Santa Teresinha: Vida de epopeia

A respeito da devoção a Santa Teresinha, houve muita incompreensão, pois foi entendida num sentido contrário ao da epopeia: fazer os pequenos sacrifícios para evitar os grandes. E transformar a existência numa vidinha que, levada sempre com um sorrisinho, resultava numa saída muito cômoda para o caminho da cruz do católico.

Sua espiritualidade é muito vasta, tendo  ela defendido duas teses: Uma pessoa pode levar uma existência de epopeia, mesmo quando as circunstâncias não lhe proporcionem gestos de audácia,  ou não  exponha diretamente sua vida.

E, mesmo para as almas fracas,  a realização da epopeia é possível. Isso explica o fato de que ela — uma mulher, carmelita reclusa, vivendo numa França na qual não havia circunstâncias para reproduzir o feito de  Santa Joana d’Arc — realizou tanto quanto esta última.

Por essa razão, embora sendo uma alma não destinada a enfrentar grandes lances, ela transformou, pelo auxílio da graça, em grandes, os pequenos fatos da vida cotidiana. Levou uma existência de tão contínuos sacrifícios que, em seu conjunto, sob esse ponto de vista, foi uma epopeia.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/7/72)

Santa Teresinha, modelo de seriedade no sacrifício

No calendário litúrgico antigo, a festa de Santa Teresinha caía em 3 de outubro, a mesma data em que Dr. Plinio partiu desta vida para receber seu prêmio pelo bom combate. Não é este o único nem o principal vínculo entre eles. Antes de tudo, esse varão devotava grande admiração pela figura e vocação daquela carmelita, conforme manifestou em muitas ocasiões, entre as quais a conferência transcrita nestas páginas.

 

Diversas passagens da Escritura desenvolvem o pensamento de que o eixo da História gira em torno dos justos, e tudo quanto acontece no mundo – desde os fenômenos de ordem natural até os mais altos fenômenos de ordem cultural, espiritual, política, etc. —  é ordenado pela Providência para a salvação daqueles que verdadeiramente querem se salvar. Noutros termos, é em benefício desses bons que tudo se passa. São eles os filhos bem-amados, os prediletos.

Nessas condições, não será difícil compreender como os católicos nada devem temer, se forem almas retas e íntegras como uma espada de aço, que tem ponta e gume para cortar qualquer coisa, retilínea, clara e brilhante. Nada a quebra e ela avança sobre qualquer adversário, a começar por si mesmo, porque os nossos piores inimigos estão dentro de nós.

Modelo de alma assim, justa e séria, foi Santa Teresinha do Menino Jesus, que, por essa razão, pode ser comparada a um gládio.

Desde a sua mais remota infância, a vida dela esteve voltada para as altas questões de caráter metafísico, vistas embora segundo a mente de uma menina, depois, de uma moça, e por fim, de uma religiosa carmelita. Quer dizer, não era uma especialista em metafísica, mas era um espírito repleto de elevadas considerações teológicas, sobrenaturais, etc., as quais constituíam o fogo que ardia continuamente na sua alma.

Vocação abraçada sem hesitações

Por outro lado, desde cedo ela conheceu a sua vocação, e conhecendo-a, adotou-a sem nenhuma espécie de irresolução, hesitação ou moleza. Sabe-se, por exemplo, o quanto ela amava seu pai e suas irmãs. Ora, no último jantar em família que precedia a partida dela para o convento, todos na mesa choravam, exceto a vítima que iria se imolar. Por quê? Por suma seriedade. Se resolveu, se é o caso de fazer, esteja contente, pois chegou a hora de re-alizar a vocação. Se o sacrifício tem de ser consumado, transponha de uma vez os umbrais da dor, sem delongas nem demoras que só prejudicam a decisão tomada.

Entrando na vida religiosa, ela encontrou um ambiente pouco favorável àquela seriedade que a distinguia. Fundamentalmente, encontrou um Carmelo não sério, entre outras coisas, com uma superiora que estimulava nas suas freiras um perigoso mundanismo, trazendo para dentro da comunidade as futricas e os fatos miúdos da pequena nobreza de Lisieux.

A vitória da seriedade

Nessas circunstâncias, Santa Teresinha podia ter pensado: “Este é um convento não sério e, portanto, a única atitude certa é tomá-lo como tal e imitá-lo. Serei também uma freira relaxada!”

Porém, não foi esta a postura que adotou. Pelo contrário, ela conquistou a vitória da seriedade: Neste convento com tantos defeitos, vou considerar que ele, de qualquer modo, é uma casa religiosa, e como tal é algo imensamente sério. De maneira que levarei a seriedade até as últimas consequências. Vou ser seriíssima, vou ser santa, vou oferecer a minha alma como vítima expiatória ao amor misericordioso de Nosso Senhor Jesus Cristo, aceitando tudo quanto Deus me mandar, sem pedir e sem recusar nada.

Um pequeno exemplo dessa seriedade. Certa vez, a freira que lhe ajustava aquela capa creme de carmelita errou na hora de fechar um alfinete de gancho, cravando-o na pele de Santa Teresinha. Esta, até o momento de tirar o hábito para dormir, aguentou o incômodo e a dor sem gemidos, porque tinha resolvido não recusar nenhum sacrifício que Deus lhe enviasse.

Imagine-se o que seja levar um alfinete cravado na carne o dia inteiro! Mas, é a seriedade de uma alma santa, uma alma-gládio: Eu não resolvi aceitar tudo? A palavra tudo comporta exceção? Não. Logo, isto faz parte do tudo. Logo, deixe aqui o alfinete!

Mortificando o anseio do sacrifício

Outra impressionante prova de seriedade, ela deu a propósito de seu oferecimento como vítima expiatória. Entregou a vida nas mãos da Providência e passou a desejar que fosse levada o mais rápido possível. Quantos fazem um oferecimento de vítima expiatória pelas nuvens, e se lhes sobrevém depois um resfriado ficam apavorados de morrer! Santa Teresinha, ao contrário, imolou-se por inteiro, a ponto de mortificar o próprio anseio com que esperava consumar seu sacrifício.

Com efeito, na noite em que teve a primeira hemoptise, ela sentiu que estava expelindo qualquer coisa que talvez fosse sangue. Resolveu não verificar na hora, mas deixar para o dia seguinte, refreando assim a vontade imensa de ver aceita sua imolação. Se fosse sangue, significaria morte próxima. Então, como um pequeno sacrifício a mais, decidiu não olhar naquele instante. Dormiu, e só foi se certificar na manhã seguinte.

