À nossa espera…

Meu filho, aqui estou Eu, sozinha, no canto a que teu desprezo me relegou, repleta daquele amor materno que tua rejeição comprime em Mim e impede que se expanda; daquele afeto que se conserva intacto em sua abundância e intensidade, palpitando de compaixão, à espera de que retornes para te purificar, te envolver e cumular com sua misericórdia inesgotável…

Como um magnífico nascer da lua…

O nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo representou uma honra incomparável para toda humanidade. Guardadas as proporções, também a vinda de Nossa Senhora ao mundo conferiu particular nobreza ao gênero humano. Foi Ela a criatura mais perfeita nascida até então, concebida sem pecado original, a quem foi dada, desde o primeiro instante de seu ser, uma superabundância de graças.

Compreende-se pois, a afirmação de que Maria Santíssima está para Nosso Senhor, assim como a lua para o sol: Ela representa a suave e amena luminosidade da lua, e Ele, a onipotente e deslumbrante claridade do sol.

Há, sem dúvida, imensa beleza no despontar do fulgurante astro. Contudo, em certas ocasiões, o aparecimento da lua tem também seu encanto, sua poesia e sua grandeza. A natividade de Nossa Senhora foi, pois, para toda a humanidade, como magnífico nascer da lua: sol das sombras, sol do repouso, sol das longas meditações e das extensas digressões do espírito…

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Prece à Rainha dos Anjos

Ó Maria, Mãe minha e Rainha dos Anjos, ordenai ao santo anjo de minha guarda que atue continuamente no íntimo de minha alma. Fazei com que, mesmo em meio às solicitações mundanas que arrastam para cogitações e interesses que não são os vossos, tenha eu sempre em mente os vossos interesses e as vossas cogitações. Por esta forma, deixarei de sofrer as influências da Revolução e passarei a influenciar, com a vossa presença, o mundo que se encontra ao meu redor.

Serei, assim, uma espécie de porta-estandarte vosso a proclamar vosso Reino e a antecipá-lo na Terra. Serei eu próprio como um anjo vitorioso a abrir o caminho para o momento bendito, profetizado por Vós em Fátima: “Por fim, meu Imaculado Coração triunfará!”.

Para isto, dai-me firmeza de propósito, fidelidade inquebrantável, e um entusiasmo que nenhum menosprezo, nenhuma perseguição, nenhum risco possam abater. Amém.

Plinio Corrêa de Oliveira (Oração composta por Dr. Plinio em 15/11/1976)

Confiança na misericórdia de Nossa Senhora

Nas graves circunstâncias de nossa vida, o que a Santíssima Virgem deseja de nós, acima de tudo, é um imenso ato de confiança. Por isso, genuflexo, peço a Ela nos tornar cada vez mais os que —  na tormenta, na aparente desordem, na aflição, na quebra aparente de tudo o que poderia representar para nós a vitória —, sempre confiaram na misericórdia d’Ela.

(Palavras de Dr. Plinio em uma de suas últimas conferências, em agosto de 1995)

Plinio Corrêa de Oliveira

Imaculado Coração de Maria: lições de santidade

Refletindo a respeito de uma piedosa invocação da Ladainha do Imaculado Coração de Maria, Dr. Plinio não se prende aos esquemas devotos tradicionais, mas tira conclusões inesperadas a  respeito do materialismo que pode nos escravizar…

Como em geral acontece com as ladainhas compostas ao longo dos tempos pela piedade católica, as jaculatórias da Ladainha do Imaculado Coração de Maria sugerem, cada uma, desdobramentos  e considerações que muito enriquecem nossa vida espiritual e nossa devoção à Santíssima Virgem.

Procuremos analisar, por exemplo, a invocação “Cor Mariae, in quo Jesus sibi bene complacuit”, que em português poderíamos traduzir assim: Coração de Maria, no qual o Coração de Jesus bem se compraz.

Plenitude de satisfação

Devemos começar por observar que este “bem” salienta a ideia do inteiro e perfeito comprazimento de que nos fala a jaculatória. Ou seja, o Coração de Maria possui uma tal excelência que, tanto quanto é possível à natureza criada, nada lhe falta, e por isso nele Nosso Senhor encontra uma satisfação completa, que não conhece névoa, que não tem limites nem máculas. Excetuando o fato de que o contentamento infinito de Jesus é e só pode ser com o próprio Deus, em tudo o mais Ele acha total alegria no coração e na pessoa de sua Mãe Santíssima.

