Beato Fra Angélico, o São Tomás da pintura

“Minha maior glória foi pintar a ti, ó Cristo!” — Assim reza um dos epitáfios do Bem-aventurado Frei Angélico, cujo incomparável talento logrou estampar, em luminosos afrescos, as maravilhas celestes. Neste mês de fevereiro, Dr. Plinio nos convida a conhecer a vida e a arte deste filho de São Domingos.

 

Uma das mais altas expressões da piedade e do bom espírito na pintura e iconografia católica, retratista exímio de Nossa Senhora e dos santos, o bem-aventurado João de Fiesole, chamado Beato Angélico, é festejado pela Igreja no dia 18 deste mês. Dele possuímos alguns traços biográficos, que compõem de forma tocante sua figura de artista e varão virtuoso.

Um santo de genialidade inimitável

Guidorino di Pietro nasceu por volta de 1387, em Florença. Aos 20 anos, tendo ouvido numa noite de Natal um sermão do grande dominicano Fra Giovanni, decidiu ingressar na Ordem dos Pregadores, tendo sido admitido como noviço no convento de São Domenico, de Fiesole, e mudado seu nome também para Giovanni.

O jovem já demonstrava grande aptidão artística, mas julgou dever sacrificá-la a Deus. Seus irmãos de hábito dissuadiram-no da ideia, encorajando-o a desenvolver seus dons. Para isso, o prior ordenou logo que ele ornasse os livros de horas da biblioteca conventual.

Sua vida, inicialmente tranquila, foi alterada cerca de três vezes por mudanças de mosteiro. Na primeira ocasião por motivo do Cisma do Ocidente, pois o superior de Fiesole, o beato Jean Dominici não aceitava o Papa que a república de Florença admitira. Essas mudanças, contudo, contribuíram para o enriquecimento espiritual e artístico de Fra Giovanni, principalmente o período passado em Foligno, perto de Assis, que o santo frade visitava com freqüência.

Como bom dominicano, tinha um grande entusiasmo pela obra de São Tomás de Aquino. Conhecia-a perfeitamente, com ela nutria sua piedade e sobre a mesma, inconscientemente, lançava os fundamentos de sua própria obra futura. A “Suma Teológica” o levara a descobrir sua nova razão de viver e seu ideal estético.

É preciso três qualidades para se ter a beleza, dizia São Tomás. Em primeiro lugar, a integridade, pois as coisas inacabadas, como tais, são deformadas. Depois, a proporção de harmonias entre as partes. Enfim, a claridade, posto considerarmos como belas as coisas de cores claras e brilhantes.

E Fra Giovanni fez desta lei sua regra de ouro. Em 1418, os dominicanos de Fiesole voltaram ao seu convento e o santo frade entregava-se agora, cheio de satisfação, à sua arte. Sua primeira grande obra foi um quadro destinado à cartuxa de Florença. Seguem-se outras, cada vez mais numerosas. Os monges estão cheios de admiração. “Fra Giovanni não pinta, ele reza”, diz um deles. Sua arte com efeito era cântico, prece. Jamais tomava seus pincéis sem invocar o Todo-Poderoso, e é em estado de graça que ele colocava seus anjos nos jardins floridos do Céu. Seu anjos, tão belos e puros, dir-se-ia executarem uma música que se difundia em notas cristalinas sobre as arcadas do convento, enquanto ele lhes dava vida.

De tempos em tempos, um velho frade abria a porta da cela do pintor, olhava maravilhado e voltava sem rui­do, escondido em seu capuz. Foi esse admirador secreto e esquecido que lhe deu o nome de glória: o de Angélico. Um único religioso, antes dele, fora digno de usá-lo: São Tomás, seu guia e mestre. A partir desse dia, Fra Angélico só teve um cuidado na Terra: merecer o epíteto divino e tornar-se o São Tomás da pintura.

Em 1435, Fra Angélico foi encarregado de pintar os afrescos do velho convento de São Marcos, em Florença. Entregou-se de corpo e alma ao trabalho e, todos os dias, antes da aurora, um espetáculo tornou-se familiar aos monges de São Marcos. De pé, sobre o andaime que o fazia tocar no teto da estreita cela, um especial penitente recitava seu rosário: Fra Angélico rezava antes de começar a pintura. Ajoelhados no solo, dois jovens monges oravam também. Três pobres lâmpadas a óleo iluminavam a casa, fazendo tremer as sombras e brilhar as tonsuras. Depois, o pincel do Angélico, que se diria feito com cabelos de anjos, começava a correr e a colorir. Seu azul era inigualável. “Pinto como o céu do Paraíso”, costumava dizer sorrindo.

Fra Giovanni obteve em Roma a estima e a amizade do Santo Padre. Um dia, este o julgou digno do arcebispado de Florença, que estava vago. Mas o Angélico suplicou ao Pontífice que designasse em seu lugar um dos irmãos de sua Ordem, seu amigo, religioso cheio de ciência e humildade. E foi assim que Fra Angélico nomeou um arcebispo que seria canonizado cem anos mais tarde, Santo Antonino.

O humilde religioso, que se tornara um dos artistas mais célebres de seu tempo, ainda estava em Roma quando a doença veio surpreendê-lo no convento dos frades pregadores de Santa Maria Sopra Minerva. À tarde do dia 18 de fevereiro de 1455, o mosteiro estava envolto por um silêncio cortante. Cada religioso esperava, seja em sua cela, seja no coro, o instante em que o sino soaria para anunciar o último suspiro de Fra Angélico. Às 8 horas da noite, o breve e doloroso sinal tocou. Em alguns minutos, a cela e o corredor encheram-se de monges ajoelhados. A melodia da Salve Regina elevou-se no silêncio, enquanto o rosto de Fra Giovanni se iluminava com um calmo sorriso.

A lenda conta que, neste momento, uma lágrima deslizou sobre a face de todos os anjos dos quadros pintados por ele, sem saber que trariam a auréola de seu inimitável gênio e de sua santidade.

Uma civilização de “Angélicos”…

Trata-se de uma linda ficha biográfica, pois se refere a uma belíssima vida, tornando-se difícil até selecionar algum aspecto dela a ser comentado.

Antes de tudo, é bonito notar um dos princípios da civilização católica que aqui se afirma: o da reversibilidade dos planos.

Com efeito, toda forma de ordem, beleza e virtude que existe num plano é suscetível de ser revertida num outro. Assim, se houve um Tomás de Aquino no âmbito da filosofia, da metafísica, devem existir outros no campo da pintura, da música e demais artes.