Considero essa atitude como a última palavra da seriedade: Eu resolvi entregar minha vida, e chegou a hora. Desejo tanto fazer o que decidi, que a mortificação consiste em não tirar a limpo, e dormir em paz até raiarem as primeiras claridades da aurora, o sino da obediência me despertar, eu abrir os olhos e ver que o pano está vermelho. É o Esposo de minha alma que vem. Levantar-me-ei alegre, porque a morte bateu à minha porta!

De fato o Esposo vinha, a vítima estava próxima do altar, perto de sofrer as piores dores, e de caminhar para elas como Santa Teresinha caminhou até o fim.

Determinada e heroica, de encontro à morte

Estou seguro de não ter havido na História guerreiro que enfrentasse a morte de modo mais determinado e heroico do que Santa Teresinha do Menino Jesus. Na serenidade maravilhosa do olhar dela, existe a limpidez e a firmeza de todas as resoluções. É o calvário e a cruz: Eu planejei, eu resolvi, eu estou decidida. Nada abala essa determinação.

Como é belo, por exemplo, alguém fazer o papel de Santo Inácio de Antioquia, cujo martírio é uma das páginas inesquecíveis da hagiografia católica. Um ancião que se apresenta no meio do Coliseu romano, sob os apupos de uma multidão ululante, e vai de encontro aos leões com os braços abertos: Meu Deus, fazei com que as garras e os dentes destas feras me triturem como é triturado o trigo para formar uma hóstia, de maneira que eu possa ser para Vós, Senhor, uma hóstia, havia dito. E talvez tenha pensado: uma hóstia pura, santa, imaculada. Os leões vieram, ele não recuou, sentiu a dilaceração de todo o ser dele, dores incríveis, mas estava se “hostificando”, transformando-se numa hóstia, e ali morreu.

Mas, que quadro maravilhoso: o circo romano, possivelmente o imperador, os patrícios, a ordem dos cavaleiros, as vestais, é o maior público da maior cidade do mundo de então. É a maior infâmia e a maior glória morrer naquele lugar. Ele, o mártir, pensava em Nosso Senhor Jesus Cristo no alto Calvário, e se sentia como um herói, abrindo os braços para os leões e morrer a  se me fosse lícito empregar a palavra é  numa espécie de apoteose de si mesmo. Que magnífico!

Como magnífica haveria de ser a morte de um cruzado: a cavalo, revestido de couraça e elmos reluzentes, armado de escudo e espada, combatendo os inimigos da fé católica, até que em certo momento ele sente um ferro que lhe entra pela garganta, uma golfada de sangue, e ainda vá, nos últimos estertores da morte, um Arcanjo de cristal que desce do Céu para pegá-lo e levá-lo. Que maravilha!

Bem diferente a morte de Santa Teresinha. Nunca me esqueço do arrepio que tive quando vi fotografias dela em seus últimos dias de vida: um claustro pacífico, tranquilo, uma espécie de cama-de-vento, preparada de um modo muito confortável, colchões, travesseiros, e ela posta ali, bonita e risonha como uma boneca.

Entretanto, pelos escritos que nos deixou, sabemos o horror que ela estava sofrendo. Ser vítima no meio do acolchoado, do conforto, e morrer, não por um inimigo que se combate, mas de uma doença que a vai consumindo, sem permitir o heroísmo e o esplendor do contra-ataque; era ser devorada sem devorar, ser comida por uns bichinhos que não têm consciência de si mesmos e que vão roendo os seus pulmões… Que terrível!

Pior. Não bastassem as dores físicas, tinha ainda a provação moral. Chumbo dentro da alma, trevas, nenhuma consolação. A única voz que se fazia ouvir sensivelmente era a do demônio: Será que há Deus? Será que há outra vida? Tu estás te extinguindo de um modo tão horroroso e tão inglório… Renunciaste a tantas diversões e prazeres, e agora morres pelos micróbios da tuberculose. Depois virão os vermes, e tu não serás mais nada, irás para a sepultura, quando toda a natureza em torno de ti estará em flor… Ah, ah, ah! Uma gargalhada com todos os ecos do inferno.

Tudo isso Santa Teresinha enfrentava nos acolchoados, nos pequenos agrados, na aparência de compota, e ouvindo uma irmã dizendo para a outra, no quarto ao lado: Quando essa irmã Teresinha do Menino Jesus morrer, eu não sei o que nossa madre vai escrever nos anais do Convento, porque ela não fez nada. E assim ela ia se extinguindo, num fim que é pelo pelo menos tão heroico quanto o de Santo Inácio de Antioquia. A resolução estava tomada, com fé e seriedade inquebrantáveis, sem nenhuma concessão ao demônio.

Ela cantava em vida sua própria santidade

De maneira que ela sorveu o cálice até a penúltima gota. A última lhe foi poupada, pois no derradeiro instante, que devia ser o mais cruel, ela teve um êxtase, a tal ponto que se levantou no leito e parecia inundada de luz celeste: sua alma já contemplava a Deus, ela tinha morrido.

Santa Teresinha partiu, e, como ela havia prometido, começou a cair sobre a terra uma chuva de rosas (ou seja, de graças especiais) comprada por um dilúvio de sangue interior. Os mil sorrisos que a devoção dela abriu na terra foram fruto dos mil gemidos de alma e de corpo que ela soltou, porque quis e porque foi séria até o fim.

Tão séria que ela compreendeu não carecer do aparato bélico de um cruzado, nem de quaisquer outras exterioridades do heroísmo, para ser uma heroína. E morreu cônscia de seu heroísmo, de sua santidade. Ela percebia que era como uma árvore de resina preciosa, da qual toda gota que caía tinha um valor extraordinário aos olhos de Deus e dos homens, sendo portadora de insignes graças.

Não entrava nisso nenhum laivo de orgulho nem de vaidade. O fato é que se tratava de uma pessoa tão séria, e seu exame de consciência era tão retilíneo e profundo, que ela tinha confiança na limpidez de sua própria alma, e por isso cantava em vida sua própria santidade.

Para todo homem chega a hora do “consummatum est”

Essa é a seriedade levada até as últimas consequências. Ora, o exemplo de Santa Teresinha é de extrema importância para todos nós. A vida de todo homem na terra é destinada a ser uma grande batalha: ou será a batalha da fidelidade e, portanto, a batalha da cruz; ou será uma grande batalha torta, errada, inglória. Mas, da luta o homem não escapa. Ou se tem os mil tormentos para subir a montanha da santidade e do Céu, ou se tem o tormento da vergonha, da inutilidade, da podridão, quando se rola montanha abaixo.

Todos temos de passar pelos sofrimentos. E em determinado momento chega o sacrifício supremo, aquele em que damos a alma inteira, em que temos de repetir as palavras de Nosso Senhor no alto da Cruz: “Consumma-tum est” tudo está consumado! Tudo que na vida eu poderia dar, eu dei.