Quer dizer, Nosso Senhor fita a Santíssima Virgem, olha-A, e ao vê-La, ao contemplá-La, ao analisá-La, experimenta o maior dos prazeres, um deleite indizível, que sobrepuja todas as outras delícias que Lhe proporciona a consideração de suas demais criaturas. Não poderia ser diferente, em se tratando d’Aquela que foi escolhida, desde toda a eternidade, para engendrar em suas  entranhas virginais o Filho de Deus; d’Aquela, portanto, em que tudo haveria de ser absolutamente puro e perfeitamente magnífico.

Em todos os momentos de sua vida terrena, Ela não deixou de crescer em santidade, de um modo inimaginável. Cada graça que Deus lhe concedeu para se adiantar na virtude era correspondida com tal excelência que todo o progresso feito  por Ela é insondável para a mente humana.

Assim, em todos os instantes da existência de Nossa Senhora neste mundo, Jesus teve com Ela um contentamento completo.

Mesmo nas ocasiões mais difíceis como, por exemplo, quando Ela se viu chamada a consentir na morte de seu Divino Filho, e através de uma anuência inteira, heroica, da qual não sobrasse nenhum resíduo, mesmo em situações como essa o procedimento de Maria foi perfeito, no sentido mais exato da palavra. Porque Ela era, enquanto mera criatura, absolutamente exímia. E, como  reza a Ladainha, Nosso Senhor encontrou n’Ela a sua complacência.

Uma lição da sabedoria divina

Do fato desse comprazimento podemos tirar uma bela lição que Deus dá aos homens. Com efeito, criou Ele magnificências materiais extraordinárias. Quantos mistérios haverá por todas as  galáxias do universo? E quando nos detemos na análise dos micro organismos, dos seres pequenos, quantas novidades imensas se descobrem ao nosso maravilhamento! Todo esse fabuloso  conjunto, incluindo os homens e os Anjos, constitui para Deus o objeto de uma eterna contemplação.

Ora, tendo Ele tanto a apreciar, todavia coloca acima de tudo, como fonte do supremo gáudio que pode tirar de suas criaturas, a consideração de Nossa Senhora. Ela que, enquanto ser criado, não  é o mais alto — pois na ordem da natureza o homem vem abaixo do espírito angélico —, porém, do ponto de vista graça, virtude e santidade, não só está acima de todos os Anjos, como é deles Rainha. 

É essa incomparável santidade, portanto, que Deus se compraz em considerar, e em auferir dela uma especial e completa felicidade. Qual a lição que daí devemos colher?

É um ensinamento que combate o nosso fundamental materialismo. Infelizmente, a grande maioria dos homens está imbuída da ideia de que o verdadeiro prazer nesta vida consiste na posse de  bens materiais, de qualquer natureza que seja: dinheiro, saúde e uma série de outras coisas que estão fora das vias da verdadeira felicidade do homem nesta terra. Com efeito, sem engano  podemos dizer que, nesta vida, encontra a felicidade autêntica quem é capaz de seguir o exemplo de Deus e fazer a sua alegria da consideração das outras almas e da virtude que nelas exista.

O   homem que passa pelo mundo procurando a virtude e a santidade para admirá-las, amá-las e servi-las, onde ele as encontra, aí se detém e põe seu prazer e seu júbilo. De maneira tal que ele tenha mais satisfação em estar numa choupana ou num leprosário conversando com um verdadeiro santo, do que no local mais magnífico em meio a pecadores.

Por quê? Porque o santo representa um particular reflexo, uma transparente manifestação de Deus. A alma de um santo possui uma perfeição que nenhuma beleza criada tem, e, por causa disso,  aquele que sabe procurar os verdadeiros valores da vida, vai atrás da santidade, da perfeição moral dos seus semelhantes.

