Confiança

Nas graves circunstâncias de nossa vida, o que a Santíssima Virgem deseja de nós, acima de tudo, é um imenso ato de confiança.

Por isso, genuflexo, peço a Ela nos tornar cada vez mais os que — na tormenta, na aparente desordem, na aflição, na quebra aparente de tudo o que poderia representar para nós a vitória —, sempre confiaram na misericórdia d’Ela.

(Palavras de Dr. Plinio em uma de suas últimas conferências, em agosto de 1995)

Rosa das rosas, rogai por nós!

Assim como a rosa detém uma primazia de beleza sobre todas as flores, assim Nossa Senhora sobrepuja em formosura todos os outros seres saídos das mãos do Onipotente.

Por isso, Ela é a Rosa Puríssima, a Rosa Mística, a Rosa de Jericó, a mais bela das almas, a mais linda das criaturas de Deus.

Se nós nos puséssemos de joelhos diante de Nossa Senhora e Lhe ofertássemos uma rosa de esplendor paradisíaco, Ela certamente a tomaria em suas mãos virginais, e em seus lábios afloraria um  sorriso encantador. Porque  o que há no fundo d’Ela entrou em consonância e brilhou com a perfeição da rosa. Mas… quanto o sorriso d’Ela é mais belo e luminoso do que a luminosidade e beleza  da rosa! E quanto, portanto, o que existe no íntimo da alma d’Ela vale mais do que aquilo que A fez sorrir!

E se Ela condescendesse em nos dar de presente a rosa, nós a guardaríamos com todo o cuidado, depois de murcha, numa página de álbum em que escreveríamos: “A rosa diante da qual a Rosa  sorriu”.

E nos lembrando da Senhora desse sorriso, diríamos a Ela: “Rosa Rosarum, ora pro nobis”. — Rosa das Rosas, requinte de rosa, transcendência de rosa, a mais bela rosa do universo, rogai por
nós!

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Vossos olhos misericordiosos a nós volvei

Com um olhar de recriminação, mas cheio de misericórdia, Nosso Senhor converteu São Pedro. Também Nossa Senhora tem olhos de misericórdia, e um olhar seu pode salvar-nos.

Este é o sentido da Salve Rainha: Olhai a miséria de nossa situação, atendei a penúria em que estamos. Tende pena de nós, Vós que sois nossa advogada.

É preciso pedirmos, invocarmos, insistirmos que estes olhos se voltem para nós.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 24/5/1965)

Rainha e Mãe…

Trazendo em seu seio virginal o Salvador do gênero humano, Maria Santíssima foi, de algum modo, Rainha do sagrado fruto de suas entranhas, o Messias esperado das nações!

 

Qual é o fundamento da realeza de Nossa Senhora? Por que Ela é Rainha? Em que consiste esse título?

Antes de tudo, cumpre considerar que convém a um rei ser filho de uma rainha. Ora, sendo Nosso Senhor Jesus Cristo Rei de todos os homens — quer enquanto Deus, quer enquanto homem —, a realeza de Nossa Senhora resulta do fato de ser Ela a Mãe do Rei. Entretanto, há também uma razão muito mais profunda.

Virgem concebida sem pecado original, cujas orações trouxeram o Salvador ao mundo

Desde o pecado de Adão, havia quatro mil anos de separação entre Deus e os homens, durante os quais não se podia ir para o Céu, ficava-se no Limbo à espera do momento em que Nosso Senhor Jesus Cristo nascesse e resgatasse a humanidade.

Aguardava-se, então, que Deus criasse aquela Virgem excepcional, dotada de uma santidade e de uma perfeição que os homens jamais poderiam imaginar, de cujo ventre nasceria o Salvador.

Vendo qual era o estado miserável da humanidade, Maria Santíssima pedia a Deus que enviasse o Salvador à Terra nos seus dias. Ela ansiava também conhecer a Mãe do Salvador e poder servi-La como criada ou escrava. Podemos imaginar o que deve ter sido o estremecimento de alma de Nossa Senhora quando teve conhecimento, pela saudação angélica, de que essa pessoa era Ela mesma. Qual foi o sobressalto virtuoso, santo e ao mesmo tempo jubiloso da alma d’Ela, vendo que era escolhida para ser a Mãe de Deus?!

Então compreendemos bem a perfeição da resposta da Virgem ao Anjo: “Eis a escrava do Senhor, faça-se em Mim segundo tua palavra” (Lc 1, 38). Quer dizer: “Eu julgava que não merecia, não estava ao meu alcance, mas, uma vez que vem de Deus o convite, faça-se em Mim segundo a tua palavra”. Nesse momento o Espírito Santo atuou em Nossa Senhora e foi concebido n’Ela Nosso Senhor Jesus Cristo.

As relações de alma entre o Filho e a Mãe durante a gestação

Começava então o período belíssimo em que Nosso Senhor Jesus Cristo vivia em Maria. Durante todo o tempo da gestação, Ela foi o sacrário dentro do qual Nosso Senhor dava glória ao Padre Eterno.

Pelo conhecido processo do desenvolvimento da criança no claustro materno, Ele recebia d’Ela, continuamente, os elementos necessários para a formação de seu corpo. Mas não devemos imaginar que esta relação tão íntima entre a mãe e o filho, quando este vive no claustro materno, fosse apenas física e corpórea. Era também uma relação espiritual e sobrenatural.