Pode parecer trágico, mas a questão é saber o que se entende por tragédia. Se é todo grande sofrimento que resulta em glória, então o Calvário é a tragédia da Cruz padecida com seriedade, que culmina na Ressurreição. Se for apenas a tragédia do sofrimento que deu errado e de nada adiantou, do caminho que não teve fim nem termo, então não é a tragédia da Cruz, mas a de árvores tortas.

Se, seguindo o modelo de Santa Teresinha, somos sérios no abraçar o sacrifício e a santidade, então nossa vida não será trágica, mas heroica e gloriosa, como a dela.

Tão pequena menina e já tão grande santa

Nesta fotografia aos oito anos de idade, Santa Teresinha está olhando para um ponto vago, indefinido, mas com uma espécie de contemplação enlevada, afetuosa, respeitosa. Em última análise, é o olhar próprio de um espírito possantemente contemplativo.

Santo Agostinho disse de si, nas “Confissões”, referindo-se à sua infância: “Tão pequeno menino eu era, e já tão grande pecador”. Dela poder-se-ia dizer: “Tão pequena menina era, e já tão grande santa”. Porque seu olhar tem qualquer coisa que me custa exprimir adequadamente, mas que é aquela impostação da alma em coisas que são inteiramente superiores. Foi uma infância profundamente consciente, meditada e raciocinada.

Aqui está Santa Teresinha do Menino Jesus com todo seu tesouro de meditação que pode existir numa alma de criança; ela viveu a infância fiel a si e continuou a ser ela mesma até o apogeu de sua maturidade. É uma coisa magnífica!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência provavelmente feita em janeiro de 1968)

Santa Teresa do Menino Jesus e a pequena via

Há dez anos Dr. Plinio entregava sua alma a Deus, no tríduo da festa de Santa Teresinha (outrora celebrada no dia do falecimento de Dr. Plinio, 3 de outubro).
Ele próprio fizera o oferecimento de si como vítima do amor misericordioso por aquelas almas e aqueles acontecimentos que esperara, baseado na leitura das obras da Santa de Lisieux (cfr. Editorial, página 4).
Transcrevemos a seguir, um dentre os diversos comentários tecidos por Dr. Plinio à edificante vida e missão de Santa Teresinha.

 

Em fins do século XIX a Divina Providência suscitou Santa Teresinha do Menino Jesus para despertar uma nova forma de espiritualidade própria a conduzir grande número de almas a Nosso Senhor. Foi uma resposta de Deus às manobras feitas para encharcar de Revolução a mentalidade do homem ocidental. Essa réplica consistiu na famosa pequena via a qual conforme afirmação profética da Santa, haveria de levar incontáveis almas ao Céu.

Um caminho para os menos fortes

A pequena via é própria aos espíritos mais débeis, sem meios naturais para realizar extraordinários atos de generosidade interior que marcaram tantos santos do passado os quais se flagelavam de maneira espantosa, faziam penitências terríveis, sofriam cruzes e provações pavorosas, porque eram assistidos pela graça e esta encontrava neles uma natureza capaz de grandes feitos.

Quando Santa Teresinha surgiu, as pessoas já estavam profundamente infiltradas de Revolução e, portanto, sem a coragem e disposição para lances heroicos de virtude. Por desígnio da Providência, ela abriu às “pequenas almas” (como as chamava) o caminho para o Céu.

Trata-se da via do reconhecimento da própria fraqueza e da ausência de coragem, de força de vontade para enfrentar imensos sacrifícios . E da convicção de que Nosso Senhor se compadece das almas fracas, diminutas em comparação com as do passado, e que assiste àquelas com bondade, afabilidade, abundância de graças que substituem nelas, vantajosamente, aquilo que a natureza não lhes proporcionou.

Santa Teresinha já como Carmelita professa

Desde muito jovem Santa Teresinha sentiu o chamado à perfeição, e dedicaria seus breves anos de vida a ensinar às “pequenas almas” o caminho para o Céu.

Quer dizer, para as pessoas dos séculos anteriores atingirem o pleno amor de Deus eram necessários — valendo-me de uma expressão inadequada — tantos quilowatts de sofrimentos. Porém, as do tempo de Santa Teresinha, e a fortiori as de nossa época, são incapazes de suportar tais graus de ascese. Então, a rogos de Maria Santíssima, a graça lhes concede vigor para carregar menores quantidades de cruzes. Porém, elas o fazem com tanta intensidade de amor que acabam suprindo a quota de sofrimentos pelos quais não suportariam passar. Pois aos olhos de Deus, o importante não é o quilowatt da dor, e sim a intensidade de amor com que é padecida.

Dessa sorte, o que as grandes almas conquistavam apenas no fim de sua existência, depois de muitos tormentos, as da  pequena via recebem gratuitamente logo no começo da vida espiritual, unindo-se a Nossa Senhora, à Santíssima Trindade, por uma particular bondade de Deus. Esta graça encurta o caminho e faz   amor nascer cedo, tão veemente que, com uma “quilowatagem” menor de sofrimento, brilha com uma luz fulgurante.

 

Admirável exemplo de Santa Teresinha

O modelo característico dessa via foi a própria Santa Teresinha do Menino Jesus, uma pequena alma típica, cônscia de sua incapacidade de suportar grandes sofrimentos. Entretanto, recebeu ela tal intensidade de amor a Deus que, desde menina, fidelíssima à sua vocação, fazia meditações e amava tanto as coisas do  Céu que sobrepujava em virtude a um número incontável de pessoas.

Levou uma existência de verdadeiro sofrimento no Carmelo de Lisieux, tendo sido acometida por uma provação  muito freqüente no claustro, embora no seu caso se apresentasse mais profunda: a aridez contínua, devido à qual ela não sentia consolações na piedade, nem no imenso amor a Deus que possuía.

“Santa Teresinha solicita autorização de seu pai para entrar no Carmelo” – Buissonnets, Lisieux (França)

Nessa situação, própria a afligir qualquer um, ela sempre manteve confiança cega na Providência, e reafirmava  a cada instante seu desejo de morrer como vítima do amor misericordioso de Nosso  Senhor para com aqueles que seguem a pequena via.

E, de fato, certa noite, quando já se achava deitada para dormir, Santa Teresinha sentiu o peito incomodado e expeliu uma golfada. Veio-lhe logo a idéia de que poderia ser sangue, indício da  fatídica doença daquela época, a tuberculose. Essa enfermidade tornou-se comum em fins do século XIX, e a medicina não lograva combatê-la eficazmente, pois não descobrira ainda os  medicamentos existentes hoje. Assim, grande era o número de vítimas dessa moléstia.