O resumo biográfico observa muito bem que São Tomás de Aquino e o Beato Giovanni de Fiesole foram chamados, respectivamente, o Doutor e o pintor Angélicos. Seja nos dado considerar que, não fosse a Idade Média interrompida prematuramente em sua caminhada rumo a um esplendor de realizações católicas, teríamos tido “Angélicos” em vários terrenos. Pois houve guerreiros angélicos como São Luís IX e São Fernando de Castela, assim como estadistas angélicos, etc. Surgiria, então, uma ordem Angélica no mundo, sobrenatural, luminosa, coerente, profundamente lógica, que seria a da Civilização Cristã e da Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Uma ordem mais própria para anjos do que para homens, conduzindo estes ao Paraíso.

Sabedoria e desejo das coisas harmônicas

Por trás de tudo isso existe algo que cumpre mencionar, embora não diga respeito diretamente à obra de Fra Angélico, mas do qual esta é uma fulguração. Quer a produção de Fra Angélico, quer a de São Tomás de Aquino são manifestações da virtude da sabedoria, por onde o homem apetece a coerência e a profunda harmonia interior das coisas, muito mais do que as trivialidades ou bens menores do existir humano. Primeiro, porque sua natureza encontra plena expansão nessa harmonia. Porém, há outra razão, mais alta: essa consonância exprime algo de inefável, total, que é a melhor representação de Deus.

O Criador é simbolizado nessa harmonia de todas as coisas. E quem a ama, ama o símbolo e, portanto, o próprio Deus, predispondo assim sua alma para o Céu.

Convém ressaltar que essa harmonia não é igualitária, mas hierárquica, tendo seu cume no sublime, no ponto supremo da ordem criada, do qual todas as harmonias derivam.

Nosso Senhor e Nossa Senhora, ápices da harmonia

Assim, na ordem meramente criada, essa harmonia se revelou de forma mais perfeita em Nossa Senhora. Ela é a mais excelente entre as simples criaturas, pois, segundo essa concepção, o expoente é aquele que contém em si as qualidades de todos os outros inferiores, por ele capituladas, compendiadas e contidas. Nossa Senhora, portanto, reunia em si todas as formas e graus de perfeição de todas as meras criaturas, n’Ela elevadas a um grau de sublimidade sem paralelo.

Quer dizer, entra a Virgem Maria e nós não há somente um abismo insondável, mas uma série deles, de tal maneira Ela sobrepuja o resto dos homens.

Claro está, Nosso Senhor Jesus Cristo, em sua humanidade santíssima, é o único acima de sua Mãe. Aliás, algumas revelações de Sóror Maria de Ágreda a respeito de ambos, nos dão a conhecer aspectos tocantes. Segundo a vidente, o Divino Redentor era sumamente parecido com Nossa Senhora, cujo rosto seria a transposição para um semblante feminino do semblante masculino de Jesus. Então, a perfeição de todas as perfeições tinha de ser, forçosamente, a Sagrada Face de nosso Salvador.

Por quê? Pelo olhar e fisionomia, Ele espelhava todas as formas e graus de excelência de alma possíveis no homem, além de sua natureza divina inefável. Por outro lado, sendo perfeito, o que Nosso Senhor deveria ter de mais sublime era a face, pois esta é a condensação de todas as riquezas do corpo.

Certo estou de que se alguém conseguisse conhecer essa Face em seu estado normal (não, portanto, desfigurada pelas torturas da Paixão), na sua integridade, compreenderia que as proporções de seus traços tinha de conter as regras de harmonias do universo, cuja beleza nos seria dado decifrar, em se estudando o mesmo sagrado semblante.

Uma preparação para a visão beatífica

Assim como entenderíamos outra coisa, tão raramente encontrada unida à beleza: a graça, o charme, o encanto. Freqüentemente se acham modalidades de encanto, mas separadas da verdadeira beleza. Ora, em Nosso Senhor essas qualidades se uniam na sua plenitude. E como Ele era atraente! Era a majestade mais empolgante e arrebatadora aliada à graciosidade mais meiga, afável, acessível, capaz de se fazer pequena e nos acariciar; era o charme incomparável por trás da beleza perfeita, somado à expressão de uma inteligência infinita e uma santidade transcendente. Tudo isso nos faria ter a ideia da esplendorosa fisionomia d’Ele.

No fundo, o que São Tomás entendeu e escreveu, o que o Beato Angélico discerniu e pintou, é o que no Reino de Maria se verá. Contemplar-se-á através de todas essas harmonias, algo que nos faça pensar no semblante imaculado, sacratíssimo, régio, maternal e meiguíssimo de Nossa Senhora. E naquilo para o qual não há palavras, cessam os adjetivos, tudo é silêncio e adoração reverente: a Face de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Compreendendo essas harmonias nos preparamos para entender a Sagrada Face e para a visão beatífica, por toda a eternidade.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

 

Misericórdia

Na gloriosa corrente constituída pela Santíssima Trindade, Nossa Senhora e o Papado, este último vem a ser o elo menos vigoroso: porque mais terreno, mais humano e, em certo sentido, estando envolto por aspectos que o podem menoscabar.

Costuma-se dizer que o valor de uma corrente se mede exatamente pelo seu elo mais frágil. Assim, o modo mais excelente de amarmos essa extraordinária cadeia é oscular o seu elo menos forte: o Papado. É devotar à Cátedra de Pedro, em relação à qual esmorecem tantas fidelidades, a nossa fidelidade inteira!

Plinio Corrêa de Oliveira

 

Senso da hierarquia e da Contra-Revolução

A Ordem dos Servitas é uma das mais antigas entre as especialmente fundadas para propagar a devoção à Mãe de Deus. O título de Servos ou Escravos de Maria, que os sete fundadores quiseram dar a esta Ordem, prenuncia a devoção de São Luís Grignion de Montfort, que é a da escravidão a Nossa Senhora. Quer dizer, um despojamento completo de todos os bens materiais e espirituais, e até dos méritos de nossas boas obras, presentes, passados e futuros para serem postos nas mãos da Santíssima Virgem.

Com a canonização dos sete fundadores e a aprovação desta Ordem, a Igreja indica que, em relação a Nossa Senhora, devemos ser servos.

Peçamos aos Santos Fundadores dos Servitas que intervenham na Terra e ajudem a estabelecer uma verdadeira devoção a Maria Santíssima entre os homens, e com ela o senso da hierarquia e da  Contra-Revolução.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 11/2/1965)

Revista Dr Plinio 215 – Fevereiro de 2016

Cátedra de São Pedro

Uma lenda antiga nos conta que à beira de certo lago havia um rochedo que crescia à medida que as ondas o acometiam, de sorte a nunca ser submergido, ainda nas maiores tempestades. Hoje em dia, este rochedo é a Pedra, é a Cátedra de Pedro, que tem avultado com as revoluções, zombando das heresias, crescendo em vigor à medida que seus adversários crescem em rancor.

