Natal dos guerreiros de Maria

Diante do presepe, devemos contemplar o Menino Jesus como um guerreiro que entra na liça para começar a guerra. Neste momento em que o combate se anuncia mais trágico e, portanto, mais admirável do que nunca, precisamos dar toda forma de devotamento de nossas almas, desde as mais extremas prudências, as esperas mais terríveis, até os avanços mais inopinados e fulminantes. Nossa combatividade está a serviço da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

 

Hoje de manhã fui ao Cemitério da Consolação. Por certo, a festa de Natal não seria para mim completa sem algo que me lembrasse, o mais possível, a presença de mamãe. Por isso, visitei o lugar que para mim se tornou “sagrado”, onde os seus restos repousam à espera do dia da ressurreição.

Fragrância do perfume de Dona Lucilia quando estava na Terra

Eu nunca conceberia um Natal sem ela. Lembro-me de um ano em que me encontrava em Paris. Estávamos perto da festa de Natal e eu tinha a cômoda possibilidade de dar um telefonema a ela, explicando que passaria o Natal ali. Tenho certeza de que ela me aconselharia ficar lá, que seria muito agradável, interessante, eu poderia me distrair bastante, ver coisas muito bonitas.

Mas, a ideia de ela passando o Natal sozinha em São Paulo era uma coisa que me produzia uma tristeza a que nenhuma alegria de Paris se podia comparar. E quanto mais ela insistisse para eu ficar lá, tanto mais quereria voltar, e depois da última insistência eu desligaria o telefone, iria para a Air France e compraria a passagem. Evidentemente, era natural, já antes mesmo de falar com ela me aprestei, comprei a passagem e estava em São Paulo na véspera de Natal.

O que poderia ser o Natal passado em Paris: Missa em Notre-Dame, uma visita à Sainte-Chapelle, Rue du Bac, Notre-Dame-des-Victoires, e depois ver Paris que naquele tempo ainda era uma cidade de elegância, de distinção e de gala; contemplar algo disso que ainda reluzia sobre esse grande foco de toda espécie de luzes – algumas boas – que foi a cidade de Paris.

Entretanto, eu pensava: é uma coisa incrível, mas ela para mim vale incomparavelmente mais do que isso, de maneira que, no íntimo de minha alma, não tive a mínima vacilação, a mínima hesitação. Eu estava determinado a vir e vim mesmo!

Hoje em dia, com a evolução que as coisas tomaram, mamãe já está no Céu. Mas ela foi recrutando lentamente, em torno de mim, aqueles que haveriam de trazer-me o odor da presença dela, que o desvelo dela reuniu em torno de mim, e que, assim reunidos, constituem a fragrância do perfume dela quando estava aqui na Terra.

Ela deixou-me numa aparente solidão, mas fez um tecido de afetos em torno dela e de mim com que nunca contei na minha vida. E ela constituiu em torno de mim aquilo que melhor poderia ser como que uma luz lunar, depois de esplêndido dia que foi a presença dela. Esse longo, argênteo e querido luar eu espero que me acompanhe até os últimos dias de minha existência.

O maior combate travado por meras criaturas na História

De um modo ou de outro isso tem estado contido nas palavras de afeto que vós me tributais com uma frequência toda “luciliana”, mas hoje isso foi vincado de um modo especial(1): é o caráter combativo de minha alma, como sendo o traço dominante da forma de perfeição para a qual Nossa Senhora – misericordiosa, mas insistentemente – me chama.

Levar o combate ao extremo limite onde deve ser levado. Não só combater com toda a força, mas ter a força para combater de todos os modos necessários, de maneira que não haja uma forma de combatividade, ainda que seja a grande, soturna e terrível combatividade das retiradas estratégicas, em que não me tenha sido dado combater até o último hausto de minha alma!

Isto, vincado nesta ocasião, vem num momento em que o combate se anuncia mais trágico e, portanto, mais admirável do que nunca. Um combate tal que, se ele fosse afastado de nossos passos, poderíamos nos sentir frustrados, de tal maneira precisamos crescer até as dimensões dele, e ele, por sua vez, de tal modo deve crescer que seja o maior combate travado por meras criaturas na História, desde que há mundo. Um combate em que os combatentes se lembram da luta dos Anjos contra os demônios e pensam, reverentes, no combate que Elias e Henoc vão travar no fim do mundo contra o Anticristo. É alguma coisa desse porte.

Nós temos a impressão de que as nuvens estão se acumulando, se adensando; ouvem-se o rugir de feras e o silvar de serpentes em um quadro aparentemente ainda intacto e pacífico, deste pacífico discutível de uma fortaleza que pode ser atacada a qualquer momento e, por isso, tem combatentes postados em todas as ameias, em toda a muralha e no alto de todas as torres. Estes são os dias pacíficos que temos diante de nós. Se isto é paz, vós bem podeis medir o que será o combate!

Um varão luminoso, cheio de reverência e de patriarcal dignidade

Neste combate nós devemos dar toda forma de devotamento de nossas almas, desde as mais extremas prudências, as esperas mais terríveis, até os avanços mais inopinados e fulminantes, em que ora tenhamos as prudências que mesmo os nossos considerem as mais desconcertantes, ora as ousadias que os deixem boquiabertos. Assim é a combatividade a serviço da Sabedoria; assim é a Sabedoria a serviço da Santa Fé Católica Apostólica Romana.

Isto se diz num dia tão inadequado, o Natal, em que a Cristandade olha para o que lhe apresenta a Santa Igreja, ou seja, o Menino Jesus, tão pacífico, o Príncipe da Paz que veio trazer a paz a esta Terra e que, de braços abertos, sorri para a humanidade que começa a chegar junto a Ele. E que, nesse momento, recebe o sorriso do que a humanidade tem de mais magnífico: o sorriso cheio de uma pureza e de uma luminosidade indizíveis de Nossa Senhora. E, logo depois, junto a Ela, um varão que de algum modo teve proporção para ser esposo d’Ela, para ser o pai legal do Menino Jesus.

Uma vez que entre esposo e esposa precisa haver uma certa proporção, qual deve ser a estatura de um homem para ter certa proporção com Aquela que causa surpresa aos próprios Anjos pela sua perfeição, de quem espíritos celestiais, olhando-A, perguntam cantando: “Quem é esta que avança?!”?

Também nós, olhando para um varão luminoso, cheio de reverência e de patriarcal dignidade, que A toma pela mão e A acompanha, perguntamos: Quem é este que avança junto Àquela a quem os próprios Anjos cantam?!

Acentua-se tanto, e com razão, tudo quanto há de belo e de poético nos bois que chegam junto ao Menino Jesus, e o contraste enorme entre Deus-Menino e aquelas criaturas irracionais que, com seu bafo, enchem o ambiente e aquecem seu Criador.

A luz, o perfume, o calor da presença de Maria

Porém, antes disso houve o perfume de todos os perfumes, a beleza de todas as belezas: a luz dos olhos, o perfume do hálito, o calor da presença de Maria. E junto a Ela houve a discreta, varonil e patriarcal presença de São José. Que mais dizer?

Dir-se-ia que essas recordações de guerra junto a essa cena que evoca a paz mostram uma contradição fenomenal. Mas é só porque esse quadro tem sido contemplado, com certa insistência, pelos homens que não admiram a guerra e não sabem ver dentro do próprio passo que o Menino Jesus inicia, vindo ao mundo, a grande guerra d’Ele.

Em geral, o Menino Jesus é apresentado no presepe sorrindo e de braços abertos, os quais não significam só a abertura do amor d’Ele para os homens, em todos os tempos e todos os lugares. Sem dúvida, exprimem isto e com toda a propriedade, mas significam também a Cruz. Ele está com os braços abertos em cruz.

E um dos aspectos que torna bonita a devoção de rezar com os braços abertos em cruz é pensar que o Menino Jesus, na manjedoura, provavelmente abriu os seus braços em cruz. Logo depois de concebido, Ele começou a rezar imediatamente para o Padre Eterno. Saído do claustro augusto de Maria e vindo à luz do dia, Ele entrou na Terra e imediatamente ofereceu ao Padre Eterno a grande luta que ia iniciar.

Batalhador divino, mas pequenino, um Deus infinito, porém encarnado numa Criança que quis ficar na dependência de tudo e de todos, sendo o Criador onipotente do Céu e da Terra e de todas as coisas visíveis e invisíveis!

Jesus vem à Terra para salvar a nação eleita e, com ela, também a humanidade inteira. A nação eleita deveria ser um instrumento para Ele salvar a humanidade. Mas Ele sabe que sobre essa nação conseguirá o resultado o qual conhecemos, e que a humanidade O seguirá incompletamente.

Entretanto, Ele vem à Terra e, contrariando as forças opostas do demônio, do mundo e da carne, diz: “Esse resultado apenas parcial de uma obra que seria natural que tivesse o seu resultado completo Eu arranco do demônio e imponho. Realizo minha glória com aquilo que resolvi arrancar. Sei que não conseguirei tudo, embora poderia conseguir desde que Eu quisesse. Sei que santa e sapiencialmente não o devo querer e, por razões arcanas, não quero. Permitirei que o demônio Me arranque uma parte daquilo que Eu comprar por um preço infinitamente precioso. Porém, em revide, triunfarei com a parte que Eu não lhe permitirei tomar.”

Assim, como um guerreiro que entra na liça para começar a guerra, ali está o Menino Jesus no presepe!

Reis dos reis, Senhor dos senhores

Mais ainda. Haveria algo de mais normal do que Ele, como Menino, pelos lugares onde passasse já começasse a deslumbrar todo mundo, a operar milagres, pregar, ensinar o gênero humano?

Entretanto, houve esta primeira coisa desconcertante: trinta anos de mutismo! Trinta anos de vida privada, de uma existência oculta com Nossa Senhora e São José, em Nazaré. Imaginem se vivêssemos naquele tempo e soubéssemos que o Menino Jesus veio. Ficaríamos “alegríssimos” e já faríamos planos para o dia seguinte! Contudo, quiçá Nossa Senhora nos olhasse com pena, mas enigmaticamente, e nos dissesse com aquela suavidade e majestade d’Ela: “Não! Vós tereis, meus filhos, que esperar trinta anos!”

Houve almas que tiveram luzes proféticas sobre a vinda do Messias esperado. Essas almas, pelo próprio zelo da salvação, por amor a Ele, deveriam esperar que, tendo chegado o Salvador, começasse imediatamente a obra de conquista d’Ele. Não! Trinta anos de silêncio. É desconcertante!