E quando a encontra, ele dá graças a Deus, eleva sua alma a Nossa Senhora e agradece também a Ela, porque é pelo seu maternal auxílio e intercessão que aquela santidade existe numa alma, e foi por meio d’Ela que ele, homem humilde e admirativo, teve a alegria e a honra de encontrar essa alma virtuosa. Ele teve a glória de experimentar um antegozo do céu, que é o conhecer, nesta vida, um verdadeiro santo.

Sigamos o exemplo de Nosso Senhor

Tratemos, então, de imitar a Deus, que se compraz na alma perfeitíssima de Maria. Devemos procurar, em nossa existência terrena, as almas honestas, conhecê-las, amá- las e saber discernir nelas o esplendor do bem. Devemos nos alegrar com essa bondade, até mesmo comparando-a e contrastando-a com o que há de mal em torno dela. Devemos ter genuíno comprazimento ao ver que  Nosso Senhor recompensa a virtude dessas almas que Lhe são tão diletas, assim como importa que compreendamos e aceitemos a reprovação que Ele, em sua infinita justiça, reserva à maldade  impenitente. É o Deus três vezes santo, absolutamente puro e superior, que condena o que é errado, porque não é conforme a Ele.

Quantos ensinamentos a se tirar de apenas uma das mencionadas invocações! Essa é a beleza inexcedível de tudo o que é de Deus, é a insondável formosura de Nossa Senhora, é o maravilhoso  tesouro dos princípios da doutrina católica!

Embora muito houvesse ainda por se aprender com as preciosas verdades contidas nessa jaculatória, creio não poder deixar de ressaltar o seguinte e importante aspecto: o enlevo de Jesus em  relação à sua Mãe Santíssima, infinitamente inferior a Ele e por Ele amada com amor inexprimível, mostra-nos bem como devemos procurar ver a santidade até naqueles que são inferiores a nós.

Amar essa perfeição, enlevar-se com ela, é, mais uma vez, imitar o exemplo de Deus olhando para Nossa Senhora. E no fim dessas breves considerações, só nos resta elevarmos uma prece filial e  confiante ao objeto da inteira complacência de Jesus: “Ó Coração Imaculado de Maria, fazei o meu coração sem mancha, cheio de fé, de força, de heroísmo e santidade, como o vosso!”

Plinio Corrêa de Oliveira

O Doce nome de Maria sempre em seus lábios

A Igreja venera na sua liturgia do dia 12 de setembro o Doce Nome de Maria. Dr. Plinio costumava lembrar com saudade e emoção as estrofes do hino que entoava com os Congregados Marianos, ao final dos Salmos do Nome de Maria:

“Si quaeris caelum, anima Mariae nomen invoca Mariam invocantibus Caelestis patet ianua”.

Se procuras o Céu, ó alma, invoca o nome de Maria; para os que invocam Maria, abre-se a porta do Céu.

Na verdade, o doce nome da Rainha jamais abandonou seus lábios. “Jesus” e “Maria” foram as duas primeiras palavras que aprendeu de Da. Lucília, antes mesmo de saber falar “Papai” e “Mamãe”. Maria…. Ele pronunciava esse nome incontáveis vezes por dia: nos mistérios do Rosário, nos já mencionados salmos que começam com as letras desse celestial Nome, no Lembrai-vos, nas jaculatórias… Quantas e quantas vezes o utilizava para ensinar a seus filhos espirituais a via de ouro que conduz ao Coração de Jesus, que é a devoção a Maria!

Na conclusão de sua momentosa Encíclica sobre o Rosário, João Paulo II cita o belo trecho do Bem aventurado Bartolo Longo: “E a última palavra dos nossos lábios há-de ser o vosso nome suave, ó  Rainha do Rosário de Pompéia, ó nossa Mãe querida, ó Refúgio dos pecadores, ó Soberana consoladora dos tristes. Sede bendita em todo o lado, hoje e sempre, na terra e no céu” (“Rosarium  Virginis Mariae”, n. 43).

Quatro dias antes de enaltecer o Nome de Maria, a Igreja celebra a Natividade da Santíssima Virgem. Que misericórdia para o mundo, seu nascimento! A esse respeito comentava Dr. Plinio: Nossa Senhora trazia consigo todas as riquezas naturais que dentro de uma mulher possam caber. Nosso Senhor deu a Ela, segundo a ordem da natureza, uma personalidade riquíssima, preciosíssima, valiosíssima. E a esse título, a presença d’Ela entre os homens representava um tesouro verdadeiramente incalculável!

