredir a virgindade intacta da mãe, entra nesta terra. A Virgem teve um filho e a humanidade se extasia!

Dir-se-ia revestido de completa beleza o cenário dessa noite na Terra Santa, iluminada por estrelas reluzentes como nunca, povoada de Anjos que anunciam o nascimento do Salvador. Entretanto, como lucra em formosura o Natal, quando considerado nas manifestações de piedade e de inocência com que o festejam os povos germânicos! Imagine-se a igrejinha, a paroquiazinha toda coberta de neve, com o relógio iluminado por dentro, indicando 10 para a meia-noite; os aldeões que se aproximam com os tamancões grandes, porque a neve enche o caminho, e ainda cai aos flocos. A igreja, bem aquecida, acolhe generosamente os seus fiéis que entram depressa e logo se acomodam naquele pequeno palácio do Menino-Deus.

Ao longe, as casinhas da aldeia espargem cintilações douradas através de suas janelas, pontilhando de luz o imenso manto de neve com que se veste a natureza. Das chaminés escapam tufos de fumaça: é a festa de Natal que já está preparada, a lareira acesa, as suculentas, atraentes e substanciosas delícias da culinária alemã postas no forno, os presentes junto à esplendorosa árvore montada na sala principal, enfim, tudo pronto para as santas alegrias que se seguem à jubilosa celebração litúrgica.

Esses vários aspectos constituem, dentro da inocência da neve, um quadro só, completado pelos sentimentos da canção natalina por excelência, o “Stille Nacht”.

“Stille Nacht! Heilige Nacht!Alles schläft, einsam wacht Nur das traute hoch heilige Paar. Holder Knabe im lockigen Haar, Schlaf in himmlischer Ruh!”

Noite silenciosa, noite Santa! Tudo dorme. Solitário, está velando O nobre e altamente santo Casal. E o Menino de cabelos cacheados, Dorme em celestial tranqüilidade!

Composta no século XIX por um modesto professor austríaco, o mundo inteiro a adotou como a música do Natal. E desde então não se compreende um 25 de dezembro em que não se entoe, nos mais diversos países e nos mais diferentes idiomas, o “Stille Nacht” é o nosso “Noite Feliz”…

Por movimentos aos quais não é alheia a mão da Providência, o consenso popular soube compreender o significado mais profundo desta canção, e daí a indiscutível primazia dela sobre as demais melodias natalinas. Que significado?

No “Stille Nacht” existe em alto grau a ideia de que os Céus se abriram, e o Menino Jesus fez um percurso gigantesco para chegar até nós. Portanto, por trás da ideia da Encarnação, e como elemento necessário para se situar inteiramente a posição do homem em face do nascimento do Verbo, está a noção de um acontecimento fabuloso, desmedido, imenso, que se deu e se converteu em intimidade e amor. E, por causa disso, em ternura, o tempo inteiro maravilhada.

É a ternura diante das fragilidades de um Deus feito homem, diante das quais nós não temos nem sabemos o que dizer. De outro lado, porém, esse mesmo Deus é o Senhor do Universo, onipotente, eterno Juiz de toda a Criação. Portanto, num sublime paradoxo, é a ternura e a compaixão para quem é infinitamente mais do que nós, extremamente delicadas, envoltas num alto critério de sentimento para serem dignas de se apresentarem Àquele que de fato merece essa compaixão, mas que é Deus. Então é a piedade humana ao mesmo tempo admirativa e súplice, é o homem que tem pena fazendo um pedido ao Deus de quem tem pena… Outro paradoxo, outra grandiosa beleza!

Paradoxos e contrastes que despertam em nossas almas toda sorte de delicadeza de emoções. Ao lado da ternura e da compaixão, a reverência, a veneração, a submissão de todo o nosso ser ao Divino recém-nascido, e um deixar-se levar a subidas cogitações às quais esse acontecimento entre todos bendito nos convida. Além disso, a noção recolhida, humilde e enlevada do sublime, e um imenso agradecimento de quem recebe uma misericórdia sem limites, por nos sentirmos visitados e impregnados por todas as graças que Ele trouxe ao mundo, para a nossa salvação.

A todas essas boas disposições nos inclina a melodia do “Stille Nacht”, cujas notas e inflexões têm isso de próprio, que fazem um comentário do sentido da palavra cantada. Então, nos tons mais baixos, é a ternura vigilante que se debruça sobre a manjedoura, velando para que nada toque no Menino, que nada O moleste. Ele está chorando, mas a Mãe o consola… E com que incomparável desvelo!

