Jesus vivendo em Maria

Nossa Senhora deseja conceder–nos muito mais do que pedimos e até o que não sabemos pedir. Mas é preciso rogar a Ela com a intimidade e a certeza de sermos atendidos como se fôssemos uma criança de colo.

 

Comemora-se em Blois, na França, a festa de Nossa Senhora das Ajudas, a respeito da qual há a seguinte nota aqui consignada:

Cidade onde a heresia jamais penetrou

A devoção à Santíssima  Virgem da cidade de Blois, onde a heresia jamais penetrou, é grande e sincera. É importante que a heresia jamais tenha penetrado lá, porque houve C um período de calvinismo agudo na França  em que mais ou menos em todas as cidades, no século XVI, o protestantismo penetrou em quantidade maior ou menor. Que Blois tenha ficado isenta dessa lepra é uma coisa excelente e digna de  nota, e se relaciona adequadamente com a grande devoção que essa cidade sempre teve para com Nossa Senhora.

Seus habitantes, reconhecidos a tão magnânima Senhora, deram-Lhe o título de Nossa Senhora das Ajudas, pela proteção constante da Virgem que se faz sentir, não só nos tempos das heresias e  pestes, mas também em outras circunstâncias trágicas.

Portanto, a cidade sempre reconheceu ser especialmente protegida pela Santíssima Virgem. Assim constituiu- se a invocação de Nossa Senhora das Ajudas.

Em 1784, as águas do Loire que banham Blois ameaçavam submergir a cidade. O povo, unido, recorreu à sua intercessora e, durante a Missa, no momento da elevação, as águas começaram
a descer rapidamente, até o rio voltar ao seu leito normal.

Ora, uma inundação decorre de causas complexas que atuam com certo vagar. De maneira que é difícil que a água desça tão rapidamente. Temos, pois, a conjunção de dois fatores: de um lado,  Maria Santíssima protegendo nas necessidades materiais, e de outro, tomando essa proteção como um meio para encaminhar as almas à ideia de que Ela ampara também nas necessidades espirituais. Este é o auxílio de Nossa Senhora, o qual se manifesta aqui especialmente no dom inestimável da ortodoxia concedido a essa cidade preservada de modo insigne.

Maria Santíssima nos socorre nas angústias, tribulações e perigos

Relaciona-se com isso o seguinte pensamento de Santo Ildefonso: Ó Virgem Maria, sois clemente em nossas necessidades, doce  em nossas tribulações, boa em nossas angústias, pronta a nos socorrer em nossos perigos. Esta frase está muito bem calculada, porque em relação às necessidades é preciso ter pena, de onde vem exatamente a clemência, pela qual uma pessoa é tocada pelo infortúnio e apuro que outrem está passando.

Então, torna-se generosa. Nas tribulações, a pessoa quer doçura, encontrar um amparo, um apoio, uma palavra amiga. Eis porque, por exemplo, Nosso Senhor quis que seus Apóstolos estivessem  acordados e vigiassem no Monte das Oliveiras. Ele desejava o apoio, a doçura da amizade na tribulação na qual estava.

Assim, nas angústias Nossa Senhora é bondosa porque nos socorre nas tribulações e perigos. Há em São Paulo uma capelinha com um lindo título: Nossa Senhora dos Aflitos. É a Virgem Maria  invocada enquanto tendo pena, sendo clemente e misericordiosa para aqueles que se encontram em toda espécie de aflições. Quando se trata de uma aflição que Nossa Senhora pode remover sem  diminuir com isso o benefício espiritual da pessoa, Ela remove. Sendo uma aflição que, na sua sabedoria, Maria Santíssima julga necessária para essa mesma finalidade, Ela arranja um jeito de a  pessoa ter mais força, de sentir a doçura d’Ela, de poder resistir melhor àquela aflição. Esta é a ideia que vem externada nesta e em tantas outras devoções à Mãe de Deus.

Um ícone bizantino muito significativo

Mais especialmente esta ideia se exprime no culto a Nossa Senhora Auxiliadora. Para compreendermos cada vez melhor esta devoção, seria interessante fazer aqui o comentário de uma oração  composta pelo famoso Padre Condren, varão de alta espiritualidade da França, completada por Monsenhor Olier e enriquecida por Pio IX, em 1853, com trezentos dias de indulgência.

Esta oração foi objeto de um comentário especial do venerável Padre Libermann, e também Dom Chautard tem alguns trechos em que ele a comenta lindamente, em função de um ícone bizantino  que representa Nossa Senhora com um olhar recolhido em oração, onde se vê que Ela está contemplando ideias, conceitos, voltada para o mundo do espiritual e do imponderável, e não para as coisas contingentes que A cercam.

Ela está de mãos abertas, que era a atitude de quem rezava na antiga liturgia bizantina, e sobre o seu peito aparece um círculo, dentro do qual se encontra Jesus com o halo de santidade na cabeça,  representado ainda como muito mocinho, quase um meninote, tendo um rolo de pergaminho na mão esquerda e a direita em atitude de quem está lecionando. É uma alusão à Encarnação do  Verbo. Tendo em Si o Menino Jesus que, enquanto vivendo n’Ela é um Mestre, Nossa Senhora Se recolhe para ouvir os ensinamentos d’Ele em seu interior.

Por outro lado, a atitude contemplativa da Santíssima Virgem é um ensinamento que Ela dá aos outros. De modo que aqui a mediação se exerce magnificamente. O Menino Jesus ensina a Nossa  Senhora e, através d’Ela, instrui os de fora. O recolhimento d’Ela é docente. Este ícone representa precisamente o princípio de que, se temos vida interior e Jesus Cristo vive em nós pela piedade,  pela vida sobrenatural, pela moral, pelo desejo de nos santificarmos, pela fidelidade à ortodoxia – que é um imperativo do primeiro Mandamento: amar a Deus sobre todas as coisas –, quando isto  acontece, então Nosso Senhor Se serve de nós como de uma tribuna, um púlpito ou uma cátedra, e através de uma osmose que se nota em nossas palavras e em todo o nosso ser, Ele ensina aos  outros.

Jesus e Maria vivendo em outros

Eu estava lendo uma biografia de São Francisco de Sales, na qual o autor fazia observar que o Santo escreveu alguns livros excelentes, como a “Introdução à Vida Devota”, e outro muito bom, sem  ser tão célebre, que é o “Tratado do Amor de Deus”. Pelas notas de sermões dele, verifica-se que eram exposições de pontos perfeitamente comuns da Doutrina Católica. Entretanto, as pessoas não  e saciavam de ouvir.

Um calvinista daqueles mais horrorosos foi ouvir o que ele dizia, e depois o interpelou, dizendo: — Ouvi o que o senhor disse. Quer que eu lhe diga francamente? Não compreendo sua fama. Não  entendo, sobretudo, porque essas senhoras procuram tanto pelo senhor. Analisando suas palavras, afinal de contas, escrevendo, muitos já disseram o que o senhor afirma. O que há, portanto, de  novo no que o senhor diz? Pois bem. O que havia era Jesus e Maria vivendo em São Francisco de Sales. Existia tal unção, tal vida interior, tal osmose da graça naquilo que ele dizia, que Deus falava  através dele e dava uma fecundidade extraordinária. De onde vinha a fecundidade?

Exatamente deste fato: a presença de Jesus e Maria em alguém, passando por osmose para outrem. São João Batista Maria Vianney era exatamente assim. Dom Chautard conta que uma vez um advogado de Paris foi ver o Cura de Ars e, voltando para a sua cidade, alguém lhe perguntou:

— O que você viu em Ars?

Ele respondeu:
— É muito simples. Eu vi Deus num homem.

Aqui está a ideia da “inabitação” que não é física, evidentemente, não tem relação nem sequer com a presença real, mas é receber a graça e irradiá-la. A graça vem exatamente desta “inabitação” de Deus que Nossa Senhora teve com presença física, real e sobrenatural, em todos os graus e modos possíveis.

Devemos ser leões que rugem contra o mal

A este propósito, pediram-me para comentar a seguinte oração, e depois falarei de Nossa Senhora como Auxílio dos Cristãos, em função disso.

Ó Jesus, que viveis em Maria, vinde e vivei em vossos servos: no espírito de vossa santidade, na plenitude de vossas forças, na perfeição de vossas vias, na verdade de vossas virtudes, na comunhão de vossos mistérios. Dominai sobre toda potestade inimiga em vosso espírito, para a glória do Padre. Amém.

Jesus viveu em Maria e, por Maria, Ele se comunica aos homens. Nossa Senhora é o sacrário, o santuário de dentro do qual todas as graças se difundem para os homens. Ela é o templo do Espírito  Santo, o tabernáculo onde está Nosso Senhor, e por causa disso devemos pedir a Jesus, enquanto vivente em Maria, pois é de dentro deste Templo que Ele quer receber nossas orações.