Há já vinte séculos, ela vem espargindo água benta sobre os adversários prostrados no caminho. (…) Neste mar revolto do século XX, naufragam homens, idéias e fortunas. Só ela continua e será “via, veritas et vita”, devendo ser aceita pela humanidade, para levantar um voo salvador sobre o próprio abismo que ameaça tragá-la…

Plinio Corrêa de Oliveira (Do “Legionário”, nº 130, de 15/10/1933)

São Cirilo e São Metódio

A vocação dos irmãos Cirilo e Metódio estava intimamente ligada à evangelização e conversão do povo eslavo. Para isso dedicaram inteiramente suas vidas, obtendo assim a glória dos altares.

A respeito de São Cirilo e São Metódio, tenho em mãos o seguinte trecho extraído do “Ano litúrgico”, de Dom Gueranger(1):

Cirilo e Metódio eram filhos de um alto funcionário de Tessalônica.

Metódio obteve o governo de uma colônia eslava, na Macedônia.

Cirilo, depois de ter estudado e ensinado, recebeu as ordens, e se fez monge na Bitínia; posteriormente foi encarregado da missão junto aos cazares, que eram os bárbaros da Rússia meridional, e nessa região ele deveria exercer com seu irmão uma missão político religiosa, em 862.

Tendo o Príncipe da Morávia pedido a Bizâncio missionários que falassem a língua do país, Fócio lhe enviou, em 863, os dois irmãos. Eles compuseram um alfabeto novo, chamado ciríaco — que ainda se usa entre os russos —, e ensinaram os morávios a escrever. Depois traduziram a Bíblia e a Liturgia para o eslavônio, que era a forma de língua eslava falada por aqueles povos, e organizaram numerosas cristandades na Boêmia e na Hungria.

Em 869, chegaram eles a Roma, onde Adriano II os tratou com honra, permitiu que celebrassem a Missa em eslavônio e ordenou-os Bispos. Mas Cirilo morreu logo depois, com a idade de 42 anos. Metódio voltou à Morávia e foi nomeado Arcebispo de Cirinium, na Sérvia, onde ele encontrou uma situação muito perturbada, contrária a ele. Seus inimigos mandaram encarcerá-lo, e o Papa interveio várias vezes em seu favor, tendo São Metódio finalmente triunfado sobre seus adversários. Morreu em 877, com pesar de todos. Seus magníficos funerais foram celebrados em grego, latim e eslavônio. Pio IX autorizou, em 1863, o culto aos Santos Cirilo e Metódio.

Ponto de partida para verdadeiros baluartes católicos

Nessa síntese biográfica, há várias notas muito curiosas. Em primeiro lugar, São Cirilo e São Metódio, como irmãos, fizeram uma obra da Providência que glorifica a instituição familiar. Deus não realiza isto habitualmente, mas, às vezes, escolhe dois irmãos, ou toda uma família, para fazer determinada obra pia. Esses dois foram enviados para uma obra extraordinária: a conversão dos povos de língua eslava, dos Bálcãs, que haveriam de irradiar a Fé, preparando a futura conversão da Rússia.

Por isso a Divina Providência escolheu dois irmãos de certa categoria; um deles foi governador de Província e o outro se tornou monge.

Outra nota curiosa é a seguinte: quem mandou estes dois irmãos fazerem esta evangelização tão extraordinária foi Fócio, precisamente um dos responsáveis pelo Cisma do Oriente; antes de cair em heresia, ele ainda deu esse impulso. O apostolado deles haveria de ser, nos Bálcãs, o ponto de partida de verdadeiros baluartes católicos no Oriente.

Se até hoje há católicos nos Bálcãs, isso se deve exatamente a este “erro” estratégico de Fócio.

Dando expressão escrita à mentalidade de um povo

É interessante acompanharmos o papel desses Santos fundadores de povos, que é uma coisa tão extraordinária. Deus envia homens de sua destra para fazerem obras que constituem um povo. Ou seja, tomam pessoas que são como uma nebulosa, alguma coisa completamente anorgânica, sem vida própria, e as transformam num povo com todos os seus elementos.

Vejamos o que eles fizeram para que nascesse o povo. Primeiro ensinaram os morávios a escrever, compondo para eles um alfabeto novo, chamado ciríaco. Quer dizer, o povo era tão analfabeto que nem tinha formas de caracteres próprios para exprimir a língua que falava. Os dois Santos inventaram os caracteres adequados, e o dialeto se radicou de tal maneira que até o tempo em que foi escrita a ficha lida há pouco era usado na Rússia. Portanto, durante aproximadamente mil anos, mais ou menos, o ciríaco esteve em vigor.

Eles deram a expressão escrita do pensamento de um povo. A nota de fundador vai mais longe: São Cirilo e São Metódio traduziram a Bíblia e a Liturgia para o eslavônio; foi uma grandíssima obra literária, que fez com que aquela língua de um povo tão hostil adquirisse toda a dignidade de um idioma.

Fundadores da Liturgia eslava

Além disso, eles organizaram numerosas cristandades na Boêmia e na Hungria, ou seja, núcleos de povos vivendo como cristãos, que depois haveriam de se irradiar e cristianizar aquelas regiões. Ora, quando se trata de povos semibárbaros, cristianizar equivale a civilizar. Eles estavam dando os fundamentos da civilização — e, já de uma vez, uma civilização cristã — a povos que não ficavam apenas nos Bálcãs, mas entravam pela Europa Central, a Hungria. Vemos, portanto, a graça triunfante da Fé.

Depois eles se dirigiram a Roma para apresentar a sua inteira submissão a Adriano II, o que, naquele tempo de luta entre o Oriente e o Ocidente, era muito significativo. Foram os fundadores da Liturgia eslava, porque obtiveram do Papa a licença para rezar a Missa em eslavônio.

São Cirilo morreu em 869; São Metódio voltou ao Oriente, foi nomeado Arcebispo — é a Hierarquia eclesiástica que começava a nascer — e tornou-se objeto de uma oposição violenta. Vemos isso na vida de quase todos os fundadores: fundam a obra, têm triunfos e de repente estala uma tremenda revolta contra eles. A obra muitas vezes cai, outras vezes não, como sucedeu a São Metódio: ele venceu e morreu cercado de honra.

“Emitte Spiritum tuum”…

Para a glória de sua Igreja, ao longo da História, Nosso Senhor suscitou Santos que agiram nos campos mais variados. Porém, depois que a Revolução começou a triunfar, houve uma retração das bênçãos de Deus, e a civilização católica não prosperou. Toda a ordem temporal ficou afetada por uma espécie de raquitismo religioso; foi um castigo decorrente da Revolução.