À medida que, do corpo e do sangue de Maria, Nosso Senhor ia formando o seu próprio Corpo, estabeleciam-se relações de alma entre Ele e Ela cada vez mais íntimas, de maneira tal que, no momento do nascimento, o processo de união de Jesus com Nossa Senhora também chegou a seu termo. E em Belém, quando Ela, pela primeira vez, O contemplou com seus próprios olhos, havia terminado um processo intimíssimo de união cujo verdadeiro alcance só poderemos compreender no Céu, na medida em que não haja nessa realidade tão sublimes mistérios que sobrepujem a qualquer compreensão.

Nossa Senhora foi, de algum modo, Rainha de Nosso Senhor Jesus Cristo

Mas não devemos imaginar que, nascendo Nosso Senhor, a união d’Ele com Ela diminuiu; pelo contrário, sendo a Virgem Maria cada vez mais santa e perfeita, a união d’Ela com Ele se desenvolvia sempre mais, de maneira que aquela união havida durante toda a gestação de Nosso Senhor Jesus Cristo, depois do nascimento foi crescendo ainda mais. E Nossa Senhora tinha mais união com Ele no momento da morte de Jesus do que em qualquer outra ocasião da vida, porque ali as relações entre os dois tinham chegado a um ápice.

Ou seja, quando vivia em Nossa Senhora, Jesus estava em relação a Ela numa dependência completa, como está o filho no claustro materno, o qual não tem vontade própria, mas depende inteiramente da mãe. Nosso Senhor não iria ficar “independentoso” depois que nasceu. Pelo contrário, celebra-se  a obediência, a união d’Ele com seus pais. Quer dizer, Nossa Senhora foi tendo uma autoridade materna cada vez mais enriquecida em relação a Nosso Senhor, até o momento d’Ele morrer.

Então, a esse título, Nossa Senhora foi, de algum modo, Rainha de Nosso Senhor. E quem é Rainha de Nosso Senhor é Rainha de tudo, evidentemente. E a realeza de Maria vem do poder e autoridade que Ela exerceu sobre Aquele que é o Poder e a Autoridade, e que Nossa Senhora conservou até o fim de seus dias, e tem no Céu.

Assim compreendemos por que Nossa Senhora é chamada a onipotência suplicante. Ela não é senão uma criatura humana, uma escrava de Deus. Mas, como Mãe de Deus, sua súplica é onipotente. É pela vontade de Deus que todos os desejos d’Ela são atendidos. Aquela que sempre é atendida por Aquele que é o Rei do Universo, evidentemente é a Rainha do Universo. A realeza de Maria tem como ponto de partida a realeza d’Ela sobre Nosso Senhor Jesus Cristo.

Então é uma realeza que contém todas as outras realezas, todas as alegrias, todos os direitos, etc. A autoridade d’Ela sobre a Igreja, sobre cada católico, resulta deste fato: Ela é a Mãe de Deus e tem com Deus essa relação. Então Ela é a Rainha.

Por ser a Medianeira Universal, Nossa Senhora é a Rainha de cada alma individualmente

O que significa a realeza de Maria vista, não desse ângulo altíssimo, mas num aspecto mais acessível à consideração de todos nós, homens?

Todas as nossas preces, todos os nossos atos de adoração, de ação de graças, de reparação, de louvor que queremos fazer subir ao trono de Deus, devem ser feitos por meio de Nossa Senhora.

E, em sentido inverso, todos os dons que recebemos dos Céus nos vêm por meio de Nossa Senhora. De maneira que Ela é o canal necessário entre nós e Deus. Não necessário pela natureza das coisas, mas Deus, por um ato de sua vontade livre, estabeleceu que fosse assim. Ela é, portanto, a Medianeira de todas as graças.

É verdade de Fé que tudo aquilo que todos os santos pedissem, não por intermédio de Nossa Senhora, eles não receberiam. Mas tudo quanto Maria Santíssima pede, sem que nenhum santo peça, Ela recebe. Compreendemos, então, que qualquer oração que um de nós faça, ou é encaminhada por meio de Nossa Senhora, ou Deus Nosso Senhor ignora. Ela é a Medianeira Universal de todas as preces que vão para Deus, o canal de todas as graças que Deus concede aos homens.

Esta grande verdade coloca Nossa Senhora na posição que Ela deve tomar no culto católico. E está, em larga medida, imbricada no livro de São Luís Grignion de Montfort a respeito da verdadeira devoção a Maria Santíssima. Quer dizer, o princípio da escravidão a Nossa Senhora se funda em grande parte nessa verdade, que faz par com a verdade de que a Santíssima Virgem é a onipotência suplicante.

Minha vida é, em última análise, dirigida, ritmada, orientada segundo os desígnios da Providência, de acordo com as graças que eu recebo. Então, Nossa Senhora é minha Rainha, e Ela dispõe de mim como quer. Minha vida espiritual tem Maria Santíssima como centro. Ela é, portanto, Rainha de cada alma individualmente, pois, concedendo essas graças, Nossa Senhora governa as almas. Ela é, portanto, Rainha de todas as almas, Rainha dos Corações.

A Rainha dos Corações, pela ação da graça

Esta é uma linda invocação, cujo sentido é preciso entender, e que está muito relacionada com a devoção a Nossa Senhora conforme a escola de São Luís Maria Grignion de Montfort.

O que vem a ser a Rainha de todos os corações?

O coração não é principalmente símbolo da ternura e do afeto. Na linguagem da Escritura, que é evidentemente o sentido empregado pela Igreja quando fala de Nossa Senhora Rainha dos Corações, o coração significa o ânimo, a mentalidade, a vontade do homem.