A denúncia profética, publicada neste número, reproduz uma conferência de Dr. Plinio por ocasião de uma celebração da festa da Exaltação da Santa Cruz (14 de setembro). A Cruz, que marcou  profundamente a vida de Nosso Senhor é o símbolo que distingue o cristão, é sua condecoração, seu prêmio e sua glória, e não algo do qual ele se envergonha ou do qual deva fugir…

No dia seguinte à festa da Exaltação da Santa Cruz, o calendário celebra Nossa Senhora das Dores. Os comentários de Dr. Plinio sobre essa data concluem o itinerário litúrgico de setembro que nos  propusemos nesta edição. A liturgia é o alimento dos fiéis, e nosso intuito é de fomentar, como de costume com textos plinianos, a atitude tão louvada pelos Papas, de viver as datas da Igreja como parte integrante de nossa vida.

Continuamos neste número a série de narrações auto-biográficas de Dr. Plinio relativas a sua infância e primeira juventude. No número de agosto, nos despedíramos dele numa praia de Santos, olhando o mar e pensando…

Sentado no extremo da amurada de pedras que penetrava mar adentro, em meio ao murmúrio incessante das ondas que a investiam e eram rechaçadas, o menino Plinio contemplava e meditava sobre as belezas da Criação e de seu autor, contrapondo-as aos erros e horrores de sua época. Encantava-se com a Igreja… e esse amor à esposa de Cristo lhe infundia luzes e critério para julgar todas as coisas com sabedoria. Ela era a sua bússola no mar tempestuoso do século XX.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 66 (Setembro de 2003)

Natividade de Nossa Senhora

Se o nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo já representava a aurora da salvação do gênero humano, o mesmo se pode afirmar, de certo modo, da natividade de Nossa Senhora. Com efeito, tudo quanto Jesus trouxe ao mundo, começou a nos chegar com o nascimento d’Aquela que seria sua Mãe Santíssima.

Compreende-se, pois, todas as esperanças de salvação, de indulgência, de reconciliação, de redenção e de misericórdia que se abriram, afinal, para os homens, naquele bendito dia em que Maria surgiu nesta terra de exílio. Feliz e magnífico dia, marco inicial de uma existência insondavelmente perfeita, pura, fiel, e que seria a maior glória da humanidade em todos os tempos, abaixo daquela que devemos à Encarnação do Verbo.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 66 (setembro de 2003)

Misericórdia infindável

Enquanto dormimos, Maria Santíssima continua a velar por nós, rogando a seu Divino Filho que nos auxilie e nos olhe favoravelmente.

Quando acordamos para um novo dia, e temos a infelicidade de começar a ofender a Deus, Nossa Senhora passa também a nos perdoar e a nos incentivar em atos de virtude. Se A ouvimos, Ela nos sorri e redobra sua solicitude, seu encorajamento maternal. Se, apesar de tudo, caímos, Ela está pronta a nos socorrer sem demora, a nos dirigir sorriso ainda mais terno e consolador, a novamente nos perdoar e reerguer.

Na verdade, a misericórdia de Nossa Senhora não conhece fim.

Plinio Corrêa de Oliveira

Peregrinando dentro de uma oração cantada

No canto gregoriano não há dramaticidade, mas uma serenidade plena de reflexão. É recitado por pessoas que, encontrando-se à margem dos acontecimentos, entoam hinos os quais muitas vezes tratam da vida dos homens e das nações, sempre elevando nossas mentes até Deus, e tirando conclusões que são verdadeiros princípios de História.

 

O  Ofício Parvo de Nossa Senhora foi cantado há pouco magnificamente, segundo os melhores princípios da música sacra. Princípios estes estudados pela Igreja, através de especialistas, durante séculos. Aprimorados, destilados, postos no ponto exato até chegarem, por exemplo, ao que todos nós ouvimos.