Em outros momentos, porém, nas notas mais agudas, novamente ressalta a ideia de que este Menino de cabelos cacheados, é Deus. O Menino dorme. E a sua tranqüilidade, assim como Ele, não é da terra. É do Céu…

Plinio Corrêa de Oliveira

Diante do Presépio

“Deus, ei-Lo exorável e ao nosso alcance, feito homem como nós, tendo junto de Si a Mãe perfeita, Mãe d’Ele mas também nossa, …e São José, o varão sublime, que reúne em si a maravilhosa antítese das mais diferentes qualidades.

Ao contemplá-Los, nossas almas crispadas se distendem. Nossos egoísmos se desarmam.

A paz penetra em nós e em torno de nós…”

Plinio Corrêa de Oliveira

Como seria a música de Natal perfeita?

Esse assunto, sobre o qual me perguntam, é uma matéria abundante, com o inconveniente de que versa sobre um tema do qual não entendo muito, que é a música. Mas enfim, de algo eu posso tratar.

Um canto que considerasse a vida de Nosso Senhor

Primeiro, a respeito do que seria a música de Natal perfeita. Há uma porção de hipóteses que se entrecruzam nisso, e depois uma série de feitios de espírito que se colocam diante disso. Por exemplo: a mim pessoalmente me agradaria uma música de Natal que considerasse o mistério do Menino Jesus que se encarnou, e apareceu entre nós… O que todos sabem. E que se relacionaria, entretanto, com o futuro do Menino Jesus; de maneira que dissesse alguma coisa a respeito dos trinta e três anos de vida de Nosso Senhor. Porque o nascimento, por mais sublime que seja, é apenas o começo. E quem considera o começo de uma estrada, volta os olhos para a extensão da estrada que se desenrola a partir daquele início.

E, portanto, eu gostaria de uma música de Natal que, em determinado momento, desenvolvesse algo — um pouco que fosse — sobre os trinta anos de vida oculta, contemplativa, d’Ele com Nossa Senhora. Depois a dor da despedida, a vida pública, a Paixão, a Morte, a Ressurreição e a glória no Céu! Terminando, por exemplo, com este pensamento: “Se os anjos cantaram ‘glória a Deus no mais alto dos Céus e paz na Terra aos homens de boa vontade’, o Homem de boa vontade por excelência foi Ele, o Homem-Deus!” Ninguém teve a boa vontade que Ele teve, em nenhum sentido, nem de longe, nem comparado com nada. E então a glória d’Ele também é superior a de qualquer outro. Quando cantaram “glória a Deus no mais alto dos Céus”, os anjos louvaram a Jesus enquanto Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. E quando entoaram “paz na Terra aos homens de boa vontade”, glorificaram a Ele enquanto trazendo para a Terra a possibilidade da verdadeira ordem; e, com essa verdadeira ordem, a verdadeira paz.

Depois, a luta d’Ele em sua vida pública e a Ascensão ao Céu, porque Ele era o Homem de boa vontade por excelência, que realizou tudo o que tinha de realizar e recebeu uma glória incomparável no Céu. Essa seria uma ideia que muito me compraz.

Mas especialmente me agradaria focalizar o caráter militante da Igreja. Seria, portanto, uma música muito mais longa do que simplesmente o “Stille Nacht”, quase um canto épico. E não seria dirigida somente para as crianças. O Natal é, a titulo especial, uma festa de criança, mas ela é uma festa para todo mundo. Nosso Senhor chegou até a idade madura, trinta e três anos. E, portanto, o normal é que essa festa seja para todas as idades.

Canções para diversos estados de alma

Eu também imaginaria de bom grado canções de Natal para diversos estados de alma. Para a alma inocente, mas que se sente imersa neste mundo e dentro da luta para manter a virtude, que tem receio de ver a sua inocência comprometida, agradece a Deus a inocência que tem e pede que essa inocência seja de aço e que dure até o fim.

Depois, o cântico de Natal da alma penitente. Há duas espécies de penitentes.

O penitente arrependido, humilde, de cabeça baixa, que se acerca da manjedoura e canta a São José e a Nossa Senhora. A São José, pedindo que ele obtenha da Santíssima Virgem um olhar de compaixão. Nossa Senhora atende ao pedido, e o recebe ultra maternalmente. Ele então pede a mediação d’Ela para chegar até o Menino Jesus.

Ele se sente indigno de entrar na gruta, e canta do lado de fora, dizendo:
“Até o boi e o burro, com seus bafos, são dignos de ficar aí dentro, porque estão na ordem de Deus. Mas eu sou um pecador, que rompeu em determinado momento essa ordem; e não sou digno de me aproximar. Aonde os animais entram, eu não entro! Mas se Vós, minha Mãe, me cobrirdes com o vosso manto, eu ouso tudo!”

Ela o cobre, e ele, sob o manto da Santíssima Virgem, recita um “Confiteor”. E recebe do Menino Jesus um gesto, que pode ser interpretado como o gesto instintivo de uma criança, mas tem o sentido de um perdão. E ele se retira agradecido.