Será que Simeão e a Profetisa Ana souberam disso? O que terão pensado sobre isso as almas cujos corações palpitavam à espera do Salvador e que, naquela noite bendita, sentiram que a salvação tinha chegado? Muitas dessas pessoas talvez esperassem ver a glória e a vitória d’Ele, e foram convidadas a morrer em paz, sem compreender o que tinha se passado. É terrível, mas Ele começava por levar ao último ponto da santidade, pelos mistérios da espera e da confiança n’Ele, aqueles que O tinham esperado. Assim, a luta se iniciava dentro de casa com aqueles que eram d’Ele, para que fossem mais d’Ele.

São José morreu sem ter visto a glória do Filho de Deus irradiar-se sobre Israel! Entretanto, morreu em paz. Ele é o padroeiro da boa morte. Com toda a certeza, faleceu assistido pelo Menino Jesus e por Nossa Senhora. Não se pode morrer melhor, é o arquétipo da boa morte! Será que São José não se perguntava, às vezes: “Mas o Rex regum, Dominus dominantium” é esse Menino, entretanto divino, que vejo brincar com outras crianças, não atrai ninguém? Passou mais um dia e o milagre não se deu. Ou, pior ainda, Ele fez milagres e não se importaram. O que vai acontecer? Não sei. Eu sei que o Verbo Se fez carne e habitou entre nós! Mais um mistério na minha vida. Adoro o mistério e caminho para as sombras da morte, e depois para o Limbo, feliz porque meus olhos, antes de se fecharem, viram o Esperado das nações! E porque as orações d’Aquela que o Divino Espírito Santo quis me dar por Esposa não me deixarão um só momento, vou avançar confiante!”

E assim como o Menino Jesus causou uma angústia a Nossa Senhora e a São José por ocasião de uma peregrinação a Jerusalém, onde Ele se separou da Sagrada Família, que depois O encontraram no Templo, será que Ele não terá querido causar a São José santas perplexidades por todos aqueles que haveriam de custar a compreender as santas demoras daquilo que é verdadeiramente grande? Pode-se compreender.

E São José não terá travado ali o último combate de sua vida? São hipóteses, mas quão possíveis, verossímeis; portanto, quanto devemos contar com elas para ilustrar um pouco a nossa inteligência a respeito de aspectos da vida da Sagrada Família!

Nosso Senhor acrisola os que são d’Ele, travando um combate dentro de cada um

Nosso Senhor Jesus Cristo entra na vida pública. Afinal, glória! O povo aflui para junto d’Ele, alegria! As almas que queriam presenciar o triunfo do Rei dos reis e Senhor dos senhores dizem: “Chegou!” Os Apóstolos disseram: “Chegou!” Fato mais extraordinário ainda: a parentela começa a aderir.

Entretanto, no momento em que, contemplando o primeiro ano da vida pública e esfregando as mãos, se diria: “Como será o segundo ano? Como será o terceiro? Eu já vou me preparar para participar desses triunfos! Oh, coisa magnífica!”, “tenebræ factæ sunt” – fazem-se trevas. A luz do Sol começa a deixar aparecer lacunas, um véu se põe diante dos olhos, perplexidades…

Jesus tomou uma beleza de ocaso a se somar à de meio-dia. Na rejeição, no isolamento, no desafio, na ameaça, Ele vai mudando de colorido, de esplendor. Porém, dir-se-ia que Nosso Senhor abandonou a própria causa pela qual Ele tanto luta. Está fazendo tudo para que essa causa ganhe, mas por um ato de sua vontade onipotente poderia mandar que as coisas corressem de outra maneira. Não. Ele se esforça, faz milagres, mas não impõe aos ímpios que se curvem diante do Milagre que eles não reconhecem.

Então, Ele terá abandonado a Si próprio? Alguém poderia pôr-se o problema: “Eu, que estava com meu entusiasmo levado ao último ponto por Ele, passarei por esse último desconcerto de ter a impressão de que Ele não defende a Si mesmo? E a minha esperança na vitória, onde ficou?”

Nosso Senhor Jesus Cristo estava travando o tempo inteiro, dentro do coração de cada Apóstolo, de cada justo, essa batalha de acrisolar os bons para que passassem por essas provações e fossem fiéis ao longo delas.

Podemos imaginar, a título de hipótese, quais eram as reflexões dos Apóstolos no Horto das Oliveiras.

Suponhamos que, em função do que Nosso Senhor dissera na Santa Ceia, alguns dentre eles tivessem chegado a deduzir que Judas era o traidor. Ora, eles tinham visto o Divino Mestre dar provas de afeto a Judas e, quiçá, algum deles pensou: “Quando Judas roubava, o Mestre deveria tê-lo expulsado. Deixou aqui esse homem, deu no que eu previa! Mas Ele agora podia atalhar. Por que não manda um Anjo matar Judas? Ele que tem o poder tão divino de ressuscitar, não poderia matar?”

Quem sabe se, no primeiro período em que Jesus suava sangue no Horto das Oliveiras, os Apóstolos estavam torcendo e dizendo: “Ele mata Judas a qualquer momento. Por um ato da vontade d’Ele, um Anjo elimina o traidor. Desce fogo do céu e o liquida. Daqui a pouco chega alguém nos contando que Judas foi estraçalhado por um raio, e nós nos levantamos alegres, fazemos uma procissão e uma festa.”

Mas concluem: “Não… não tem a menor esperança. O Mestre não vai fazer isso. Ele previu a entrega e está suando sangue de medo disso. Cambaleia e nos pede que vamos para junto d’Ele a fim de O consolar! Se é de nós que Ele depende, oh! está tudo perdido”.

Evidentemente, são hipóteses. Mas, quando pensamos nelas, parecem estar presentes num drama moral que se entrevê.

Nosso Senhor não cede e leva a conduta d’Ele até o fim. Deixa-Se entregar. E quando São Pedro corta a orelha de Malco, Ele ainda cura a orelha do soldado e manda São Pedro pôr a espada na bainha!

Não se percebe que Jesus está acrisolando os d’Ele e travando um combate dentro de cada um. Esse era um dos muitos aspectos da batalha que não acabaria mais.

Vencendo nossa batalha interna, Nossa Senhora nos dará a vitória externa

Ele redime o gênero humano, ressuscita dos mortos, sobe aos Céus e a Igreja começa uma guerra onde passa por dramas tão pungentes que, em determinados momentos, ela mesma nos dá uma impressão parecida com essa. E é pedida de nós uma prova semelhante àquela. É o Divino Mestre que, mais uma vez, nos diz: “Estejais prontos e vigiai! Vigiai e orai para não cairdes em tentação, porque todas as formas de heroísmo – desde presenciar os últimos desconsolos e permanecer de pé, até participar dos maiores triunfos e ficar desapegado –, tudo isso vos será exigido no vosso campo de batalha interno, para que, por vosso intermédio, a Providência vença a humanidade”.

Muita gente considera como um dos elementos dos castigos previstos por Nossa Senhora em Fátima o desencadear de uma guerra conforme as leis humanas e divinas. E é verdade. Mas não se toma em consideração que, simultaneamente, há uma guerra interna, e não é a hora de tirarmos férias dessa luta interior da nossa fricção com o mundo, mas é o momento de levar esse combate até o último ponto.

Portanto, desde já, devemos rezar para pedir a fortaleza necessária para sermos combativos o tempo inteiro, pois isso é necessário a fim de que todo o resto da gesta e da epopeia se realize.

Por que as Cruzadas não venceram? As armaduras eram muito boas, os transportes marítimos, segundo as condições do tempo, também eram bons, a capacidade de combater era grande, o espírito cavalheiresco era admirável. Faltou interiormente o que era necessário para ganhar.

A Cruzada da Reconquista espanhola e portuguesa levou novecentos anos – quando poderia ter durado muito menos –, por causa de desfalecimentos entre momentos de integridade e de moleza. Se esses momentos não tivessem existido, quanta coisa teria acontecido diferente, mais magnífica e conforme a glória de Nossa Senhora! Para dizer tudo numa palavra só, se a Cruzada hispano-lusa tivesse sido feita num só lance, não pararia nas orlas do Atlântico, mas o teria transposto e entrado com vitória na África. Assim, a presença maometana no Mediterrâneo teria sido diferente e, com isso, a História da Europa seria outra. Quando a América fosse descoberta, o Mediterrâneo seria um mar inteiramente cristão.

Devemos procurar fazer para Nossa Senhora nessa Cruzada que vem o que busquei realizar com mamãe. Eu pensei: “Como são poucos os filhos que amam inteiramente suas mães! Eu vou realizar essa obra-prima interior de querê-la e de ser tão bom com ela quanto ela é comigo.”

Com Nossa Senhora não se pode fazer propriamente assim. Quem pode ser bom para Ela como Ela é para nós?! Mas se formos os guerreiros em favor d’Ela como Ela Se desvela e luta por nós; se travarmos nossa batalha dentro de nós para amá-La com um amor que tenha a proporção adequada para o amor desproporcionado que Ela nos tem, aí nós teremos a mais gloriosa das Cruzadas, em linha reta, atravessando os pantanais das demoras, dos inesperados, das ciladas, das defecções e caindo, em linha reta, no chão firme do campo de batalha, sobre o adversário, e prostrando-o por terra.

Vençamos nossa batalha interna e a Santíssima Virgem nos dará a vitória externa. Essa é a meditação de Natal dos guerreiros de Maria! Peçamos ao Divino Menino Jesus, por meio d’Ela e de São José, as graças necessárias para correspondermos a esse ideal.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 25/12/1982)
Revista Dr Plinio 261 (Dezembro de 2019)

 

1) Dr. Plinio se refere às palavras de saudação a ele dirigidas por jovens discípulos, nas quais propunham o tema a ser tratado.

 

Músicas natalinas francesas

Analisando duas músicas natalinas francesas, Dr. Plinio mostra como cada uma delas deveria refletir mais profundamente a grandeza sobrenatural do Natal. Em meio a muita delicadeza, há uma espécie de carência de sacralidade

 

Uma das principais características da música francesa, ao menos na medida em que a conheço, é que ela exprime de preferência um certo tipo de sentimento humano, ao qual corresponde o adjetivo francês salonnier, de salão.

Cortesia francesa

O clássico salão francês é habitualmente de pé direito alto, teto com estuque, tendo algumas muito ligeiras pinturas de dourado realçando algum movimento do estuque. Os móveis são de um estilo que pode ir de Luís XIII até Luís XVI, feitos de madeiras preciosas, com incrustações em bronze finamente trabalhadas, às vezes com tampo de mármore, alabastro ou outra pedra também de grande valor, tendo em cima bibelôs, figurinhas de porcelana, de prata, de ouro, de cristal, postas ali para entreter os homens, e jarras de flores muito bonitas. As cadeiras no mesmo gênero, com tecidos de uma delicadeza magnífica, com cores leves: cor-de-rosa muito pálido, azul de aurora, verde-água. Tudo dentro de uma atmosfera de sorriso, criando o clima da cortesia francesa.