Ora, Santa Teresinha experimentou tal alegria diante da hipótese de estar tuberculosa, que ofereceu a Deus o sacrifício de não examinar de imediato o lenço sobre o qual golfara durante a noite, e fazê-lo apenas na manhã seguinte, à luz do dia. Verificando depois ser mesmo sangue, transportada de júbilo, ela compreendeu que sua derradeira paixão começava.

Manifestou-se desse modo a tuberculose, doença  lenta, trágica sob vários aspectos, sobretudo naquele tempo, quando tantos dela sofriam e morriam. Era, pois, uma via comum, na qual a noite escura e o abandono se tornaram cada vez maiores.

Santa Teresinha passou a ser provada com tentações contra a Fé (também assíduas na vida dos santos), e chegou a afirmar serem estas tão violentas que só acreditava porque queria crer, tanto as razões de fé se tinham obnubilado em seu espírito. Sentia que estava morrendo, e na Terra nada mais havia para ela. Porém, a morte vinha aos poucos, a conta-gotas, no meio do sofrimento e da Dor.

Relíquia de Santa Teresinha – Carmelo de Lisieux

De seu leito, ouviu um dia a conversa entre duas freiras sobre seu fim próximo, e este comentário: “Quando falecer nossa Irmã Teresa do Menino Jesus, e for preciso escrever uma circular às demais comunidades contando como transcorreu a vida dela no claustro, não sei realmente o que será narrado. Porque ela não fez nada. Ao longo dos anos passados aqui, realizou apenas coisas pequeninas…”

Vítima do amor misericordioso, Santa Teresinha ofereceu as dores  comuns do dia-a-dia, bem como as grandes provações durante a doença, com intensa caridade, salvando assim um incontável número de almas.

Nossa Santa sentiu-se consolada ao ouvir essas palavras, pois de fato ela oferecera somente sacrifícios menores a Nosso Senhor, que os recebia por meio de Nossa Senhora. Entretanto, devido ao amor com que eram aceitos, o Redentor os acolhia com sumo agrado. Assim, ela salvava um incontável número de almas. Ela abria dessa forma a pequena via.

Santa Teresinha em seu leito de dor

Então, uma característica da espiritualidade de Santa Teresinha é esse modo de oferecer as dores comuns do dia-a-dia, as quais Deus pede habitualmente a todo mundo. Porém, trata-se de  oferecê-las como o fez a vítima do amor misericordioso de Nosso Senhor.

Uma inundação de graças…

Santa Teresinha nunca se vira favorecida por graças místicas extraordinárias, como visões ou revelações. Até que no último momento de sua vida foi arrebatada num êxtase, ficou transportada de alegria, ergueu-se na cama e disse palavras de entusiasmo diante daquilo que via. Depois, reclinou-se e expirou. Seu corpo jazia nesta Terra, mas sua alma já ingressava na eterna bem-aventurança.

Dentro da extrema pobreza carmelitana, seus funerais foram esplêndidos, porque um quintessenciado aroma de violeta, procedente não se sabe de  onde, dominou literalmente o lugar em que o corpo dela se encontrava exposto à visitação pública. Como uma de suas primeiras intercessões junto à misericórdia divina, obteve a conversão da superiora de seu convento, que tanto a tinha amargurado.

De lá para cá, Santa Teresinha inundou o mundo com graças,sendo considerada a mais solícita em atender os pedidos feitos, inclusive os relativos aos bens terrenos. Nesse sentido, célebre é o caso  passado em um convento na cidade de Galípoli, na Turquia. Essa comunidade se achava em grandes apuros financeiros, sem nenhum dinheiro para pagar suas despesas. A superiora implorou então o auxílio de Santa Teresinha: no dia seguinte, ao abrir o cofre da casa, encontrou a quantia necessária e mais ainda.

Obtendo-lhes donativos materiais, Santa Teresinha atrai s almas para que peçam bens espirituais. E ela as atende.

Destinada a socorrer a Terra

Tinha ela certeza de que seria canonizada, e nos últimos  dias de sua vida recomendava conservassem fragmentos de suas unhas ou fios de suas sobrancelhas, dizendo: “Guardem-nos, porque após minha partida, haverá pessoas que ficarão felizes tendo isso”. Quer dizer, seriam distribuídos como relíquias após sua glorificação nos altares.

Em diversas ocasiões pronunciou ela essa linda frase: “Passarei meu Céu fazendo bem sobre a Terra”. E também afirmou: “Só estarei inteiramente livre das coisas da Terra depois que o número dos eleitos estiver completo”. Se pensamos que esse total dos escolhidos só será atingido no fim do mundo, esse dito significa que ela intervirá em nosso favor enquanto houver homens atuando na Terra.

“Passarei meu Céu fazendo o bem sobre a Terra”, costumava dizer Santa Teresinha, prometendo interceder pelos homens até o fim do mundo”.

Foi, portanto, uma Santa especialmente designada pela Providência para fazer grande bem à Terra. Muitos eleitos há cuja memória, por assim dizer, desaparece, perde-se, devido à versatilidade humana. Algum benefício eles fazem, porém menor se comparado com o realizado por uma Santa que vai para o Céu com o programa de continuar a agir intensamente nos acontecimentos terrenos, apenas repousando quando o número dos escolhidos estiver completo.

Alegria com a felicidade dos habitantes do Céu

Para Santa Teresinha, cada ano que passa é um período de ação, de vitória, de esplendor. Pois no dia de sua festa, a um título especial, comemora-se um aniversário que a torna intensamente feliz e aumenta sua glória no Céu. É verdade que esta, no Paraíso, não cresce após ter terminado o mundo. Mas, enquanto tal não suceder, é passível de aumento. Por exemplo, se um bem-aventurado escreve um livro, e 200 anos depois de sua morte essa obra é ocasião de instrumento para a salvação de alguém, a alegria e a glória dele se avolumam no Céu.

Alguém poderia objetar: “Dr. Plinio, sinto-me um pouco insultado pensando em meus sofrimentos aqui no mundo, nesse vale de lágrimas, e o senhor anuncia que Santa Teresinha, já muito feliz, recebeu uma felicidade a mais no Céu. Parece uma distribuição desigual dos dons divinos…”

Ora, os planos de Deus não são igualitários, e, sobretudo, os relativos aos que estão no Céu e na Terra. Permanecemos aqui para sofrer e expiar, e os santos no Paraíso para desfrutar a verdadeira felicidade. Se padecermos, lutarmos e expiarmos bem, seremos também daqueles que irão para o Céu, felizes por toda a eternidade.

Dessa maneira, há uma inteira proporção, não igualdade, entre a nossa desventura e a ventura de Santa Teresinha.