Isso continuará até que a Revolução produza os seus últimos e amargos frutos, e a Humanidade tenha comido as bolotas dos porcos. A Providência então restaurará a Humanidade.

Nesta ocasião aparecerão os Santos fundadores que vão fundar o Reino de Maria. E na aurora desse Reino convém lembrar-nos de São Cirilo e São Metódio. Pode nos parecer muito difícil organizar o Reino de Maria; não pensemos nisso, mas procuremos compreender esse ensinamento.

Os varões da destra de Deus podem fazer tudo. São Cirilo e São Metódio não eram sociólogos, economistas, nem psicólogos, porém eram incomparavelmente mais do que isto: Santos da destra de Deus. Eles surgiram e tudo nasceu. Lembremo-nos, então, daquela oração feita ao Divino Espírito Santo “Emitte Spiritum tuum et creabuntur, et renovabis faciem terrae — Enviai o vosso Espírito e renovareis a face da Terra”. Poderíamos dizer: “Enviai o vosso Espírito, presente nos homens de vossa destra, e todas as coisas serão novamente criadas e se renovará a face da Terra”. É isto que devemos pedir.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/7/1965)

1) Cfr. http://www.abbaye-saint-benoit.ch/gueranger/anneliturgique/pentecote/pentecote03/040.htm

Súmula contra os erros contemporâneos

O apostolado verdadeiramente fecundo é aquele no qual a verdade não só é dita inteira, mas com ufania, bem argumentada e com uma audácia santa. Nada nos deve deter, precisamos seguir impávidos para a frente anunciando a verdade e o bem como eles são, segundo o exemplo de Santo Avito.

 

Temos para considerar alguns traços da biografia de Santo Avito(1), Bispo de Vienne, na França, no tempo do Rei Clóvis.

Direitos da Religião verdadeira contra as falsas religiões

Vienne fazia parte do Reino da Borgonha, cujo rei era Gondebaud. Santo Avito, a quem Gondebaud dava provas de confiança, esforçava-se por conduzi-lo ao Cristianismo. Um dia, instou tão vivamente com ele, que o rei ariano, não mais resistindo à evidência da verdade lhe rogou o reconciliasse secretamente mediante a unção do santo crisma.

Respondeu-lhe, todavia, Santo Avito: “Se verdadeiramente acreditais, por que temeis confessar a Jesus Cristo diante dos homens, como Ele nos ordenou? O temor de uma sedição dos vossos súditos vos detém, quando se trata de obedecer ao Criador de todas as coisas? Sois rei, e temeis os súditos? Não sabeis que mais cabe a eles seguir-vos, que vós conformar-vos à fraqueza deles? Vós sois o chefe do povo, e não o povo o vosso chefe. Quando partis para a guerra, sois o primeiro em marchar e os soldados vos seguem. Fazei a mesma coisa no caminho da verdade: mostrai-a aos súditos entrando nele primeiro, e não os seguindo nas estradas do erro”.

A doutrina contida aqui é eminentemente anti-moderna, contrarrevolucionária. Mais propriamente há três doutrinas contidas nesse texto. A primeira diz respeito aos direitos da Religião verdadeira contra as falsas, e é a seguinte:

Todos aqueles que têm meios de conhecer a Igreja Católica, vivem num ambiente onde a Igreja existe e se fala dela, recebem a graça suficiente para desejarem conhecê-la e, correspondendo a essa graça, conhecerem-na e amarem-na de fato, vindo assim a se converterem. De maneira que não tem desculpa a pessoa que, dentro de um tempo e com uma idade razoável, embora havendo nascido fora da Igreja Católica Apostólica Romana, não acabe percebendo ser ela verdadeira.

Deus não recusa a ninguém a graça sobrenatural da Fé, e todas as pessoas precisam corresponder a esse dom. Naturalmente isso não se diz exatamente assim das pessoas que vivem em países onde nunca se ouviu falar da Igreja, ou se ouviu falar tão vagamente que não existe esse atrativo para conhecê-la mais de perto e, portanto, para amá-la e aderir a ela. Mas em países onde ela é bastante conhecida, todos recebem a graça necessária e suficiente para se tornar católicos. Assim, o herege que não se torna católico é culpado disso.

Nem se poderia conceber de outra maneira porque, se Nosso Senhor Jesus Cristo disse aos seus Apóstolos: “Ide e ensinai a todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”, acrescentando que quem crer será salvo e quem não crer será condenado (cf. Mt 28, 19; Mc 16, 16), nós não podemos imaginar que as pessoas não tenham graças para entrar na Igreja. Seria uma brincadeira ou uma contradição se Ele dissesse: “Aqui está a Igreja, todo mundo deve entrar nela, mas a graça indispensável para isso Eu não dou senão a alguns.” Mas a obra d’Ele, sendo sapientíssima e perfeitíssima, tem de atingir naturalmente a sua finalidade. E sendo essa finalidade que os homens entrem para a Igreja, lhes é dada a graça suficiente para isso; e quando a recusam, eles têm culpa.

Na época da Civilização Cristã, as igrejas heréticas não podiam ter forma exterior de templos

Mais culpa ainda tem o herege que foi católico e abandona a Igreja Católica, porque esse recebe com o Batismo a graça infusa da Fé e, por meio do pecado mortal mais grave que se possa cometer, que é o de apostasia, ele abandona a Santa Igreja.

Portanto, dizer que um católico abandonou a Igreja sem culpa: “Coitado, ele não entendeu tal argumento, conversou com um pastor protestante que o convenceu, mas estava de boa-fé”; isso não vale. Todos têm graça suficiente para permanecer na Igreja Católica. E se uma pessoa sucumbe aos sofismas de um pastor protestante, de um agitador comunista ou de qualquer outro herege, há uma responsabilidade própria.

Embora ninguém tenha o direito, propriamente dito, de fazer o mal e professar o erro, a Igreja sempre recomendou que não se obrigasse uma pessoa a mudar de religião, mesmo porque não adiantaria nada. Se digo a um herege: “Você crê ou morre”, para não morrer ele dirá que acredita, mas por dentro continua a não crer. Seria, portanto, uma estupidez. De maneira que a Igreja sempre recomendou que se tolerasse – mas tolerar é muito diferente de permitir – que os hereges praticassem o seu culto.

Isso tem como consequência que, nos tempos da Civilização Cristã, as igrejas que não eram católicas não podiam ter forma exterior de templos. Ainda na época do Império no Brasil, igreja protestante ou qualquer outra tinha que funcionar numa casa comum. Esse é um princípio que nós vemos lembrado aqui.