A língua francesa está para essa cortesia como a partitura está para a música. Há uma polidez francesa que é o modo de ser amável, de se tornar agradável por aquilo que se diz, de modo ultra-pensado, mas muito leve. De maneira que a coisa pesadona, muito raciocinada que vem como um carretão não cabe no estilo francês, o qual é leve, distinto, e procura dar a impressão de que o pensamento nasceu naquele momento, não como um produto de uma elaboração cerebral árdua, porque tudo quanto é árduo se procura esquecer no salão francês, onde as flores e os cristais dão o tom; mas causando a impressão de que a ideia surgiu com toda a facilidade de um espírito genial, e fez todo mundo sorrir.

O sorriso de admiração, de aplauso, de simpatia, de proteção, todas as gamas do sorriso florescem no salão francês. As reverências são profundas, calculadas segundo a categoria da pessoa que faz e da que recebe a reverência. Há toda uma aritmética social colocada nisso, mas que se disfarça com ditos ligeiros. Isso faz com que se tenha a impressão de que tudo isso é suave, espontâneo, e se vive uma vida quase irreal.

Essa suavidade, produto quintessenciado de uma civilização ao qual me refiro com simpatia, mais ainda, com uma admiração, é, entretanto, um requinte unilateral. Porque não é justo, não é bom, não é real que toda a vida social de um povo como o francês reproduza apenas o leve e o elegante como se a vida fosse só isso. O salão tem que ser uma imagem da vida, mas o salão francês é a imagem de uma fantasia.

Enlevo pela vida campestre

Dada essa introdução, podemos nos perguntar como é o Natal francês, que é um Natal de salão. É uma sociedade de salão que procura colocar-se em presença da gruta de Belém, com o Menino-Deus, Nossa Senhora e São José, pessoas de estirpe principesca, mas ao mesmo tempo simples, e até muito simples, de um lado; e de outro lado o que há de menos próprio a um salão: bois e vacas que com o seu bafo vão esquentando um Menino que sente frio, deitado na palha, dentro de uma manjedoura! Não era assim que se representavam o rei e a rainha, olhando para o delfim que tinha nascido. Então, como o francês imagina os sentimentos do homem de salão diante desse Presepe?

Dessa vida de salão floresceu o que em francês se chama “la bergerie”. “Berger” é o pastor. A “bergerie” é um conjunto de comentários, apresentações, toda uma concepção do mundo pastoril. Então, o pastorzinho, árvores lindas com frutinhas vermelhas, um cordeirinho no qual se poderia amarrar uma fitinha cor-de-rosa ou azul-claro, a pastorinha que caminha ao lado dele usando um bastão grande, o sininho que toca quando o cordeirinho anda…  Enfim, uma representação mimosa baseada na vida de campo, mas como esta vida não é na realidade. Porque o campo tem besouros, buracos no chão, bichos mortos, coisas fétidas. O campo é o campo, ainda que seja francês.

Esse enlevo pela vida campestre era um modo de os franceses se desafogarem do excessivamente quintessenciado, civilizado, procurando recorrer à simplicidade extrema e até exagerada para mostrar os lados encantadores da candura pastoril.

Dentro dessa concepção, a Rainha Maria Antonieta chegou a construir um “hameau”, um casario, menor até que uma aldeia, no “Petit Trianon”, que era uma espécie de ambiente campestre organizado por ela nas dependências do parque de Versailles. Ali ela, as duquesas e as princesas apareciam vestidas de pastorinhas, mas com tecidos de seda. Então, pastoras de conto de fadas, com uns carneirinhos que antes tinham sido lavados, perfumados, arranjados do modo mais perfeito, e que podiam pôr uma pata fora da etiqueta. Canções pastoris tocadas por grandes orquestras, etc.

Eu imagino que é nessa delicadeza lírica da canção pastoril que é concebido o Natal francês.

Agora, vamos analisar algumas músicas natalinas francesas.

Nasceu o Divino Menino

Il est né le Divin Enfant

Jouez hautbois, résonez musettes

Il est né le Divin Enfant

Chantons tous son avènement

Nasceu o Divino Menino

Tocai oboés, ressoai gaitas

Nasceu o Divino Menino

Cantemos todos o seu advento.

O termo “avènement” tem aqui uma particularidade: é que se diz também de um rei que sobe ao trono, o avènement du roi.

Depuis plus de quatre mille ans

Nous le promettaient les prophètes

Depuis plus de quatre mille ans

Nous attendions cet heureux temps

Desde há quatro mil anos

Os profetas nos prometiam

Desde há quatro mil anos

Nós esperávamos esse tempo feliz

É o Messias que devia vir.

Ah! Qu’il est beau, qu’il est charmant!

Ah! Que ses grâces sont parfaites!

Ah! Qu’il est beau, qu’il est charmant!

Qu’il est doux ce Divin Enfant!

Ah, como é belo, como é encantador!

O termo “encantador” não traduz inteiramente o que a palavra “charmant” significa em francês. É preciso ter visto o encanto da coisa francesa para compreender o que é charme.

Ah, como suas graças são perfeitas!

Graça, o que é aqui? Não é a graça sobrenatural, mas como é perfeito aquilo que Ele tem de gracioso. A sua graciosidade é perfeita. Vejam, portanto, que é o Menino de salão.

 

Ah, como é belo, como é encantador!

Como é doce esse Menino Divino!

Está descrito o Menino: Ele é belo, encantador, doce. É o Menino-Deus. Realmente convém ao Menino-Deus isso, mas é uma focalização toda especial.

Une étable est son logement

Un peu de paille est sa couchette

Une étable est son logement

Pour un Dieu quel abaissement!

Um estábulo é seu alojamento

Um pouco de palha é seu leito

Um estábulo é seu alojamento

Para um Deus, que rebaixamento!

Partez grands rois de l’Orient

Venez vous unir à nos fêtes

Partez grands rois de l’Orient

Venez adorez cet Enfant

Parti, ó grandes reis do Oriente

Vinde unir-vos à nossa festa!

Parti, ó grandes reis do Oriente

Vinde adorar essa Criança!

A ideia subjacente é que, apesar da palha, etc., os grandes reis virão adorá-Lo, introduzindo uma certa atmosfera de salão no estábulo.

O Jésus, o Roi tout puissant

Tout petit enfant que vous êtes

O Jésus, o Roi tout puissant

Régnez sur nous entièrement

Ó Jesus, ó Rei todo-poderoso

Tão pequenino que sois

O contraste é intencional: apesar de ser uma criança tão pequenininha, é o Rei onipotente.

Ó Jesus, ó Rei todo-poderoso

Reinai sobre nós inteiramente!

Então, é o ato de submissão do salão ao Rei que pode tudo, apesar de ser uma Criança tão pequena deitada na palha.

Carência de sacralidade

Notem como a procura do gracioso está presente nessa música que, tocada de um modo um pouco mais saltitante, serviria para acompanhar um desfile de nobres vestidos à moda daquele tempo, cada um estendia a mão a uma dama da nobreza e ela tocava-a apenas com as pontas dos dedos, mantendo distância entre ambos, andando com leveza, usando sapatos de verniz com saltos vermelhos. Os nobres usavam saltos vermelhos, era o distintivo da nobreza, “culotte” e coletes de seda com botões de matéria preciosa, paletós com veludos inestimáveis e brocados.

Toda a música transcorre num tom que conviria mais para um festejo de distração da nobreza do que uma festa propriamente de piedade. Quer dizer, no meio de toda essa delicadeza há uma espécie de carência de sacralidade. E eu me recriminaria se não acentuasse isso com toda a força necessária. Por mais que tudo isso seja “charmant” – e realmente o é – vê-se a serpente da Revolução Francesa enroscada aí. Uma apreciação inexorável dessa canção levaria a isso.

A certa altura a canção toma ares de algo que é cantado por meninos na presença do Deus-Menino, ou por adultos para falar com o Divino Infante. Mas há uma nota de infância, de inocência, mais uma vez “charmante”, na qual, porém, a verdadeira piedade católica do cantochão não está presente.

Esse charme todo não teria podido nascer senão de uma civilização cristã. Mas o charme não basta para a sacralidade. Esse é o grande erro presente nessa canção. Porque o Natal é uma festa suma, essencial e “culminantemente” religiosa. O recolhimento, a ternura, a delicadeza e tudo quanto encontramos no cantochão – e mesmo no polifônico mais próximo do cantochão – não está presente nessa música. Está presente o salão.

Poderia apertar mais a crítica, mas não o faço porque essa delicadeza toda é aristocrática e, como tal, odiada pelos revolucionários. Portanto, não quero pô-la pura e simplesmente no pelourinho sem lhe ter manifestado muita admiração.

Os Anjos em nossos campos

Consideremos outro cântico cuja letra diz:

Les anges dans nos campagnes

Ont entonné l’hymne des cieux

Et l’écho de nos montagnes

Redit ce chant mélodieux

Gloria in excelsis Deo

Bergers, pour qui cette fête?

Quel est l’objet de tous ces chants?

Quel vainqueur, quelle conquête

Mérite ces chœurs triomphants?

Gloria in excelsis Deo

Ils annoncent la naissance

Du Saint Rédempteur d’Israël

Et pleins de reconnaissance

Chantants ce jour solennel

Gloria in excelsis Deo

Os Anjos em nossos campos

Entoaram um hino dos Céus

O eco de nossas montanhas

Repercute esse canto melódico

Glória a Deus nas alturas

Pastores, para quem é essa festa?

Qual é o objeto de todos esses cantos?

Que vencedor, que conquista

Merecem esses coros triunfantes?

Glória a Deus nas alturas

Eles anunciam o nascimento

Do Santo Redentor de Israel

E cheios de reconhecimento

Cantam nesse dia solene

Glória a Deus nas alturas

O Natal é uma festa sobrenatural

Essa canção é sensivelmente menos frívola que a anterior. Ela procura, como aquela, ressaltar a alegria e o esplendor da noite de Natal. Em qualquer cântico natalino esse é um elemento indispensável. Mas essa música busca essa alegria e esse esplendor na participação dos Anjos. Quem compôs a canção desviou a atenção do público, que está ajoelhado diante do Presepe e que deve aplaudir a canção, para o coro dos Anjos no Céu. O esplendor é, sobretudo, o dos Anjos, como algo feito para glorificar o Menino.