Ser Rainha dos Corações significa que Maria Santíssima tem poder sobre a mente e a vontade dos homens. Ela pode desvencilhar os homens dos defeitos que eles têm e tornar tão vivo o atrativo para o bem, que os leve — não por uma imposição tirânica, mas pela ação da graça — para onde Ela entenda. Então, Nossa Senhora Rainha dos Corações é, por excelência, Nossa Senhora Rainha.

Nossa Senhora é também a Rainha da sociedade humana

Como Maria Santíssima é Rainha do coração, da mentalidade de cada homem individualmente considerado, podemos dizer que Ela é Rainha da sociedade humana, da opinião pública, porque esta não é senão todas as mentalidades enquanto imbricadas umas nas outras, influenciando-se reciprocamente.

O que quer dizer isso concretamente?

Deus não criou o universo ao acaso; tudo que Ele faz é com conta, peso e medida. Consideremos o número enorme de camarões que existem no mar, e o número dos que houve desde o início do mundo e haverá até o fim. Essa imensa quantidade de camarões forma uma coleção que exprime a natureza “camarônica”, se assim se pudesse dizer, em todos os seus aspectos, de maneira que quando chegar a vez do último camarão criado se extinguir, está constituída uma série admirável de camarões que desapareceram, mas ficam nas realizações de Deus, na história do universo como uma perfeição que Deus fez.

Assim também, quando estiverem reunidos no vale de Josafá para serem julgados, os homens notarão que são uma coleção e que tudo quanto há na natureza humana de possível foi de algum modo expresso por cada homem. De maneira que na obra de Deus faltaria algo se tal homem não tivesse sido criado. Cada um tem um papel num plano sublimíssimo, que se revelará por ocasião do Juízo Final. E depois ficará revelado para todo o sempre qual foi o plano de Deus com o gênero humano, e quais pessoas foram chamadas para o Céu porque mereceram, e quais foram para o Inferno.

Assim, os homens são passíveis de serem vistos num olhar de conjunto. E o gênero humano visto em torno d’Aquele que é a sua expressão mais perfeita, e contém e sublima tudo quanto há no gênero humano de belo: Nosso Senhor Jesus Cristo. E, infinitamente depois d’Ele, mas incomensuravelmente antes de todos os homens, a Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, Nossa Senhora.

Essa coleção dos homens que há, houve e haverá se chama gênero humano. E dentro do gênero humano não existe um salto. Os grandes saltos não estão na regra geral da obra do Criador. Entre o gênero humano e cada homem individualmente, existem os grandes grupos humanos, que são as raças. Dentro das raças, as nações; dentro das nações, as regiões; das regiões, as cidades; das cidades, as famílias; e dentro das famílias, os homens. Quer dizer, formam um conjunto de grupos que ligam o homem ao grupo supremo, que é o gênero humano; constituem então, de A até Z, a estrutura da humanidade.

Nesse sentido o que é uma nação, um país? É, por sua vez, uma espécie de coleção, um dos aspectos da humanidade que se revela de certo modo; um denominador comum de todos os homens que constituem aquela nação e que exprimem uma virtualidade da natureza humana. Esse todo repete de algum modo dentro de si o que é o gênero humano. Essa coleção é como um mosaico constituído pelos indivíduos vivos, mas que têm uma projeção na História e uma continuação naqueles que viverão. É propriamente isto que constitui, na sua visão completa, a sociedade humana.

Nossa Senhora é, então, Rainha desta enorme alma coletiva — se se pudesse usar esta metáfora — da humanidade, que é a opinião pública, com todas as interações, as interinfluências que a constituem.

Uma sociedade que aceita o governo de Nossa Senhora

Como é uma sociedade que obedece a Nossa Senhora? Santo Agostinho definiu isso perfeitamente, apresentando uma imagem magnífica da sacralidade, do respeito, da ordem, do bem-estar da alma e do corpo.

Contra a afirmação dos pagãos de seu tempo de que a causa de tantas desordens no mundo era o fato de haver católicos, o Bispo de Hipona fez a seguinte apóstrofe: “Imaginai um reino onde o rei e os súditos, os generais e os soldados, os pais e os filhos, os professores e os alunos são católicos e procedem de acordo com a Doutrina Católica! Vós tereis a ordem humana perfeita. Ordem de paz, de glória, de sabedoria, de esplendor, de felicidade”.

Essa é a ordem que nasce do fato de todo mundo fazer a vontade de Deus, e, portanto, a de Nossa Senhora, que é a Rainha. Essa é a descrição da ordem humana, tão completamente diversa da desordem que hoje reina.

Qual é a razão pela qual reina essa desordem? No livro “Revolução e Contra-Revolução” tentamos explicar isso. A humanidade rompeu com Nosso Senhor Jesus Cristo e com Nossa Senhora, rompendo com a Santa Igreja, porque só está unido a Nosso Senhor Jesus Cristo e a Nossa Senhora quem está unido à Santa Igreja Católica. Rompendo cada vez mais com a Santa Igreja, a desordem foi entrando no mundo até esse auge em que estamos atualmente.

Então há os que são chamados para restaurar essa ordem, implantar o Reino de Maria: a sociedade humana fazendo a vontade de Nossa Senhora. Porque Nossa Senhora é a Rainha efetiva de cada alma, dos grupos humanos menores: família, município, região; e dos grupos humanos soberanos: nações. Porque Ela é a Rainha efetiva do gênero humano. Daí deve nascer aquela ordem perfeita que algum dia existirá na sua plenitude, antes do mundo acabar.

Rainha de cada um e do mundo inteiro

Então nós não olhamos apenas com saudades para as épocas católicas que foram, mas, sobretudo, com esperança para a época católica que virá, o Reino de Maria, onde todas as coisas serão assim.

