Madonna del Miracolo – O triunfo da Mãe de Deus em nossas almas

Num período particularmente significativo de sua gesta apostólica, Dr. Plinio se viu objeto de grandes consolações e favores celestiais, ao venerar a imagem de Maria Santissima del Miracolo, em Roma, na igreja de Sant’Andrea delle Fratte. Ao evocar o célebre milagre que resultou na conversão do judeu Ratisbonne — em 20 de janeiro de 1842 —, recorda-se ele uma vez mais daquela efusão de graças recebidas junto ao tocante quadro da excelsa Mãe de Deus.

Há em Roma uma igreja chamada Sant’Andrea delle Fratte(1), pertencente aos frades menores de São Francisco de Paula. Devido à nossa estada na Cidade Eterna durante a primeira fase do Concílio Vaticano II, de outubro a dezembro de 1962, íamos quase todos os dias nessa igreja. Além de se situar próximo ao local onde nos hospedávamos, esse templo nos atraía por uma de suas imagens, a da Madonna del Miracolo, à qual tributávamos particular devoção.

Miracolo é uma palavra italiana que significa milagre. De fato, naquele lugar se realizou um milagre insigne cujo teor já tivemos ocasião de comentar(2), pelo que o relembro apenas de modo sucinto.

Rothschild e Ratisbonne

No século XIX, a família dos Rothschild iniciou sua ascensão na França, no período em que o regime napoleônico se encontrava no auge de seu poder. Os membros dessa família possuíam imensa riqueza, e a celebridade da estirpe baseava-se preponderantemente no fator financeiro.

Como sói acontecer, as famílias abastadas constituíam seu círculo próprio, onde se frequentavam umas às outras, casavam seus filhos, etc. E sucedeu que uma Rothschild uniu-se em matrimônio a um membro da família Ratisbonne, também de origem hebreia. Como se sabe, não raro os israelitas adotam sobrenomes de cidades, e o desse personagem é a tradução do latim para o francês do nome da pitoresca cidade bávara de Regensburg.

O casal recém-formado, herdando o prestígio granjeado pelo importante patrimônio dos Rothschild, introduziu-se na alta nobreza da Europa, a qual ainda gozava de muita fartura e ocupava a primeira categoria social do Velho Continente. Assim, viviam no luxo, ostentavam roupas de célebres estilistas, equipagens magníficas e tudo quanto havia de melhor.

Conversão espetacular

No grêmio dessa nova linhagem surgiria Afonso Tobias Ratisbonne, francês, bastante inclinado ao ceticismo. Tornou-se influente banqueiro, afeito à vida mundana e apreciador de viagens pela Europa. Quando realizava uma dessas excursões, em 1842, passou por Roma e, por obrigações familiares, teve de visitar o Barão Teodoro de Bussières, secretário e amigo íntimo do embaixador da França em Roma. Esta não era ainda a capital da Itália, uma vez que a Península não se encontrava unificada, mas dividida em diversos reinos. Um deles, os Estados Pontifícios, dos quais o Papa era o soberano e a Cidade Eterna, a sua metrópole.

O barão se interessou pela pessoa de Afonso e pediu que este lhe contasse sobre seus passeios no centro da Cristandade. Durante a conversa, esforçou-se por incutir na alma do Ratisbonne sentimentos que o levassem a se converter e a aceitar a Fé católica. Não obtendo sucesso, insistiu que o visitante ao menos concordasse em portar uma Medalha Milagrosa, oferecida como presente. Um tanto relutante, Afonso condescendeu, e os dois se despediram, quites a se verem de novo nos próximos dias.

Ora, tendo falecido de modo inesperado o embaixador francês, o Barão de Bussières combinou com Ratisbonne um encontro na Igreja de Sant’Andrea delle Fratte, onde providenciaria as exéquias para o defunto.

Na hora aprazada, Afonso compareceu, e enquanto o barão se achava na sacristia para tratar dos detalhes da Missa, começou a percorrer o interior do templo, detendo-se aqui e ali na consideração das imagens, dos ornamentos, dos belos mármores, etc. Terminadas as tratativas, o Barão de Bussières retornou à igreja e, surpreso, avistou o seu amigo judeu ajoelhado diante de um altar próximo à entrada. Ratisbonne, transfigurado, rezava.

Com intensa emoção, Afonso revelou-lhe:
— Você não sabe o que aconteceu! A Mãe de Jesus Cristo me apareceu aqui!

E passou a descrever Nossa Senhora, tal qual o fizera Santa Catarina Labouré, a quem a Rainha do Céu aparecera 12 anos antes na Capela da Rue du Bac, em Paris. Claro, alheio às coisas da religião Católica, Ratisbonne não sabia daquele acontecimento nem conhecia as narrações feitas por Santa Catarina. Circunstância que conferia ainda maior autenticidade à revelação de que fora objeto.

Segundo suas indicações, pintou-se um quadro com a imagem de Nossa Senhora, a qual passou a ser venerada como Maria Santissima del Miracolo.

Após este prodigioso episódio, tocado no fundo da alma pela graça divina, Afonso Tobias Ratisbonne se converteu, tornou-se padre e, ao lado de seu irmão (fundador da Congregação de Nossa Senhora de Sion), também convertido e ordenado sacerdote, dedicou-se ao apostolado junto aos judeus.

Sorriso que cura todas as dores

Embora sem renomado valor artístico, essa pintura é muito bonita e expressiva, e grande é o afluxo de fiéis a venerá-la, posto que o movimento de piedade na igreja é também intenso, com diversas missas celebradas ao longo do dia.

Como já disse, lá estive várias vezes para assistir a Missa, comungar e rezar diante do quadro. Eu ficava verdadeiramente maravilhado diante da pintura. No meu espírito vincava-se a impressão de que o sorriso de Nossa Senhora aliviava todas as dificuldades daquele dia e me concedia alento para o seguinte.