O Estado deve ser a força material a serviço da Igreja

Outro princípio é o seguinte: o Governo existe não principalmente para o bem dos corpos, mas para ajudar a Igreja na salvação das almas. Por isso o Estado deve reprimir as heresias, os pecados, e ser a força material a serviço da Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Logo, o papel normal dos reis é abraçar a verdadeira Fé e levar os povos a aceitá-la.

O terceiro princípio é o contrário da soberania popular pleiteada por Rousseau(2), que exatamente inverte a ordem: é a doutrina da Revolução Francesa, por onde os que governam são dirigidos por aqueles que são governados. Um rei não é feito para fazer o que o povo quer, mas o povo deve ser governado pelo seu rei. O monarca é responsável pelo povo e prestará contas dele perante Deus.

Ora, nessa biografia de Santo Avito notamos a afirmação destes três princípios. Ele estava em face de um rei herético, ariano. O santo prelado dirige-se, então, a ele e consegue convertê-lo. Mas o soberano, com medo de uma insurreição de seus súditos que eram arianos, pede que sua conversão seja secreta. Então Santo Avito lhe diz: “Eu não concordo com isso. Por que essa conversão precisa ser secreta? Ela deve ser pública e sua função é de, pelo seu exemplo e autoridade, exterminar o arianismo no seu reino, e não ficar quieto diante dele. Quem manda sois vós, o povo vos deve obedecer. Assim como na hora da guerra vós sois o primeiro a sair em combate contra os inimigos, assim também na hora da paz deveis dar o exemplo e os vossos súditos vos devem acompanhar”.

Não é naturalmente que o rei deva obrigar pela força os outros a se converterem, mas ele deve dar o exemplo que os outros, pelo prestígio da majestade real, precisam seguir.

Esses três princípios lembrados por Santo Avito constituem uma pequena súmula contra os erros contemporâneos, os quais afirmam que o Estado nada tem a ver com os cultos e nada deve fazer para levar os povos à prática da virtude.

Constatamos, assim, o quanto as nossas posições ideológicas têm santas e augustas raízes no mais remoto passado da Igreja Católica, pois esse prelado tinha a autoridade de santo para fazer essas afirmações. Ele era um bispo, mas há mais do que isso: quando a Igreja o canonizou, apontou-o como exemplo para todos. Ao canonizar alguém, a primeira coisa que a Igreja diz é: “Ele praticou em grau heroico as virtudes teologais da Fé, Esperança e Caridade, e as cardeais da Justiça, Fortaleza, Temperança e Prudência. Com base no exame da vida e das obras dele, eu, Papa, afirmo que ele está no Céu. Tais milagres confirmam as conclusões desse inquérito.” Além disso, a Igreja declara que o Santo é o modelo dos fiéis. E a canonização equivale a dizer: “Imitai-o, inspirai-vos no exemplo dele, pensai e agi como ele!” Logo, inculcando que se deve lutar contra esses erros, seguimos augustos exemplos de inumeráveis Santos que agiram da mesma maneira.

Devemos ser almas indomáveis, intrépidas, piedosas, sobrenaturais

Poderia parecer que esses santos do Império Romano cristão e da Idade Média agiram assim porque todo o ambiente lhes era favorável. Entretanto, eles lutavam contra inimigos tremendos, ferocíssimos. O arianismo produziu na Europa devastações incontáveis.

Eles venceram, quando tantas vezes os católicos não vencem, como sucede atualmente. Mas por quê? Porque os católicos de hoje são moles, contentam-se com as meias afirmações, com as meias verdades, gostam da confusão entre a verdade e o erro, entre o bem e o mal, e por isso não têm as bênçãos de Deus. O apostolado desses é tantas vezes estéril, embora disponham de meios de ação prodigiosos. Nós vamos ver quem os seguem… ninguém.

Que rádio, que televisão tinha Santo Avito? De que imprensa ele dispunha? Nada; ele contava apenas com o púlpito e sua autoridade de bispo santo. Ele fazia seus sermões e esses tocavam o coração de um rei. Isso porque o apostolado fecundo é o apostolado franco em que a verdade não só é dita inteira, mas com ufania, bem argumentada e com uma audácia santa.

Pode ser que às vezes aconteça o que ocorreu com São João Batista ou Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas eu pergunto: Então Nosso Senhor Jesus Cristo e São João Batista fracassaram? Ou, pelo contrário, o Divino Redentor, derramando seu Sangue, salvou a humanidade? O sangue de São João Batista não terá subido ao Céu como o de Abel, clamando vingança contra Herodes e Herodíades, e misericórdia para tantos homens que estavam esperando naquele tempo a luz da verdade?

Por certo, nessa tática da energia encontramos reações tremendas. Às vezes acontece de morrermos. Mas se um católico julga que morrer na defesa da Fé é um desastre, então ele deveria recomeçar tudo, precisaria nascer de novo, pois o contrário é a verdade: o martírio, o sofrimento conduz à glória e à fecundidade do apostolado.

De maneira que nada nos deve deter, precisamos seguir impávidos para a frente anunciando a verdade e o bem como eles são, segundo o exemplo de Santo Avito. Homens assim, um morria, dez venciam. Aquele que morria assistia à vitória desde o Céu. Foram bispos, papas, leigos desse modo que constituíram o fermento o qual deu origem à Idade Média.

Quando vemos restos magníficos da Idade Média, catedrais imensas, castelos maravilhosos, vitrais, o canto gregoriano, quando pensamos na Cavalaria, nas Cruzadas, no feudalismo, em tantas recordações que a Idade Média deixou e que são uma luz no meio das trevas deste mundo, devemos nos lembrar de que há no alicerce de tudo isso quanta coragem, quanta ousadia, quanto senso de sacrifício, quanta confiança na graça como elemento decisivo de toda vitória e quanta segurança de que andando para a frente, com a graça de Deus, o homem é invencível. Isto fez germinar a Idade Média.

Peçamos a intercessão de Santo Avito para que nos obtenha as graças a fim de sermos as almas indomáveis, intrépidas, piedosas, sobrenaturais das quais o Reino de Maria deve nascer.              v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 4/2/1966)

Revista Dr Plinio 263 (Fevereiro de 2020)

 

1) ROHRBACHER, René-François. Vida dos Santos. São Paulo: Editora das Américas, 1959. v. III, p.14.

2) Jean-Jacques Rousseau (*1712 – †1778). Filósofo, teórico político e escritor suíço. Considerado um dos principais filósofos do iluminismo, cujas obras impulsionaram a Revolução.