Devemos viver apenas de uma grande saudade e de uma grande esperança? Não. Nós temos a possibilidade, cada um dentro de si mesmo, de proclamar o Reino de Maria, dizendo: “Em mim, ó minha Mãe, Vós sois Rainha. Eu reconheço o vosso direito e procuro atender às vossas ordens. Dai-me ‘lumen’ de inteligência, força de vontade, espírito de renúncia para que as vossas ordens sejam efetivamente obedecidas por mim. Ainda que o mundo inteiro se revolte e Vos negue, eu Vos obedeço”.

E nessa torrente de desordem e de pecado que há na Terra, a alma de quem afirma isso é como um puro e adamantino brilhante. Assim, Nossa Senhora continua a ter uns enclaves no mundo: aqueles que a Ela se consagram, reconhecem todo o poder d’Ela sobre eles e dizem: “Esteja o mundo revoltado como for, eu me levanto e declaro: em mim Maria Santíssima manda, e por causa disso começo a Contra-Revolução, para que Ela mande também nos outros”.

É a realeza de Nossa Senhora vista por dois lados: enquanto mandando em mim e, em segundo lugar, fazendo de mim um soldado da Contra-Revolução. Quer dizer, um varão que luta para tornar efetiva a realeza de Nossa Senhora na Terra.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 31/5/1972,  31/5/1974 e 31/5/1975)

Rainha dos Profetas

“De Maria nunquam satis”. Esta frase, que ressoou nos lábios e nos corações de tantos santos ao longo da História, aponta para o oceano insondável de perfeições da Mãe de Deus, em cujos maravilhosos mistérios a Teologia sempre se aprofundará, sem jamais esgotá-los.

De fato, luminosas nuvens de mistério envolvem os diversos episódios da existência da Santíssima Virgem, como a sua Assunção e consequente Coroação como Rainha do Céu e da Terra.

Que relação se poderia estabelecer entre esses augustos acontecimentos, a ordem do universo e a História?

Considerando que Maria Santíssima é a mais excelsa das meras criaturas — pois Jesus é Homem-Deus —, todas as operações humanas tomam n’Ela um caráter especial, paradigmático e sublime.

O nascimento d’Ela, como causa do nascimento do Menino Jesus, foi o nascer dos nasceres. Em seu claustro virginal, o Verbo Se fez carne e habitou entre nós; pelo que, o conceber d’Ela foi o gerar dos gerares. Por vontade de Deus, Ela teve a mais suave das mortes, intitulada de “Dormição” pela Teologia. Sua ressurreição foi esplendorosa, mas não à maneira de um estampido, porque não era removida nenhuma pesada laje, mas apenas dissipava-se um leve sono pelo qual Ela havia passado. E, por fim, entre as meras criaturas, quem conheceu e amou a Deus como Ela?

Na vida espiritual, por sua vez, cada progresso de Nossa Senhora, de algum modo, era um nascimento, um crescimento, um apogeu que dava origem a outro nascimento, a outro crescimento, a outro apogeu, excetuada, é claro, a morte no sentido da perda da vida da graça.

A ação de Maria na História se desenvolve de modo a todas essas operações se centralizarem em Nosso Senhor e atingirem seu ápice no Céu, após a Assunção, ao ser coroada pela Santíssima Trindade como a Rainha do Universo.

Nesta vocação de conduzir tudo ao Pai Eterno, a Nosso Senhor Jesus Cristo e ao Divino Espírito Santo, encontra-se o dom profético de guiar, animar e fazer com que se realizem os planos divinos. Isso faz de Maria a Profetiza de toda a Criação.

Assim, a invocação “Rainha dos Profetas” reveste-se de um significado especial, porque é a Rainha de todos os acontecimentos da História. Daí vem a particular nobreza deste título, pois se trata da realeza das realezas, enquanto dando impulso a todo o acontecer histórico.

Maria é a Rainha de todos os nasceres, de todos os felizes e ascensionais desenvolvimentos, cheia de desvelo nos delicados períodos de crepúsculo, e repleta da glória de tudo quanto ressurge de dentro do anoitecer.

Por isso, se algo vai nascendo e desejamos para isso uma particular intensidade de viço, se alguma coisa vai indo bem e queremos que chegue ao seu progresso total, sem os mil desfalecimentos do caminho, devemos recorrer a Ela enquanto Rainha dos acontecimentos. E se algo tem que passar por eclipses, quando tudo parecer perdido, a Estrela d’Alva, ainda é Ela, que pode atrair a manhã e fazer tudo recomeçar.

Poder-se-ia perguntar, então, se o título de “Rainha dos Profetas” ou “Rainha da História” não A move especialmente.

Esta temática abre campo para outras belas indagações dentro da Mariologia:

Se todo caminho histórico tem magníficos nasceres, esplêndidos desenvolvimentos, terríveis eclipses e amanheceres ainda mais radiosos, não haveria uma forma de vida espiritual, de ritmo da própria vida sobrenatural em que a graça, como na natureza, ora instaura, ora confirma, ora prova, ora ressuscita e coroa? E que relação teria isso com o Segredo de Maria e com o Imaculado Coração d’Ela, fonte e impulso de todos os acontecimentos?

Eis cogitações próprias de uma devoção mariana considerada pelo prisma da Revolução e da Contra-Revolução.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

MATERNO PODER

Rainha dos corações enquanto tendo influência sobre a mente e a vontade dos homens, Nossa Senhora exerce esse império não por uma imposição tirânica, mas pela ação da graça, em virtude da qual Ela é capaz de nos libertar de nossos defeitos e nos atrair, com agrado e particular doçura, para o bem que nos deseja.