Pedir o quê? Que Ele viva em nós. Ou seja, que tenhamos o espírito de Nosso Senhor Jesus Cristo, um espírito todo ele santo, que é o espírito da Santa Igreja Católica Apostólica Romana. 

Portanto, o espírito contrarrevolucionário, expressão mais característica e radical do espírito da Santa Igreja.

Além disso, roguemos a plenitude das forças de Nossa Senhora. Maria Santíssima é a Virgem forte, combativa, intransigente e absolutamente inflexível diante do demônio, do mundo e da carne. 

Devemos pedir essa força, que é intransigência, vigilância e iniciativa dentro da combatividade. Contra o quê? Primeiro, contra o que há de mal dentro de nós. Em segundo lugar, contra o mal que  está fora. De maneira tal que sejamos leões rugindo contra o mal, como exatamente Nosso Senhor Jesus Cristo foi o Leão de Judá, e como sua Mãe Santíssima, de Quem se diz que, sozinha, esmagou todas as heresias do mundo inteiro.

Seguir de modo perfeito as vias de nossa vocação

Depois, pedir a perfeição das vias de Jesus. Nosso Senhor é quem traça a via para cada um. E para nós indicou a via de nossa vocação. Muitos não sabem qual é a sua vocação e rolam pela vida  como seixos do fundo de um rio. Nós, graças a Deus, sabemos qual é a nossa . A via para nós está clara. Devemos pedir a graça de segui-la de um modo perfeito, “na verdade de vossas virtudes”,  portanto, não uma virtude fofa, balofa, inconsistente, mas autêntica, verdadeira e sincera. Esta é a vida de Jesus que se comunica a nós.

Agora vem o pedido de uma ação contra nosso adversário: Dominai sobre toda potestade inimiga… Dominai o demônio, as forças do mundo que tentam arrastar-nos para o mal. Nós pedimos para  nosso bem, é evidente, mas para a maior glória de Deus, pois queremos isto por amor a Ele.

Mais do que o êxito do apostolado, precisamos querer nossa santificação

Que relação tem esse comentário com a festa de Nossa Senhora Auxiliadora? O maior dos auxílios que Maria Santíssima pode nos dar é exatamente o de nos comunicar este espírito de santidade,  esta força, esta perfeição de via, esta autenticidade de virtudes, esta comunhão de mistérios, esta vitória contra o demônio; e comunicar-nos tudo isso para nossa santificação.

Acima de tudo, mais até do que o êxito do apostolado, queremos que cada um de nós se santifique. E para esta santificação, o auxílio de Nossa Senhora se opera por essa forma.

O pensamento “Jesus vivendo em Maria” está muito ligado à noção de Nossa Senhora Auxiliadora. Ela apresenta-Se a nós, na imagem, com o Menino Jesus no braço para indicar a relação  materna que Ela tem com seu Divino Filho, aquela relação de intimidade absoluta, de atender as últimas e menores dificuldades de uma criança, com aquele afeto, aquela bondade, que se tem, não para com o grande  e o forte, mas para com o pequenino e o fraco.

Já pensaram o que representava para Nossa Senhora ver uma criança chorar? Perceber que ela tinha frio ou fome, e saber que era Deus infinitamente poderoso, nobre, Criador d’Ela, ali chorando  dentro do berço e pedindo o auxílio d’Ela, querendo ser tratado e adorado por Ela enquanto pequenino?

De tal maneira está entranhada nessa intimidade entre ambos a ideia de que Ele é Filho d’Ela, que Jesus quis receber de Maria um culto meigo, miúdo, acessível, todo feito de carinho, porque na  essência divina há um fundamento para isso.

Como se fôssemos uma criança de colo…

Isto fez da Santíssima Virgem a Mãe de todo o gênero humano. Nossa Senhora, Mãe de Jesus Cristo e de todos os cristãos, é Mãe do Corpo Místico de Cristo. E em relação a cada um de nós, a  posição d’Ela é de querer que sejamos como meninos, como o filho carregado no colo que Lhe pede toda espécie de coisas, e a quem Ela dá muito mais do que pede, até mesmo o que não sabe pedir. Mas a condição é de rezar com aquela intimidade, com a certeza de ser atendido por Ela, como se fôssemos uma criança de colo. É a este título que Maria nos auxilia. É aquela multidão de  auxílios concedida aos pequenos, muito mais do que aos grandes.

Aqui está bem o traço filial da devoção a Nossa Senhora Auxiliadora e que estabelece uma linha de comunicação, de afinidade ou de identidade com a pequena via de Santa Teresinha do Menino   Jesus. É a criança, o pequeno que cultua a Virgem Maria por esta forma, e com quem Ela quer ter relações assim. Debaixo deste ponto de vista se poderia dizer que o Reino dos Céus é dos  meninos, e quem não for pequenino não entra nele.

Na Igreja, as almas mais grandiosas, mais majestosas, mais fortes, mais extraordinárias, sempre que trataram da Santíssima Virgem Maria, falaram nesse diapasão. Mesmo quando disseram as  coisas mais altas sobre Ela, tinham bem em mente ser a Mãe que desejava tratar a cada um deles com aquela bondade, aquela solicitude, aquele sorriso com que se trata um menino. Aqui está um “aperçu” da devoção a Nossa Senhora enquanto Auxiliadora.

 

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 254 (Maio de 2019)

O grampo de ouro

A Virgem Santíssima é para Deus Padre a mais eleita das criaturas, escolhida por Ele desde toda a eternidade para ser a Esposa de Deus Espírito Santo e a Mãe de Deus Filho. Para estar à altura dessa dignidade, Maria havia de ser a ponta de pirâmide de toda a Criação, acima dos próprios Anjos, elevada a uma inimaginável plenitude de glória, perfeição e santidade.

Nossa Senhora é o grampo de ouro que une a Nosso Senhor Jesus Cristo toda a Criação, da qual Ela é o ápice e a suprema beleza.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/2/1971)

Oração junto à imagem milagrosa

Mãe nossa, ajudai-nos misericordiosamente a ter sempre presente que ao longo das faces de vossas imagens correram lágrimas milagrosas. Compenetrai nossas almas da causa fundamental da tristeza de que destes mostra, ou seja, a Mensagem de Fátima não foi tomada em consideração. A humanidade, desvairada pela Revolução, tomou com menosprezo os pedidos, as promessas, as ameaças que então lhe comunicastes.

Por isso chorais. É o sinal de que a hora dos castigos está soando.

Entretanto, a indiferença continua completa na imensa maioria dos homens. Ela existe em parte – oh! dor! – naqueles que chamastes mais especialmente para tomarem consciência da gravidade imensa dessa situação, e se prepararem para os grandes dias que se aproximam.

Não permitais, Mãe de misericórdia, que esse estado perdure em nossas almas. Enviai vossos Anjos para expulsarem toda e qualquer influência diabólica que nos mantenha participantes na indiferença terrível com que o mundo de hoje considera vossas mensagens dadas em Fátima. Assim seja.

 

(Extraído de oração composta em 1973)

A Contra-Revolução tendencial

“Revolução e Contra-Revolução” foi um dos temas centrais das explicitações de Dr. Plinio ao longo de sua vida.
Por isso, entre suas conferências encontram-se, com frequência, aprofundamentos à sua obra-mestra. Com o presente artigo, damos início a uma série destas explicitações.

 

Quando se analisa os mil artifícios empregados pela Revolução no campo das tendências para penetrar na mente do homem — de certo modo sem que este o perceba —, tem-se a impressão de que ela é quase irresistível.

As pessoas que conhecem esses métodos têm tantos modos de agir e de influenciar, que quase não se compreende como um povo entregue às cogitações quotidianas, às preocupações comuns, pode se dar conta de que está sendo objeto de um tratamento revolucionário.

Até uma combinação de cores pode ser de acordo com a Revolução

Suponhamos uma dona de casa que deseja adquirir uma sacola onde possa colocar os objetos comprados por ela numa feira.

Ela compra a cesta mais resistente e durável, que lhe parece mais fácil de carregar, mas quase não presta atenção porque aquele objeto não tem uma intenção ornamental especial. Porém, não se dá conta de que a combinação das cores daquela cesta é revolucionária e que ela, portanto, indo e voltando para o mercado ou para a feira, está levando e trazendo Revolução.

Mais ainda, se ela, em sua casa, pendura aquela sacola num lugar qualquer da copa ou da cozinha, aquela combinação de cores pode estar influenciando tendencialmente, de um modo revolucionário, toda a sua família.

Que defesa pode ter uma pobre dona de casa contra uma coisa dessas?

Tem-se a impressão de que a Revolução tendencial não pode ser evitada pelo homem; é uma arma irresistível. E se tem a ilusão de que o mesmo acontece com a Contra-Revolução tendencial. Quer dizer, se uma pessoa normalmente leva uma cesta com bonita combinação de cores, e depois a prende numa parede de sua casa, está fazendo Contra-Revolução.