Entretanto, essa glorificação é dada menos pelos homens do que pelos Anjos. Os homens procuram interpretar e reproduzir o que os espíritos celestes cantaram em honra ao Menino. De maneira que tem mais força e sacralidade do que a canção anterior, na qual são homens de salão que dizem: “Ah, que criança engraçadinha…”

Assim mesmo, a meu ver, não tem todo aquele grau de sacralidade e sobrenaturalidade indispensável à música sacra, ou mesmo à música religiosa popular, que tem o seu papel, mas precisa ser mais sacral, fazer sentir mais o sobrenatural. Aqui se sente ainda a natureza cantada no que ela tem de mais belo, porém isso não esgota a beleza do Natal. O Natal é uma festa sobrenatural.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 4/1/1989)
Revista Dr Plinio 261 (Dezembro de 2019)

Desejo do paradisíaco

Na alma de uma criança inocente dorme um desejo do paradisíaco que acorda quando ela vê algo de maravilhoso, como uma árvore de Natal. É uma espécie de senso virginal de uma realidade existente para além desta que se vê. Numa educação verdadeiramente católica, os pais deveriam ensinar aos filhos a realidade inteira, mostrando como são belas as criaturas postas por Deus nesta Terra, mas incentivando-os a imaginar como elas seriam no Paraíso.

 

Por que uma criança fica maravilhada ao ver uma árvore de Natal?

Na inocência primeva os modelos ideais brotam na alma inteiramente inocente, que tem a noção fácil e imediata das coisas como elas devem ser e, portanto, do modelo ideal de tudo. Por isso, vendo uma árvore de Natal a criança fica encantada, pois ela possui no fundo de sua inocência a ideia – não inata, mas facilmente adquirida – do modelo ideal de como seria uma árvore paradisíaca. Pela mesma razão, a criança é facilmente sensível ao belo, encanta-se com ele.

Senso do metafísico, do maravilhoso, do sobrenatural

O espírito da criança não é fanado por certas coisas que fanam o espírito do adulto. Em geral, pelo efeito do Batismo – que é o mais importante – e por ainda não se ter corrompido com a vida, a criança tem uma propensão a crer, uma tendência a conceber as coisas sob a égide do maravilhoso e uma facilidade para admiti-lo, qualidades estas que o adulto vai perdendo até chegar ao tipo de velho desabusado, completamente cético, materialista, que representa o ocaso do espírito humano.

Assim, a alma da criança pede a árvore de Natal. Ora, a árvore de Natal é algo que imerge para o mundo do maravilhoso. A criança tem uma apetência para contos de fada. O que é o conto da fada? É o mundo do maravilhoso. A criança tem também uma grande aptidão para a Fé, acredita e não pergunta sobre as razões de crer, ela vai logo crendo.

Isso é uma espécie de senso virginal que tem a criança de uma realidade existente para além desta que nós vemos, a qual é mais bela e sacia anseios do espírito humano que o homem adulto já não possui, pois à medida que a pessoa vive ela vai se apegando às coisas terrenas e perdendo o senso do extraterreno, do metafísico, quer dizer, de uma realidade existente além do físico, e o senso do maravilhoso, do sublime, do sobrenatural. Tudo isso vai minguando na pessoa à medida que ela se torna adulta.

Essas primeiras posições de alma implicam não numa profissão explícita de Fé em Deus, mas na existência do Criador, ou porque a pressupõem, ou porque conduzem a ela, mas são corolários necessários da existência de Deus.

Aspiração por uma ordem ontologicamente mais perfeita

Por exemplo, às vezes a árvore de Natal é acusada de ser uma coisa laica, e realmente esta impostação tem algo de verdade. Mas, no fundo, ela não é laica, pois traduz a aspiração da criança para uma ordem ontologicamente mais perfeita do que a nossa, em que tudo seja de maravilhas constituídas não somente de bens para o corpo, mas de bens para a alma. Não é a árvore de Natal onde se penduram balas para comer ou brinquedos para divertir. Não é isto. Aquelas bolas coloridas, estrelas e outras coisas desse gênero são adornos inúteis para brincar. São feitos para contemplar. Contemplar o quê? No fundo, a hipótese de uma ordem de coisas maravilhosa existente fora da realidade palpável. A criança sabe que aquela árvore não é assim, que aqueles não são frutos daquela árvore. Mas por detrás está um desejo confuso, mas ardente, do extraterreno que se exprime naquilo. Ali há, portanto, a nutrição de um anseio da alma de uma coisa metafísica e, portanto, um impulso que é um ponto de partida para anelar a Deus.

Considerem uma criança na primeiríssima infância que entra numa sala onde está preparada uma árvore de Natal. Ali, naturalmente, há os objetos comuns próprios a uma sala de qualquer casa, como mesa, cadeiras, livros, quadros. Entretanto, ao entrar, a criança tem sua atenção atraída imediatamente pelos adornos natalinos maravilhosos ali colocados, e não pelos objetos comuns da vida cotidiana.

Alguém dirá que é natural porque os objetos maravilhosos não são habituais, e aquilo que é novo chama a atenção. Mas não é isso. Uma criança que vai pela primeira vez a uma casa para ver uma árvore de Natal não conhece os objetos ali presentes. Portanto, a árvore de Natal é tão nova para ela quanto os outros objetos que estão na sala. Porém, é a arvore que chama a atenção. Na primeiríssima infância, as luzes, as bolas prateadas, douradas, vermelhas, verdes, azuis, que pendem da árvore, atraem mais a atenção do que tudo.

Por que a atenção da criança fica mais atraída pelos enfeites, pelas luzes do que pela própria árvore de onde tudo isso pende? E mais atraída pela árvore no conjunto do que pelos outros objetos na sala? No fundo, é porque a criança tem uma ideia, correlata ao senso do absoluto, de que se algo fosse absolutamente como deve ser, seria muito mais maravilhoso do que é.

Uma educação verdadeiramente católica

Com efeito, sem a criança jamais ter ouvido falar de Paraíso, nem ter ainda inteligência para se representar o que seja um Paraíso, dorme dentro dela um desejo do paradisíaco que acorda quando vê aquelas coisas.

Os esmagadores, os incendiários de paraísos dizem que esse “élan” de alma de uma criança é um movimento tolo da primeira infância; quando ela ficar adulta vai se incomodar muito mais com a agência bancária das proximidades do que com a árvore de Natal armada em casa. Não se dão conta de que esse paraíso que dorme na criança é o melhor do talento e da inteligência dela.

Por estar nesta Terra de exílio, o homem não tem as coisas como as do Paraíso, onde tudo é muito mais bonito; então, ele imagina a árvore de Natal. E a criança se encanta porque sua alma é desejosa de uma perfeição não existente nas coisas desta Terra. Ela quereria uma ordem, uma natureza, outras pessoas, enfim tudo como não existe, porque a sua alma foi feita para coisas maiores.

Precisamente por desejar essas coisas maiores ela possui uma forma de talento por onde como que advinha a perfeição que tudo deve ter. Por causa disso também a criança tem uma imaginação muito criativa e o senso do maravilhoso levado a um alto grau.

Numa educação verdadeiramente católica, os pais deveriam ensinar às crianças a realidade inteira, mostrando como são belas as criaturas postas por Deus nesta Terra, mas incentivando-as a imaginar como seriam no Paraíso. Então, o esquilo é muito bonito, mas se pode conjecturar como seriam os esquilos se movimentando no Paraíso.

Por vezes, ao ver passar uma bela borboleta, um beija-flor, ou algum outro bicho bonito, a criança tem a tendência de ir atrás, pois é algo de maravilhoso que ela quer pegar, como se essas criaturas tivessem se extraviado do Paraíso e vindo parar aqui na Terra.

Diante dessa tendência os pais da criança deveriam dizer: “Olhe, Deus fez assim o Paraíso. Isso está aqui para você ter ideia de como as coisas poderiam ser. Observe o que Deus fez de maravilhoso, procure prestar atenção e imaginar como seria o Paraíso. Em tudo quanto você faça procure exprimir essa sua tendência para o Paraíso. Rume para a perfeição. Mas, pobre Paraíso terrestre em comparação com o celeste… Neste não há flores, existem Anjos. E por cima deles e de tudo está Nossa Senhora, mais sua Mãe do que sua própria mãe. Porque Ela a ama mais do que todas as mães juntas amariam o filho único que tivessem. E se você se sente um ratinho para ser amado assim por Maria Santíssima, acredite porque é de Fé, a cada “ratinho” humano Ela ama assim. Creia e confie, alegre-se e reze. Cuide de servi-La, de batalhar por Ela!

“Mas contemple os olhos de Nossa Senhora e você verá que no fundo há uma luz que vai muito além. Ela está olhando para você, mas ao mesmo tempo para o Divino Filho d’Ela! Há uma luz de Cristo n’Ela que vai além do humano. É humano, mas divino. Mais ainda, Ela está vendo Deus face a face. Fitando os olhos d’Ela é como se você olhasse num espelho para ver o Sol: o maravilhoso por excelência, a perfeição de todas as perfeições!”

Voltar a compreender e a amar o maravilhoso é uma verdadeira conversão

Se todos os homens tivessem isso presente, o mundo seria outro. É incalculável o bem que os sacerdotes fariam se nas igrejas pronunciassem sermões sobre isso. Ademais, realçado por algo que a palavra do padre tem e a do leigo não, isto é, a graça do sacerdócio, salientado pelo púlpito, pela dignidade e pelas bênçãos especiais que Deus põe no edifício sagrado.

Entretanto, já na remota época de minha infância a formação não era dada assim, mas se dizia: “Essas coisas são bobagens de infância, não pense nisso. Tudo quanto é maravilha é sonho. Você perde a partida da vida se pensar em coisas dessas. Seja prático! Para isso você precisa de duas coisas: ter saúde e ganhar dinheiro. Preocupe-se em ser saudável e fazer fortuna. Corra atrás do ouro! Não sonhe essas maravilhas. Que dinheiro ou que saúde elas lhe dão? Feche seu horizonte ao maravilhoso! Assim você terá o prazer e a riqueza”.

Ora, esta não é a perfeita formação.

Alguém objetará:

“Está bem, Dr. Plinio, mas se não nos empenharmos cem por cento em ganhar dinheiro, morremos mendigos.”

Nosso Senhor Jesus Cristo afirmou: “Olhai como crescem os lírios do campo. Não trabalham nem fiam, No entanto, Eu vos digo, nem Salomão em toda a sua glória jamais se vestiu como um só dentre eles” (Mt 6, 28-29). Portanto, confiai, porque isso se arranja. É possível recuperar a saúde ou a fortuna perdida. Entretanto, não se recupera o tempo perdido. É necessária uma graça muito grande para que uma alma, que se tenha deixado trancar nesses horizontes mais baixos, volte a compreender e a querer o maravilhoso. É uma verdadeira conversão.