Esse materno poder de Maria sobre as almas nos revela quão admirável é a sua onipotência suplicante, que tudo nos obtém da misericórdia divina. E cumpre dizer: esse augusto domínio sobre os corações representa incomparavelmente mais do que ser Soberana de todos os mares, de todas as vias terrestres, de todos os astros do Céu — tal é o valor de uma alma, ainda que seja a do último  dos homens!

Plinio Corrêa de Oliveira

Um guerreiro que descansa…

Ao ver fotografias do Castelo de Coca (Espanha), Dr. Plinio analisa o estilo de vida que seus habitantes levavam, e a defesa que tal construção significava contra os inimigos.

 

A primeira impressão causada ao ver fotografias do castelo de Coca é que se trata de uma coisa irreal. Tem-se vontade de dizer: “Isto não existe”.

O artista soube fotografar o castelo numa hora de um contraste muito feliz: o céu sombrio e o castelo muito iluminado. Se o céu fosse azulzinho e não ameaçante, o castelo perderia algo.

Mas não se trata de um sombrio qualquer, pois nota-se no céu uma parte que está luminosa. Dir-se-ia que um raio acabou de passar por lá como um corisco, deixando um resto de luz a qual o ilumina tão magnificamente.

Que castelo! Tem-se a impressão de que é tão grande, têm tantas torres e muralhas, tantos salões e espaços, que se diria ser um castelo incomensurável, de conto de fada.

Imaginemos o viver delicioso dos que nele habitam. Capela interna magnífica e grande como uma catedral; estupendas salas de refeição, de recepção, de trabalho, de reuniões políticas; dormitórios extraordinários; todas as formas de conforto do tempo em que esse castelo foi construído, para um número indefinível de personagens. Personagens nobres, vestidos com riqueza, de maneiras requintadas; quando se encontram nos corredores saúdam-se com cerimônia e fazem grandes reverências, e ao mesmo tempo cochicham e fazem política uns para os outros, ou contra outros, no vai-e-vem da vida de todos os dias.

Realmente, esse castelo foi construído com uma preocupação artística muito apurada. Por exemplo, ele é marcado por umas listas brancas em toda a sua extensão: são pedras de outra qualidade, que formam uma espécie de alternância e concorrem para sua beleza.

Observado o castelo, nota-se em sua parte central um torreão, que é um maço de torres coligadas entre si. Diante desse torreão, percebe-se um pátio enorme, cercado por altas muralhas e grandes torres em cujas extremidades há um conjunto de torres especial que faz uma espécie de equilíbrio com o do centro. Depois, isso se repete, para se chegar ao pátio externo do castelo.

Parece que ele está separado por um valo de água ou um rio.

O castelo nos fala, sem dúvida, de uma requintada vida nobre com as mil delicadezas da civilização cristã. Entretanto, estas se deterioram quando existem num clima sem heroísmo. Ora, esse castelo é feito para combater. É uma fortaleza calculada para resistir a um cerco tão longo que as tropas do adversário vão ficando cada vez menos numerosas e acabem desistindo do ataque. Assim, os assediados podem mandar avisar os aliados, para que venham em socorro deles.

Esse castelo é tão enorme que quase não se imagina como uma tropa possa cercá-lo inteiro; sempre fica com uma portinhola livre para saírem os mensageiros ou entrarem os aliados. É inconquistável ou muito difícil de conquistar. Quando os adversários eram tão numerosos que conseguiam fazer o cerco do castelo, como o castelão se defendia? Mandava um aviso aos seus aliados por meio de pombo-correio, solto de uma das mais elevadas torres, a fim de levantar voo bem alto e não ser atingido pelas flechas do adversário. Numa das patinhas, levava amarrada por uma pequena argola, uma mensagem assinada pelo senhor deste castelo para algum aliado dele.

Às vezes, os castelos muito seguros tinham ainda um ou vários subterrâneos, que conduziam a lugares tão distantes, que o sitiante desconhecia: uma gruta, onde de repente se movia uma pedra e saía um mensageiro, rápido como um corisco; uma árvore, várias vezes centenária, na qual se tinha aberto uma saída de onde saltava um homem e corria levando um aviso. Em alguns casos, esses locais eram guarnecidos por um vigilante oculto, de maneira que se o adversário quisesse entrar ali, de repente uma flecha o atingia pelas costas e ele morria.

O sistema de defesa do castelo era o seguinte:

No primeiro plano se vê uma série de muralhas, no alto das quais devemos imaginar, nos grandes dias de cerco, arqueiros que atiravam flechas sobre os mais próximos inimigos; às vezes eram setas incendiárias que queimavam as pessoas atingidas; ou, lançadas na retaguarda onde estava  o nobre que dirigia o assalto, dificultavam a manutenção do ataque. Se porventura o sitiante conseguisse ultrapassar a primeira muralha, teria depois outras batalhas diante da segunda e por fim frente à terceira. De maneira que eram três guerras concêntricas.

Ora, os que assaltavam o castelo eram sempre pessoas que vinham de outras regiões. Os habitantes do lugar não lhes davam comida, indicavam-lhes caminhos errados. À noite, quando os sitiantes dormiam, a população ateava fogo em suas tendas. Durante o dia, quando os primeiros se apresentavam para combater, ficavam expostos ao ar livre enquanto que os sitiados lutavam detrás de muralhas. Compreendemos assim que um castelo destes é uma potência.

Da ideia de resistir sempre, e com coragem, provém um certo ar heroico deste castelo e que constitui o pináculo da sua elegância.