Pedir a entrada triunfal de Maria em nossas almas

Ao considerar esse lindo episódio da conversão do Ratisbonne, alguém poderia pensar não haver nada de extraordinário nessa mudança de vida: pois se a própria Mãe de Deus apareceu ao homem, tornou-se patente para ele a veracidade da Religião Católica. Outra coisa não lhe restava senão se consagrar inteiramente a esse credo.

Ora, as coisas não se verificam assim tão simplesmente com a miséria humana. Elas se passam de um modo bem diverso. O homem poderia ter sido beneficiado pelo milagre e, apesar disso, manifestar um fervor muito fraco e pequeno.

No caso de Ratisbonne, vê-se que Nossa Senhora venceu imensas e difíceis barreiras: tratava-se de uma pessoa mundana, imbuída de toda espécie de preconceitos contra a Religião Católica. Porém, a Santíssima Virgem conseguiu tocar sua alma, e o maior milagre não foi o de ter aparecido a ele, e sim o de tê-lo convertido.

Por assim dizer, Nossa Senhora penetrou na alma dele e a mudou, transformou-a completamente. E Afonso correspondeu a essa graça, fez-se católico ardoroso e padre exemplar.

Percebe-se por esse fato o quanto vale a entrada triunfal de Nossa Senhora nas almas. E, portanto, na festa da Madonna del Miracolo, devemos pedir a Ela que penetre em nossas almas e faça ali o seu reino, vencendo os obstáculos que possamos Lhe opor. De maneira tal que Ela seja verdadeiramente a Senhora nossa, e nós, seus verdadeiros escravos.

 

1) Santo André delle Fratte: Fratte, plural no italiano de fratta, porção de campo geralmente utilizada como pasto para rebanhos de ovelhas.
2) Cf. “Dr. Plinio” número 46, janeiro de 2000.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Esperança dos culpados

Erraria quem fizesse o seguinte raciocínio: “Eu tenho determinada culpa, mas também possuo algo de bom, e tomando isto em consideração, Nossa Senhora terá pena de mim”.

O certo seria pensar: “Nossa Senhora é o Refúgio, a Esperança de todos os culpados, por mais miserável e mais culpado que se possa ser”.

A principal razão pela qual Nossa Senhora nos socorre não é haver em nós algo de bom, mas sim pela bondade que existe n’Ela. É por isso que Maria Santíssima tem pena de nós e se digna atender nossos pedidos.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 11/9/1969)
Revista Dr Plinio 154 – Janeiro de 2011

Como um par de asas puríssimas

Peçamos a Nossa Senhora muito, e sempre. Sobretudo devemos pedir, por intermédio d’Ela, que Deus nos envie novamente em abundância o Espírito Santo, para que as coisas sejam novamente criadas, e purificada por uma renovação a face da Terra.

Diz Dante, na Divina Comédia, que rezar sem o patrocínio de Nossa Senhora é a mesma coisa que querer voar sem asas. Confiemos a Nossa Senhora este anelo em que vai todo o nosso coração. As mãos de Maria serão para nossa prece um par de asas puríssimas por meio das quais chegará certamente ao trono de Deus.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído do “Legionário” de 23/5/1943)

Vínculo inestimável

Nossa Senhora está para seu Divino Filho assim como, no ostensório, o cristal posto diante da Sagrada Hóstia está para o Santíssimo. Vemos Nosso Senhor através desse cristal, sem atentar para o fato de que esse material se interpõe entre nosso olhar e Jesus Eucarístico.

De igual modo, não podemos separar a devoção a Nossa Senhora de Nosso Senhor. Um dos comentários centrais  que nos ocorre a propósito desse vínculo indissociável é que o prêmio excede a toda linguagem. Ao amor de seus devotos, Nossa Senhora retribui com aquilo que tem de melhor: o próprio Cristo Jesus, a Sabedoria Eterna e Encarnada, a nossa recompensa demasiadamente
grande.

Plinio Corrêa de Oliveira

Insondável solicitude

De uma perfeição, santidade e formosura incomparáveis, Nossa Senhora considera a cada um de nós, seus filhos, como enfermos de uma doença chamada pecado original, e tem para conosco solicitudes insondavelmente maiores do que manifesta uma mãe terrena por seu filho doente.

Ela se compadece de nossos defeitos, e nos obtém as graças necessárias para vencê-los, para nos curar.

A voz nos some na laringe, e nossos olhos perdem todas as outras coisas de vista, ao pensarmos n’Aquela que é nossa vida, doçura e esperança…

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 30/7/1994)

Oração para combater as afeições meramente terrenas

Minha Mãe e Senhora minha, quão grande foi o elogio que de Vós fez o Evangelho ao afirmar que — depois das inefáveis emoções da Anunciação, da Natividade, da Visita dos Reis Magos e da Apresentação no Templo — consideráveis todos estes fatos meditando-os em vosso Coração. Assim, nas emoções mais intensas que podíeis ter, Vós meditáveis.

Eram emoções indizivelmente ordenadas, e por isto em nada empanaram, antes favoreceram o exercício incomparavelmente lúcido de vossa meditação. Ordenadas, não apenas porque vossa natureza sem mancha não tinha a menor desordem, mas também porque vossas emoções resultavam da Fé e eram todas embebidas de Esperança e Caridade.

Olhai, suplico-Vos, para este filho tão diferente de Vós. Concebido com as desordens do pecado, agravado por toda espécie de infidelidades, ele nem de longe é tão sobrenatural quanto quisera, e por isso encontra-se tiranizado pelas impressões, sensações e tentações.