Mais. Devemos nos rejubilar com todos que se acham no Paraíso, pois nos precederam nesta Terra com o sinal da Fé. Viveram antes de nós com o signo da Cruz. São nossos irmãos em Nosso Senhor Jesus Cristo, em Nossa Senhora, e nos cabe desejar a alegria deles: a felicidade de um irmão interessa a outro irmão.

Por fim, cumpre considerarmos que, ao ver nosso contentamento pela felicidade dela, Santa Teresinha há de se tornar particularmente propensa a nos alcançar graças cada vez maiores. Do Céu, ela nos acompanha com afabilidade, com um sorriso todo dela, e dirige à Santíssima Virgem uma empenhada prece por nós: para que aumente nossa fé, nossa crença, nossa esperança e nosso gáudio com as glórias futuras que nos aguardam na venturosa eternidade, junto a ela e aos Sagrados Corações de Jesus e Maria.

Plinio Corrêa de Oliveira

(REVISTA DR. PLINIO 91, Outubro 2005)

Vítima expiatória

Santa Teresinha tinha uma certeza interior — baseada em indícios muito bem escolhidos, definidos e analisados de sua vida espiritual — de que ela seria uma vítima expiatória do Amor Misericordioso, e de que deveria realizar isto no Carmelo.

Diante dos maiores obstáculos, ela não teve nenhuma dúvida de que entraria para o Carmelo, e de que o Amor Misericordioso a chamaria, em determinado momento, para consumi-la como vítima.

Assim, ela teve ocasião de dizer, no meio de todas as amarguras pelas quais passou, que a taça dos seus desejos estava cheia até os bordos. Essas amarguras eram os desejos dela, os sofrimentos que ela queria ter.

Isto é a confiança! Santa Teresinha tinha uma sólida convicção de que era esta a finalidade dela, e a certeza de que a Providência faria todo o necessário para que se realizasse este objetivo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/8/1973)

3 Arcanjos

Numa hipotética analogia com aspectos da vida humana, seríamos levados a atribuir aos três arcanjos — Miguel, Gabriel e Rafael — predicados pelos quais eles reluzem na história sagrada. Assim, São Gabriel é o anjo da contemplação, do ideal, da chama que leva a alma a embevecer-se com o Espírito Santo, como o fez diante da Santíssima Virgem, ao representar junto a Ela o seu Divino Esposo. São Miguel, o anjo da justiça, paladino da supremacia de Deus sobre todas as criaturas, o anjo da luta vitoriosa pelo bem. E São Rafael, o anjo da caridade, da confiança, protetor dos desvalidos, dos Tobias da vida de todos os dias, amparando-os com requintes de bondade e misericórdia.

Plinio Corrêa de Oliveira

Intercessor celeste de alta categoria

Temos em São Rafael um intercessor celeste de alta categoria que leva nossas preces a Deus, porque é um dos sete espíritos mais elevados que assistem junto do Altíssimo e, portanto, são os canais naturais das graças que desejamos.

Houve uma mística que, ao lhe ser dado ver seu Anjo da Guarda, ajoelhou-se em adoração, pensando tratar-se do próprio Deus, tão elevada, nobre e excelsa era a natureza daquele ser. Ora, sabemos que os Anjos da Guarda pertencem à hierarquia menos alta do Céu. Em comparação com isso, é inimaginável um Anjo das mais altas hierarquias. De que alegria vamos estar inundados no Céu quando pudermos contemplar um Arcanjo como São Rafael, e tudo quanto nele veremos de Deus!

Peçamos a ele para termos essa contemplação, e que a consideração dessa ordem angélica ideal e realmente existente nos conforte para uma esperança do Céu e do reinado de Maria, dissipando toda a tristeza crescente destes dias em que os castigos previstos por Nossa Senhora em Fátima vão se aproximando tão rapidamente de nós.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/10/1964)

Protetores e advogados do homem

Poucas pessoas têm noção de que os Anjos da Guarda nos foram dados sobretudo para aquilo que existe de mais importante: velar por nossa alma, lutar e agir conosco para vencermos nossas dificuldades espirituais. E, contudo, quanto conforto nos daria nas horas das tribulações, tentações, em que nos sentimos sozinhos, termos a certeza de que um Anjo da Guarda está junto de nós!

Embora não o sintamos nem o percebamos, ele não nos abandona um minuto sequer, e se acha à espera de nossas orações para agir por nós. Muitas vezes ele atua sem que o peçamos, mas fá-lo-á ainda mais se implorarmos sua assistência.

Enquanto tecemos essas considerações, o recinto em que nos encontramos está repleto de Anjos da Guarda que velam por nós. Compreendemos, assim, quanta alegria desfrutaríamos se  tivéssemos essa ideia sempre presente em nosso espírito!

Ao fazermos apostolado, ao passarmos por problemas interiores, por aborrecimentos e contrariedades de toda ordem, nos sentimos sós. Tal solidão é uma ilusão: junto a cada um está o seu Anjo da Guarda. Não obstante imaginarmos que entre nós e ele há uma distância como entre o céu e a terra, ele de fato está perto, rezando, vigiando, protegendo o homem cuja guarda lhe foi confiada por Deus.

Plinio Corrêa de Oliveira

A beleza da hierarquia angélica

Dr. Plinio tinha um apreço especial pelo estudo sobre os Anjos e grande devoção a eles. Comentando alguns trechos de um livro de Dionísio Areopagita, analisa a ordem, a atividade dos espíritos angélicos e faz aplicações desse tema aos indivíduos, à sociedade, a áreas de civilização e até mesmo a épocas históricas.

 

Dionísio Areopagita, em seu Tratado da hierarquia celeste, descreve uma concatenação dos Anjos, apresentada por ele como a ordenação perfeita do ser criado. O puro espírito criado não teria necessariamente aquela ordenação, mas ele não está longe de dizer — ou até mesmo afirma — que os traços essenciais da ordenação são aqueles.

A multiplicidade das criaturas

O cabide que carrega todo o tema tratado por Dionísio é: uma vez que Deus criou, não poderia deixar de criar vários seres.

São Tomás defende essa tese: O Altíssimo não poderia criar um só ser, porque nenhum ser único tem suficientes qualidades para refletir adequadamente as perfeições do Criador. Ora, a ordem do criado precisa refletir a Deus globalmente e não apenas em um de seus traços.

Então, esquematizando, seria o seguinte:

  1. A ordem do criado tem que refletir a Deus globalmente, e não apenas em uma de suas perfeições.
  2. Refletir a Deus globalmente é algo de tão grande, que não pode ser feito por uma criatura, mas por várias, portanto por um universo, quer dizer, por um conjunto de criaturas que esteja em condições de dar esse reflexo global do Criador.
  3. Deus dispôs que essas criaturas fossem muitíssimas e dotadas de propriedades cujo conjunto, de fato, refletisse a Ele.