Uma das melhores definições da elegância, talvez seja esta: a leveza e a distinção do guerreiro quando descansa. Quem não é batalhador e polêmico, não tem verdadeira distinção, nem elegância. Aqueles nobres que lutavam assim contra as investidas maometanas, fortemente apoiados por seus camponeses nos quais eles viam filhos e que os tratavam como pais, fizeram, realmente, a defesa da Espanha e extirparam na Europa o perigo muçulmano. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 5/5/1984)

 

Panaceia celestial

São raras vezes, a Providência permite que se abatam sobre o homem as mais aflitivas doenças corporais, para que se volte humildemente a Nossa Senhora e suplique sua cura. Ao se ver atendido, conhece ele a insondável bondade materna de Maria, sentindo-se atraído e conquistado pela melhor de todas as Mães. E mesmo quando Esta não alivia o mal físico, não deixa de consolar a quem Lhe pede, fazendo ver ao doente o benefício que recebe com a cruz, para a sua santificação — que é o bem-estar da alma.

Por isso é Maria invocada como a Saúde dos enfermos, como o remédio para as nossas moléstias, mas, sobretudo, para as carências de alma, defeitos e lacunas espirituais. Em relação a estes a Santíssima Virgem é, por excelência, a “panaceia” celestial dada por Deus para nos livrar de tantas misérias e nos conduzir à plenitude de santidade à qual somos chamados.

Plinio Corrêa de Oliveira

Nossa Senhora e a Tradição da Igreja

Tudo quanto se referia a Nosso Senhor, Maria Santíssima conservava com enlevo em sua alma. Ela possuía uma memória perfeita porque foi concebida sem pecado original. Após a Ascensão, a Mãe do Redentor fez com que os Apóstolos e discípulos tivessem determinada mentalidade, que depois se exprimiu nos dogmas e na Liturgia; mais do que tudo, Ela manteve certo imponderável dentro da Igreja.

 

A respeito da Igreja primitiva, parece-me que ela não pode ser vista, nem conjeturada, nem analisada a não ser de dentro da Igreja atual.

Por vezes, os livrinhos de História da Igreja apresentam desenhos que não deixam de estar um pouco impregnados pela Renascença, porque, na louvável preocupação de mostrar o primitivismo da Igreja, eles carregam a nota e pintam o ambiente dos Apóstolos, de Nosso Senhor, de Nossa Senhora, não só como não tendo explicitado muitíssima coisa que há na Igreja atual — isso é legítimo —, mas como não possuindo sequer em gérmen as maravilhas que viriam depois. E isto eu considero errado.

Nos albores da Igreja, juntaram-se todas as maravilhas

Por exemplo, numa obra qualquer de História eclesiástica, onde todos nós tenhamos aprendido, não se vê nada em São Pedro e em São Paulo que faça prenunciar o que depois foi um Papa e um Cardeal. Os fatos teológicos sim, mas a ambientação não. São livrinhos perfeitos do ponto de vista apologético, mas insinuam que na ambientação da Igreja daquele tempo não havia nada que fizesse pressentir a Igreja de hoje.

Então, por uma concepção errada, a Idade Média também não estava prevista nem um pouco nas catacumbas. Ela teria florescido quando eclodiu o gótico e, portanto, é muito mais filha da barbárie do que da Revelação.

As iluminuras, que pintam com tanta candura e tanto espírito medieval as cenas, por exemplo, do Natal, não fazem propriamente aparecer aquilo que eu acho que estava na gruta de Belém. A meu ver, na noite de Natal, no “Gloria in excelsis Deo”(1), e depois nos vários episódios que marcaram a História de Nosso Senhor Jesus Cristo na Terra, os Anjos fizeram com que a graça se tornasse, nos imponderáveis, intensíssima, algo no qual já reluzia o Reino de Maria, e que era, portanto, muito superior ao que veio depois.

Seria ridículo imaginar a gruta de Belém como se fosse uma Sainte-Chapelle, quando ela não era senão uma gruta; e que o boi era um animal de raça das cocheiras de Versailles. É uma coisa completamente cretina, não é disso que estou falando. Mas, a propósito de um boizinho ou um burrinho, os mais elementares, os Anjos deviam fazer aparecer ali algo que a Sainte-Chapelle, por assim dizer, não faz senão rememorar.

Tenho a impressão de que na aurora, nos albores da Igreja, juntaram-se todas as maravilhas que foram brilhando nas várias épocas de sua História, num brilho germinativo e inicial que nos é difícil compor. Como seria impossível, por exemplo, um homem que nunca viu o branco, imaginar esta cor a partir da fusão das demais cores, sem fazer rodar aquele disco de Newton. Mas ele poderia entrever e compreender uma síntese. E ali houve uma síntese semelhante. Suponho que Nosso Senhor e toda a sua vida foram assim.

Majestade de Nosso Senhor coroado de espinhos

Creio que isso se verificava em todos os episódios, mesmo da Paixão, como a coroação de espinhos. Nosso Senhor coroado de espinhos deveria ser visto com uma forma de majestade, que não seria apenas a majestade do Profeta, habitualmente representada, mas também a majestade do Rei. E, portanto, com algo que lembraria uma invisível coroa de Imperador do Sacro Império, uma dignidade de Imperador do Sacro Império, injuriada e questionada ali, mas realmente presente.

A meu ver, havia em tudo isso uma espécie de ponto originário, que foi uma categoria de graça mística fenomenal como não se pode ter ideia, e que se prolongou durante a vida terrena d’Ele, mas que com a Ascensão teve uma certa diminuição. E essa diminuição foi intencionada; parece-me direito, normal, que tenha sido assim.