Fazei com que uma graça, vinda do mais íntimo de vosso Imaculado Coração, toque a alma deste vosso filho, separando-a dos aspectos terrenos, orientando-a exclusivamente para Vós e extinguindo, assim, os ardores das paixões que tanto a nublam, perturbam e tiranizam. Amém.

(Composta por Dr. Plinio em outubro de 1966)

A grandeza da ordem do universo

Exemplificando com obras de arte de Velásquez e Van Dyck, e, no campo da História, com um detalhe de um fato ocorrido logo após a queda da Bastilha, Dr. Plinio mostra que, de um pormenor, pode-se tirar conclusões que levam às mais altas cogitações  a respeito da ordem do universo.

 

O universo é incomensurável! Como abarcá-lo? A ordem dele é ainda mais incomensurável do que ele. Porque se é verdade que o universo ocupa tão grande espaço, em cada ponto incidem nele e entram em harmonia milhares de elementos de ordem.

Pormenores de alguns quadros artísticos…

A ordem não é senão a disposição das coisas para o seu fim e de acordo com a natureza que têm. Mas para essa disposição entram em cada coisa tantos elementos, e todos eles precisando entrar em ordem, que se poderia dizer facilmente que há milhões de ordens para uma só ordem do universo. Nesse sentido poder-se-ia afirmar que há milhões de ordenações para um só ser.

Por exemplo, considerem a mão humana: quanto se pode dizer a respeito da ordenação dos vários dedos com a mão, dos dedos entre si!

Eu vi uma vez um álbum de pintura que reproduzia um quadro de Velásquez, de uma das Infantas, e retratava a princesa com uma saia-balão e todos os demais adornos. Mas o álbum estampava ao lado a fotografia só da parte do quadro, que representava a mão. E era uma mão alva, muito fina, que simplesmente fazia uma coisa: carregava um lenço, um longo lenço, espantosamente longo para os nossos hábitos de hoje, feito de uma espécie de tule de seda ligeiramente rosado. A mão da princesa se apoiava sobre a armação de sua própria saia-balão, e ali segurava o lenço que pendia como que ao acaso. Velásquez, grandíssimo pintor, fez de um pormenor de sua obra um quadro.

Portanto, interessei-me em ir decompondo assim vários quadros, analisando tal pormenor e tal outro. Se se emoldurasse só aquilo, que expressão daria?

Vê-se que todo grande pintor em cada pormenor de suas pinturas faz um quadro. E que verdadeiramente um quadro de boa categoria é um mosaico de quadros.

Uma das obras de arte que mais expressam isso é a gravura que representa o Rei Carlos I da Inglaterra, de Van Dyck. A posição de sua mão, apoiando-se ligeiramente sobre um castão, e o cotovelo do braço esquerdo… Eu já disse que é um arquicotovelo. Não conheço um cotovelo mais nobremente pontudo, mais altaneiro e mais leve do que aquele. É uma coisa maravilhosa!

Um pintor soube tirar isto de um cotovelo a respeito do qual um médico, um anatomista, um fisiologista diria cem outras coisas. Por quê? Porque num elemento só do corpo de um homem — o qual é um elemento da humanidade, o qual é um elemento rex, o elemento rei de toda a ordem do universo —, só a respeito disso se poderia escrever uma biblioteca.

…e também da História

Têm-se também uma noção disso quando se analisam os pormenores da História. Estudamos a História nas suas linhas gerais e o significado dos fatos apresentados. Mas depois, quando começamos a analisar os grandes povos, os grandes acontecimentos históricos, percebemos que os pormenores interessam muito; cada um deles acaba constituindo como que uma história especial.

Certas ondas, ao arrebentarem na praia, como que se voltam para trás e caem. Assim também são os acontecimentos históricos. Eles parecem nascer de quem os produziu, mas, aprofundando em seu estudo, vemos que foram causados por aqueles que eles vitimaram.

De um pequeno pormenor, podem-se tirar conclusões que levam às mais altas cogitações da História, e que esclarecem mais um aspecto num universo de fatos como a queda da Bastilha, a qual é um ponto do universo de acontecimentos que é a Revolução Francesa; a qual, por sua vez, é um ponto desse universo de catástrofes que são as Três Revoluções(1); e delas pode-se subir até à Redenção do gênero humano, à obra da Salvação.

Vê-se como a partir de um pequeno ponto as correlações se multiplicam e se avolumam. Às vezes, são detalhes ainda menores do que este que passo a narrar. 

Reação de Luís XVI face à notícia de que a Bastilha fora tomada

Li em certa ocasião que, no dia da queda da Bastilha, o Palácio de Versailles passou as horas em completa tranquilidade. Ninguém mandou avisar o que estava acontecendo em Paris. Nota-se o relaxamento, o abandono do senso de conservação, do senso da autoridade. O Rei Luís XVI foi dormir na hora costumeira e, mais ou menos à meia-noite, chegaram os mensageiros a Versailles, procedentes de Paris, trazendo as notícias do que tinha sucedido durante o dia.

Só então perceberam a gravidade do ocorrido, e os Ministros se perguntaram se era o caso de acordar o Rei. E esbarraram diante de um problema de protocolo, de etiqueta. Não havia precedentes de alguém acordar o monarca durante a noite. Afinal, o Duque de La Rochefoucauld entrou no quarto do Rei. Tudo isso eu já conhecia, mas existe um pormenor que até então me havia passado despercebido.

Naquele tempo, determinadas pessoas dormiam em camas de aparato, as quais tinham quatro colunas e se corria uma cortina, que formava um pequeno quarto dentro do quarto de dormir.

Ele abriu toda a cortina, acordou o Rei e comunicou:

— Sire, estamos recebendo notícias de Paris, houve tal coisa assim etc.

E Luís XVI, estremunhando de sono, disse:

— “C’est donc une révolte”?

— “Non Sire, c’est une révolution”(2).