Depois podia haver a canção de Natal do pecador atolado no pecado, que gostaria de sair do pecado, mas que não quer querer. Mas ao menos chega ali e, de fora, canta pedindo a Nossa Senhora que lhe mande um mensageiro, que leve a Ela uma súplica dele. Aproxima-se um passarinho, e o pecador põe uma mensagem em seu bico.

A súplica é entregue, e nesta ele diz que não é como o pecador anterior, que rompeu com a Lei de Deus, mas depois rompeu com o pecado; e, quando entrou na gruta já estava reconciliado com o Criador. Mas ele não é nem o pecador arrependido, nem o boi, nem o burro: é a serpente. Ele está em pecado mortal! E, carregado de pecados, tem tristeza e ao mesmo tempo, esperança! E pede a Nossa Senhora, de longe, que Ela remova as montanhas internas do pecado na sua alma, e faça dele um homem que afinal se arrependa e se entregue a uma vida de penitência.

Ele é o primeiro dos visitantes para quem o Menino Jesus, quando o pecador se aproxima da Santíssima Virgem, sorri e abre os braços. O pecador pede perdão e, contrito e perdoado, sai da gruta de Belém.

Seria algo muito adequado para os vários estados de alma, que daria ânimo aos mais miseráveis como aos mais fortes.

Poderíamos imaginar também o Natal do guerreiro, do combatente. O Natal do cruzado aos pés do muro de Jerusalém. O Natal do cruzado do século XX.

Isso é uma ideia apenas esboçada, porque nunca aprofundei esse pensamento. Essa seria uma canção de Natal, a meu ver, perfeita.

O ”aroma” da graça de Natal na São Paulinho

A tudo isso eu acrescento uma coisa que me parece decisiva, como elemento dentro do assunto. Os Natais de outrora tinham uma sacralidade muito maior que dos dias atuais. No meu tempo de moço, dois, três dias que precediam o Natal, já um certo aroma, uma certa atmosfera natalina começava a envolver a São Paulinho. E alguns homens importantes tomavam na rua um ar de quem não percebia isso, e que estavam preocupados com outras coisas. Mas tinham o cuidado de não contundir, porque seria fazer saltar uma bomba!

E o centro velho de São Paulo, formado pelas Ruas Libero Badaró, XV de Novembro e Direita, depois aquele conjunto de ruas em torno e dentro desse triângulo, era assim: apareciam mais as casas que vendiam brinquedos e tinham na vitrine um presépio. Possuíam também — como se dizia naquele tempo — gramofones, que tocavam músicas de Natal. Andava-se a pé, por exemplo, na Rua Direita, e de ponta a ponta ouviam-se músicas de Natal, em estágios diferentes de andamento.

Mas quando chegava a noite de Natal, e as famílias todas — numa hora em que costumavam estar dormindo — começavam a ir em grupos para a igreja, devagarzinho e na paz, as ruas ficavam vazias de qualquer gente que não fosse caminhando para o templo. E de dentro da igreja saía uma luz forte, que iluminava a rua cada vez que se abria a porta; começam a cantar etc. E depois batia o sino e iniciava a Missa, com o cântico de Natal…

Tinha-se a sensação de uma graça que vinha de uma altura incomensurável, e era de uma qualidade tal que enchia a pessoa de duas disposições de espírito, as quais parecem incompatíveis, mas convivem maravilhosamente: a noção recolhida, humilde e enlevada do sublime; e de outro lado a doçura de quem recebe uma misericórdia sem limites.

Devo dizer que a “organizadora” das nossas festas de Natal era Dona Lucilia. Mas somente muito tempo depois dessas festas natalinas, dei-me conta de que eu gostava dessas comemorações porque o espírito dela as animava. Eu talvez de nada da minha infância tenha tantas saudades quanto desse “aroma” da graça de Natal.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/1/1989)

O Menino-Deus e sua Mãe

Quais seriam os pensamentos do Menino Jesus recém-nascido, reclinado no presépio?

Evidentemente, Ele pensava nos esplendores da Santíssima Trindade, dos quais a Segunda Pessoa participa em estado de união hipostática com a sua Humanidade. E deveria cogitar também em Nossa Senhora, a obra-prima de toda a criação, sua Mãe, a qual Ele tanto amava e se extasiava em considerar e acariciar.

Naturalmente, o Divino Infante se deleitava em ver a Santíssima Virgem conhecendo-O sensivelmente e adorando-O. Ela guardava em seu Coração todas essas coisas e as meditava, procurando pelos traços fisionômicos d’Ele fazer a ligação de tudo quanto sabia por sabedoria, interpretação da Escritura e revelação a respeito do Redentor.

E o Menino Jesus recebia essa adoração com verdadeiro encanto e prazer, ao mesmo tempo em que amava intensamente Nossa Senhora.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/12/1974)