Ele não ascendeu ao Céu para castigar a Igreja primitiva por infidelidades; seria uma hipótese absurda. Ele subiu ao Céu porque tinha que subir. Mas as graças se distribuem desigualmente, segundo os períodos históricos. E há épocas de muita intensidade, às quais devem se seguir épocas de menor intensidade. E para que a ruptura não fosse muito grande, Nosso Senhor deixou a Mãe d’Ele. Temos, então, a Era de Maria, que prepara, continua a Era de Cristo.

Manter certo imponderável dentro da Igreja

Nesse período, da Ascensão à Assunção, Nossa Senhora ajudou os Apóstolos em algo que é bem o trabalho d’Ela, e que Ele não podia fazer: rememorar tudo e, naquela pletora de impressões, de recordações, de ensinamentos e de tudo o que eles deviam carregar — podemos imaginar o que aqueles homens levavam consigo do convívio com Nosso Senhor…; é indizível! —, ajudá-los a ver o que não tinham visto, a dar o devido valor a coisas que haviam banalizado, a pedir perdão pelas infidelidades cometidas, a render graças pelas virtudes que praticaram. E Maria Santíssima, poderosamente ajudada pelas graças do Espírito Santo, retificou o espírito deles a respeito do que havia se passado na vida de Jesus. Tenho a impressão de que para Pentecostes houve um trabalho preparatório d’Ela, e o levou a um certo auge, e depois Nossa Senhora ainda consolidou. Posteriormente subiu ao Céu.

Estava, então, constituída uma coisa que considero incomparável dentro da Igreja: aquilo que eu chamaria a Tradição. E a alma da Tradição da Igreja era a recordação viva neles do ambiente criado por Nosso Senhor, de sua Pessoa, e a repercussão disso, formando uma mentalidade coletiva de todos eles, ligada à instituição Igreja como um tesouro dela, brilhando como um sol, o qual já não era Ele, mas era legado de Nossa Senhora, um trabalho d’Ela consolidando a obra d‘Ele.

Foi, portanto, com a participação, com o influxo de Maria Santíssima que essa profusão de graças passou a ser uma montanha de joias e de recordações ordenadas.

Aliás, o Evangelho fala da memória d’Ela: Nossa Senhora guardava todas essas coisas e as conferia no seu Coração(2). Guardar é memorizar; uma memória contemplativa, que Ela devia ter como ninguém, pois não era concebida no pecado original. Uma memória perfeita, total. Depois, com a santidade d’Ela, era inimaginável o que trazia dentro de Si!

Mas, então, o que é a Tradição?

É possuir, por continuidade, uma determinada mentalidade, que se exprime nos dogmas, na Liturgia; antes de tudo e mais do que tudo, é um certo imponderável dentro da Igreja. E esse foi o trabalho de Nossa Senhora.

Com base nisso, qualquer fiel verdadeiramente reto poderia reconstituir a face da Igreja inteira, se ele quisesse. Eu compreendo que alguém, semi-cúmplice do ambiente de ceticismo ou desinteressado da Religião, não percebesse isso. Mas se fosse honesto, aplicar-se-ia para ele aquela frase que está no hino “Pange lingua: Ad firmandum cor sincerum, sola fides sufficit”(3).

Essa memória da Igreja, organizada por Nossa Senhora, não pode desaparecer, porque a Igreja não pode morrer.  v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 15/9/1982)

 

1) Do latim: Glória a Deus nas alturas. Cântico entoado pelos Anjos aos pastores, na noite de Natal.

2) Lc 2, 51.

3) Do latim: Canta, ó língua: Para convencer um coração sincero, basta apenas a fé (trecho de um hino eucarístico, de autoria de São Tomás de Aquino).

Consagração a Nossa Senhora e a graça divina – I

Ao cumprimentar um grupo de jovens que acabavam de se consagrar a Jesus, pelas mãos da Santíssima Virgem, Dr. Plinio descreve a beleza da alma que se abre para a vida da graça através do Batismo, passando a trilhar os caminhos da virtude, semeados de lutas, tentações e vitórias, até alcançar a santidade para a qual somos todos chamados.

A esplendorosa cerimônia na qual tantos jovens se consagraram a Nossa Senhora como escravos de amor, segundo o método de um dos maiores santos mariais de todos os tempos, São Luís Grignion de Montfort, suscita algumas reflexões que me parece oportuno serem aqui externadas.

A vida e todas as outras coisas, quando consideradas à luz da Fé, são muito mais belas do que observadas apenas com a luz elétrica ou solar. Assim, o ato que acabamos de presenciar, feito belamente na Terra, tem muito mais pulcritude se atentarmos para as realidades sobrenaturais nele contidas.

Duas maravilhas de Deus observadas no jovem

Quando se vê uma pessoa jovem trilhando os caminhos da existência com força, energia, ênfase e resolução, diz-se: “Como é linda a vida!”. Mas, a Fé nos ensina ter Deus criado o primeiro casal — Adão e Eva — que se multiplicou e povoou o mundo, transmitindo a vida a seus descendentes. Naquilo que é apenas carne, o Criador incute uma alma espiritual, imortal, constituída à imagem e semelhança d’Ele. Primeira maravilha.

A criança nasce. Pouco depois, segundo costume dos países católicos, é batizada, e uma outra vida misteriosa se soma à que já possuía. É a segunda maravilha. Antes do Batismo, tinha ela a vida da alma e a do corpo. Este último contém elementos dos reinos animal, vegetal e mineral. E sua alma espiritual é o princípio das vidas animal e vegetal que nele existe. O homem é um compêndio de tudo quanto há na criação, uma obra-prima de Deus.