Não é simplesmente uma cesta, mas são mil coisas: o cabo da escova de dente, a forma do sapato, tudo está fazendo Revolução a toda hora e, de vez em quando, Contra-Revolução. Quem pode resistir a isso?

Mentalidades revolucionárias e contra-revolucionárias

Então, devemos analisar como deve ser o homem para não se tornar um joguete da Revolução e nem sequer da Contra-Revolução. Ele fica um verdadeiro contra-revolucionário pela Fé, pelo exercício de suas faculdades intelectivas e de sua vontade. O resto ajuda, condiciona, tem sua importância, mas não pode ser decisivo. Como a matéria é muito complexa, muitas vezes não se fala desse ponto fundamental, que não podemos perder de vista.

O autêntico contra-revolucionário, quando percebe que uma coisa é revolucionária, a recusa; quando nota que algo é contra-revolucionário, aceita-o.

Ele vê, julga, quer ou não quer.  Aqui está a parte nobre da operação da alma humana. Para isso, como deve ser a sua mentalidade?

Depois da impressão, é necessária a reflexão

Dou-lhes um exemplo tirado de uma leitura que fiz.

Caiu-me nas mãos uma frase lindíssima de Santo Agostinho, extraída do livro “A divindade da Igreja Católica”, de Monsenhor Miguel Martins(1).

Eis a frase de Santo Agostinho:

“Deus é infinitamente poderoso, mas não nos pode dar mais; é infinitamente sábio, mas não sabe nos dar mais; é infinitamente rico, mas nada mais tem para nos dar; porque na sagrada comunhão Ele se tem dado todo a nós.”

Há nesse texto aquele voo de Santo Agostinho, que é só dele. Tem-se a impressão de que é uma ave levantando voo e indo direto para alturas inexcogitáveis!

Mas é um voo do espírito, em comparação do qual o do avião não é nada.

A ideia dele é a seguinte:

Deus, infinitamente poderoso, pode nos dar algo mais do que a Sagrada Eucaristia? É Jesus Cristo realmente presente em Corpo, Sangue, Alma e Divindade! Dando-Se a Si próprio, não tem mais o que dar.

Então, quando, pela graça obtida através de Nossa Senhora, formos comungar, devemos tomar em consideração a beleza desse pensamento: vamos receber um dom tal que o próprio Deus não poderia dar outro melhor.

Ele é infinitamente sábio, mas não sabe nos dar mais!

Imaginemos a sabedoria de Deus criando o Céu e a Terra e todos os outros seres. Pois bem, Ele não sabe dar mais do que a Eucaristia!

É infinitamente rico, mas não tem nada mais valioso para nos dar, porque na Sagrada Comunhão Ele se tem dado todo a nós!

Tudo isso causa uma primeira impressão que vem acompanhada de uma graça.

Mas é bom que se faça depois uma reflexão. O que está sendo dito é um pensamento profundamente sério, o qual deve ser guardado na alma.

Esta operação que se faz a respeito desse pensamento — não é indispensável fazer isso com cada pensamento que se tem — é perfeita, quando a pessoa se impressiona, se convence e ama tanto aquilo que ouviu ou leu, que nunca mais deixa de ter isso em conta quando vai comungar. Sua memória conserva aquilo para a vida inteira.

Quando me leram essa frase pela primeira vez, tive alegria. Agora, ao relembrá-la diante dos que estão neste auditório, minha alegria se renovou, ao ver a primeira alegria dos presentes diante desse pensamento. E foi uma alegria intensa, altissonante, que levanta voo!

Choque das mentalidades

Hoje é sexta-feira e muitas pessoas estão se preparando para toda espécie de diversões, enquanto que nesse auditório muitos jovens bradam de alegria, portanto de felicidade de alma, porque ouvem um pensamento desse gênero.

Imaginemos um indivíduo que pretenda ir amanhã cedo para Guarujá e colocou sobre seu automóvel uma lancha, com comida e outras coisas para o passeio.   O carro já está voltado para a rua, a fim de apressar a saída. 

Digamos que ele passe nesse momento aqui em frente e, ouvindo as exclamações, pergunte a alguém:

— Por que razão esta alegria?

E esse alguém lê para ele o texto de Santo Agostinho.

O indivíduo pensa: “Como eles se entusiasmam com esse pensamento que eu não estou entendendo bem? Tenho aqui essa lancha e vou amanhã para Guarujá, isso que é uma coisa gostosa. Eles vão ter um dia de oração, de trabalho, de reunião… Coitados! E essa reunião que estão tendo agora irá até a uma hora da manhã!”

Esse homem poderia dizer: “Ou estou completamente errado ou errados estão eles, porque não me alegro com isso. Noto que eles passam diante da minha lancha e nem param para olhar! Nem sabem qual é sua marca, que está escrita do lado de fora numa plaquinha! Eles saem conversando entre si a respeito de coisas de Religião, de Sociologia, de História.

“Alguns estão falando de Maria Antonieta. Penso que é uma moça que eles conhecem, mas não! Trata-se daquela rainha da França, que teve a cabeça cortada pelos revolucionários! Realmente não entendo.”

Julgo que com esse exemplo torno claro o contraste e o choque de mentalidades.

O feitio do homem se molda conforme sua meta

Esse homem tem a alma voltada para uma determinada meta e nós, pelo favor e pelas preces de Nossa Senhora, estamos orientados para outra meta. E conforme a meta se forma o feitio da pessoa. Em função disso — talvez meus ouvintes tenham pensado que eu perdi o rumo, e não esteja mais tratando da Revolução e da Contra-Revolução — vem a questão da resistência do homem à ação tendencial revolucionária ou contra-revolucionária.

Há dois tipos de homem. Um deles é este sobre o qual falei — tipo que já era corrente nos longínquos tempos da minha infância.  O modo de viver os fins de semana mudou muito, mas a mentalidade era a mesma.

Naquela época, o fim de semana era só o domingo. A vida em São Paulo era muito menos tensa, não sendo preciso descansar sábado e domingo. O cansaço acumulado durante a semana era muito menor.

A Sãopaulinho de outrora era ao mesmo tempo muito mais aristocrática e sossegada do que esta São Paulo industrial que vemos febricitar e transudar poluição em todos os lugares.

Já na Sãopaulinho a meta normal do homem era o prazer

Já naquele tempo, a meta normal do homem era o prazer. Ele seria inteiramente feliz se tivesse prazeres contínuos e na proporção de seus desejos.

Há pessoas que gostam de grandes prazeres. Outras, de mentalidades ora mais apoucadas, ora mais finas, se contentam com prazerezinhos e apreciam sorver a vida com colherinhas de chá e não com enormes goles. Há, portanto, diferentes modos de viver em busca do prazer.

Tinham muito pálida e remotamente a ideia de que o domingo é o dia do Senhor. Iam à Missa porque é uma exigência de Deus, e não havia como evitar. A mentalidade era essa.

Trabalhavam nos dias de semana para ter os recursos a fim de gozar a vida no domingo. Mais ainda, procuravam levar durante a própria semana a vida mais gostosa possível.

O que era a vida gostosa?

Antes de tudo consistia em não ter preocupações nem aborrecimentos.

Em segundo lugar, fazer o que quer: ir a Guarujá, à fazenda, ao Rio de Janeiro, ficar dormindo até meio-dia, levantar-se às cinco horas da manhã para escalar o Jaraguá(2), etc.  Em suma, fazer o que é gostoso é a lei.

E as coisas gostosas eram aquelas que direta e imediatamente dão gosto ao corpo. Para os espíritos um pouco mais elevados — não numerosos — o gosto do corpo se conjugava com certo prazer da alma. Então, alguns gostavam de música — mas que músicas! —, outros, de uma exposição artística, porque dão certo prazer de alma através dos sentidos. Quem se metia nessa vida, cujo diapasão é o gostoso, evidentemente não tinha alma para apreciar pensamentos elevados, como esse de Santo Agostinho; era cego, surdo e mudo para coisas dessa natureza.

Os temas das conversas indicavam o feitio de espírito

No meu tempo de moço — hoje não deve ser muito diferente, mas talvez muito pior — certos tipos de conversa indicavam superlativamente este feitio de espírito. Por exemplo, contar de modo exagerado e com fanfarronada as coisas que fez no domingo anterior: tomou uma lancha e quase houve um acidente, mas o indivíduo conseguiu evitá-lo de tal maneira; foi um herói. E narra o caso até o último pormenor, ou seja, até a última mentira que ele encontrou para chamar a atenção.

Enquanto isso, um outro pensava: “Deixa este acabar de falar, para eu contar meu grande feito”. E se não tinha nada para jactanciar-se, ficava com vontade de mudar de assunto.