Mas há um pormenor que eu ignorava dentro disso — porque a cena é conhecidíssima. O Duque abriu inteiramente as cortinas da cama do Rei, querendo dizer: “Eu espero que vós vos levanteis e tomeis uma atitude!” E esta esperança manifestada por La Rochefoucauld exprime bem o ambiente, a carga psicológica de como foi dada a notícia, e também o grau de modorra de Luís XVI. E o característico da cena ganha com um pequeno pormenor.

O homem vale mais que o universo material

Sendo assim a História, com uma maior ou menor abertura de cortina, imagine-se como é todo o universo!

Um grão de areia examinado no microscópio é um pequeno cosmo. E sobre ele se poderia fazer uma enciclopédia. Quanto mais o universo, o qual, entretanto, na presença de Deus não é senão um grão de areia!

Observemos outro aspecto. A Terra é como um grão de areia em relação ao universo, e este também o seria para os espaços incriados que o devem cercar. Entretanto, neste grão de areia, ou seja, a Terra, Deus fez o trono do rei de tudo, que é o homem. Pôs aqui o Paraíso e começou a conviver com o homem amorosamente.

Percebe-se, portanto, a reversibilidade tremenda. Como o universo é pequeno! Como a Terra é pequena! Como o homem é pequeno! Este é um pouco de lama que o Criador modelou e depois nele soprou o espírito. Mas como aquela lama é uma grande coisa para que Deus tenha Se servido dela para criar o homem. Ó lama histórica, bem-aventurada e feliz para que nela o Altíssimo se dignasse soprar incutindo o espírito! Como nesse instante essa lama ficou valendo mais do que o universo inteiro!

Primeiro, porque este boneco foi modelado por Deus. Em segundo lugar, porque neste molde Ele insuflou um espírito. A lama que se faz carne e começa a andar; o homem que recebe um espírito e inicia a pensar!

Eu me comprazo, às vezes, em pensar qual foi o primeiro instante de Adão. Deus manifestou-Se a ele no primeiro momento, ou só o fez mais tarde? Quando contemplou a Criação, que noção teve ele do Criador?

Somos tão egoístas que, quando imaginamos Adão começando a viver, pensamos que ele, tendo conhecimento de si e do que o cercava, se perguntava se era gostoso, agradável. Infelizmente, é o nosso primeiro movimento.

Mas esses são os pensamentos do homem moderno. A verdadeira pergunta é esta: “Que reflexo de Deus ele captou no primeiro momento?” Mas… aconteceu tudo o que sabemos.

Deus elevou tanto o homem, que o Verbo se encarnou e habitou entre nós

No novo Paraíso de Deus, que é Nossa Senhora, o Divino Espírito Santo, da carne imaculada da Virgem, fez formar-se a humanidade santíssima de Nosso Senhor Jesus Cristo. E no momento em que foi concebido, Ele começou a pensar.

Qual foi o primeiro momento da humanidade santíssima de Jesus com a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, unidas hipostaticamente? Como foram estas relações? Como foi a primeira adoração, o primeiro ato de amor? Como foi esta hora em que o Espírito Santo tornou-Se Esposo de Nossa Senhora e fez nascer Nosso Senhor Jesus Cristo? Quem pode cogitar essas coisas, tudo o que se passou nesse grão de poeira que é a Terra?

E o que se poderia perguntar quanto ao universo, se num grão de poeira cabe toda esta ordenação?

Certa vez assisti a uma palestra — não sei se o que se afirmava é inteiramente verdade — durante a qual o palestrante dizia que qualquer parcela de matéria é como um planeta em torno do qual gravitam — separados por distâncias que não percebemos, mas que a Ciência pode calcular — moléculas que são como planetas e representam pequenos universos. “Si non è vero, è bene trovato”(3). Estaria na verossimilhança das coisas que elas fossem assim.

Então, qual é esta ordem do universo, a inter-relação de todas as coisas? Consideremos que, na infinita sabedoria de Deus, cada grão de areia se identifica; Ele conhece a fundo o mundo, infinitamente mais do que nós podemos conhecer uns aos outros. De tal maneira que tudo está presente no Criador.  Ele fez tudo, conhece tudo e governa tudo. Ora, esta ordem assim é Deus que conhece.

O que se pode dizer a respeito disso? Vejamos algo que está nas excelências da obra feita por Deus. Ele eleva tanto esse grão de poeira, que o Verbo se encarnou e habitou entre nós, sofreu, morreu e salvou o gênero humano. 

Silêncio, murmúrio e exclamação

Se se pudesse dizer — a expressão não é corrente —: na História de Deus, que acontecimento extraordinário passa-se na Terra, a qual é então nobilitada ao máximo, ela que, entretanto, não é senão um grão de poeira! E parece ver-se a soberana sabedoria do Criador, olhando para isso, Ele mesmo encantado e exclamando: “De um lado tão pequeno e de outro tão grande. Que obra Eu faço!”

Esta diferença abismática, desconcertante, nós a encontramos em quase tudo o que marca a ordem do universo. Enormemente grande e enormemente pequeno; enormemente bondoso, enormemente justiceiro; enormemente autoritário, como um rei; mas de outro lado dando aos homens uma completa liberdade.

E assim são os contrastes da História. E nos extremos de todas as considerações encontramos o imenso. Na ponta de todas as “avenidas” está algo que, em linguagem humana, chamaríamos o monumental, mas que excede de fato imensamente o grandioso, o majestoso, o dominador, o ordenado e paira sobre tudo isso.

Mas nossa alma talvez pudesse ver como um pouco esmagadoras as perspectivas dessas avenidas, que são todas elas monumentais. Deus semeou essas simetrias com imprevistos. E há tanta fantasia, tanto inesperado no meio da ordem da Criação, que nos perguntamos: “Mas como isto é assim?” E no entrelaçar ordenadíssimo — se bem que muitas vezes fortuito dela — aparecem coisas que não entendemos. Quanta variedade, mas que monumental unidade!