Tais considerações nos levam à ideia de que devemos pedir a Nossa Senhora essa inocência, para nós e para todas as pessoas, porque Deus é infinito no seu desejo de bem e quer abarcar com sua grandeza e bondade a Criação inteira.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 28/6/1969, 7/6/1974, 29/5/1981, 12/10/1985)
Revista Dr Plinio 261 (Dezembro de 2019)

Prece junto ao presépio

Nosso Salvador, Rei do Universo, quis vir até nós, colocando-Se na nossa proporção. Reclinado na pobre manjedoura, Ele nos olha cheio de bondade, à espera do que tenhamos a Lhe dizer. Vamos, pois. Conduzidos pelas mãos de Dr. Plinio, aproximemo-nos do presépio.

A vizinha-se mais uma vez, Senhor, a festa de vosso santo Natal. Mais uma vez, a Cristandade se apresta a Vos venerar na manjedoura de Belém, sob a cintilação da estrela, ou sob a luz ainda mais clara e fulgente, dos olhos maternais e doces de Maria. A vosso lado está São José, tão absorto em Vos contemplar, que parece nem sequer perceber os animais que Vos rodeiam, e os coros de Anjos que rasgaram as nuvens, e cantam, bem visíveis, no mais alto dos Céus. Daqui a pouco, se ouvirá o tropel dos Magos que chegam, trazendo presentes de ouro, incenso e mirra no dorso de extensas caravanas guardadas por uma famulagem sem conta.

Todos os povos da terra em torno do presépio

No decurso dos séculos, outros virão venerar vosso presépio: da Índia, da Núbia, da Macedônia, de Roma, de Cartago, da Espanha, gauleses, francos, germanos, anglos, saxões, normandos. Aí estão os peregrinos e os Cruzados que vieram do Ocidente para beijar o solo da gruta em que nascestes. Vosso presépio encontra-se agora em toda a face da terra. Nas grandes catedrais góticas ou românicas, nas mesquitas conquistadas ao mouro e consagradas ao culto verdadeiro, multidões imensas se acumulam em torno de Vós, e Vos trazem presentes: ouro, prata, incenso, e sobretudo a piedade e a sinceridade de seus corações.

Abre-se o ciclo da expansão ocidental. Os benefícios de vossa Redenção jorram abundantes sobre terras novas. Incas, astecas, tupis, guaranis, negros de Angola, do Cabo ou da Mina, hindus bronzeados, chins esguios e pensativos, ágeis e pequenos nipões, todos estão em torno de vosso presépio e Vos adoram. A estrela brilha agora sobre o mundo inteiro. A promessa angélica já se fez ouvir a todos os povos, e sobre toda a terra os corações de boa vontade encontraram o tesouro inapreciável de vossa paz. Superando todos os obstáculos, a palavra evangélica se fez ouvir por fim aos povos do mundo inteiro. No meio da desolação contemporânea, esta grande afluência de homens, raças e nações em torno de Vós é, Senhor, a única consolação, a esperança que resta.

Quem somos nós?

E no meio de tantos, eis-nos aqui também. Estamos de joelhos, e Vos olhamos. Vede-nos, Senhor, e considerai-nos com compaixão. Aqui estamos, e Vos queremos falar.

Nós? Quem somos nós?

Os que não dobram os dois joelhos, e nem sequer um joelho só, diante de Baal. Os que temos a vossa Lei escrita no bronze de nossa alma, e não permitimos que as doutrinas deste século gravem seus erros sobre este bronze que sagrado vossa Redenção tornou.

Os que amamos como o mais precioso dos tesouros a pureza imaculada da ortodoxia, e que recusamos qualquer pacto com a heresia, suas obras e infiltrações.

Os que temos misericórdia para com o pecador arrependido, e que para nós mesmos, tantas vezes indignos e infiéis, imploramos vossa misericórdia, mas que não poupamos a impiedade insolente e orgulhosa de si mesma, o vício que se estadeia com ufania e escarnece a virtude.

Os que temos pena de todos os homens, mas particularmente dos bem-aventurados que sofrem perseguição por amor à vossa Igreja, que são oprimidos em toda a terra por sua fome e sede de virtude, que são abandonados, escarnecidos, traídos e vilipendiados porque se conservam fiéis à vossa Lei.

Aqueles que sofrem sem que a literatura contemporânea se lembre de exaltar a beleza de seus sofrimentos: a mãe cristã que reza hoje sozinha diante de seu presépio, no lar abandonado pelos filhos que profanam em orgias o dia de vosso Natal; o esposo austero e forte que pela fidelidade a vosso Espírito se tornou incompreendido e antipático aos seus; a esposa fiel que suporta as agruras da solidão da alma e do coração, enquanto a leviandade dos costumes arrastou ao adultério aquele que deveria ser para ela a coluna do lar, a metade de sua alma, “um outro eu mesmo”; o filho ou a filha piedosa, que durante o Natal, enquanto os lares cristãos estão em festa, sente mais do que nunca o gelo com que o egoísmo, a sede dos prazeres, o mundanismo paralisou e matou em seu próprio lar a vida de família. O aluno abandonado e vilipendiado pelos seus colegas, porque permanece fiel a Vós. O mestre detestado por seus discípulos, porque não pactua com seus erros. O Pároco, o Bispo, que sente erguer-se em torno de si a muralha sombria da incompreensão ou da indiferença, porque se recusa a consentir na deterioração do depósito de doutrina que lhe foi confiado. O homem honesto que ficou reduzido à penúria porque não roubou.

O dom mais excelente que se pode oferecer ao Senhor

Estes são, Senhor, os que no momento presente, dispersos, isolados, ignorando-se uns aos outros, entretanto, agora, se acercam de Vós para oferecer o seu dom, e apresentar a sua prece.Dom tão esplêndido na verdade que se eles Vos pudessem dar o sol e todas as estrelas, o mar e todas as suas riquezas, a terra e todo o seu esplendor, não Vos dariam dom igual.

É o dom de si, íntegro e feito com fidelidade. Quando eles preferem a ortodoxia completa às palmas dos fariseus; quando escolhem a honestidade de preferência ao ouro; quando preferem a pureza à popularidade entre os ímpios; quando permanecem na vossa Lei ainda que por isto percam cargos e glória, praticam o amor de Deus sobre todas as coisas, e atingem a perfeição espiritual, rija e verdadeira dileção. Não, por certo, do amor como o entende o século, amor todo feito de sensibilidade esparramada e ilógica, de afetos nebulosos e sem base na razão, de obscuras condescendências consigo mesmo, e escusas acomodações de consciência. Mas o amor verdadeiro, iluminado pela Fé, justificado pela razão, sério, casto, reto, perseverante; em uma palavra, o amor de Deus.

Prece pela Igreja e pelo Papa

E eles Vos formulam uma prece. Prece, antes de tudo, por aquilo que mais amam no mundo, que é a vossa Igreja santa e imaculada. Pelos pastores e pelo rebanho. Sobretudo pelo Pastor dos Pastores e do rebanho, isto é, por Pedro que hoje se chama Pio. Que vossa Igreja, que geme cativa nas masmorras desta civilização anticristã, triunfe por fim deste século de pecado, e plasme para vossa maior glória uma nova civilização. Pelos santos, para que sejam cada vez mais santos. Pelos bons, para que se santifiquem. Pelos pecadores, para que se tornem bons, pelo ímpios, para que se convertam. Que os impenitentes, refratários à graça e nocivos às almas, sejam dispersados por vossa punição. Que as almas do Purgatório quanto antes subam ao Céu.

Prece, depois, por si mesmos. Que os façais mais exigentes na ortodoxia, mais severos na pureza, mais fiéis na adversidade, mais altivos nas humilhações, mais enérgicos nos combates, mais terríveis para com os ímpios, mais compassivos para com os que, envergonhando-se de seus pecados, louvam de público a virtude e se esforçam seriamente por a conquistar.

Prece, por fim, para que vossa Graça, sem a qual nenhuma vontade persevera duravelmente no bem e nenhuma alma se salva, seja para eles tanto mais abundante quanto mais numerosas forem suas misérias e infidelidades.

 

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr. Plinio 45 – Dezembro de 2001

(Transcrito de “O Legionário”, nº 750, de 22/12/1946. Título e subtítulos nossos.)

A Sabedoria do Menino Jesus na Manjedoura

Será que ao dirigir-se a Jesus Menino devemos fazê-lo como a uma criança sem discernimento? Ou como a Alguém dotado de extraordinária Sabedoria? Tal Sabedoria existe na alma de uma criança? O que pedir a Ele no dia do Natal? Com profunda piedade unida à doutrina, Dr. Plinio discorrerá sobre estas e outras questões.

Diante da proximidade da festa supremamente significativa do Santo Natal de Nosso Senhor, parece-me que deveríamos nos perguntar: Como devemos nos preparar para o dia de Natal? E, sobretudo, como prepararmo-nos para o momento culminante deste dia, a Santa Missa? E ainda como nos prepararmos para os dois momentos auges dentro dela, a Consagração, e a Comunhão?

Como preparar-se para o Natal

Para esta preparação há uma dificuldade. Creio existir em muitas pessoas a ideia, apresentada pela iconografia comum, de que ao adorar o Menino Jesus, adora-se uma criança com todas as suas características e, portanto, até mesmo com a inteligência e falta de discernimento próprias a todo recém-nascido. Torna-se assim difícil a adoração de um ente em relação ao qual não se tem nenhuma comunicação de pensamento; e que sendo verdadeiro Deus é também homem, e em sua natureza humana não tem a sabedoria, a inteligência e a penetração de espírito do homem adulto. De tal maneira que a fisionomia humana que nós temos representada diante de nós, não nos convida a uma comunicação de alma como diante de uma pessoa que começa a pensar e a refletir. Por isso, a meditação clássica que se faz diante de um presépio consiste em ver o Menino Jesus tão criança, tão pequeno, tão frágil, e estabelecer o contraste entre a imensidade de Deus e aquela pequena criatura na qual Nosso Senhor Jesus Cristo se encarnou, com a qual Ele assumiu a união hipostática.

Jesus, apesar de menino, possuía toda a inteligência e discernimento

Então se faz geralmente uma meditação a respeito da humildade de Deus, ou do desejo extremo de nos salvar que levou Nosso Senhor a Se reduzir àquela condição de frágil criatura posta numa manjedoura. Esta ordem de ideias é muito boa, ao ponto de ter se tornado comum, talvez demasiado comum. É possível, portanto, que se queira para esse Natal uma ordem de ideias mais perfeita, ao menos ao nosso modo de ver.

Deveríamos então nos perguntar se a iconografia católica, que nos apresenta Nosso Senhor Jesus Cristo como uma criança sem discernimento, olhando para as coisas sem ver bem o que é que são, sem entender o que está em torno de si, se essas imagens correspondem a algo de verdadeiro e, portanto, se é verdade que Nosso Senhor Jesus Cristo tinha essa inteligência própria à primeira infância.