Outro tema muito querido era as viagens de automóvel — as estradas de rodagem naquele tempo eram relativamente novas. As surpresas que houve em certo lugar; o freio que quase falhou; o indivíduo teve que ir a pé para comprar uma peça, mas foi muito feliz porque no caminho encontrou um conhecido que o levou de automóvel e o trouxe, e ainda lhe agradeceu, porque lhe disse que conversava muito bem. O que equivale a dizer: “Vocês não sabem apreciar a minha conversa, mas sou um colosso; saibam me apreciar melhor”.

De vez em quando, conversas a respeito de negócios ou política.

Voo da alma às coisas elevadas

Em consequência, essas almas não tinham nenhuma capacidade de entender e amar os pensamentos elevados.

Uma pessoa, ouvindo a leitura desse texto de Santo Agostinho, se entusiasma quando está voltada para outra ordem de valores. Ela compreende que as coisas materiais podem ser aprazíveis e devem, em certas circunstâncias, ornar ou tornar deleitável a vida do homem. Mas o principal não é o corpo; há uma forma de deleite, uma beleza, uma santidade, uma verdade nas coisas, que, quando a alma percebe, ela se rejubila, sobretudo quando são bem expressas. A alma, então, voa em direção a coisas mais elevadas.

Para se ter ideia completa do que é um deleite desses, deve-se ler, nas “Confissões” de Santo Agostinho, a conversa dele com Santa Mônica, no porto de Óstia. Sua mãe havia rezado por ele durante muitos anos e, afinal, Santo Agostinho se convertera. Ia para Cartago, cidade então florescente do Norte da África, e estavam no porto de Óstia. Enquanto esperavam o navio, conversavam sobre o Céu junto à janela de uma hospedaria — colóquio de um santo com uma santa — e tiveram uma espécie de êxtase. Santo Agostinho conta essa conversa de um modo incomparável.

Santa Mônica disse-lhe:

— Meu filho, já obtive a tua conversão para que sigas no caminho da Fé. Teu pai morreu, e eu não tenho mais deveres nesta Terra; desejo apenas o Céu.

Vê-se que, apesar de querer muito bem a Santa Mônica, ele não fez insistência para ela continuar na Terra. Santo Agostinho poderia dizer-lhe: “Mamãe, não pense nisso, a senhora ainda está moça e tem muita saúde…” Ou então: “Ser-me-ia muito duro resignar-me a viver sem a senhora; procure ficar na Terra.”

Mas não o fez porque entendera haver chegado o momento dela, e que as coisas devem se realizar nas horas de Deus e não dos homens.  Daí a poucos dias, ela adoeceu e morreu, tendo sido sepultada na própria cidade de Óstia.

Ele conta tudo isso de modo muito bonito e percebe-se o equilíbrio da alma católica. Narra seu próprio pranto e que levou seu corpo ao cemitério. E voltou tão triste que, para se consolar, tomou um banho! E com uma bondade de um coração episcopal, escreve ele: “Aconselho a todos que tiverem uma provação muito grande, que tomem um banho, porque ajuda a suportá-la”.

Não é, portanto, uma alma estranha às realidades da Terra, que desdenha ou ignora qualquer forma de apoio ou de conforto para o irmão corpo. Mas depois voa muito acima disso. v

 

Continua no próximo número…

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 9/11/1984)

Revista Dr Plinio 146 (Maio de 2010)

 

1) São Paulo: Editora da Escola Profissional Liceu Coração de Jesus, 1917.

2) Jaraguá: pico situado nas cercanias de São Paulo.

Nossa Senhora, a morte dos crimes

Certas pessoas podem ter a ideia de que as evoluções do mundo extinguirão os crimes. Verdadeiramente, a morte dos crimes já veio ao mundo com o nascimento de Nossa Senhora. Ela, segundo um lindo cântico gregoriano, é a “Mors críminum”, a “Morte dos crimes”.

Por sua influência, mediação, oração e comunicação de graças, Maria Santíssima mata os crimes, extirpa os pecados e elimina o mal da Terra, triunfando permanentemente sobre ele.

 

Plinio Corrêa de Oliveira, (Extraído de conferência de 18/8/1965)

Devoção a Nossa Senhora: condição essencial para a Contra-Revolução

Em seu prólogo à edição argentina de “Revolução e Contra-Revolução”(1), Dr. Plinio nos esclarece acerca de um ponto central: o profundo nexo existente entre a devoção à Santíssima Virgem e a obra magna “Revolução e Contra-Revolução”, por ele escrita.

 

Comecemos por expor aqui alguns pensamentos contidos em “Revolução e Contra-Revolução”.

Orgulho e impureza na origem da Revolução

A Revolução é apresentada nessa obra como um imenso processo de tendências, doutrinas, transformações políticas, sociais e econômicas, derivado em última análise — eu seria tentado a dizer, em ultimíssima análise — de uma deterioração moral provocada pelos vícios fundamentais: o orgulho e a impureza, que suscitam no homem uma incompatibilidade profunda com a Doutrina Católica.

Com efeito, a Igreja Católica, como Ela é, a doutrina que ensina, o Universo que Deus criou e que podemos conhecer tão esplendidamente através de seus prismas, tudo isso excita no homem virtuoso, no homem puro e humilde, um profundo enlevo. Ele sente alegria ao considerar que a Igreja e o Universo são como são.

Porém, se uma pessoa cede algo ao vício do orgulho ou da impureza, começa a germinar nela uma incompatibilidade com vários aspectos da Igreja ou da ordem do Universo. Essa incompatibilidade pode originar-se, por exemplo, de uma antipatia com o caráter hierárquico da Igreja, desdobrar-se em seguida e alcançar a hierarquia da sociedade temporal, para mais tarde manifestar-se em relação à ordem hierárquica da família. E, assim, por várias formas de igualitarismo, uma pessoa pode chegar a uma posição metafísica de condenação de toda e qualquer desigualdade, e do caráter hierárquico do Universo. Seria o efeito do orgulho no campo da Metafísica.

De modo análogo podem-se delinear as consequências da impureza no pensamento humano. O homem impuro, em regra geral, começa por tender ao liberalismo: irrita-o a existência de um preceito, de um freio, de uma lei que circunscreva o desbordamento de seus sentidos. E, com isto, toda ascese lhe parece antipática. Dessa antipatia, naturalmente, vem uma aversão ao próprio princípio de autoridade, e assim por diante. O anelo de um mundo anárquico — no sentido etimológico da palavra — sem leis nem poderes constituídos, e no qual o próprio Estado não seja senão uma imensa cooperativa, é o ponto extremo do liberalismo gerado pela impureza.

Tanto do orgulho, quanto do liberalismo, nasce o desejo de igualdade e liberdade totais, que é a medula do comunismo.

A partir do orgulho e da impureza se vão formando os elementos constitutivos de urna concepção diametralmente oposta à obra de Deus. Essa concepção, em seu aspecto final, já não difere da católica só em um ou outro ponto. À medida que, ao longo das gerações, esses vícios se vão aprofundando e tornando-se mais acentuados, vai-se estruturando toda uma concepção gnóstica e revolucionária do Universo. A individuação, que para a gnose é o mal, é um princípio de desigualdade. A hierarquia — qualquer que seja — é filha da individuação. O Universo — segundo os gnósticos — resgata-se da individuação e da desigualdade num processo de destruição do “eu” que reintegra os indivíduos no grande Todo homogêneo. A realização, entre os homens, da igualdade absoluta, e de seu corolário, a liberdade completa — numa ordem de coisas anárquica — pode ser vista como uma etapa preparatória dessa reabsorção total.

Não é difícil perceber, nesta perspectiva, o nexo entre gnose e comunismo.

A devoção a Nossa Senhora é essencial para a Contra-Revolução

Assim, a doutrina da Revolução é a gnose, e suas causas últimas têm suas raízes no orgulho e na sensualidade. Dado o caráter moral destas causas, todo o problema da Revolução e da Contra-Revolução é, no fundo, e principalmente, um problema moral. O que se diz em “Revolução e Contra-Revolução” é que, se não fosse pelo orgulho e pela sensualidade, a Revolução, como movimento organizado no mundo inteiro, não existiria, não seria possível.

Ora, se no centro do problema da Revolução e da Contra-Revolução há uma questão moral, há também e eminentemente uma questão religiosa, porque todas as questões morais são substancialmente religiosas. Não há moral sem religião. Uma moral sem religião é o que de mais inconsistente se possa imaginar. Todo problema moral é, pois, fundamentalmente religioso. Sendo assim, a luta entre a Revolução e a Contra-Revolução é uma luta que, em sua essência, é religiosa. Se é religiosa, se é uma crise moral que dá origem ao espírito da Revolução, então, essa crise só pode ser evitada, só pode ser remediada com o auxílio da graça.