Em nossos dias, o bulício contagiou todos os ambientes

Nesta matéria, como em todas as outras, há uma porção de escolas, e a Igreja, sempre sábia, sempre mãe, naquilo que não está ligado à Revelação deixa uma liberdade de opinião e de pensamento àqueles que são filhos dela. Assim, essas várias escolas musicais têm cidadania dentro da Igreja.

Sempre que ouvia o Ofício bem rezado, tinha uma impressão curiosa que eu descreveria empregando o título de um artigo que certa vez escrevi: “Peregrinando dentro de um olhar”(1); eu, então, diria: “Peregrinando dentro de uma oração cantada”.

Como é minha peregrinação pessoal dentro dessa oração cantada? Ao responder a esta pergunta tenho em vista, evidentemente, ajudá-los a explicitarem as suas próprias impressões; explicitando-as, conhecerem-nas melhor; conhecendo-as melhor, saborearem melhor o cantochão, compreenderem melhor o canto da Igreja e o amarem mais.

O bulício de nossos dias contagiou todos os ambientes pela imposição das circunstâncias. Se tudo corre, tudo se agita; ou corremos também ou perdemos o avião, o trem, o bonde… Então, é preciso absolutamente correr.

Hoje em dia, levo uma vida como antigamente se ouvia falar, no cinema, que levava um banqueiro riquíssimo: tomava o elevador com um secretário, com quem ele despachava alguma coisa; no trajeto entre o elevador e o automóvel ainda atendia alguma pessoa, sentava-se dentro do automóvel, tinha ali outro secretário para tomar nota de diversos assuntos. E assim conduzia a vida dele, até durante as refeições. De maneira que ele dormia o menos possível e, quando conciliava o sono, ainda sonhava com despachos!

Todo o meu temperamento é o contrário disso que representa para mim um pesadelo. Desse pesadelo, eu só não tenho duas coisas: o dinheiro do banqueiro e, graças a Deus, o sonho com negócios. Ainda os mais sagrados “negócios” de apostolado, não sonho com eles. Na hora de dormir, tomo um livro para ler, penso em outras coisas, mas não em despachar assuntos concretos.

Quando acordo de manhã, já recebo as primeiras notícias do dia e começa a roldana. De maneira que, contra a minha vontade, como um prisioneiro que está amarrado a uma máquina e é obrigado a correr com ela, levo essa vida que eu não quereria levar.

Calma, tranquilidade, distância psíquica que defluem do cantochão

Por isso posso medir bem a transição entre essa vida corrida e o momento em que, de repente, começa-se a ouvir o canto sacro. No primeiro instante, é uma sensação subconsciente, nada violenta, nada desagradável, de defasagem. Quando se está começando a pensar como fazer para corrigir o que está defasado, a ação do canto sacro — ainda quando não se entendam as palavras — vai penetrando na alma e abrindo nela certos “compartimentos” que estavam fechados.

Vai pondo em evidência e colocando em condições de vibratilidade certas possibilidades de sentir que estavam colocadas de lado, e nas quais não se prestava muita atenção. E começa a emergir, de dentro da agitação, uma calma, uma tranquilidade, uma distância psíquica(2), que fazem as coisas fluírem como flui o som do cantochão.

Para quem não tem sensibilidade, esse canto é uma contínua repetição, mas na realidade não é. Aquilo, a cada vez que se repete, diz algo de novo para a alma capaz de saborear. Depende da alma.

O sabor de uma inflexão de voz não é bem o da outra, aquilo diz uma coisa nova a cada inflexão que, de um lado, é parecidíssima com a anterior, e de outro lado fala uma coisa completamente diferente da anterior.

É preciso que o cantochão tenha entrado muito nos nossos ouvidos para nos familiarizarmos com a linguagem dele. Ele tem todo um timbre de voz e toda uma linguagem discretíssimos. Tal linguagem discretíssima supõe que alguém esteja nos falando numa certa clave, e que vai nos induzindo a nos pormos nessa mesma clave para ouvirmos e respondermos. Dessa forma é um diálogo que se abre, mas de um abrir que é um afetuoso impor.

Isso é assim, mesmo quando não se compreendem as palavras; se estas são entendidas, tomam um outro sabor.