Manteve-se sempre no caminho da virtude – Beato Sebastião de Aparício

Beato Sebastião de Aparício teve uma vida singular. Depois de uma existência muito simples e pobre, de um camponês arraigado na tradição de sua terra, embarcou para o México, naquele tempo lugar de aventura e riqueza, e ali se enriqueceu como agricultor. Depois se dedicou ao comércio, onde alcançou também um êxito extraordinário. Casou-se por duas vezes, tendo ficado viúvo, e em ambos os casamentos guardou a castidade perfeita com o consentimento da esposa.

Aos setenta anos ingressou como irmão leigo na Ordem dos franciscanos, onde permaneceu por vinte e oito anos. O antigo agricultor, comerciante, homem de aventuras e esposo passou a ser um capuchinho de barba branca tranquilo, gentil, ressumando vida espiritual, morrendo numa espécie de apoteose.

Em meio a esses zigue-zagues, sua alma manteve-se continuamente no caminho da virtude. É uma conjunção de vidas dentro das quais ele toma toda a personalidade de cada papel e, no fim, sublima-se no papel dos papéis: um simples irmão leigo franciscano, perfumando o convento, o México e, de algum modo, toda a América, com a beleza de sua vida.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 24/2/1966)
Revista Dr Plinio 263 (Fevereiro de 2020)

Santa Joana de Valois

Santa Joana de Valois foi desprezada por todo mundo, até pelo pai e, por fim, repudiada pelo marido. Mas ela conduziu a vida com dignidade e serenidade. Fundou uma Ordem Religiosa e  governou muito bem o feudo adquirido depois de sua separação conjugal. Após sua morte, recebeu a honra dos altares.

Apesar de tudo quanto pudessem dizer dela, só uma coisa importava: ela era católica, e isso bastava. Para sua segurança, seu cartão de visita estava pronto: católica apostólica romana.

É um título lindíssimo! Essa ufania de ser católico é a raiz daquilo que Camões chamava “os cristãos atrevimentos”. Quando temos essa ufania é que nos atrevemos a nos lançar. Não porque sejamos mais na ordem humana dos valores; talvez até sejamos menos do que alguns.

Mas isso não importa. O que tem importância é o fato de sermos católicos, termos recebido o sinal do Batismo na fronte, sermos filhos da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 15/6/1967)

Santa Catarina de Ricci – O heroísmo do estado religioso

O heroísmo de um santo é muito maior do que o de um grande herói num campo de batalha. O religioso que passa a vida inteira num convento, cumprindo a Regra na perfeição, pratica um verdadeiro heroísmo, pelo qual devemos ser transidos de admiração.

Santa Catarina de Ricci, virgem, foi uma religiosa dominicana do século XVI. Acompanhemos sua ficha biográfica:

Membro de uma família do patriciado de Florença

Nascida em 23 de abril de 1522, Santa Catarina de Ricci pertencia a uma família do patriciado florentino. Aos 13 anos ingressou no convento fundado por Damas de Caridade, da Ordem Terceira de São Domingos.

Durante os primeiros anos de sua vida conventual padeceu muitos dissabores. Seu misticismo foi mal interpretado; julgavam-na louca e pouco faltou para que a expulsassem do convento. Entretanto, sua sobre-humana paciência durante duas graves enfermidades abriu os olhos de suas companheiras.

Muito jovem ainda, tornou-se mestra de noviças e aos 25 anos de idade foi nomeada priora, cargo que conservou quase continuamente até a sua morte, em fevereiro de 1590.

Em fevereiro de 1542, passou a experimentar misticamente a Agonia e Paixão de Nosso Senhor. A partir do meio-dia de sexta-feira, até às quatro da tarde do dia seguinte, nela se manifestavam os estigmas produzidos pela flagelação, pela coroação de espinhos e pela Cruz.

Muitos céticos e indiferentes, pecadores e incrédulos, convertiam-se ao vê-la. Porém, a santa fugia do tumulto causado pelas pessoas que acorriam para contemplá-la.

Quando Santa Catarina de Ricci entregou sua alma a Deus, um coro angélico foi ouvido por todos os presentes. E Santa Madalena de Pazzi, arrebatada em êxtase, viu-a subir aos Céus no meio de um grupo de espíritos celestiais.

A santidade consiste na prática de todas as virtudes em grau heroico

No início da ficha fala-se das virtudes da santa: dissabores padecidos, paciência nas enfermidades, etc. Depois, vem a parte referente às visões e revelações que ela teve. Tenho a impressão de que, enquanto o trecho relativo às visões e às revelações pode interessar, a primeira parte para algumas pessoas talvez seja um pouco enigmática.

Santa Catarina de Ricci foi, de fato, uma religiosa privilegiada por fenômenos místicos. Embora tais fenômenos sejam, muitas vezes, uma manifestação da santidade de quem os recebe, eles não constituem o cerne da santidade.

Tanto isso é assim que existem muitos santos que não tiveram visões nem revelações, não operaram milagres em vida, e cuja santidade se verifica apenas pela conformidade heroica de seu procedimento com os preceitos e conselhos dados por Nosso Senhor Jesus Cristo.

O que é então a santidade? Não é apenas a posse habitual de todas as virtudes, mas é a prática dessas virtudes em grau heroico. Quer dizer, é o exercício dos hábitos bons de maneira a levá-los até o heroísmo. É um modo insigne de possuir a virtude.

Tenho impressão de que as pessoas não chegam a formar uma ideia devida dos sacrifícios que o estado religioso exige, e da sublimidade deste estado, mesmo quando ele é praticado apenas entre as quatro paredes de um convento, em ações comuns e não extraordinárias da vida. Ou seja, mesmo vivendo uma vida comum num convento, uma alma pode praticar virtudes heroicas.

Nada é mais difícil para o homem do que vencer-se a si mesmo

As virtudes consistem em hábitos retos da alma, que se externam através de ações praticadas continuamente, e com integridade.

Por exemplo, uma religiosa que tenha o hábito da obediência, da pobreza, da castidade. Ela tem interiormente, como raiz, a disposição habitual de espírito de ser casta, pobre, desapegada dos bens da Terra e obediente, de não fazer a sua própria vontade, mas a de seus superiores.

Como ela tem habitualmente essa disposição de espírito, e é isto que se chama virtude, suas ações externas também são habitualmente assim.

Portanto, ela será habitual e invariavelmente casta, obediente e pobre, sem nenhuma exceção na sua conduta.

Sustento que este heroísmo é mais autêntico do que o de muitas pessoas consideradas heroicas; é o mesmo senso do sacrifício, do dever, da imolação própria, de que um grande herói pode dar provas num campo de batalha. Não há coisa mais difícil para o homem do que vencer-se a si mesmo, subjugar as suas más inclinações.