Não me parece necessário que o número de seres fosse esse, nem que as criaturas fossem exatamente como são. Podiam ser criaturas numa quantidade diferente, cuja disposição e o inter-relacionamento entre elas adequadamente refletissem a Deus, num modo pelo qual os Anjos não refletem. Mas o Criador dispôs que fossem assim. Isso equivale a julgar que haveria outros universos possíveis. Isso é uma coisa que me parece absolutamente certa.

A ordem na sociedade humana deve ser análoga à existente entre os Anjos

Contudo, uma vez que Deus criou esse número de Anjos com essa natureza, não podia deixar de ser que eles estivessem ordenados como estão. Quer dizer, eles já foram criados assim em vista a refletir o Criador. E a ordenação, o inter-relacionamento entre eles, uma vez que são assim, seria necessariamente esse.

E como a tarefa das criaturas consiste em refletir a Deus não só sendo, mas agindo sobre outros, essas criaturas não podiam existir enclausuradas sem terem contato umas com as outras. Tinham que se relacionar para que essas qualidades, esses predicados divinos se articulassem e representassem um só todo.

Essas criaturas, assim articuladas, teriam que desempenhar um papel que, esquematicamente, é o papel que Dionísio atribui aos Anjos porque, na ordem absoluta do ser, um é aquele conhecimento amoroso dos Serafins, outro é aquela inteligência dos Querubins, outro é aquele poder dos Tronos, e assim por diante.

Como nós, homens, estamos no mesmo universo que os Anjos, fazemos parte da mesma Criação, eles devem nos governar. Em consequência, nossa ordem deve ser análoga e consonante com a deles. E, como tal, o modo de nos relacionarmos e os traços fundamentais de governo da sociedade humana, feitos os descontos da diferença de naturezas, têm que ser análogos aos do mundo angélico.

A força motora do governo legítimo

Entretanto, não pode ser que alguns de nós sejamos apenas cognoscitivos e volitivos, como os Anjos. Vê-se que nossa natureza não comporta isso, mas está menos longe de nossa natureza do que se pode imaginar à primeira vista.

Em muitos trechos dos seus discursos à nobreza romana, Pio XII encaixava o regime democrático, afirmando que as mais autênticas democracias devem ter instituições aristocráticas. Nesta perspectiva e tomando, portanto, a ideia de aristocracia no seu sentido mais amplo, quer dizer, as elites, é mais ou menos certo, a meu ver, que em face da missão de uma sociedade, do que ela é, do que deve fazer, há um maior descortínio das classes mais altas do que das mais baixas. E esse descortínio deve fazer com que as classes mais altas conheçam melhor o espírito do país, o que este é como um todo, amem-no com mais finura, de maneira tal que elas filtrem isso para as classes mais baixas. E que essa filtração produza, por sua vez, um impulso diretivo do poder sobre as classes mais baixas que é verdadeiramente a força motora do autêntico governo legítimo.

As classes mais baixas, assim iluminadas e impulsionadas, têm uma capacidade de execução muito maior do que numa sociedade onde não haja isso. E disto decorre, propriamente, o vigor e a coesão de um corpo social.

Alguém que inventasse copiar a ordem angélica para a ordem humana — não se inspirar, mas copiar —, faria as coisas mais pesadas, mais tontas que se possam imaginar.

Por exemplo, é de experiência comum que, de vez em quando, saem da classe mais baixa elementos extraordinariamente dotados; mas não correspondem à figura clássica do homem muito inteligente, que vai ficar um “ploc-ploc”(1). São pessoas muito dotadas de dons naturais vivos, capazes de vencer as batalhas da vida e aproximarem-se da aristocracia merecidamente, afinarem-se.

As raízes de uma árvore e a nobreza

As raízes de uma árvore pegam matéria inerte nas capilaridades, assimilam-na e a transpõem para o estado de matéria viva, passando a circular dentro do fluxo vital da árvore. A matéria morta que passa a ter vida lembra um pouco uma ressurreição. Isto é uma maravilha que ocorre nas raízes de todas as plantas a todo momento.

Há um fenômeno parecido com esse pelo qual a nobreza suga continuamente da plebe — uma sucção generosa, bondosa, honorífica para a plebe — os elementos aproveitáveis e os eleva, ejetando de si outros que, muitas vezes, se jogam eles mesmos para baixo.

Nesse sentido, tenho certa reserva contra algumas instituições que, sob o pretexto de manter longevas as famílias, amarram-nas nos seus próprios tronos, de tal maneira que quando elas estão apodrecendo, ainda se mantêm sentadas ali.

A inalienabilidade de certo bem em determinada família, enquanto o mundo durar, revela o propósito de evitar que ela seja despojada imerecidamente de alguma coisa. Mas denota também a intenção de assegurar aquilo para a família, mesmo quando as mãos débeis dela não forem mais capazes de agarrar e sustentar.

O Anjo não pode ser promovido para uma categoria superior, nem rebaixado a uma inferior. O homem pode. Se o anjo for um Querubim, sê-lo-á até no Inferno.

Portanto, é preciso saber entender como se inspirar nisso.

A esse respeito, poder-se-ia dar a seguinte regra:

Para nos inspirarmos no mundo angélico, seria preciso ver como isso foi modelado pelo surto de vida natural e sobrenatural do começo da Idade Média até a Revolução Francesa, feitos os descontos da decadência que houve naquele período. Depois procurar ver no que aquilo, sem a intenção de imitar os Anjos, de fato imitava, para assim compreender como esta semelhança pode jogar, e como devemos fazer no Reino de Maria.

A coisa errada, “ploc-ploc”, seria: vem o Reino de Maria, consultamos nossos especialistas em matéria de Anjos, eles nos dão os esquemas e organizamos uma sociedade. Não é isso! Precisamos ver como o bom impulso natural e sobrenatural vai movendo as coisas. E procurar interpretar esse impulso à luz do exemplo angélico, para em algum ponto retificar, apoiar, fazer o que executa o jardineiro com a planta.

Ele não faz o plano da planta e puxa o vegetal para ser daquele jeito, mas toma as possibilidades de progresso da planta e a orienta, poda de cá, de lá, leva-a para o lugar onde incide mais sol, enfim, manobra, segundo uma ideia que ele tem da planta, o que há de autêntico e orgânico dentro dela.

A pulcritude da abstração

Para isso serve enormemente o estudo dos Anjos, porque, desde que se compreenda em que sentido aquele surto está imitando-os — e que as pessoas tenham consciência de que, deixando-se tocar por esse impulso, elas estão fazendo uma coisa angélica —, o surto fica ainda mais forte e toma mais autenticidade.