Compreendendo o fundo dos acontecimentos, mas recusando-se a vibrar com eles

Há pouco, por exemplo, foi cantado o Salmo cujos dizeres eram:

“Se o Senhor não construir a casa, em vão trabalham os construtores. Se o Senhor não guarda a cidade, em vão vigiam as sentinelas.”(3)

Em arte declamatória, essas palavras poderiam ser recitadas legitimamente em tom de aviso, contendo uma ameaça, como quem dissesse: “Enquanto o Senhor não defender a cidade, inútil vos é defendê-la! Pedi, então, a Deus que a defenda, e vencereis! Do contrário, cairá sobre vós a mão do Altíssimo cujo auxílio não pedistes!”

Isso que estou imaginando, dito como uma advertência de alguém que vê uma cidade defendida por outros que não rezam por ela, no cantochão não tem essa dramaticidade. É recitado à maneira de uma reflexão feita por quem, encontrando-se à margem dos acontecimentos ­­— e tendo ouvido falar da ruína de muitas cidades pelas quais os defensores não oraram —, conclui um grande princípio geral da História. São desses princípios em que as torres da História entram pelas nuvens sagradas da Teologia.

São reflexões que se sucedem, feitas por homens que estão no silêncio, muito atentos ao que se passa na Terra, mas já com os ouvidos postos no Céu. Pessoas que ponderam dentro de um estado de espírito todo especial, sem as agitações terrenas, mas às quais chegam todos os ecos da vida. E que, portanto, dentro de um silêncio sacral e celeste, redestilam toda a Terra e toda a vida, com muita força de alma, pois compreendem o fundo dos acontecimentos, tomam-lhes inteiramente o sabor, recusando-se a vibrar com eles.

Uma batalha entre dois exércitos que combatem em campo raso

Imaginemos uma batalha travada em terra plana, cujos exércitos opositores são comandados por dois generais postados, cada um, no alto de uma colina. Embora esses generais não se vejam, eles estão atracados inteiramente um ao outro. Apesar de que estejam retirados e, aparentemente, não participarem da luta, o suco do combate se dá ali. Porque, como a direção da batalha vem desses generais, é ali que tudo repercute. E é essa repercussão que impede a batalha de se transformar numa brigaria individual.

A guerra é, portanto, uma realidade que exige estar um pouco fora dela para se penetrar inteiramente nela.

Suponhamos, agora, que numa colina mais elevada especialistas de guerra assistem à batalha. Eles não torcem por nenhum dos dois lados, mas estão estudando a arte militar pelo modo daqueles dois exércitos combaterem.

O tom no Estado-Maior das duas primeiras colinas deve ser tranquilo, atuante e rápido. Na colina mais alta, o tom é ainda mais tranquilo, mais distante dos acontecimentos, entretanto o suco dos acontecimentos sobe até lá com maior força. Porque ali não se resolve uma batalha, mas são os conhecimentos do gênero humano sobre a arte de guerrear que progridem. Se aquela batalha for bem observada, a História da Guerra pode mudar de direção.

Esses especialistas conversam entre si com uma cordialidade normal, observam, nunca levantam a voz, dialogam, concluem. Eles estão muito mais alto, e acima deles há apenas um “teto” chamado “teoria”. Eles viram e mexem, sobem ao mirante da teoria, depois voltam para uma prática observada de longe, chegam a uma alta consideração sobre a guerra.

Seja qual for o exército vencedor, quem tirou a melhor lição da guerra foram os que estiveram na clave humana mais elevada.

Com os olhos voltados para a vida, mas elevando-se continuamente para Deus

Essas orações do saltério referem-se continuamente a acontecimentos humanos passados, mas perenes, porque em algo a História sempre repete aqueles episódios. E os Salmos nos mostram atitudes dos homens perante esses acontecimentos, regras gerais de sabedoria sobre o modo de proceder, a conduta de Deus, para aprendermos como Ele é, como devemos agir com Ele, e como Deus agirá conosco. O píncaro é propriamente saber agir com o Criador na hora da aflição.

Então, o cantochão deve ser visto como homens que se colocam intencionalmente nesse píncaro do pensamento, com os olhos voltados para a vida, mas elevando-se continuamente para Deus.