É um dogma da Igreja que os homens não podem, somente com os recursos naturais, cumprir duravelmente, e em sua integridade, os preceitos da Moral católica, sintetizados na Antiga e na Nova Lei. Para cumprir os Mandamentos, é necessária a existência da graça.

Por outro lado, se o homem cai em estado de pecado, acumulando-se nele as apetências pelo mal, a “fortiori”(2) não conseguirá levantar-se do estado em que caiu sem o socorro da graça. Provindo da graça toda preservação moral verdadeira ou toda regeneração moral autêntica, é fácil ver o papel de Nossa Senhora na luta entre a Revolução e a Contra-Revolução. A graça depende de Deus, mas Deus, por um ato livre de sua vontade, quis fazer depender de Nossa Senhora a distribuição das graças. Maria é a Medianeira Universal, é o canal por onde passam todas as graças. Portanto, seu auxílio é indispensável para que não haja Revolução, ou para que esta seja vencida pela Contra-Revolução. Com efeito, quem pede a graça por intermédio d’Ela, a obtém. Quem tente consegui-la sem o auxílio de Maria, não a obterá. Se os homens, recebendo a graça, correspondem a ela, está implícito que a Revolução desaparecerá. Pelo contrário, se eles não corresponderem, é inevitável que a Revolução surja e triunfe. Portanto, a devoção a Nossa Senhora é “conditio sine qua non”(3) para que a Revolução seja esmagada, para que vença a Contra-Revolução.

Insisto no que acabo de afirmar. Se uma nação for fiel às graças necessárias e até suficientes que recebe de Nossa Senhora, e se se generaliza nela a prática dos Mandamentos, é inevitável que a sociedade se estruture bem. Porque, com a graça, vem a sabedoria, e com a sabedoria, todas as atividades do homem entrarão nos eixos.

Isso se verifica, de certo modo, com a análise do estado em que se encontra a civilização contemporânea. Construída sobre uma recusa da graça, alcançou alguns resultados estrepitosos. Estes, porém, devoram o homem. Na medida em que tem por base o laicismo e viola, sob vários aspectos, a ordem natural ensinada pela Igreja, a civilização atual é nociva ao homem.

Sempre que a devoção a Nossa Senhora seja ardorosa, profunda, de rica substância teológica, é claro que a oração de quem pede será atendida. As graças choverão sobre a pessoa que reza a Ela devota e assiduamente. Se, pelo contrário, essa devoção for falsa ou tíbia, manchada por restrições de sabor jansenista ou protestante, há grave risco de que a graça seja dada menos largamente, porque encontra por parte do homem nefastas resistências. O que se diz do homem pode dizer-se, “mutatis mutandis”(4), da família, de uma região, de um país, ou de qualquer outro grupo humano.

É costume dizer-se que na economia da graça, Nossa Senhora é o pescoço do Corpo Místico, do qual Nosso Senhor Jesus Cristo é a Cabeça, porque tudo passa por Ela.

A imagem é inteiramente verdadeira na vida espiritual. Um indivíduo que tem pouca devoção a Nossa Senhora é como alguém que tem uma corda atada ao pescoço e conserva apenas um fio de respiração. Quando não tem nenhuma devoção, se asfixia. Tendo uma grande devoção, o pescoço fica completamente livre e o ar penetra abundantemente no pulmão, podendo o homem viver normalmente.

A esterilidade e até a nocividade de tudo quanto se faz contra a ação da graça, e a enorme fecundidade do que se faz com seu auxílio, determinam bem a posição de Nossa Senhora nesse combate entre a Revolução e a Contra-Revolução, pois a intensidade das graças recebidas pelos homens depende da maior ou menor devoção que a Ela tiverem.

O concurso do espírito do mal

Uma visão da Revolução e da Contra-Revolução não pode ficar apenas nestas considerações. A Revolução não é o fruto da exclusiva maldade humana. Esta última abre as portas ao demônio, pelo qual se deixa estimular, exacerbar e dirigir.

É, pois, importante considerar, nesta matéria, a oposição entre Nossa Senhora e o demônio. O papel do demônio na eclosão e nos progressos da Revolução foi enorme. Como é lógico pensar, uma explosão de paixões desordenadas tão profunda e tão geral como a que originou a Revolução não teria ocorrido sem uma ação preternatural. Além disso, seria difícil que o homem alcançasse os extremos de crueldade, de impiedade e de cinismo, aos quais a Revolução chegou várias vezes ao longo de sua história, sem o concurso do espírito do mal.

Ora, esse fator de propulsão tão forte está inteiramente na dependência de Nossa Senhora. Basta que Ela fulmine um ato de seu império sobre o inferno, para que ele estremeça, se confunda, se encolha e desapareça do cenário humano. Pelo contrário, basta que Ela, para castigo dos homens, deixe ao demônio um certo raio de ação, para que a ação deste progrida. Portanto, os enormes fatores da Revolução e da Contra-Revolução, que são respectivamente o demônio e a graça, dependem de seu império e seu domínio.

Efetiva realeza de Maria

A consideração deste soberano poder de Nossa Senhora nos aproxima da ideia da realeza de Maria. É preciso não ver essa realeza como um título meramente decorativo. Embora submissa em tudo à vontade de Deus, a realeza de Nossa Senhora importa num poder de governo pessoal muito autêntico.

Tive ocasião de empregar certa vez, numa conferência, uma imagem que facilita a compreensão do papel de Nossa Senhora como Rainha.

Imaginemos um diretor de colégio com alunos muito insubordinados. Ele os castiga com uma autoridade de ferro. Depois de os ter submetido à ordem, retira-se dizendo à sua mãe: “Sei que governareis este colégio de modo diferente do que estou fazendo agora. Vós tendes um coração materno. Tendo eu castigado esses alunos, quero agora que os governeis com doçura.” Essa senhora vai dirigir o colégio como o diretor quer, porém com um método diverso daquele que usou o diretor. A atuação dela é distinta da dele; não obstante, ela faz inteiramente a vontade dele.

Nenhuma comparação é exata. Entretanto, julgo que, sob certo aspecto, esta imagem nos ajuda a entender a questão.

Análogo é o papel de Nossa Senhora como Rainha do Universo. Nosso Senhor Lhe deu um poder régio sobre toda a Criação, cuja misericórdia, sem chegar a nenhum exagero, chega entretanto a todos os extremos. Ele colocou-A como Rainha do Universo para governá-lo e, especialmente, para governar o pobre gênero humano decaído e pecador. E é vontade d’Ele que Ela faça o que Ele não quis fazer por Si, mas por meio d’Ela, régio instrumento de seu Amor. Há, pois, um regime verdadeiramente marial no governo do Universo. E assim se vê como é que Nossa Senhora, embora sumamente unida a Deus e dependente d’Ele, exerce sua ação ao longo da História.

Nossa Senhora é infinitamente inferior a Deus — é evidente —, porém, Deus quis dar a Ela esse papel por um ato de liberalidade. É Nossa Senhora quem, distribuindo ora mais largamente a graça, ora menos, freando ora mais, ora menos, a ação do demônio, exerce sua realeza sobre o curso dos acontecimentos terrenos. Nesse sentido, depende d’Ela a duração da Revolução e a vitória da Contra-Revolução. Além disso, às vezes Ela intervém diretamente nos acontecimentos humanos, como o fez, por exemplo, em Lepanto. Quão numerosos são os fatos da História da Igreja em que ficou clara sua intervenção direta no curso das coisas! Tudo isto nos faz ver de quantos modos é efetiva a realeza de Nossa Senhora.

Quando a Igreja canta a seu respeito: “Tu só exterminaste as heresias no mundo inteiro”, diz que seu papel nesse extermínio foi de certo modo único. Isso equivale a dizer que Ela dirige a História, porque quem dirige o extermínio das heresias dirige o triunfo da ortodoxia, e dirigindo uma e outra coisa, dirige a História no que ela tem de mais medular.

Haveria um trabalho de História interessante para fazer: o de demonstrar que o demônio começa a vencer quando consegue diminuir a devoção a Nossa Senhora. Isso se deu em todas as épocas de decadência da Cristandade, em todas as vitórias da Revolução. Exemplo característico é o da Europa antes da Revolução Francesa. A devoção a Nossa Senhora nos países católicos foi prodigiosamente diminuída pelo jansenismo, e é por isso que eles ficaram como uma floresta combustível, onde uma simples chispa pôs fogo em tudo.

Estas e outras considerações tiradas do ensinamento da Igreja abrem perspectivas para o Reino de Maria, isto é, uma era histórica de Fé e de virtude que será inaugurada com uma vitória espetacular de Nossa Senhora sobre a Revolução. Nessa era, o demônio será expulso e voltará aos antros infernais, e Nossa Senhora reinará sobre a humanidade por meio das instituições que para isso escolheu.