Dir-se-ia que Deus quis ordenar as coisas de tal maneira que o homem, no último ponto de seu olhar, sempre divisa o grandioso. E se pelo sorriso do imprevisto, do leve, do gracioso, Deus o ajuda a andar rumo ao grandioso, Ele o convida, de surpresa em surpresa, a encontrar aquilo que deveria ter previsto, ou seja, o monumental, que arranca da alma humana exclamações.

Diante deste final, o homem tem três atitudes possíveis: o silêncio, o murmúrio e depois a exclamação, que correspondem a três formas de magnificência, de esplendor, a respeito de cada uma das quais eu poderia depois falar indefinidamente, de tal maneira tudo é grande, vasto, imenso; tudo nos fala da grandeza de Deus.

Se contemplarmos tudo isto com cuidado, encontraremos a ordem do universo.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/9/1981)

 

 

1) O termo “Três Revoluções” é aqui empregado no sentido que lhe dá Dr. Plinio em sua obra “Revolução e Contra-Revolução”, escrita em abril de 1959.

2) – Isso é uma revolta?

– Não Majestade, é uma revolução!

3) Do italiano: Se não é verdade, é bem achado.

Oração: “Mandai-me um raio de vossa luz”

Agradeço-Vos, ó Coração Sapiencial e Imaculado de Maria, por terdes me chamado para a excelsa condição de escravo vosso.

Entretanto, movido pelo desejo de levar até a sua mais alta plenitude essa condição, sinto os obstáculos que as infidelidades anteriores à minha vocação deixaram nesta minha alma tão misericordiosamente amada por Vós.

Entre esses está, sobretudo, o mau hábito de me voltar continuamente para assuntos banais e triviais, neles perdendo a atenção e o tempo concedidos por Vós para me enlevar com o que é nobre, digno e sublime, conforme a Vós, ó minha Mãe, que sois mais elevada do que os céus e mais sublime do que todos os coros de Anjos e Santos.

Sempre que suceder sentir-me atraído para as coisas banais e triviais, mandai-me um raio de vossa luz que reacenda em mim o desejo das coisas elevadas e celestes.

Ó Coração Sapiencial e Imaculado de Maria, fazei-me humilde, submisso, forte, nobre e  invencível, para que eu seja um perfeito escravo vosso, um enlevado e imbatível Apóstolo dos Últimos Tempos. Assim seja.

Plinio Corrêa de Oliveira (Oração composta em 1967)

Misericordiosos olhos que nos converte

 Quando menino, aos doze anos de idade, diante de uma imagem de Nossa Senhora Auxiliadora, venerada na Igreja  do Sagrado Coração de Jesus, Dr. Plinio foi “contemplado” pelo misericordioso e compassivo olhar de Maria Santíssima. A graça recebida nessa ocasião marcou profundamente sua vida.

Procurando fazer melhor explicitação a respeito de Nossa Senhora, recentemente encontrei uma figura que, embora muito simples, exprime bem meu pensamento. Não sei se ela, em Geometria, é inteiramente exata, pois, como todos sabem, meus conhecimentos nessa matéria são os mais sumários e desinteressados possíveis.

Imaginemos um poliedro, um corpo com várias faces — esta é a ideia muito primitiva que tenho de um poliedro —, bem construído. Se suas faces são triangulares, olhando-se para uma delas, se vê de certo modo as outras, pois todas têm a forma de um triângulo.

Assim é a Mãe de Deus, cuja perfeição é supereminente, e a Quem a Igreja vota o culto de hiperdulia. Considerando-se uma de suas altíssimas qualidades, percebe-se que Ela tem igualmente todas as outras virtudes de que uma criatura humana seja capaz. Conhecida, por exemplo, sua fé, se entende sua esperança e sua caridade. Vendo-se um lado do poliedro, se intui como são todos os outros, com suas dimensões. Se, conforme a Geometria, o poliedro não é exatamente assim, essa figura serve ao menos como metáfora.

Compaixão de Nossa Senhora

O que mais me tocou, primeiramente, em Nossa Senhora não foi tanto sua santidade virginal e régia, mas a compaixão com que Ela olha para quem não é santo, atendendo com pena e solícita em dar, em suma, uma misericórdia que tem as mesmas dimensões das outras qualidades. Quer dizer, inesgotável, clementíssima, pacientíssima, pronta a ajudar a qualquer momento, de modo inimaginável, sem nunca ter um suspiro de cansaço, de extenuação, de impaciência, mas sempre disposta não só a repetir sua bondade, mas a superar-se a Si própria. De maneira que feita tal misericórdia, embora mal correspondida, vem outra maior. Por assim dizer, nossos abismos vão atraindo sua luz. E quanto mais fugimos d’Ela, mais as graças por Ela obtidas se prolongam e se iluminam em nossa direção.

“Um olhar que me deixou calmo para a vida inteira”

Comparemos o miosótis com o sol. Entre nós e a Santíssima Virgem a diferença transcende ainda mais. Embora seja Ela mera criatura, sua ação poderia ser comparada com o efeito do olhar de Nosso Senhor para São Pedro, que O renegou durante a Paixão e o galo cantou. Quando o Redentor o fitou, ele se sentiu tomado por inteiro. O Apóstolo havia sido testemunha direta ou tivera repercussão imediata de tudo quanto os Evangelhos narram, e conhecia Nosso Senhor perfeitamente. Naquele olhar ele recebeu uma comunicação de tudo quanto sabia, mas com tal acento e esplendor, que derrubou sua ingratidão: “Et flevit amare — E chorou amargamente” (Lc 22, 62). A grande contrição de Pedro é um dos fatos mais bonitos da história dos santos.