Esta posição supõe uma atitude de alma preparatória para a ação, porque é um estudo da ação. Antes de tudo, ação de Deus, depois nossa ação com o Criador e com os homens, e de como o Altíssimo toma esta nossa ação com os homens.

Ora é alguém que pecou, cometeu tal crime e pede perdão, mas sente que Deus está demorando em concedê-lo. Então, invoca de um modo, alega outra coisa… Ora, pelo contrário, é um hino de ação de graças porque Deus concedeu um favor qualquer, e sentimos o sabor do dom quando nele ainda se encontra o calor da mão divina.

Trata-se, portanto, de uma espécie de oração a propósito do acontecer interno humano, da vida interior, da vida externa individual e das nações e, em face daquilo, a atitude de Deus. O coro sereno salmodia e, com as próprias palavras da Escritura, aprende a louvar a Deus.

Exercícios de voo de alma

Qual é o resultado disso na hora da ação?

O espírito sai tranquilizado, serenado e muito mais capaz de subir. São verdadeiros exercícios de voo de alma contidos não só no que o texto diz, mas, além do texto, há algo da posição temperamental do homem que pensa e reflexivamente sente, alegra-se, se entristece, chegando às vezes aos extremos da alegria ou da dor, porém sem sair daquela serenidade da reflexão, de quem está à margem e acima dos fatos.

Por vezes as pessoas formam a ideia errada de que na torcida encontra-se o próprio sabor da vida. Na verdade, encontramos o sabor da vida quando mandamos embora a torcida e olhamos de cima.

Certa ocasião, vi um homem conhecedor de vinhos que provava um vinho muito bom oferecido a ele. Ele disse que o vinho era muito saboroso, mas a análise do mesmo não se limitava em bebê-lo, era preciso também saber sentir seu aroma. Ele, então, parava de tomar e cheirava um pouco o vinho.

No cheirar há uma tomada de distância psíquica em relação ao beber, porque se analisa um pouco mais do que quando se tem a bebida meramente sobre a língua. Na língua se associam outras sensações, e logo depois se engole. O cheirar é uma análise mais intelectiva.

Saber sentir o perfume do “bouquet”(4) da vida é não torcer. É adquirir essa serenidade que constitui a própria clave da existência.

Temos, assim, algumas ideias gerais sobre o conteúdo dos Salmos e a clave em que eles nos põem, por meio do cantochão.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/4/1983)

 

 

1) Publicado na Folha de São Paulo, em 12/11/1976.

2) Expressão utilizada por Dr. Plinio para significar uma calma fundamental, temperante, que confere ao homem a capacidade de tomar distância dos acontecimentos que o cercam.

3) Sl 126, 1.

4) Do francês: conjunto de elementos.

Maria Santíssima, nossa âncora nas nuvens

Favorecido pela Providência com o dom de se expressar  de modo muito claro e com beleza literária, Dr. Plinio utilizou largamente esse predicado  para fazer o bem ao próximo. Nesse apostolado, um dos recursos mais atraentes de que se valia era o uso das  metáforas, por meio das quais ilustrava seus ensinamentos e os tornava de fácil compreensão. A seguir, inaugurando esta nova seção,  recordamos a imagem concebida por Dr. Plinio para salientar o indispensável auxílio da Mãe de Deus em nossa vida espiritual.

 

Ao longo dos nossos anos de apostolado, analisando a ação da graça nessa e naquela alma, dir-se-ia que, para um católico dos dias de hoje — e, de maneira especial, para um membro do nosso movimento — a fidelidade à vocação consiste em desejar um retorno dos melhores frutos da Civilização Cristã que foram sendo destruídos pela incorrespondência dos homens.

A confiança de um navegante em situação desesperadora

Tal anelo, parece-me, seria compreensível e justificável noutra época. Porém, após tanto tempo de dita incorrespondência e, por conseguinte, de pecados e ofensas cometidos contra a bondade divina, a fidelidade se nos apresenta de modo diverso: exige-se de nós que sonhemos, no sentido mais nobre da palavra, com uma ordem de coisas na linha do que teria sido aquela anterior se não tivesse sido destruída e, mais ainda, que a supere totalmente.

Como sonhar? Como confiar nessa superação?