O mundo contemporâneo aclama como heróis indivíduos que se metem numa nave espacial e vão para a Lua. Há um certo heroísmo na ação deles, porque arriscam a vida. Então, é indiscutível que eles se portam heroicamente em uma determinada circunstância.

Mas afirmo que o fato de praticar não apenas uma virtude, somente um ato heroico, mas dominar-se a tal ponto de não cair em pecado, para ser fiel à virtude e nela crescer, estar disposto a fazer, a qualquer hora, um ato de heroísmo, é incomparavelmente mais duro do que ir para a Lua. E tenho a impressão de que há muita gente que, para se ver livre de algum vício, aceitaria de ir à Lua, mas não consentiria em praticar os atos difíceis, interiores, necessários para se vencer.

O combate à preguiça e a prática da pureza

Por exemplo, um dos vícios mais difíceis de vencer é a preguiça, nas suas várias formas. A preguiça de concentrar a atenção, de trabalhar ininterruptamente, tomando, é claro, o repouso que o bom senso recomenda. A preguiça de começar um serviço, na medida do possível, do razoável, pelo mais difícil, deixando o mais fácil para depois. A preguiça de ser combativo, de ser amável, de ser duro com as pessoas a quem se quer bem, quando a fidelidade à virtude exige isso. A preguiça de se vencer quando a virtude nos exige que sejamos humildes, flexíveis, dóceis. Tudo isto é uma espécie de polvo, que faz da preguiça um vício que deita tentáculos em toda a nossa vida espiritual. É terrivelmente difícil combater a preguiça. E encontrar uma pessoa que não cede à preguiça em nada, que não só faz tudo quanto deve, mas o realiza com a perfeição devida e de bom grado, com alegria por estar fazendo o que deve, e que ainda está disposta a aceitar mais trabalho caso o dever o imponha, isto é extremamente raro; trata-se de um indivíduo que venceu heroicamente a própria preguiça.

A pureza é uma virtude ao mesmo tempo tão fácil e tão difícil. Se a pessoa não concede coisa alguma à impureza, é fácil manter a pureza. Quem não tem uma concessão de um mau olhar, um mau pensamento, uma inclinação romântica, quem não cede em nada nestes pontos tem normalmente facilidades de manter a pureza. Mas quem faz pequenas concessões fica tão atraído para fazer concessões um pouco maiores, e depois concessões máximas, que a pureza se torna muito difícil de ser mantida. Entretanto, permanecer no estado de pureza é tão difícil, que é um verdadeiro heroísmo manter a contínua perseverança na castidade. Parece um paradoxo, mas é assim mesmo. É uma coisa fácil para se ter, mas ao mesmo tempo extraordinariamente difícil de se conservar.

A obediência na vida religiosa

A obediência. Algumas pessoas talvez não tenham realizado o que é a vida difícil de um religioso ou de uma religiosa no seu convento; o que significa, para um adulto, desde manhã até à noite, não fazer o que quer, mas o que lhe mandam.

A Superiora chama:
— Irmã tal, agora é o momento da senhora regar o jardim.

Ela olha para fora, choveu, não precisa regar o jardim. Mas é necessário obedecer. Ela vai, pega o regador e rega o jardim.

E, no caso de um convento masculino, o Superior diz:
— Irmão tal, o senhor limpou mal tal coisa. Vá lá e limpe de novo.
— Mas Padre Superior, quereria indicar onde é que eu limpei mal, para limpar de novo?
— Vamos juntos que eu lhe mostro. Olha aqui o assoalho, como está sujo! Limpe melhor!

O religioso olha para o assoalho e vê que está limpo… Isso quebra o orgulho.

O grande Dom Vital, Bispo de Olinda, foi noviço num convento de capuchinhos, na França. O Superior dele mandava-o limpar algumas dessas traves que ficam nas paredes para sustentar o telhado. O Superior dizia para ele:
— Mas Frei Vital, o senhor não viu essa penca de aranhas que está pendurada aí? O senhor não tirou?

Ele olhava, não tinha aranha alguma, mas respondia:
— Ah! pois não, Padre Superior. Primeiro peço o seu perdão.

Ajoelhava, osculava o chão.
— Está bem, agora suba e vá limpar.

O Superior não podia perdoar, porque não tinha o que perdoar — não iria fazer uma pantomima —, mas deixava-o beijar o chão.

Frei Vital subia, limpava o que já estava limpo, e voltava.

Evidentemente, isso não é agradável. E não é apenas um dia, nem dois, nem cinco. São dez dias, dez anos, é toda uma vida! Já imaginaram o que é uma existência inteira tocada assim? O que é mais fácil: batalhas, tiros, soa a corneta, o sujeito sai, recebe um tiro, morre; ou passar uma vida inteira num convento?

Visões, revelações e santidade

Compreendemos, então, o que pode caber de verdadeiro e autêntico heroísmo numa vida religiosa. E temos elementos para apreciar esse tipo de vida religiosa, que não se assinala por nenhuma ação externa mais notável, mas é a prática contínua dos conselhos do Evangelho, a renúncia contínua à própria vontade, ao patrimônio próprio, etc. Isto é um verdadeiro heroísmo em relação ao qual devemos ser transidos de admiração.

E daí vem um convite para vermos com mais admiração, mais entusiasmo o estado religioso, compreendermos esse estado no que ele tem de esplêndido.

Quer dizer, devemos entender que uma santa pode não fazer nada de extraordinário na sua vida, a não ser cumprir completamente a Regra, porque se cumpriu perfeitamente a Regra, ela se santifica. E um santo também.

Então, nós temos três conceitos: virtude, virtude heroica, visões e revelações. Virtude corrente, que é acessível a todos os católicos, virtude heroica, para a qual Deus chama todas as almas, mas para praticá-la precisam de graças especiais, porque sem graças especiais ninguém é herói. E depois, nós temos as visões e as revelações, que são uma coisa distinta.

Bento XV, se não me engano, foi um Papa que dizia: “Dai-me um religioso que tenha cumprido perfeitamente a Regra em vida, e eu vos direi que ele foi santo”. É só cumprir a Regra.

Catarina de Ricci foi uma santa dominicana que teve visões, revelações, êxtases, mas não foi santa por isto. Ela teve isto porque foi santa. As causas das visões é a santidade, e não o contrário. E ainda que ela não tivesse tido essas visões, mereceria toda a nossa admiração, pela virtude heroica de que deu prova.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/7/1971)

Santo Isidoro de Pelusio – Modos de tratar os pecadores

Aos pecadores que se arrependem de suas faltas devemos tratar com doçura. Mas aos que não sentem pesar de suas culpas e são petulantes, é preciso mostrar toda firmeza para quebrar seu orgulho.