A isso se deve responder o seguinte: Nosso Senhor Jesus Cristo, de algum modo, realmente teve as várias idades pelas quais Ele passou. Portanto, possuiu verdadeira alma infantil, de adolescente, de moço e de homem maduro. Porém, isso não quer dizer que Ele, em sua infância, tivesse a fraqueza e a falta de discernimento próprias a este estado.

Sapientíssimo desde o ventre materno

Ensina a Teologia que desde o momento da Encarnação, ainda mesmo no ventre de Nossa Senhora, Jesus já possuía toda a inteligência e lucidez, sendo, portanto, uma criança sapientíssima, embora a manifestação de sua sabedoria se desse de acordo com o comum de uma criança. Portanto, ainda que inteligentíssimo, Ele era realmente uma criança.

Assim sendo, vê-se que a iconografia católica não erra, porém mostra apenas um aspecto da verdade. Com certeza, para aqueles que tratavam com o Menino Jesus, Ele deveria causar a impressão de uma criança sujeita às condições comuns de criança. Porque o milagre não podia aparecer n’Ele de um modo irrecusável. Mesmo em sua vida pública, Ele praticou numerosos milagres que não possuíam o caráter de evidência; eram milagres mais ou menos como os que se dão em Lourdes; claros o bastante para que uma pessoa de boa-fé possa crer, mas não tão manifestos que excluam a necessidade da Fé. Pois, se o Menino Jesus, posto numa manjedoura, começasse a falar e dissertar, como se fosse um homem dotado de uma sabedoria extraordinária, seria patente tratar-se de um menino inteiramente incomum, e a Fé teria que ceder lugar à certeza. Por isso, Ele possuía as aparências de criança, pois por humildade Ele quis respeitar o tempo necessário e ir gradualmente Se revelando.

Jesus veio ao mundo conhecendo todo o passado, o presente e o futuro

Quando consideramos Nosso Senhor Jesus Cristo Menino, devemos considerar este mistério: Sendo verdadeira criança, parecendo possuir apenas um discernimento pueril, tem em Si toda a sabedoria da qual a natureza humana é capaz. De maneira que aquela Criança na manjedoura tinha incomparavelmente mais inteligência, conhecimento e santidade do que tiveram todos os entes que existiram antes e depois d’Ele sobre a Terra.

Devemos por isso considerar que ali deitado na manjedoura, Nosso Senhor Jesus Cristo via tudo quanto deveria fazer na Terra. Ele conhecia tudo o que em torno d’Ele se passava. Pela vontade d’Ele, todas as coisas eram de forma tal qual Ele queria. Ao contemplar Nossa Senhora, o Menino Jesus sabia ser Ela como era por vontade sua. Enquanto Maria O adorava, Ele percebia claramente que por sua vontade Ela o fazia e correspondia a essa adoração com uma generosidade, uma bondade perfeita, que inundava Nossa Senhora de gáudio.

Por sua vez, olhando para Ele, Nossa Senhora conhecia o grau de discernimento e santidade que havia n’Ele. Travava-se assim um diálogo mudo, mil vezes mais eloquente do que um diálogo falado, diálogo maravilhoso e insondável, no qual a Virgem Mãe se comunicava com seu Filho que revelava a Ela os mistérios de sua sabedoria e santidade, deixando-A arrebatada de enlevo, e fazendo-A crescer cada vez mais em santidade.

No primeiro Natal, Jesus via todos os Natais da História

Talvez o primeiro diálogo de Nosso Senhor com Nossa Senhora tenha consistido em considerar o seguinte: Pela vontade de Jesus, que acabava de nascer, é que estavam naquele lugar pobre. Pela vontade d’Ele os pastores vieram visitá-Lo. Ele sabia, já ao encarnar-se, que deveria morrer na Cruz, e talvez naquele momento tenha oferecido ao Padre Eterno tudo quanto Ele faria nesta Terra, para o cumprimento de sua missão.

É preciso ressaltar que Ele não pensava apenas em sua vida terrena, mas pensava na missão da Igreja por todos os séculos. Ele tinha a intenção de que seu nascimento fosse o primeiro Natal, e conhecia todos os Natais que viriam depois, até o fim do mundo. Sem dúvida, sabia de todas as magníficas festas de Natal nas esplêndidas catedrais da Idade Média; nas belas e nobres festas, em tantas igrejas do “Ancien Régime”; nas comovedoras e veneráveis igrejas dos séculos passados.

Ele viu também os Natais modernos, carentes de sentido sobrenatural, e celebrados talvez com um estado de espírito oposto ao que se deveria ter. Mas, sem dúvida, viu com imenso agrado os que permaneciam fiéis ao verdadeiro espírito do Natal, mantendo-se verdadeiramente católicos apesar das perseguições, das lutas e das dificuldades.

Quem sabe se o último dia do mundo não será um Natal?

Ele previu os esplêndidos Natais do Reino de Maria, e conheceu também os tristes Natais no tempo em que a humanidade do Reino de Maria começará a decair inexoravelmente, talvez entrando pelo caminho que levará ao fim do mundo. Ele previu até mesmo o último Natal.

Como será este último e grandioso Natal?

Eu o imagino da seguinte maneira: poucos fiéis esparsos pela face da Terra, festejando sozinhos o verdadeiro Natal, talvez sem se conhecerem, e percebendo que nada mais pode durar porque a Igreja Católica está em seus últimos haustos…

Quem sabe se à meia-noite do dia vinte e quatro do último dezembro da História, quando tudo parecer completamente perdido, um raio percorrerá o céu do Oriente ao Ocidente, um terror se apoderará dos povos, os anjos aparecerão, a abóbada celeste se enrolará como um pergaminho, e virá o Filho do Homem, em toda a sua majestade, para julgar vivos e mortos. Talvez enquanto alguns poucos fiéis, ao som do “Stille Nacht”, comemoram o nascimento de Cristo Nosso Senhor, Ele volta à Terra em meio às glórias do Natal e, de repente, começa a surgir a aurora, os mortos começam a ressuscitar, os justos aclamam Nosso Senhor, Nossa Senhora aparece à frente do cortejo das almas eleitas, e começa o julgamento.

Pedir a graça de permanecer fiel ao verdadeiro espírito de Natal

E, se admitirmos essa hipótese, é conveniente deitarmos o olhar para esses últimos irmãos, vítimas da última perseguição, e procurarmos compreender o sentido profundo do Natal para os que são perseguidos, desde o Natal das catacumbas até o Natal do fim dos tempos.

De tudo isso nos devemos lembrar ao aproximarmo-nos do Santíssimo Sacramento, quando O adorarmos após o milagre da Transubstanciação e quando O recebermos na Santa Comunhão. Então, por meio de Nossa Senhora, Medianeira de todas as graças, roguemos a Nosso Senhor que nos prepare espiritualmente para as provações que podem sobrevir.

Posto na manjedoura só para mim

Peçamos a Nosso Senhor perdão pelas faltas que tenhamos cometido, e supliquemos-Lhe que Se digne misericordiosamente fechar os olhos para nossos pecados, da mesma forma que nascendo fechou os olhos para as infidelidades do povo eleito e do mundo antigo. Roguemos que Ele assim inicie conosco uma nova era de graças, de misericórdia e de bondade, uma era de paz, na qual, inteiramente reconciliados com Ele, possamos ser os filhos que Ele nos convida a ser. Essas são algumas das orações que podemos oferecer a Ele, unidas a gemidos de arrependimento e manifestações de esperança, confiança e certeza de que, se Ele veio à Terra para salvar os homens, veio para nos salvar a nós; e que se Ele esteve na manjedoura para o bem dos homens, lá esteve para o meu bem.

Ainda que não houvesse senão um homem, e esse fosse eu, Ele teria Se encarnado e seria posto na manjedoura por amor a mim. De maneira que é legitimo imaginar que o Menino Deus lá está por causa de mim. Por isso devemos pedir a Ele que esse ato de amor maravilhoso não seja estéril em nossas almas, e que a bondade d’Ele passe por cima de nossos pecados e arrase os obstáculos edificados por nós, e, finalmente, nos converta fazendo-nos pertencer completamente a Ele. É isso que por meio de Nossa Senhora aconselho pedir na noite de Natal.

Oferecer os pedidos numa bandeja de ouro

Tenhamos em conta que bem junto ao presépio estava Nossa Senhora. Diz o Evangelho que os pastores O encontraram com Maria, indicando que só com Nossa Senhora, e junto a Ela, se encontra Nosso Senhor. Consideremos também que no momento em que veio ao mundo o Salvador, Ela conhecia que tudo quanto Ele deveria sofrer, o faria por nós. Ela pediu a Ele todas as graças necessárias para cada um de nós. E ainda agora no Céu continua a pedi-las.

Unamo-nos a esse pedido. Usando a expressão de São Luís Grignion, coloquemos nosso pedido nas mãos de Nossa Senhora, como um camponês que põe uma fruta comum numa bandeja de ouro, para oferecer ao rei. A salva de ouro são as mãos e o Imaculado Coração de Nossa Senhora. Peçamos que Ela recolha nosso pedido e o apresente a seu Divino Filho.

Com a certeza de sermos bem recebidos e atendidos, pois Nossa Senhora nunca recusa coisa alguma do que lhe peçamos, podemos transpor o Natal.

Oração para o momento da Transubstanciação

No auge do Natal, no momento da Transubstanciação, para mim a oração ideal é a “Salve Regina” ou o “Memorare”, pedindo a Nossa Senhora que me torne bem consciente de que nunca se ouviu dizer que Ela tenha recusado um pedido, e, portanto, naquela hora sacrossanta não recusaria o meu. E então peço a graça de ser inteiramente d’Ela. Apesar dos meus defeitos e ingratidões, que Ela tome conta de mim, e me faça inteiramente d’Ela, para eu ser o herói e o santo que Ela quer que eu seja. Esta é, em especial, a oração que nós devemos fazer na noite de Natal.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/12/1971)

Síntese esplendorosa

Conforme nos ensina a Bula “Ineffabilis Deus”, a beleza e a perfeição da Santíssima Virgem só se manifestam completas porque Ela triunfa, vence e aniquila o demônio. Satanás é um escabelo aos  pés d’Ela.

Sendo Maria imaculada e soberanamente formosa, não basta que todas as criaturas deste mundo, as do Céu e as do Purgatório  Lhe prestem homenagem: importa que o inimigo esteja esmagado
sob seu calcanhar.

Uma perfeita consideração do esplendor de Nossa Senhora envolve, portanto, a ideia do demônio inteiramente subjugado e humilhado por Ela. Essa vitória sobre Satanás dá um particular brilho à celestial beleza da Imaculada Conceição.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Natal e Nossa Senhora

Na hora bendita entre todas as horas, de um modo só conhecido por Deus, a Mulher bendita entre todas as mulheres, a Feliz Porta do Céu e sempre Virgem — como A exalta o cântico “Ave Maris Stella” — torna-Se, efetivamente, Mãe de Deus, pois a maternidade se completa quando Maria Santíssima dá ao mundo o Filho que Ela gerou.