Creio que a única solução para quem se encontra em situação semelhante a essa em que estamos, e na qual provavelmente estaremos cada vez mais imersos, é lançar uma âncora. Contudo, fazê-lo à maneira de um navegante que se acha numa circunstância tão desesperadora que, ao invés de deitar a âncora no fundo do mar, arroja-a em direção às nuvens, esperando que o Céu a segure por ele. Ou seja, é preciso chegar até essa ousadia de confiança.

Quanto mais generosa a alma, mais ela acredita no socorro de Maria

 E, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, seria uma atitude racional. Com efeito, sendo a voragem da água tal que o próprio fundo do mar se descobre aos olhos do navegante, ele não tem outro recurso senão lançar a sua âncora para o Céu. E é tanto mais provável que o Céu atenda seu apelo, quanto mais terá sido sua confiança na hora de jogar a âncora.

Noutras palavras, quanto mais a alma for própria a dar‑se, quanto mais for generosa em dedicar-se ao serviço de Deus e de Maria Santíssima, tanto mais ela acreditará, no momento da provação e da angústia, que Nossa Senhora fará por ela o inconcebível em matéria de socorro, de amparo, de solicitude.

Nossa Senhora segura a âncora no Céu

Alguém poderia me perguntar, muito a propósito: como se joga uma âncora para o Céu?

Responderia eu que há determinadas circunstâncias nas quais percebemos claramente que uma ação nossa corresponde ao plano da Providência para conosco, mas, ao mesmo tempo, de acordo com as disposições humanas, tal realização é por inteiro improvável. Ora, nós nos engajamos nessa obra porque percebemos tratar-se do desígnio da Providência, e só por isso, pois do contrário seria uma temeridade e uma loucura. A âncora foi jogada para o Céu.

Importa notar o seguinte aspecto: não é tanto algo que resolvemos fazer, mas uma situação que aceitamos com confiança, por discernirmos que Nossa Senhora colocou por nós a  âncora nas nuvens.

Por exemplo, aqueles que me acompanham há mais tempo em nosso apostolado nunca me viram traçar um plano com este estado de espírito: “Tal lance é uma loucura, mas vamos fazê-lo porque a Providência quer”. Porém, ouviram incontáveis vezes eu dizer: “Tal situação está perdida, mas vou me manter em paz porque a Providência nos ajudará”.

Essa, repito, é a âncora nas nuvens. Nossa Senhora a colocou ali por nós. Percebemos que o navio desapareceu, o mar corre por debaixo dos nossos pés, estamos pendurados numa corda, presa não sabemos onde. Olhamos para cima: está numa nuvem e com uma âncora na ponta. E o mais extraordinário: está ventando de tal maneira que o vento pode levar a nuvem a qualquer hora… Entretanto, Nossa Senhora quer que permaneçamos tranquilos, pendurados na âncora como se estivéssemos com o chão sob nossos pés.

Sei que não é uma atitude fácil de ser adotada. Mas, pela minha própria experiência, posso afirmar que ela é, ao mesmo tempo, terrível e altamente deleitável.

Confiança na gloriosa mediação da Virgem

Cumpre, pois, que nos formemos nessa generosidade de alma e, quando for preciso, lancemos a âncora para o Céu com toda a segurança. Preparemo-nos para jogá-la às nuvens, pedindo a Nossa Senhora que nos alcance uma virtude da confiança semelhante à d’Ela.

A abundância da misericórdia de Maria sobrepuja tudo quanto qualquer um de nós possa excogitar. Deixemos nossas apreensões inteiramente nas mãos de Nossa Senhora e Ela tudo resolverá. Essa certeza não é gratuita: baseia-se na mediação onipotente da Mãe de Deus em nosso favor. Mediação, aliás, belamente assinalada na oração final da Ladainha Lauretana, que me apraz muito recitar: “Pela gloriosa intercessão da bem-aventurada sempre Virgem Maria, sejamos livres da presente tristeza e gozemos da eterna alegria”.

Ou seja, de tal modo uma súplica de Nossa Senhora é atendida por seu divino Filho que seus pedidos podem ser qualificados de gloriosos. Isso deve nos entusiasmar e cumular de confiança n’Aquela que incansavelmente está disposta a nos socorrer.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências em 1 e 2/3/1980)