Quando menino, tendo ido à Igreja do Coração de Jesus e, pela primeira vez, atinado com a imagem de Nossa Senhora Auxiliadora, não tive nenhuma visão, êxtase ou revelação. Mas me senti como se a imagem me olhasse, e tive conhecimento como que pessoal dessa bondade insondável que me envolvia totalmente. Ainda que eu quisesse fugir ou renegar, Ela me pegaria afetuosamente e diria: “Meu filho, volte de novo, aqui estou Eu!”, fazendo-me entender a profundidade dessa misericórdia.

Em primeiro lugar, fiquei calmo para a vida inteira. De fato, por maiores que sejam as dificuldades, se estamos envolvidos por essa misericórdia, podemos descansar; porque no fundo, para quem não é brutalmente insensível, mas se volta à Virgem Maria, Ela acaba arranjando todas as coisas. E, notem bem, uma das coisas que — dentro da indefinição de minha mentalidade de menino, entretanto eu tinha bem claro mais me enlevaram, foi que isso não era um privilégio para mim, mas era a atitude d’Ela diante de todos os homens.

Nossa Senhora poderia condescender em querer tratar-me como um privilegiado; porém, tive cognição do contrário: Para todas as pessoas que existiram e existem, todos os pecadores que estão nas ruas, nas casas, nos bondes, nos automóveis, etc., Ela é exatamente assim. Porém, muitos A rejeitam.

Tenho muita pena quando vejo alguém — um “enjolras”(1), por exemplo — nervoso e com problemas; penso: “Por que não posso comunicar-lhe um olhar como o que recebi de Nossa Senhora? Ele ficaria calmo para a vida inteira”.

Não consigo exprimir completamente como foi essa graça. Quando rezo o trecho do Magnificat “et misericórdia eius a progenie in progenies timentibus eum”, quer dizer, a misericórdia de Deus vai de geração em geração a todos os que O temem, sempre pensei: “É bem verdade, e por meio de Maria Santíssima. Ela é a misericórdia insaciável, que não acaba, mas se multiplica solícita, bondosa, tomando nossa dimensão e, por compaixão, faz-se até menor do que nós para nos acolher.”

Muitos pensam que eu sou uma fera, não tenho pena dos outros. Eles não têm ideia do que é essa cognição da misericórdia de Nossa Senhora, a qual penetrou em minha alma.

Misericórdia, pureza, fortaleza e sabedoria de Nossa Senhora

Considerando essa misericórdia, vem-nos à ideia a virginalidade de Maria Santíssima, porque essas noções, por assim dizer, se contêm umas nas outras. Ela é pura, com um grau de pureza indizível. Conhecida a misericórdia se conhece a pureza; é novamente a figura do poliedro. Qualquer castidade que se possa conceber não se compara à pureza d’Ela, toda feita não só de ausência de qualquer pendor para o mal, mas de um jorro de alma direta e exclusivamente para Deus, sem compromisso com mais nada e ninguém, um élan inteiro, de uma força, integridade, um desejo de Absoluto, que não se pode medir.

A pureza de Nossa Senhora, comparada à de outras pessoas, é como a alvura da neve em relação ao carvão.

E, na perspectiva em que me coloco, a pureza traz consigo a ideia da fortaleza, a qual não significa que nada quebra. É algo diferente: ante o que a Mãe de Deus, na sua pureza, decidiu, o resto do mundo se flecte pela força da vontade d’Ela; é um ímpeto, uma resolução, uma ausência de possibilidade de resistência de qualquer pessoa ou coisa que seja, uma soberania, um domínio numa tal dimensão que não há palavras humanas para exprimi-la.

Hoje se fala de obuses e outras armas. Na realidade, são simples caranguejolas inofensivas e ridículas em comparação com um ato de vontade, uma preferência da Santíssima Virgem.

Por sua vez, essa fortaleza, misericórdia e pureza trazem uma ideia de sua sabedoria lúcida, adamantina, dispositiva de todas as coisas, nunca tendo qualquer dúvida, mas somente certezas. Quer dizer, Ela conhece todas as coisas, suas inter-relações, e penetra até as entranhas de todo ser. O universo é tão grande! Pelo fato de Nossa Senhora compreender a ordem do universo e o seu ponto ápice, mais uma vez vislumbramos qual é a imensidade de sua pureza, fortaleza e misericórdia.

Essas são as virtudes que, de momento, mais me chamam a atenção quando me lembro do olhar de Nossa Senhora Auxiliadora na Igreja do Sagrado Coração de Jesus.

“Meu filho, Eu te quero”— “Minha Mãe, eu sou vosso”

Poder-se-ia perguntar-me: “O senhor recebeu esse olhar quando menino, com onze, doze anos; e nunca mais houve algo semelhante?”

Essa graça me foi dada de tal maneira que ficou como um sol para a vida inteira. O fato parece ter ocorrido ontem. A Santíssima Virgem como que me disse: “Meu filho, Eu te quero.” E eu declarei: “Minha Mãe, eu sou vosso.”

Alguém indagaria: “Mas nessas considerações onde o senhor coloca a Nosso Senhor Jesus Cristo?” Respondo: “Em tudo!” É a ideia que São Luís Grignion desenvolve muito: Nossa Senhora é o claustro, o oratório, o tabernáculo sagrado onde está o Redentor, e quanto mais estivermos próximos d’Ela, tanto mais estaremos próximos de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Imaginem Nossa Senhora no período em que, no seu corpo virginal, estava se formando o Menino Jesus, por ação do Espírito Santo, e que alguém quisesse adorar ao Messias, abstraindo d’Ela.

Seria uma estupidez, não teria sentido!

Sei que estarei mais unido a Nosso Senhor quanto mais estiver unido a Maria Santíssima.