Há uma belíssima música de Natal que canta de modo muito expressivo, como uma melodia vinda do alto: “Aparuit! Aparuit!” Afinal, apareceu na manjedoura o Verbo de Deus encarnado!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/7/1995)

Uma luz brilhou para nós

Em dezembro de 1953, a propósito do Santo Natal, Dr. Plinio tecia considerações muito aplicáveis aos nossos dias(1).

“Lux in tenebris lucet”(2). Com estas palavras o discípulo amado anunciou para seu tempo e para os séculos vindouros o grande acontecimento que celebramos neste mês. Fórmula sintética que exprime o conteúdo inexaurivelmente rico do grande fato: havia trevas por toda a parte, e na obscuridade delas se acendeu a Luz. Por isso a Santa Igreja afirma com estas palavras proféticas de Isaías o seu júbilo, na noite do Natal: “Hoje surgiu a luz para a mundo: o Senhor nasceu para nós. Ele será chamado Admirável, Deus, Príncipe da Paz, Pai do século futuro, e o seu reino não terá fim.”(3)

Qual é a razão destas metáforas? Por que luz? Por que trevas?

Os comentadores são unânimes em afirmar que as trevas que cobriam a Terra quando o Salvador nasceu eram a idolatria dos gentios, o ceticismo dos filósofos, a cegueira dos judeus, a dureza dos ricos, a rebeldia e o ócio dos pobres, a crueldade dos soberanos, a ganância dos homens de negócio, a injustiça das leis, a conformação defeituosa do Estado e da sociedade. Foi na mais profunda escuridão dessas trevas que Jesus Cristo apareceu como uma luz.

Qual a missão da luz? Evidentemente, dissipar as trevas. De fato, aos poucos, foram elas cedendo. E, na ordem das realidades visíveis, a vitória da luz consistiu na instauração da civilização cristã que, embora com as falhas inerentes ao que é humano, foi o autêntico Reino de Cristo na Terra.

Não é o caso de fazermos aqui o histórico do crepúsculo da Cristandade ocidental. Basta lembrar que, do século de São Tomás e São Luís IX, deslizamos para esta nossa era de laicismo e de ateísmo militante.

O quadro que traçamos do mundo antigo poderia aplicar-se facilmente ao de hoje, em cujas trevas do erro e do pecado os homens são retidos, em essência, por três fatores: o demônio com suas tentações, o mundo com suas seduções e a carne com seu aguilhão.

De fato, entregue às volúpias da carne, o ser humano tende a atirar-se com todo o peso de sua miséria às delícias do mundo; e sua alma cheia de tanto lodo está preparada para receber a ação do demônio. Cada um desses fatores abre, pois, o campo para o outro. E por isso, instaurado numa alma o jugo do demônio, ela se torna mais escrava do mundo e da carne.

A capitulação diante de qualquer deles, por mais incipiente que seja, dá imediato vigor aos outros. A ação do demônio cresce na alma com o pecado e, por sua vez, agrava as devastações dos vícios na alma.

Mas no que consiste precisamente a ação do demônio? Em dar aos impulsos de desordem que o pecado original instalou em nós, uma vivacidade, uma energia ainda maior; em nos arrastar a uma esfera de degradação, de sensualidade e de impiedade pior ainda que a da simples malícia humana. Arrastando, pois, para baixo os pecadores, procurando dar coesão, em toda a Terra, às energias caóticas e, por si mesmas, anárquicas da corrupção, soprando-as e estimulando-as, o demônio é o verdadeiro chefe do reino das trevas no mundo.

Contudo, para certos tipos de mentalidade, o papel do demônio, do mundo e da carne na difusão das trevas não deve ser levado tão a sério. O homem contemporâneo não é senão um meninão travesso, mas bom no fundo, que só tem um ponto difícil: é irritável. Por certo ele está algum tanto longe de praticar todos os Mandamentos. A culpa, entretanto, não é principalmente sua, mas dos que não o souberam compreender. Em lugar de irritá-lo com dogmas, preceitos, penas, dever-se-ia tê-lo nutrido com o mel suave das concessões, tratado com sorrisos. Não se compreendeu isto e, como ele é irritável — e algum tanto traquinas… —, ei-lo que quebra igrejas, desencadeia guerras, multiplica revoluções.

A solução consistirá em abrandá-lo. Antes de tudo, não dizer as coisas claramente, porque “pode irritar”.

Castidade, sim. Mas pronuncie a palavra bem baixinho, só quando for indispensável; ou melhor, renuncie a fazer uso dela por muito tempo.

Obediência ao Magistério da Igreja? Sim, sem dúvida. Mas não fale propriamente em obediência, nem em Magistério: poderíamos irritar o meninão. Melhor seria falar vagamente em fé.

Pecado? Não é termo conveniente: fale-se antes em fraqueza, lapso, deslize. E cuidado! Fale-se sobre isto sorrindo.

Inferno, para quê? Se nosso meninão percebe que pode ir ter lá, acabará por sentir um terrível ódio contra Deus. Há no Evangelho algumas referências a este assunto, mas é que os publicanos ouviam falar nisso e lhes fazia bem. Nosso meninão, pelo contrário, é emancipado e se revoltaria. Deixemos o assunto para mais tarde, será mais prudente.

Tudo isso quanto ao modo de enunciar a doutrina. Quanto ao modo de aplicá-la, as concessões vão ainda mais longe…

O que nos ensina a este respeito Aquele que é, por excelência, a Luz brilhando nas trevas?

Por seu exemplo e por suas palavras, Nosso Senhor nos ensina, antes de tudo, que é preciso nunca silenciar a verdade; que cumpre proclamá-la inteira, ainda que nossos ouvintes não nos aplaudam, ainda mesmo que nos queiram lapidar ou crucificar.

É preciso anunciá-la com palavras de ameaça ou com um semblante de indulgência e de bondade? Nosso Senhor fez uma e outra coisa, conforme o estado de alma daqueles a quem Se dirigia.

Também nós, para sermos luz neste mundo de trevas, não havemos de renunciar às apostrofes candentes e ao tom polêmico, nem às palavras de doçura e incitamento. Devemos pedir a Nosso Senhor que nos dê o discernimento necessário para fazer uma e outra coisa no momento oportuno.

Santos houve que fizeram principalmente uma ou outra coisa. Não houve um só Santo que jamais desse prova de severidade, ou jamais desse prova de suavidade. Cada qual agiu segundo nele soprava o Espírito Santo, e por foram canonizados pela Igreja.

Cada um de nós proceda segundo o espírito que tem, com uma ressalva, porém, e esta muito importante: na aplicação dos princípios jamais se pode ceder. Sorrindo ou increpando, diga que o mal é mal e o bem é bem. E não deixe de estimular, incentivar, pregar o bem em todos os seus aspectos. Agir de outro modo não é trabalhar para propagar a luz, é velá-la, é querer extingui-la.

Esta é a lição que nos deixou Aquele cujo nascimento neste mês celebramos genuflexos.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (extraído de conferência)

1) Cf. Catolicismo, n. 36.

2) Jo 1, 5.

3) Introito da Missa da Aurora (Is. 9, 2. 6; Lc 1,33).

Onde há lugar para todos…

Quis a Providência que o Menino Jesus recebesse a visita de três sábios — que, segundo uma venerável tradição, eram também reis — e alguns pastores. Dois extremos da escala humana de valores. A graça divina, que chamou para junto da Sagrada Família os Reis Magos, do fundo de seus longínquos países, chamou também os pastores, do fundo de sua ignorância.

E como se apresentaram eles? Bem caracteristicamente como eram: os pastores lá foram levando seu gado, sem disfarçar sua condição humilde; os Magos se apresentaram com seus tesouros, ouro, incenso e mirra, sem procurar ocultar sua grandeza. A piedade cristã, expressa numa abundante iconografia, entendeu durante séculos, que os Reis Magos se dirigiram a Belém com todas as suas insígnias.

Quer isto dizer que ao pé do Menino-Deus cada qual se deve apresentar tal como é, sem disfarces nem atenuações, pois há lugar para todos: grandes e pequenos, fortes e fracos, sábios e ignorantes.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de “Catolicismo”, dezembro de 1955)

Meditação sobre o Natal – II

Quais seriam nossas emoções se, logo após o nascimento de Jesus, entrássemos na gruta de Belém e contemplássemos a majestade, a acessibilidade e a misericórdia do Menino-Deus, bem como o ambiente que O cercava? Eis o tema do segundo estilo de meditação explanado por Dr. Plinio.

Passarei a fazer uma meditação inteiramente diversa da anterior(1) para, depois, efetuarmos a comparação.

Suponhamos que cada um de nós tivesse a alegria de entrar na gruta de Belém e ver Nossa Senhora com São José, o Menino Jesus, os pastores, o boi e o asno. E visse também os Reis Magos — entre os quais o Rei negro Baltazar — vindos do Oriente, se aproximando com suas caravanas, seus cortejos, a estrela; adoram o Menino-Deus e Lhe oferecem ouro, incenso e mirra.

Como imaginariam a cena? Sob que aspecto ela lhes causaria mais alegria na alma e por onde se sentiriam mais próximos do Divino Infante?

N’Ele, poderíamos considerar, entre muitos outros pontos, a infinita grandeza, a infinita acessibilidade, e também o infinito amor.

Infinita grandeza do Menino Jesus

Quanto a sua infinita grandeza, podemos imaginar uma gruta enorme, alta, quase como uma catedral, que não tivesse evidentemente uma arquitetura definida, mas suas pedras nos fizessem pressentir vagamente as ogivas de uma catedral da futura Idade Média. O berço do Menino Jesus estaria colocado bem no ponto majestoso da encruzilhada das várias naves laterais, naturais, e uma luz celeste toda de ouro pairaria sobre Ele naquele momento.

O Divino Infante, embora deitado em seu presepe e sendo uma criança, é o Rei de toda majestade e toda glória, o Criador do Céu e da Terra, Deus encarnado e feito Homem, tendo desde o primeiro instante de seu ser — portando já no ventre de Nossa Senhora —, mais grandeza, mais manifestação de força e de poder do que todos os homens que houve na Terra, incomparavelmente mais inteligente do que São Tomás de Aquino, mais poderoso do que Carlos Magno, Napoleão, Alexandre; Ele sabia todas as coisas extraordinariamente mais do que qualquer cientista moderno, e na fisionomia sempre variável do Menino Jesus, de vez em quando esta majestade feita de sabedoria, de santidade, de ciência, de poder, haveria de aparecer.