Se, por exemplo, sou professor e percebo que é em virtude de um tal influxo angélico que estou agindo de determinado modo, compreendo como aquilo que surge em mim, como de minhas raízes, é “angeliforme”. Então, sou capaz de dar instintivamente àquilo uma espécie de perfeição que, se eu não soubesse isso, não daria.

O exemplo dos Anjos faz sobre nós o papel do exemplo do Sol sobre a planta. Não se trata tanto de raciocínio, mas é um “heliotropismo” rumo aos Anjos, estando Deus acima. O Anjo aqui é um hífen para Deus.

Seria preciso termos teólogos e artistas da sociedade que vai nascendo, capazes, antes de tudo, de senti-la no seu fluxo providencial, natural e sobrenatural. E saber apenas iluminar esse fluxo com o exemplo dos Anjos, e outras coisas tiradas da Teologia.

Imaginemos uma sociedade que tivesse toda a atenção posta sobre aqueles que são de algum modo os maiorais dela, os Anjos, e sobre o fato de que tudo o que existe na Terra, provavelmente, é reflexo de algo de angélico para depois tocar algo em Deus e ser reflexo d’Ele. Por exemplo, o modo de o homem ver as coisas abstratas, que é o píncaro do pensamento humano por vários lados — e depois contemplar as coisas simbólicas que é também esse píncaro sob diversos aspectos —, levaria o homem a ser capaz de perceber na abstração um “pulchrum”, que é parecido com o “pulchrum” das abstrações do Dionísio.

Quando ele fala de criaturas espirituais, que nem sequer podemos conceber, e desenvolve toda esta “ordenação com beleza” das coisas espirituais que acabamos de ver, dá-me a impressão de que em muitos dos trechos dele a abstração toca violino.

O que há de encantador em muitos trechos do Dionísio?

Ouvindo a leitura deles, várias vezes eu procurava ver se, além de acompanhar o pensamento, poderia apanhar no que estava essa beleza.

Na pura abstração há certo modo de concatenar as ideias e de ver o “pulchrum” delas, bem como um certo senso do “pulchrum” que se desperta de vez em quando; isso é, penso eu, algo de parecido com o que o homem sentiria se visse um puro espírito. Mas infinitamente ainda mais se visse Deus, porque Deus é absoluto e o absoluto é a personificação de muita coisa que conhecemos como abstrato, visto por certo lado.

Sentindo o belo da vida interna de Deus

Outro dia, estávamos numa das nossas sedes em que se entoou o Credo. Em determinado momento cantou-se “Deum de Deo, lumen de lumine, Deum verum de Deo vero, genitum non factum, consubstantiálem Patri”(2). Nós todos já ouvimos isso mil vezes, mas no momento em que foi cantado me pareceu sentir o belo desta vida interna de Deus, por onde Ele toca e não é tocado, e tudo se passa sem que Ele decaia ao tocar nas coisas.

Não podemos dizer que Deus seja uma abstração, mas nossa noção sobre Deus tem algo do abstrato, porque não corresponde a nenhuma imagem do sensível. Mas foi um momento em que de repente apareceu a beleza disso.

Se tivéssemos o espírito inteiramente adestrado, seríamos capazes de ver nas abstrações todo o belo musical delas, que daria ao homem uma fome e uma sede de abstração, que tenho a impressão de que os povos do Oriente possuíam.

De onde vinha exatamente o fato de eles se interessarem tanto pela manutenção da ortodoxia contra essa ou aquela heresia; e depois torcerem pela propagação dessa ou daquela heresia contra a ortodoxia, como alguém hoje poderia torcer por uma partida de futebol. A meu ver, porque eles pegavam isso e a mudança de qualquer matiz os tocava a fundo. Eram povos que estavam numa clave muito superior à nossa.

E acrescento: só as almas capazes de verem isto assim compreendem o píncaro de uma cultura, de uma nação. Não digo que um aristocrata precisa ter necessariamente esta visão de espírito, mas afirmo que se não houver gente como estou dizendo para tocar esse fogo sagrado na mente do aristocrata, não teremos aristocracia.

Se tivéssemos isso bem organizado e posto no espírito, compreenderíamos muito melhor algo da luz primordial(3) e até do senso do ser de cada um de nós, que fica preso no porão de nossa própria personalidade, como uma mercadoria no porão do navio, e que levamos do berço até a sepultura sem nunca desembalar esse tesouro, para fazê-lo tomar ar e procurar, enfim, adornar-se com ele.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 26/4/1984)

 

1) Expressão onomatopeica criada por Dr. Plinio para designar o defeito de certas pessoas que, desprovidas de intuição e bom senso, querem explicar tudo por meio de raciocínios desenvolvidos de modo lento e pesado, à maneira de um paralelepípedo que, ao ser girado sobre o solo, emite o ruído “ploc-ploc”.

2) Trecho, em latim, do Credo Niceno-Constantinopolitano: “Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial ao Pai”.

3) Termo cunhado por Dr. Plinio para significar a aspiração existente na alma de cada pessoa, ou num povo, para contemplar a Deus de um modo peculiar, refletindo d’Ele determinada perfeição. Ver Dr. Plinio, n. 54, p. 4.

Nossa Senhora de Coromoto

Harmonia augusta, nívea e maternal.

A insondável majestade e a infatigável solicitude materna de Maria Santíssima se unem e reluzem aos nossos olhos, salientadas nesses comentários de Dr. Plinio a uma bela imagem de Nossa Senhora de Coromoto, Padroeira da Venezuela, cuja festa é comemorada em 8 de setembro.

Ao contemplarmos essa linda imagem de Nossa Senhora de Coromoto, notamos de imediato o proporcionado do conjunto que com ela estabelece a base e a cadeira. Esta última possui um espaldar alto que sobrepuja a cabeça da Virgem, e apresenta em seu topo um arco singelo, porém elegante, semelhante a um dossel.

Majestade e intimidade

Trata-se de um detalhe interessante, pois ele frisa a ideia de que Maria Santíssima tem perfeita noção da própria majestade e, sendo a Rainha do Céu e da Terra, condescende em manifestar tanta bondade para conosco.

Por sua vez, a base, um tanto elevada, encontra-se numa proporção muito amena com a imagem, situando-a numa altura que transmite a noção da intimidade — repassada de sacralidade — que Nossa Senhora deseja estabelecer com seus devotos. Cumpre observar, entretanto, que a base e o dossel são apenas elementos auxiliares para visualizarmos o conjunto.

Nas laterais aparecem quadriláteros superpostos, encimados  por dois triângulos que insinuam vagamente duas colunas, com seus capitéis, de uma hipotética catedral cuja abóbada seria representada pelo arco. Embora tais figuras geométricas pudessem ter sido concebidas de modo mais artístico, se fossem retiradas o conjunto perderia em expressão.