 

Vamos tratar de Santo Isidoro de Pelúsio, grande lutador contra as heresias, que viveu no século V.

Vingar a injúria feita a Deus

Um sofista, Asclépio, em uma de suas cartas a Santo Isidoro, recomendava-lhe que moderasse sua linguagem. Então respondeu o Santo:

Não creias que mudarei de tom e que me tornarei um fraco bajulador. Ao contrário, ou cessas de me dar tais conselhos ou eu te expulsarei do número de meus amigos.

Que admirável! Isto é o cumprimento do preceito de Nosso Senhor, constante do Evangelho: “Seja vossa linguagem sim, sim, não, não!” (Mt 5, 37). Esse Asclépio recomendou a Santo Isidoro que atacasse menos fortemente os arianos e obteve essa resposta. Ou seja, se quiser me dar um conselho idiota que importa uma traição à causa católica, eu o corto do número dos meus amigos.

Trecho de uma carta de Santo Isidoro ao Bispo de Teón:

Somos igualmente culpados. Tanto quando vingamos nossas injúrias como também quando não sentimos as que são feitas a Deus. Tratando-se de nós, usemos de toda a indulgência quando nos ofenderem. Entretanto se foi Deus ultrajado, não devemos suportar.

Ele diz que há duas formas de culpa, em matéria de injúrias: uma quando nos injuriam pessoalmente e nós nos vingamos; não devemos nos vingar das injúrias que nos fazem. Outra forma de culpa é quando não vingamos as injúrias feitas a Deus. A essas injúrias nós devemos vingar; é uma obrigação. Essas são palavras de um Santo canonizado pela Igreja para servir de modelo para nós.

É preciso tremer de indignação quando se vê Deus injuriado.

Tremer quer dizer estremecer de indignação.

Vede, entretanto, como somos fracos. Somos sensíveis a ponto de não querer perdoar nossos inimigos, e só temos doçura com aqueles que se elevam contra Deus.

Moisés não agia assim, embora fosse o mais suave dos homens. Ele não deixou de se encolerizar contra os israelitas quando fizeram o bezerro de ouro, e sua cólera nessa ocasião foi bem mais santa do que toda a doçura que acaso houvesse mostrado. Elias levantou-se contra os idólatras. João Batista contra Herodes. São Paulo contra Elimas. Isto sempre para vingar a injúria feita a Deus. Quanto a eles, esqueciam-se sem dificuldade das injúrias que lhes eram dirigidas.

É verdade que Deus é poderoso bastante para Se fazer justiça, mas Ele quer que as pessoas de bem detestem o pecado e o façam detestar. E é nesta conduta de zelo que os Santos faziam consistir a virtude e a verdadeira Filosofia.

Um pequeno exame de consciência

O que Santo Isidoro acaba de dizer, em duas palavras, é o seguinte: era bom que as pessoas a quem ele se dirigia vissem como eram fracas. Diz ele:

Vede, entretanto, como somos fracos.

Esse é o modo antigo de dizer “como vocês são fracos”. É muito desagradável chegar num auditório e declarar: “Vocês são fracos, vocês têm tais defeitos”. Então, é uma maneira educada de dizer “nós somos fracos”. É claro que o Santo não era fraco, mas o modelo de fortaleza.  Entretanto, por bondade se colocava no meio dos outros.

Lembro-me de um Santo que pregava para leprosos e, quando falava com eles, dizia “Nós leprosos…”, porque fica muito desagradável afirmar “vocês leprosos”. Dá a impressão que empurra de lado…

Então Santo Isidoro dizia “somos”. Mas não devemos supor que um Santo pudesse ter essa fraqueza; é impossível, a Igreja não o teria canonizado. Vou pôr na linguagem que exprima o fundo das coisas: “Vede como sois fracos, vós sois sensíveis a ponto de não querer perdoar vossos inimigos.” Quer dizer, “Quando vos fazem uma ofensa pessoal, ficais muito sentidos, e não conseguis perdoar. Entretanto, contra aqueles que ofendem a Deus, vós apenas tendes doçura”.

É o caso de fazermos aqui um pequeno exame de consciência.

Nos quatro ou cinco últimos dias, é impossível que alguém não nos tenha feito uma ofensa, por pequena que seja, um atrito qualquer. Nós vimos pecados contra Deus de toda ordem, basta sair à rua. O que mexeu mais com os nossos nervos: o pecado contra Deus ou a desatenção feita a nós? Esse é um bom exame de consciência.

Nesses últimos dias, não teremos ficado exacerbados com alguma desatenção que nos foi feita? É bem provável…  Ficamos igualmente exacerbados diante de algum pecado que presenciamos? Quem sabe se nós merecemos as palavras de Santo Isidoro de Pelúsio? É bem possível! Eu volto a dizer: é uma boa ocasião para um exame de consciência.

Não se ganha todo mundo com métodos iguais

Depois ele dá exemplos de Santos que não eram assim, mas violentos no castigar as ofensas feitas a Deus, e sabiam perdoar as injúrias cometidas contra eles, como por exemplo, Moisés que, sendo o mais suave dos homens, entretanto encolerizou-se com os israelitas quando fizeram o bezerro de ouro. Elias levantou-se contra os idólatras e pediu fogo do céu, que os exterminou. São João Batista indignou-se com Herodes. São Paulo com Elimas.

Por quê? Porque esses eram pecadores, idólatras, homens de vida impura. Deus se indignou contra eles, e também os profetas se indignaram. Quanto às ofensas feitas a esses Santos pessoalmente, eles se esqueciam sem dificuldade.

Em outra ocasião, Santo Isidoro de Pelúsio afirmou que com as pessoas de bem é preciso mostrar-se suave, paciente, humilde, mas com os arrogantes e orgulhosos deve-se saber usar um tom firme.

Quer dizer, com as pessoas que veem com tristeza o mal que fizeram, podemos ser bons. Quando o indivíduo vem se jactando do mal que fez, é preciso pular em cima dele.

Continua o Santo:

Aqueles olham a doçura como uma virtude; eis por que devemos usá-la para consolá-los.

Quer dizer, os que se arrependem de seus pecados são pessoas inclinadas à doçura. Os que não se arrependem são petulantes e só entendem a força. É preciso mostrar-lhes toda a firmeza para quebrar seu orgulho.

Com essa conduta sábia e prudente sustentamos uns e humilhamos outros. Não se ganha todo o mundo com métodos iguais.

É uma esplêndida consideração. Ao pecador arrependido trata-se de um jeito; ao não arrependido, de outro.    v

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/10/1968)