O Reino de Maria e a união de almas

Quanto a essa perspectiva do Reino de Maria, encontramos na obra de São Luís Maria Grignion de Montfort algumas alusões dignas de nota. Ele é, sem dúvida, um profeta que anuncia essa vinda. Disso fala claramente: “Quando virá esse dilúvio de fogo do puro amor, que deveis atear em toda a Terra de um modo tão suave e tão veemente, que todas as nações, os turcos, os idólatras, e os próprios judeus hão de arder nele e converter-se?”(5) Esse dilúvio, que lavará a humanidade, inaugurará o Reino do Espírito Santo, que ele identifica com o Reino de Maria. Nosso santo afirma que vai ser uma era de florescimento da Igreja como até então nunca houve. Chega inclusive a afirmar que “o Altíssimo, com sua Santa Mãe, devem formar para Si grandes santos, que sobrepujarão em santidade a maior parte dos outros santos, como os cedros do Líbano se avantajam aos pequenos arbustos”(6).

Considerando os grandes santos que a Igreja já produziu, ficamos deslumbrados ante a envergadura desses que surgirão sob o bafejo de Nossa Senhora. Nada é mais razoável do que imaginar um crescimento enorme da santidade numa era histórica em que a atuação de Nossa Senhora aumente também prodigiosamente. Podemos, pois, dizer que São Luís Maria Grignion de Montfort, com seu valor de pensador, mas, sobretudo, com sua autoridade de santo canonizado pela Igreja, dá peso, autoridade, consistência, às esperanças que brilham em muitas revelações particulares, de que virá uma época na qual Nossa Senhora verdadeiramente triunfará.

A realeza de Nossa Senhora, embora tenha uma soberana eficácia em toda a vida da Igreja e da sociedade temporal, realiza-se em primeiro lugar no interior das almas. Daí, do santuário interior de cada alma, é que ela se reflete sobre a vida religiosa e civil dos povos, enquanto considerados como um todo.

O Reino de Maria será, pois, uma época em que a união das almas com Nossa Senhora alcançará uma intensidade sem precedentes na História (exceção feita, é claro, de casos individuais).

Escravidão a Nossa Senhora e Apóstolos dos Últimos Tempos

Qual é a forma dessa união em certo sentido suprema? Não conheço meio mais perfeito para enunciar e realizar essa união do que a Sagrada Escravidão a Nossa Senhora, tal como é ensinada por São Luís Maria Grignion de Montfort no “Tratado da Verdadeira Devoção”.

Considerando que Nossa Senhora é o caminho pelo qual Deus veio aos homens e estes vão a Deus, tendo presente a realeza universal de Maria, nosso santo recomenda que o devoto da Santíssima Virgem se consagre inteiramente a Ela como escravo. Essa consagração é de uma radicalidade admirável. Ela abarca não só os deveres materiais do homem, como também até o mérito de suas boas obras e orações, sua vida, seu corpo e sua alma. Ela é sem limites, porque o escravo por definição nada tem de seu.

Em troca dessa consagração, Nossa Senhora atua no interior de seu escravo de modo maravilhoso, estabelecendo com ele uma união inefável.

Os frutos dessa união serão vistos nos Apóstolos dos Últimos Tempos, cujo perfil moral ele traça, a fogo, em sua famosa “Oração abrasada”. Ele usa, para isso, uma linguagem de uma grandeza apocalíptica, na qual parece reviver todo o clamor de um São João Batista, todo o fogo de um São João Evangelista, todo o zelo de um São Paulo. Os varões portentosos que lutarão contra o demônio pelo Reino de Maria — conduzindo gloriosamente, até o fim dos tempos, a luta contra o demônio, o mundo e a carne — São Luís os descreve como magníficos modelos que convidam desde já à perfeita escravidão a Nossa Senhora, os que, nos tenebrosos dias de hoje, lutam nas fileiras da Contra-Revolução.

Assim, com estas considerações sobre o papel de Nossa Senhora na luta da Revolução e da Contra-Revolução, e sobre o Reino de Maria, vistas segundo o “Tratado da Verdadeira Devoção”, creio ter enunciado os principais pontos de contato entre a obra-prima do grande santo e meu ensaio — tão apequenado pela comparação — sobre “Revolução e Contra-Revolução”.

 

Revista Dr Plinio 158 (Maio de 2016)

 

1) Buenos Aires, 1970.

2) Forçosamente.

3) Condição indispensável.

4) Mudando o que deve ser mudado.

5) “Oração Abrasada” de São Luís Maria Grignion de Montfort, “Oeuvres Complètes”, Editions du Seuil, Paris, 1966, p. 681.

6) “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem” de São Luís Maria Grignion de Montfort, “Oeuvres Complètes”, Editions du Seuil, Paris, 1966, p. 512 e 513, N° 47.

Harmonia e sublimidade

A tendência para o sublime é inerente à harmonia, a qual deve ser concebida como algo que convida continuamente para o ápice: Deus, Nosso Senhor.

 

Para entrarmos com o passo certo no assunto, convém não analisarmos a harmonia como fazem certas pessoas que a consideram como algo puramente estético. Para eles, harmonia é a disposição das partes segundo o agradável aos olhos humanos.

Na realidade, a harmonia não é uma coisa puramente subjetiva; ela tem algo de objetivo.

Harmonia transcendente

A harmonia contém uma noção muito mais ampla: é próprio dela — segundo nós a entendemos –– ter uma nota não apenas de proporcionalidade material, mas também uma clara analogia com um significado moral ou ontológico. 

Portanto, a harmonia não pode ser vista como algo fechado; pelo contrário, a transcendência é o suco dela. Tenho a impressão de que isso é característico no vitorinismo(1).

Se essa ideia é verdadeira, nós deveríamos chegar ao seguinte conceito: a suprema harmonia é constituída na ordem do criado pela beleza de cada uma das virtudes, pela coerência delas entre si e com a ordem ontológica, com as propriedades do ser.

Analisando o quadro clássico de todas as virtudes apresentado pelos moralistas, tem-se uma sensação de harmonia. Este quadro harmônico das virtudes tem uma correlação com a natureza da mente humana. Não é uma mera abstração, tirada apenas de uma norma de conduta, mas percebe-se que a mente ganha toda a sua beleza em função daquela harmonia; a ordem mais profunda do ser se espelha nessa harmonia no que tem de melhor.

É uma espécie de harmonia transcendente, porque exprime o “pulchrum” de uma ordem de coisas existente no criado, que é a ordem moral enquanto toca em obscuridades quase inefáveis de ordem ontológica, que, por sua vez, conduz a Deus, como Arquétipo.

Então, a verdadeira harmonia, enquanto considerada nas coisas materiais, é antes de tudo o por onde ela deixa transparecer essas coisas. Portanto, a harmonia de valores simbólicos constitui, em si, um valor artístico maior do que, na linguagem de hoje, se chama comumente valor artístico.

Recentemente, li uma descrição da espada confeccionada para a coroação de Carlos X, Rei de França: de ouro, recamada de brilhantes, obra-prima de joalheiro parisiense. A espada de Carlos X, sob certo ponto de vista artístico, seria incomparavelmente superior à espada medieval; mas, numa concepção vitorinista das coisas, a medieval tem mais valor simbólico.

Dois conceitos de harmonia: naturalista e teocêntrica

O estético que veio depois do vitorinismo é proporcionado ao homem, como se este fosse o ponto terminal e o ápice de tudo.

E, precisamente porque o homem não é o fim de todas as coisas, estas, às vezes, apresentam uma grandeza, uma rudeza, um tamanho que choca um pouco o homem, o qual, numa atitude de alienação, deve aceitar e amar; este é o varão religioso.

A arte não seria a transparência em certas coisas, por onde uma cultura vê essa harmonia superior, previamente à arte? Quer dizer, há uma espécie de visão da harmonia do universo prévia à arte, a partir da qual se modela a arte.

Então a arte não é só o espelho dos valores vitorinistas, mas enquanto passando pelo prisma mental do artista, que é a expressão dessa cultura. Esse seria o itinerário.

De qualquer maneira, eu tenho a impressão de que o elemento fundamental que está sendo focalizado aqui é a diferença entre dois conceitos de harmonia: o conceito naturalista, tendo o homem como centro, não é errado tomá-lo em consideração, até certo ponto; e a harmonia que toma como centro Deus.

Acho que a grande derrapada que houve na arte do Ocidente deu-se quando ela deixou de tomar como centro Deus. O humanismo empurrou a arte para proporções naturais e terrenas.

Fulguração da santidade na Idade Média

Que relação a arte medieval teve com o vitorinismo? É evidente que houve uma relação, pois todas as qualidades vitorinistas estão presentes nela de modo excelente.

Mas, eu seria tendente a achar que há qualquer coisa além disso.

Historicamente falando — quer em termos de exprimir a sociedade espiritual, quer a sociedade temporal —, não houve até nossos dias fulguração mais exata da santidade, do sobrenatural e das virtudes morais do homem e de sua coesão com a ordem ontológica, como na Idade Média.