Brancura nívea

A qualquer hora do dia, a primeira impressão causada pela imagem é de uma brancura tal que se diria ser feita de uma matéria desconhecida nesta Terra. Ao substantivo “brancura” convém acrescentar o adjetivo “nívea”, que pode parecer exagerado, mas seria uma exceção permitida pelo rico vocabulário da língua portuguesa. Ele realça, exprime melhor esse tipo de brancura que admiramos na imagem de Nossa Senhora de Coromoto: brancura nívea.

Sobretudo à noite sente-se estar em presença de um material que teria vindo, por exemplo, da lua. Não da lua explorada pelos astronautas, mas da lua cantada em versos de poesia…

Escrínio da vida divina

Esta brancura nívea indica como a Virgem Santíssima está penetrada, repleta da graça de Deus. Realça uma transparência do Criador na alma de sua criatura eleita. Nas horas noturnas,  naturalmente, tudo isso resplandece  de modo mais acentuado. E não apenas porque a alvura se destaca no contraste com as sombras. Esta seria uma explicação verídica, mas evidente. O fato é que, de dia, tem-se a impressão de que o mármore reflete a brancura; e à noite, de que nele habita uma luz, causando-nos a sensação de que, se apertássemos aquela matéria da qual a imagem é feita, dela jorraria luz em estado líquido.

Mais ainda. A própria psicologia da personagem (no caso, Nossa Senhora) é imaculadíssima, puríssima, toda constituída para viver dentro desse níveo, que seria uma espécie de “substância” existente no Céu.

A meu ver, a primeira nota de majestade e grandeza que dela emana é um reflexo da participação de Nossa Senhora num outro mundo e da presença dentro d’Ela da vida divina, que A coloca acima de comparação com qualquer outra mera criatura.

Insondável solicitude materna

A partir dessas impressões iniciais, realçadas pela iluminação noturna, analisemos outras.

Maria Santíssima tem consciência de todos esses aspectos de sua pessoa, e demonstra estabilidade através da posição e atitude calmas, de quem se sente perfeitamente em ordem e não se acha impelido por pressa alguma. Para a imagem, o tempo como que não existe: Nossa Senhora passaria séculos acomodada onde está. É o que, com profundo respeito, se pode chamar “felicidade de situação”.

De outro lado, percebe-se que a Santíssima Virgem tem dupla atenção: uma para seus valores internos e celestes, e outra, minor, para a pessoa que d’Ela se aproxima. Dir-se-ia que Ela é toda solicitude materna, e não nota, porque não o quer, a extrema inferioridade de quem se ajoelha a seus pés. Maria não se compara com o filho que vem lhe apresentar uma súplica, dirigir-lhe uma
prece. Assim, a Mãe de Deus eleva o devoto à categoria d’Ela, sem analisá-lo: “Você tem culpa ou não; é bom ou ruim”. Apenas diz: “Você existe e, portanto, tenho misericórdia. O que deseja?”

Nesta imagem transparece muito essa bondade maternal de Nossa Senhora, e a pergunta que dirige ao fiel —  “O que deseja?” — é discernida no olhar e na leve inclinação da cabeça para frente, significando seu extremo desvelo e a disposição de atender até os nossos menores pedidos.

 

Brancura nívea que indica
como a Santíssima Virgem se
acha repleta da graça de Deus,
situando-A acima de qualquer
outra mera criatura

Breve história de Nossa Senhora de Coromoto

Nossa Senhora de Coromoto é a Padroeira da Venezuela, venerada de modo particular na cidade de Guanare, onde apareceu há 354 anos. Quando os espanhóis chegaram a essa região, em 1591, um grupo de índios da tribo dos Coromotos decidiu abandonar sua terra e fugir para a selva próxima ao rio Tucupido, dando as costas à evangelização que a Igreja Católica começara a empreender entre eles.

Seis décadas mais tarde, num dia de 1652, o cacique Coromoto e sua mulher atravessavam uma corrente de água quando viram uma Senhora de extraordinária beleza, levando nos braços um menino igualmente esplendoroso. A Senhora lhes disse no seu idioma: “Dirijam-se à casa dos brancos e peçam que lhes derramem a água sobre a cabeça (o batismo), para que possam alcançar o céu”.

Algum tempo depois, um espanhol chamado João Sanchez viajava por aquela mesma região quando o cacique Coromoto lhe vem ao encontro, relata a visão que tivera da bela Senhora e as palavras que dela ouvira.

João Sanchez combinou com o índio o necessário para que toda a tribo fosse instruída na doutrina cristã e recebesse as águas do batismo. De fato, vários indígenas foram batizados, não porém o cacique, o qual, acostumado à liberdade dos bosques, não conseguia se adaptar ao novo regime de vida. Junto com sua família, retornou à existência na selva.

Entretanto, no dia 8 de setembro de 1652, sábado, Nossa Senhora aparece novamente para o índio na sua choça, em presença da sua mulher, sua cunhada Isabel e um sobrinho desta. O cacique pega o arco e a flecha para matá-la. Tendo a Virgem Maria se aproximado, Coromoto larga o arco e tenta agarrá-la. Mas, no exato momento em que ia ser tocada, Nossa Senhora desaparece, deixando nas mãos do índio um pergaminho com sua imagem. O sobrinho da cunhada Isabel saiu correndo para avisar a João Sanchez do sucedido. Este, com mais dois companheiros, dirigiu-se ao local da aparição e recolheu a preciosa relíquia.

No dia seguinte, acompanhado por alguns de seus índios, o cacique tentou uma fuga para os montes. Contudo, ao embrenhar pelo bosque foi mordido por uma cobra venenosa. Vendose imortalmente ferido e conhecendo nisto um castigo do Céu pela péssima conduta que tivera diante da excelsa Senhora, começou a se arrepender, suplicando em altas vozes que lhe administrassem o santo batismo. A divina Maria, que tanto fizera pela conversão dos índios e seu cacique; Ela, canal de todas as graças, alcançou para o moribundo a regeneração pelas salvadoras águas batismais. Por especial providência de Deus, passava por ali um católico da cidade de Barinas, que imediatamente o batizou. O cacique recomendou aos índios que se mantivessem com os brancos e, resignado, em meio a acerbas dores, rendeu o último suspiro.

Atualmente, o pergaminho com a imagem, encerrado num belíssimo relicário de ouro, brilhantes e pérolas, encontra-se no Santuário Nacional Nossa Senhora de Coromoto, erguido no lugar da segunda aparição, e inaugurado com a solene Eucaristia presidida pelo Papa João Paulo II, em 10 de fevereiro de 1996.

No caráter virginal e na extrema delicadeza dos traços da mãe e do filho está presente a noção de uma insondável misericórdia para conosco.