Naturalmente, daí decorre que minha devoção a Ele passa por Ela. Creio que mesmo nas ocasiões de maior cansaço — espero, pelo menos —, quando faço referência à adoração devida a Nosso Senhor, logo depois falo de sua Mãe Virginal. É sistemático.

Dir-se-á: “Mas muitas vezes o senhor fala sobre Ela sem se referir a Ele.” Sim, porque Ele é infinitamente maior do que Ela. Assim, falando d’Ela, Ele está implicitamente contido. Mas, tratando a respeito d’Ele, Ela não está implicitamente contida. Por isso, queiram ou não queiram, gostem ou não gostem, se Nossa Senhora me ajudar, farei isto até morrer.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/1/1982)
Revista Dr Plinio 142 – Janeiro de 2010

1) Palavra afetuosa utilizada por Dr. Plinio para designar seus jovens discípulos, surgidos aproximadamente a partir de 1970. Havia neles acentuado grau de debilidade, se comparados com aqueles que os antecederam, os da “geração nova” (cf. “Dr. Plinio” número 81, p. 17).

Autêntica Mãe dos homens

Hoje, pretendo dizer alguma coisa sobre a doutrina que ele [Bem-aventurado Grignion de Montfort] expõe no seu Tratado da Verdadeira Devoção.

Penso não errar afirmando que, em essência, o Tratado não é senão a exposição de duas grandes verdades ensinadas pela Igreja, das quais ele extrai todas as conseqüências necessárias, e cuja luz ilumina toda a vida espiritual.

Estas duas verdades são a maternidade espiritual de Nossa Senhora em relação ao gênero humano, e a mediação universal de Maria Santíssima.

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Dada a espessa ignorância religiosa que reina entre nós, não falta quem suponha que a Igreja dá a Nossa Senhora o título de Mãe do gênero humano simplesmente para descrever de certo modo os sentimentos afetuosos e protetores que Ela experimenta em relação aos homens. Como estes sentimentos são próprios às mães, por analogia, Nossa Senhora seria também a nossa Mãe. E nós seríamos, em relação a Ela, pobres mendigos que, na sua generosidade, Ela protege como se fossem filhos.

A realidade, entretanto, é muito outra. Não somos filhos de Nossa Senhora simplesmente por uma adoção afetiva. Ela não é nossa Mãe apenas no terreno fictício ou na ordem sentimental, mas com toda a objetividade, na ordem verídica da vida sobrenatural.

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Antes do pecado original, nossos primeiros Pais, vivendo no Paraíso, foram criados por Deus para a glória celeste, que eles poderiam atingir transpondo os umbrais desta vida em um trânsito que não teria a tristeza tétrica da morte, mas o esplendor de uma glorificação.

O pecado original, entretanto, rompendo a amizade em que o gênero humano vivia com Deus, fechou aos homens a porta do Céu, e obstruiu o livre curso da graça de Deus para os homens. Em outros termos, com a punição do pecado original, os homens perderam qualquer direito ao Céu e à vida sobrenatural da graça.

Se bem que não fosse extinto, isto é, que perdesse a vida terrena, o gênero humano perdeu, pois, o direito à vida sobrenatural. E ele só poderia readquirir tal vida se apresentasse à Justiça divina uma expiação proporcionada à enormidade de seu pecado.

Não vem a propósito, aqui, discutir a natureza deste pecado. É certo que todos os teólogos, sem exceção, afirmam nada ter o pecado de Adão de comum com o pecado da impureza, ao contrário de uma versão muito generalizada no povo. Mas a narrativa bíblica mostra claramente os requintes de rebeldia que agravaram sobremaneira o delito de nosso primeiro Pai. Aliás, um dos elementos para se aquilatar a gravidade de uma ofensa consiste em medir a dignidade da pessoa ofendida. Uma mesma impertinência quando dita a um irmão é muito menos grave do que quando dita a um pai. Um gracejo comum entre colegas poderia constituir uma grave irreverência se fosse feito a um Chefe de Estado, e assim por diante. Ora, Deus é infinitamente grande. Por aí não é difícil avaliar a gravidade do pecado original. Uma ofensa feita ao infinito só poderia ser convenientemente resgatada por meio de uma expiação infinitamente grande. E não está no poder de homem, ser contingente por natureza, e envilecido pelo pecado, oferecer ao Criador um tão valioso desagravo. Os pontos que nos ligavam a Deus pareciam, pois, definitivamente cortados e irremediável a decadência a que se atirara loucamente o gênero humano com o pecado.

Foi para remediar tão insolúvel situação, que a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, encarnando-se no seio puríssimo de Maria Virgem, assumiu natureza humana sem nada perder de Sua Divindade e o Homem-Deus, assim constituído, se pôde apresentar à Justiça do Pai como cordeiro expiatório do gênero humano. Efetivamente, como Homem, Nosso Senhor Jesus Cristo podia oferecer uma expiação que fosse realmente humana. Mas em virtude da dualidade das naturezas nEle existentes, essa expiação, se bem que humana, tinha um valor infinito, pois que consistia na efusão generosa e superabundante do Sangue infinitamente precioso do Homem-Deus. Assim, no Sacrifício do Calvário, Nosso Senhor aplacou a justiça divina, e fez renascer para o Céu e a vida sobrenatural da graça a humanidade que estava absolutamente morta em tudo quanto se referisse ao sobrenatural. Se Deus, Uno e Trino, é Nosso Criador, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, encarnando-Se, se tornou nosso Pai por um título muito especial, que é o da Redenção. Jesus, morrendo, deu-nos a Vida sobrenatural. E quem dá a vida é verdadeiramente Pai, no sentido mais amplo da palavra.

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Se o gênero humano pôde beneficiar-se da Redenção, é porque a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade se fez homem, pois que o pecado dos homens deveria ser resgatado.