Então, imaginem que encontrassem isso misteriosamente expresso na fisionomia deste Menino. Que Ele, às vezes, se movesse e no seu movimento se percebesse um rei; abrisse os olhos e o fulgor de seu olhar tivesse uma profundidade tal que se sentisse n’Ele um grande sábio; haveria uma atmosfera circundando-O e que nimbasse de virtude todos aqueles que d’Ele se acercassem; algo puríssimo, de tal maneira que as pessoas não poderiam aproximar-se dali sem antes pedir perdão por seus pecados, mas ao mesmo tempo atraídas e incentivadas a se corrigirem de suas faltas, pela santidade que emanava daquele local.

Majestade de Nossa Senhora

E aos pés d’Ele Nossa Senhora, Ela também como uma verdadeira Rainha — a Virgem Santíssima era e é Rainha —, com uma dignidade e imponência, que não precisava de roupas nobres nem de tecidos de grande qualidade para se fazer valer.

Todos sabem que Santa Teresinha do Menino Jesus era tão imponente que seu pai a chamava “minha pequena rainha”. O jardineiro do Carmelo, no processo de canonização, contou uma vez que viu uma freira, que estava de costas, fazer tal coisa e era Santa Teresinha. Então o advogado do diabo perguntou: “Mas como o senhor sabia que esta freira, estando ela de costas, era Santa Teresinha?” A resposta foi: “Pela majestade da santa, porque ninguém possuía a majestade que ela teve”.

Podemos imaginar Nossa Senhora majestosíssima, transcendente, puríssima, rezando para o Menino Jesus, os Anjos invisivelmente cantando, em volta, canções de glorificação, e toda a atmosfera saturada de valores tais que se diria haver, naquela pobreza e miséria, um ambiente de corte.

E nós nos aproximando do presépio, sentindo a grandeza do Menino Deus e, como contrarrevolucionários que somos, amando n’Ele tudo quanto é nobre, belo, santo, intransigente e combativo; adorando aquele Menino que, ao mesmo tempo, atrai junto a Si todas as formas de grandeza que dimanam, são reflexos e uma participação na santidade d’Ele, e rechaça para longe de Si o pecado, o erro, a desordem, o caos, a Revolução, que nem sequer ousa levantar os olhos para aquela cena magnífica em que a ordem, a hierarquia, a pompa e o esplendor dominam completamente.

Acessibilidade do Divino Infante

Consideremos agora outro aspecto: o Menino Jesus imensamente acessível.

Suponhamos que esse Rei tão cheio de majestade, em certo momento abrisse os olhos para nós e notássemos — mas cada um deve imaginar-se visto por Ele — que o olhar puríssimo, inteligentíssimo, lucidíssimo do Divino Infante penetra em nossos olhos profundamente, vê o mais fundo de nossos defeitos bem como o melhor de nossas qualidades; e naquele momento toca a nossa alma, como tocou, trinta e três anos depois, a São Pedro, e nos dá uma tristeza profunda de nossos pecados.

Conta o Evangelho que o olhar de Nosso Senhor para São Pedro foi tal que este se retirou e chorou amargamente. Então, imaginemos o olhar d’Ele nos dando o horror de nossos defeitos e nos mostrando seu amor às nossas qualidades. E também o seu amor à nossa condição de criatura feita por Ele; apesar de nossos defeitos, fomos criados por Ele e destinados a um grau de santidade e perfeição, que o Menino Jesus conhece e ama enquanto podendo existir em nós.

De maneira que, embora pecadores, quando menos esperássemos, por um rogo amável de Nossa Senhora, Ele sorrisse para nós e, apesar de toda a sua majestade, sentíssemos as distâncias desaparecerem, o perdão que invade a nossa alma, e algo nos atraísse de tal forma que caminhássemos para junto do Menino-Deus, e Ele afetuosamente nos abraçasse e pronunciasse o nosso nome: “Fulano, Eu te quis e te quero tanto, desejo para ti tantas coisas, perdoo-te tanto, não pense mais nos teus pecados, daqui por diante pensa apenas em servir-Me. E em todas as ocasiões de tua vida, quando tiveres alguma dúvida, lembra-te dessa condescendência, dessa amabilidade, desse beneplácito e recorre a Mim por meio de minha Mãe, e Eu te atenderei, serei o teu amparo, a tua força que há de levar-te ao Céu para ali reinares ao meu lado por toda a eternidade”.

Sua compaixão sem limites

Imaginemos a misericórdia do Menino Jesus, olhando não só para o que há de bom e mau em nós, mas também para nossa tristeza, para a condição miserável de todo homem na Terra, para o sofrimento que cada um de nós traz em si, para o sofrimento passado e o sofrimento futuro que Ele conhece. Contemplando inclusive o risco que nossa alma corre de ir para o Inferno, para os tormentos eternos; todo homem, enquanto vive nesta terra, está exposto a ir para o Inferno. E o Divino Infante olhando para o Purgatório e os tormentos que ali nos aguardam, se não formos inteiramente fiéis. Então é um olhar de compaixão, de pena, de uma participação profunda na nossa dor; e um desejo de removê-la em toda medida que for possível, de nos dar forças para suportá-la na medida em que a dor for necessária para nos santificarmos.

Então, notarmos n’Ele aquilo que consola tanto o homem, e que Jesus não teve quando chegou sua hora de sofrer. Qualquer pessoa, no momento da dor — está na natureza humana e é reto —, se consola em ter alguém que sinta pena dela, pois a compaixão divide o sofrimento. O homem é feito de tal maneira que, quando ele está alegre e comunica a sua alegria, esta se duplica, quando está triste e comunica a sua tristeza, esta se divide. Assim também, e a “fortiori”, passa-se conosco em relação ao Menino Jesus.

Então, em todos os sofrimentos de nossa vida, quando a taça para beber for muito amarga, repetiríamos por meio de Maria Santíssima a oração de Nosso Senhor: “Meu Pai, se for possível afaste-se de Mim este cálice, mas faça-se a vossa vontade e não a minha”(2). Quer dizer, pediríamos, em todos os momentos, que a dor passasse, mas se fosse a vontade d’Ele a dor viesse sobre nós. Assim, durante nossos sofrimentos, teríamos compaixão d’Ele, como se nos dissesse: “Meu filho, Eu sofro contigo. Vamos padecer juntos porque sofri por ti, e há de chegar o momento em que tu participarás eternamente da minha alegria”. E o olhar compassível de Jesus não nos abandonará um momento em nossa existência.

Três presépios representando cada um desses aspectos

Então, ao fazermos essa meditação durante todo o tempo de Natal, ao longo das vicissitudes da existência quotidiana, devemos nos lembrar destes três pontos: a majestade infinita, a acessibilidade infinita, e a compaixão sem limites do Menino Jesus em relação a nós. E ter a recordação sensível, porque procuraríamos compor um pouco o quadro.

Alguém me diria: “Mas Dr. Plinio, o presepe não poderia ter esses três aspectos ao mesmo tempo”. Não é verdade. Em Nosso Senhor todas as perfeições, todos os estados de alma perfeitos coexistiam na sua natureza humana em graus e modos diversos, conforme as circunstâncias da vida. Portanto, Ele era cheio de majestade, de acessibilidade e de compaixão para com os homens desde o momento em que entrou na Terra. E é natural que, apesar de ser Menino, conforme as almas que d’Ele se acercassem, ora uma qualidade, ora outra, aparecesse.

Seria até muito bonito que numa igreja, em vez de um presépio, houvesse em três altares diferentes três presépios, em que as figuras e toda a ambientação representassem, em cada altar, um desses aspectos para facilitar às almas a meditação sobre esses pontos como, aliás, sobre outros que também se poderiam considerar.

Como pintar o olhar do Menino-Deus?

Aqui estaria um outro tipo de meditação sobre o Santo Natal. O primeiro é um estilo de meditação que chamaríamos mais teórico, mais doutrinário; o segundo seria uma recomposição mais sensível, tocando-nos mais de perto.

Na segunda meditação, há lógica também, pois sem lógica não há meditação; mas a parte do embebimento da fantasia, da sensibilidade para preparar o jogo da lógica é muito grande. A primeira é muito mais seca. Aí está a diferença entre as duas escolas. A geração posterior à minha é muito apetente de embebimento e de preparação desta natureza, conforme a segunda meditação.

Como eu gostaria de ter em nosso Movimento pintores ou desenhistas que soubessem, por exemplo, pintar três presépios de acordo com esta concepção, ostentando toda a grandeza, ou toda a acessibilidade, afabilidade, ou toda a compaixão de Nosso Senhor! Como seria bonito! Mas o difícil é que seria preciso saber pintar aquilo que é o centro do presépio: um Menino recém-nascido que, sem perder as características de menino, tivesse tudo isso e, sobretudo, um olhar onde essas perfeições se refletissem. Como pintar um olhar infantil capaz de dizer tudo isso? Antes de ser pintor, que psicólogo o artista precisa ser para imaginar este olhar! E, depois de imaginado, como pintar? Este seria o pintor que iniciaria nossa escola de pintura, porque tenho a impressão de que, no pintar expressões de olhar, nossa escola estaria largamente representada.

”Minha alma é eminentemente inaciana”

Essa meditação sobre o Santo Natal conduz à seguinte convicção: convém fazer um estilo e outro, porque há diversas vias espirituais, e não devemos nos fixar só num estilo. Vale a pena alternarmos, meditando ora de um modo, ora de outro, para atender aos anseios de todas as almas.

Se me perguntassem o que me impressiona mais, eu responderia que, embora tendo composto o segundo tipo, me impressiona mais o primeiro, talvez por ser mais próprio de minha geração ou do meu feitio de espírito. Aquilo que é inteiramente racional e que eu posso ver amarrado por um raciocínio inexorável, me enche e me basta. Compreendo que outros não sejam assim, a tal ponto que tomei o trabalho de compor, para uso de outros, uma meditação diferente, e dou o meu tempo por muito bem empregado.

Nessa opinião transparece a seguinte posição: na Igreja há várias escolas espirituais, todas aprovadas por ela. Em geral, inauguradas e seguidas por santos, essas escolas são esplêndidas, e cada um deve seguir o que sua alma lhe pede. Minha alma é eminentemente inaciana e o sistema de Santo Inácio me encanta. O raciocínio simples, claro, límpido, que conclui e que arrasta, e a respeito do qual não há tergiversação nem sofisma, me deixa entusiasmado! Sejamos cada um como Deus o fez para a glória d’Ele.

Que Nossa Senhora nos ajude para que possamos tirar proveito de qualquer dessas meditações, de maneira a compreendermos cada vez mais a Ela e ao Menino Jesus.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/12/1973)

1) Revista “Dr. Plinio”, n. 189, p. 20-25.
2) Cf. Mc 14, 36.