A vida sobrenatural

Porém, mais magnífica é a vida sobrenatural.

Entre dores indizíveis, no alto do Gólgota, Nosso Senhor bradou: “Eli, Eli, lamma sabactani! — Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?!”, e inclinando a cabeça, disse: “Tudo está consumado”, exalando seu último suspiro. Ele morreu por amor a nós, redimiu todos os homens e nos abriu as portas do Céu.

Sendo o que deu origem a todo o gênero humano, Adão continha de algum modo em si todos os que dele deveriam descender. Por isso o pecado original atingiu a humanidade inteira e era preciso que alguém a resgatasse. A Segunda Pessoa da Santíssima Trindade se encarnou no ventre puríssimo da Virgem e habitou entre nós. Jesus Cristo, Homem-Deus, expiou por essa e todas as outras faltas dos homens, e nos obteve um tesouro maravilhoso: a graça.

Esta é um dom sobrenatural criado por Deus, que nos torna participantes da própria vida divina.

Todos nós temos a felicidade de sermos católicos, pois recebemos a graça do Batismo. E embora não vejamos com os olhos da carne, pela luz da Fé sabemos que em cada um há algo da vida de Deus.

O Altíssimo não foi criado; é o Criador de todas as coisas. A graça é uma participação criada na existência incriada d’Ele. E cada um de nós é uma tocha que arde com a graça divina. Esta é a realidade, apesar de não a percebermos fisicamente.

A grande batalha do homem

Junto com esse maravilhoso início da vida sobrenatural, começa para o homem a grande batalha de sua existência neste mundo.

Antes de receber a Primeira Comunhão, a criança aprende no catecismo os Dez Mandamentos da Lei de Deus. Como eles são belos e apaziguam a alma! Lembro-me — há tantos anos! — de quando os aprendi, decorava-os e dizia para mim mesmo: “Que coisa bonita! Não mentir, não roubar, honrar pai e mãe, amar a Deus sobre todas as coisas, não tomar em vão o Santo Nome, etc.”.

E, encantado, pensava: “Se todas as pessoas agissem assim, como o mundo seria belo e diferente do atual!”

Com mais ou menos intensidade, todos devem experimentar sentimentos desses, quando aprendem os Dez Mandamentos. Porém, por mais belos que eles sejam, ao chegar a hora de praticá-los, começa a batalha! É árduo cumprir o decálogo. Conforme a pessoa, alguns Mandamentos são mais custosos ou menos. Mas, respeitá-los integral e duravelmente… oh! que dificuldade!

Donde o ensinamento da Igreja, segundo o qual ninguém, por mais virtuoso que seja, consegue praticar estavelmente todos eles, apenas pelo esforço humano. Para isso, é preciso a graça. Ela é que nos escolhe. Não fomos nós que a escolhemos. O que éramos no momento em que fomos batizados? A maior parte, uma criança levada pelos pais e padrinhos à igreja para receber o Sacramento do Batismo. Enquanto o padre o administrava, o bebê, sem o uso da razão, pronunciava ou articulava sílabas que mais tarde seriam palavras. Ele estava tendo impressões que depois seriam pensamentos. Naquele instante, era uma simples criancinha.

Certo dia, começa o uso da razão, da vontade, e chega a hora da tentação. Tem desejo de mentir, de se encolerizar com os pais, preguiça de estudar, desobedecendo portanto à ordem recebida dos progenitores; vontade de fugir da aula…

A esse propósito, recordo-me dos meus tempos de menino, quando estudava numa sala que dava para o jardim de casa, sobre o qual deixava vagar meus olhos. Nossa governanta, “Fräulein” Mathilde, fiscalizava-me e eu pensava: “Se eu pudesse andar ou correr por esse jardim!” Primeiro, para me ver livre da aritmética ou da geografia, matérias não muito apreciadas por mim. Além disso, em vez de ficar assentado junto a uma escrivaninha, estaria respirando o aroma das flores. Mas, tinha de obedecer e continuava a fazer minhas lições.

Entretanto, há um momento em que não temos mais a presença da “Fräulein”, tornamo-nos mocinhos, ninguém nos vigia e cumprimos o dever porque a consciência diz a cada um de nós: “Os Mandamentos proíbem fazer tal coisa. Você quer ou não obedecer a Deus? Do alto do Céu Ele o vê!”

Por um lado queremos; por outro, não. E pensamos: “Como é bom estar em paz com Deus, mas, como é agradável fazer aquilo que Ele proíbe… O que escolho? Deus ou o gostoso?”

Tem início a batalha, a qual se estende até o último suspiro de vida, por mais velho que o homem morra; até o derradeiro momento de sua existência ele se acha sujeito à tentação, e se nela consentir, pode perder a própria alma.

O papel da graça nessa luta

Como se fosse a mão de Deus abrindo nossos olhos, a graça sempre nos adverte: “Meu filho, tal ato não é bom; aquele outro é correto. Veja como Eu o amo. Considere o Sagrado Coração de Jesus, o Imaculado Coração de Maria; os Mandamentos, a Igreja, o seu ensinamento; a Comunhão que você pretende receber e não pode ser sacrílega. Lembre-se da confissão que fez há pouco, na qual se comprometeu a não mais pecar. E agora, você ainda vai me ofender?

Meu filho, coragem! Força!”

A pessoa diz “não!” à tentação e progride na virtude.

(Continua em próximo número)