Síntese de todas as antíteses harmônicas

Na Idade Média, o mundo natural e o sobrenatural se osculavam e constituíam uma única síntese composta de duas antíteses harmônicas.

Ora, a visão conjunta de duas antíteses harmônicas projeta em nosso espírito um espectro maior do que cada uma delas. Isso é propriamente a harmonia. É uma coisa não propriamente real, mas ao mesmo tempo irreal e supra-real, um ponto do meu espírito por onde percebo algo que, para além daquela realidade, une as antíteses harmônicas daquele modo.

Quem sabe se isto é o espectro, na ordem natural, de todas as antíteses harmônicas existentes no universo, vistas no seu ponto de encontro, no seu ponto ápice; e, na ordem sobrenatural, é o mesmo com todas as graças possíveis? Porque entre a síntese de todas as perfeições possíveis na natureza e a síntese de todas as graças, deve haver uma coerência, uma afinidade.

A alma verdadeiramente cristã procura esta síntese. Olhando, por exemplo, para um Crucifixo, se alguém disser “ali está o vosso Rei vitorioso”, parece um escárnio, pois ali está a figura de um derrotado, um fracassado, um esmagado. Porém, podemos afirmar “ali está o Rei glorioso” ou simplesmente “ali está a nossa Vítima”. Porque esta aparente contradição produz no espírito o tal espectro. E esta visão, que é um auge do espírito, fala, entretanto, a respeito de uma realidade inatingível. Então, teríamos assim conquistado o ápice até onde a piedade, a contemplação, o espírito humano podem elevar-se.

Luz da Idade Média

Posta em face disto, a alma humana encontra o exercício próprio, adequado e proporcionado de tudo quanto nela há, com aquele desejo de simultaneidade de exercício, o qual também é uma exigência da alma e que as coisas terrenas nunca saciam completamente. Mais ainda, com uma síntese repouso-atividade, que as coisas desta Terra nunca dão.

Por exemplo, diante da arte gótica eu me sinto num perfeito repouso e numa perfeita atividade, no auge das delícias de meu repouso e no auge da força de minha atividade; como que envolto nos paradoxos harmônicos, estou solucionado. O gótico me soluciona, onde o mais alto de mim mesmo encontra o repouso no mais alto que existe, e a partir disso todo o resto repousa.

Isto é propriamente, creio eu, a nossa escola de piedade, enquanto discernida a obra da graça — de algum modo pelo discernimento dos espíritos —, de maneira que o homem se possa colocar na linha do “pulchrum”.

Então, devemos acrescentar que um fenômeno de discernimento do sobrenatural está presente nessa luz da Idade Média.

Compreende-se que só discernindo a graça desta maneira o homem teria encontrado certas cores, certos sons, certas formas, certas ordens, e assim pôde construir. E o ponto de partida foi uma retidão natural comum e um discernimento da graça inspirando o homem no manipular as coisas da natureza com a avidez de fazer com que elas espelhassem esta graça; donde esse jorro e essa perfeição da coisa medieval, que é verdadeiramente incomparável. Quer dizer, que tem uma abertura para o Absoluto como nada possui.

O espectro majestade-pequenez

Além disso, é preciso dizer o seguinte: a maior das majestades contém também as pequenas, mesmo as menores. O espectro majestade-pequenez deve ser construído a partir disso. Por exemplo: eu compreendo tão bem Carlos Magno no esplendor de seu poder, em traje de coroação, preparando-se para ir ser coroado em Latrão, quanto depois de ter sido coroado pelo Papa, brincando com uma florzinha comum do campo, sorrindo, extasiado com aquilo.

E quem não compreende isto não entendeu nem Carlos Magno, nem a flor, nem a Idade Média, o Menino Jesus na manjedoura, por exemplo, e as ideias mais majestosas de Deus. Quem não tem de cada uma dessas coisas uma impressão, pela qual ela é um espectro que forma uma coerência com a outra, não compreendeu o assunto. 

Um horror, que se opõe ao que explicamos, foi o seguinte. Estando em Paris, quando menino, Mozart quis subir no colo da Du Barry para beijá-la. A Du Barry disse-lhe que não, porque era contra a etiqueta. Mozart afirmou com toda a naturalidade: “Perdão, Madame, como a Imperatriz(2) o faz assim comigo, eu pensei que pudesse fazer com a senhora, mas eu não tive a intenção de ofendê-la…”

Exemplo muito interessante é o relativo a um irmão de leite de Maria Antonieta.

A Imperatriz Maria Teresa deu ordem à ama de leite de Maria Antonieta para vir uma vez por mês visitar a Imperatriz, levando consigo o irmão de leite de Maria Antonieta, porque estava contraído um vínculo que deveria durar a vida inteira. Quando ocorria a visita, o irmão de leite brincava com Maria Antonieta e os arquiduquezinhos. E esse irmão de leite conta em suas memórias que, como eram muito pequeninos, quando chegava a hora de a Imperatriz, a grande Maria Teresa, brincar com Maria Antonieta, ela a colocava numa perna e o menino na outra e, para que este não se sentisse chocado de ver que Maria Antonieta era muito mais agradada do que ele, Maria Teresa fazia exatamente as mesmas carícias para ambos.

Esse menino, tendo se tornado adulto, foi morar na França e acompanhou Maria Antonieta em todos os lances da Revolução Francesa, até o momento em que ela foi presa e ele impedido de entrar na prisão. Combateu nas Tulherias, fez tudo pela Rainha Maria Antonieta e ficou ao lado dela a vida inteira, da grandeza à decadência. Depois escreveu memórias a respeito do convívio dele com ela, nas quais diz coisas de enternecer. Ele descreve Maria Antonieta como sendo uma síntese de grandeza e pequenez, que é uma coisa única.

E essa síntese de Maria Teresa, Maria Antonieta e seu irmão de leite, tem qualquer coisa desse espectro do encontro da majestade e da pequenez; tenho a impressão de que esse espectro, por causa do problema do igualitarismo, fica no ponto central dessa visão. Digo mais: é preciso a graça para se compreender como a pequenez se encaixa na grandeza.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 21/11/1973)

Revista Dr Plinio 170 (Maio de 2012)

 

 

1) A escola vitorina de filosofia e teologia, que teve como centro de irradiação, no século XII, a Abadia de São Vítor, nos arredores de Paris, seguia o pensamento agostiniano. Seu principal representante, Hugo de São Vítor, voltava-se de modo especial para a contemplação do Ser Absoluto na Criação. Sua ideia básica é de que todas as coisas foram criadas segundo ideias da mente de Deus; de modo que cada coisa tem seu arquétipo na ideia segundo a qual foi modelada. Daí a importância de o homem deitar um olhar contemplativo sobre o universo criado, não se detendo apenas no sinal exterior e material, mas procurando em cada qual seu exemplar.

2) Maria Teresa, Imperatriz da Áustria; mãe de Maria Antonieta.

O Santíssimo Sacramento e a misericórdia de Nossa Senhora – II

Maria Santíssima é Mãe de misericórdia e nos considera com bondade indizível. O auge da bondade d’Ela não está em nos deixar no pecado e nos olhar com compaixão, mas em nos obter graças pelas quais recebemos forças para sair do pecado e não mais ofender a Deus.

 

Na realidade, o homem encontra-se numa situação tal que lhe convém ser tratado com justiça, e por isso ele deve gostar de um trato que tenha a nota tonificante de justiça. A qualidade que ele tem lhe será reconhecida, e seu defeito também lhe será mostrado; tudo graduado de acordo com o que merece. Isso fortalece, faz bem, eleva o homem.

A importância de um braço amigo que nos sustente durante a prova

Por mais que isto seja assim, entretanto há momentos — e quantos são esses momentos! — em que a fraqueza humana aparece e o homem faz a seguinte reflexão: “Eu sei que deveria agir de tal modo e não fazer outra coisa. Vejo o peso que isto representa, e precisaria realizar um sacrifício. Porém esse sacrifício me dói. Estou disposto a fazê-lo aos poucos, mas como me faria bem se eu notasse que um olhar bondoso participa da minha dor e me diz: ‘É bem verdade, você tem que fazer esse sacrifício e a mim me dói. Eu até tomo sobre mim uma parte de seu sacrifício. Entretanto, meu filho, algo é intransferível e tem de ser feito por você, para sua glória, para seu bem. Você seria roubado se lhe fosse tirada a possibilidade de sacrificar-se. Faça o sacrifício, mas eu o olho com afeto, com compaixão durante esse tempo. Vamos para frente e coragem!’”

O homem, tratado assim durante a prova e na dor, recebe uma comunicação da força do outro. É como uma pessoa sem firmeza para andar, mas que é sustentada pelos braços de outrem. O passo é vacilante, ela anda, mas precisa de um apoio, um braço amigo que a sustente. Como não dizer “muito obrigado”? Como não sentir-se bem junto a esse braço amigo que ajuda? É evidente.