Ora, se Jesus Cristo assumiu natureza humana, fê-lo em Maria Virgem, e assim esta cooperou de modo eminente na obra da Redenção, transmitindo ao Salvador a natureza humana que nos desígnios de Deus era condição essencial da Redenção. De mais a mais, Maria Santíssima ofereceu de modo inteiro, e sumamente generoso, o seu Filho como vítima expiatória, e aceitou de sofrer com Ele, e por causa dEle, o oceano de dores que a Paixão fez brotar em seu Coração Imaculado.

Assim, pois, a Redenção nos veio por Maria Virgem, e sua participação nessa obra de ressurreição sobrenatural do gênero humano foi tão essencial e tão profunda, que se pode afirmar que Maria cooperou para nos fazer nascer para a vida da graça. Pelo que, Ela é, autenticamente, nossa Mãe. Autenticamente, acentuo, pois que não se trata aí de divagações sentimentais ou literárias, mas de realidades objetivas, que, se bem que sobrenaturais, não deixam de ser absolutamente verdadeiras por isso mesmo que são sobrenaturais.

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Convidando os fiéis a adorar o Santíssimo Sacramento, a Igreja exclama na Sagrada Liturgia: “Quantum potes, tantum aude”, isto é, tem o arrojo de amar tanto quanto te permitir o teu coração.

O mesmo se deve dizer a esta altura. Diante da maravilhosa realidade da maternidade de Maria em relação aos homens, realidade que constitui uma verdade séria, teológica, profundamente substanciosa, o homem deve romper decididamente para que ele se dilate plenamente os limites acanhados de seu coração, sem susto, e singre sem cuidado, pelo oceano de amor que se descortina ante seus olhos. Não são indispensáveis, aí, os artifícios da retórica humana. Uma consideração madura da realidade será suficiente para encher o homem de amor.

De acordo com toda a doutrina católica, o Beato Grignion de Montfort mostra, então, as grandezas de Maria Santíssima. Demonstrando que Ela é Mãe, o que há de mais conveniente e de mais necessário até do que o conhecimento da suprema dignidade e da inexcedível misericórdia que Ela possui?

São Tomás de Aquino diz que Nossa Senhora recebeu de Deus todas as qualidades com que seria possível a Deus cumular uma criatura. De sorte que Ela se encontra no ápice da criação, firmando seu trono acima dos mais altos coros angélicos, e sendo inferior apenas ao próprio Deus, que, sendo só Ele infinito, está infinitamente acima de todos os seres, inclusive de Nossa Senhora.

Costuma-se dizer que Nossa Senhora brilha mais do que o sol, tem a suavidade da lua, a beleza da aurora, a pureza dos lírios, e a majestade do firmamento inteiro. Muita gente supõe que tudo isto não passa de hipérboles, estas comparações pecam por sua irremediável deficiência. O sol, a lua, a aurora, e todo o firmamento são seres inanimados, e estão, portanto, colocados na última escala da criação. Não é admissível que Deus os fizesse tão formosos, dando ao homem dons menores. E, por isto mesmo, a mais apagada das almas mortas em paz com Deus, tem uma formosura que excede incomparavelmente a de todas as criaturas materiais. Que dizer-se, então, de Nossa Senhora, colocada incalculavelmente acima não só dos maiores Santos, mais ainda dos Anjos mais elevados em dignidade junto ao trono de Deus? Um caipira que fosse assistir à solenidade da coroação do Rei da Inglaterra, voltando aos seus pagos natais, possivelmente não encontrasse outros termos para explicar a magnificência daquilo que viu, senão afirmando que foi mais belo do que as festas em casa do Nhô Tonico, o homem menos pobre da zona. Se o Rei da Inglaterra ouvisse isto, que outra coisa poderia fazer senão sorrir? Pois nós, quando procuramos descrever a formosura de Nossa Senhora com os termos escassos da linguagem humana, fazemos o mesmo papel… e Ela também sorri.

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Não espanta, pois, que seja verdade de Fé que Deus se compraz tanto em Nossa Senhora que um pedido feito por meio dEla é sempre atendido, ainda que não conte senão com o apoio dEla. E que se todos os Santos pedissem alguma coisa sem ser por meio dEla nada conseguiriam. Porque, como diz Dante, querer rezar sem Ela é o mesmo que querer voar sem asas…

Assim, pois, todas as graças nos vêm de Nossa Senhora, e é Ela a medianeira universal de todos os homens, junto a Nosso Senhor Jesus Cristo.

Mas, se todas as graças nos vêm dEla, e se nossa vida espiritual não é senão uma longa sucessão de graças a que correspondemos, ou renunciamos a ter vida espiritual, ou devemos compreender que esta será tanto mais suave, mais intensa e mais perfeita, quanto mais próximos estivermos junto daquele único canal de graça que é Nossa Senhora. Deus é a fonte da graça, Nossa Senhora o único canal necessário, e os Santos meras ramificações, aliás veneráveis e dignas de grande amor, do grande canal que é Nossa Senhora.

Queremos ter a graça inestimável do senso católico? Queremos ter a virtude inapreciável da pureza? Queremos ter o tesouro sem preço, que é o dom da Fortaleza, queremos ser ao mesmo tempo mansos e enérgicos, humildes e dignos, piedosos e ativos, meticulosos em nossos deveres e inimigos do escrúpulo, pobres de espírito se bem que jungidos às riquezas do mundo, em uma palavra, fiéis e devotos servidores de Nosso Senhor Jesus Cristo? Dirijamo-nos ao trono que Deus deu a Nossa Senhora, e, no recesso amoroso da Igreja Católica, nossa Mãe, peçamos a Nossa Senhora, também nossa Mãe, que nos faça semelhantes a seu Divino Filho.

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