O inesgotável amor materno

Esse é bem o papel de Nossa Senhora. Ela é insondavelmente misericordiosa! Na ladainha ao Sagrado Coração de Jesus, uma das invocações é: “Cor Jesu, patiens et multæ misericordiæ, miserere nobis — Coração de Jesus, paciente e muito misericordioso, tende compaixão de nós”. A fonte de todas as virtudes é Ele. E na misericórdia, como em tudo o mais, Ele está infinitamente acima de Maria Santíssima.

Mas querendo fazer os homens sentirem, ao último ponto, a misericórdia de Nosso Senhor, Deus dispôs que ela fosse representada naquilo que é o amor mais desinteressado de que o homem pode beneficiar-se habitualmente nesta vida.

Nas épocas normais da humanidade, notamos nas relações familiares o seguinte: às vezes, o marido pode romper com sua esposa, o pai com seu filho, o filho com seu pai, os irmãos entre si; quanto aos outros graus de parentesco nem se fala! O filho pode até romper com sua mãe, mas é raríssimo a mãe romper com seu filho.

E esse amor materno vai tão longe, na ordem da natureza, que quando Jesus chorou sobre Jerusalém, antes de chegar ao Horto das Oliveiras, Ele disse: “Jerusalém, Jerusalém, quantas vezes Eu quis reunir teus filhos, como a galinha reúne os pintinhos debaixo das asas, mas tu não quiseste!”(1). Para exprimir o extremo do seu amor, Ele quis compará-lo ao amor materno, mas neste grau, nesta forma: uma galinha em relação aos seus pintinhos! Ele recorreu a essa figura para nos fazer compreender, de modo tocante, o que há de inesgotável no amor materno.

Mãe das misericórdias insondáveis

Assim, Nosso Senhor dispôs que conhecêssemos e sentíssemos em sua Mãe quintessências de misericórdias que Ele deu a Ela e que nós, simplesmente na consideração do Redentor, não chegaríamos a perceber. Porque Ele é tão alto, tão perfeito, tão divino que nosso olhar não abarca tudo. Convinha, portanto, que a misericórdia d’Ele se fizesse como que outra pessoa para nós a conhecermos bem. Esta é Nossa Senhora.

Maria Santíssima fica tão bem ao lado de Nosso Senhor Jesus Cristo! Ela é Mãe de misericórdia, a nossa advogada. Nosso Senhor Jesus Cristo é nosso Redentor, nosso Mediador. Ele é também nosso Juiz e nos julga. E quando pensamos que Ele é nosso Juiz… Há um salmo que diz: “Si iniquitates observaveris, Domine, Domine, quis sustinebit? — Se observardes, Senhor, as iniquidades, quem, Senhor, se sustentará diante de Vós?”(2). Agora chegou o justo Juiz, perfeitíssimo, que conhece tudo, cujo olhar pousará sobre mim e verá meus defeitos… Eu adoro a exigência e a intransigência desse olhar. Mas, para usar uma metáfora, eu cambaleio e preciso que alguém me sustente.

Perto de mim tenho uma Mãe que é d’Ele e minha, a Mãe de misericórdia, quer dizer, se toda mãe deve ser misericordiosa por natureza, a Mãe de misericórdia tem misericórdias insondáveis, incontáveis, inenarráveis, a todos os momentos e de todas as formas! Ela é tão perfeita e tão pura, que nunca deu a Ele o menor desagrado, o menor desgosto. Ela é a criatura perfeita em que Ele deitou seu olhar e A amou inteiramente, porque Ela nunca, nunca, nunca fez outra coisa a não ser corresponder à graça de um modo perfeito.

O melhor da misericórdia de Maria Santíssima

Qual a impostação d’Ela a meu respeito? Ela vê meus defeitos, mas não julga. Ela cobre-me com o manto e diz: “Juiz inflexível e divino, Eu vos adoro! Este é meu filho, e ainda vou dar um jeito nele. Ajudai-o, dai-lhe mais graças. Eu o amo e peço por ele. Tenho com ele um vínculo especial. Ó meu Filho, vós sabeis o que é uma mãe, pois Eu sou vossa Mãe! Com o mesmo Coração materno com que Vos amo, Eu amo a ele. Sou Eu que Vos estou pedindo!”

E com estas palavras: “Sou Eu que Vos estou pedindo”, é claro, vem a misericórdia. Quer dizer, Nosso Senhor foi tão misericordioso que, querendo nos conceder uma misericórdia levada a um limite inimaginável, criou a Mãe d’Ele, de tal maneira que Ela pedisse por nós e obtivesse o que nós, sem Ela, não poderíamos obter.

Temos aí o papel de Nossa Senhora, ao lado de todas as inflexibilidades de que falei. E aí encontramos a razão para esperar. Esperar o quê?

Maria Santíssima tem pena de nós e nos considera com bondade indizível. O auge da bondade d’Ela não está em nos deixar no pecado e nos olhar com compaixão, mas em nos obter graças pelas quais nossa alma é tocada especialmente, e recebe forças correspondentes a nossa miséria para não pecar, de maneira que possamos sair do pecado. Aqui está o melhor da misericórdia: Ela, porque tem pena do pecador, dá a ele os meios de se curar. Nossa Senhora é a Rainha e o canal de todas as virtudes, a Medianeira de todas as graças. As virtudes que temos nos foram dadas porque Ela pediu. E as que não possuímos, podemos adquirir se Ela rogar por nós. 

As mil maneiras de Nossa Senhora nos socorrer

E o que a Santíssima Virgem fará? São mil coisas: ora será um apego que Ela faz cessar e a alma encontra o caminho livre diante de si; ora uma má companhia que Ela afasta; ora uma má influência a respeito da qual Ela nos abre os olhos e nós compreendemos que aquilo não serve; ora a nossa moleza contra a qual Ela dá de repente uma força que não supúnhamos ter e fazemos aquilo que não queríamos realizar.

Quer dizer, Nossa Senhora age de mil modos, cada um deles previsto pela sabedoria divina e atuando na alma de uma determinada forma. O fato é que Ela vai atendendo, socorrendo o homem de maneira a torná-lo capaz de cumprir aquele dever magnífico apresentado de um modo tão estupendo pela Moral Católica, mas diante do qual, às vezes, o homem estremece.

Rezem à Mãe de Misericórdia! Ela os ajuda a vencer, e com mérito. Porque em nenhum momento Maria Santíssima tira nossa liberdade. Se quisermos, não correspondemos à graça, mas o caminho está aplainado, o sorriso está dado e Ela chama: “Meu filho, venha!”

Quanta misericórdia entra dentro disso! A misericórdia tem isso de próprio: ela estimula especificamente a gratidão. A quem é misericordioso temos necessidade de tratar com misericórdia. E se algum homem na vida teve misericórdia conosco, um dia em que ele precise de nossa misericórdia, será para nós uma espécie de alívio tratá-lo com misericórdia. Há uma tranquilidade para a nossa alma: encontrei uma oportunidade de ser misericordioso com ele. Os misericordiosos obterão misericórdia. 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 24/10/1981)

 

1) Cf. Mt 23, 37.

2) Sl 130, 3 (Nova Vulgata).

Maria Santíssima: Rainha a dois títulos

Nossa Senhora é Rainha porque é Mãe de Deus. Ninguém teve, nem pode ter, com a Santíssima Trindade uma união mais estreita do que Ela. A Santíssima Virgem é, por excelência, a Filha do Padre Eterno, a Mãe do Verbo Encarnado e a Esposa do Espírito Santo, que gerou n’Ela Nosso Senhor Jesus Cristo.

Além disso, Ela é Rainha porque a Providência colocou o governo de todas as criaturas nas mãos d’Ela. Quer dizer, sendo a Medianeira de todas as graças, as orações que sobem a Deus devem passar por Ela. Se o Céu inteiro pedisse algum favor sem Ela, não obteria. Maria Santíssima pedindo sozinha obtém. Isto é ser Rainha, na maior força do termo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 31/5/1969)

Revista Dr Plinio 208 (Maio de 2016)

Refúgio por excelência

Está na perfeição de Maria Santíssima ser um imenso, perene e contínuo refúgio para todos os seus filhos, de modo especial em relação aos pecadores, sejam eles quais forem, culpados de faltas leves ou graves. Tudo que diz respeito a Nossa Senhora é admirável, extraordinário, excedendo a nossa capacidade de cogitação. Assim também a sua disposição em amparar os que andaram mal, em perdoar pecados de tamanho inimaginável e ingratidões insondáveis, desde que a alma se volte para Ela e Lhe peça o maternal auxílio.

A Mãe de Deus pode cobrir tudo, proteger tudo, alcançar toda espécie de perdão para toda espécie de crime. Ela é, na verdade, o nosso refúgio por excelência.