São Domingos Sávio modelo de pureza e seriedade

A boa formação de uma criança e de um adolescente, observava Dr. Plinio, deve proporcionar-lhes um equilibrado e sadio impulso para a maturidade. Sobretudo, para alcançarem o ideal de perfeição moral a que todo homem é chamado. Como a seguir veremos, luminoso exemplo dessa educação bem assimilada encontramos em São Domingos Sávio, discípulo predileto do grande São João Bosco.

 

No mês de março a Igreja celebra a memória de um Santo cuja vida me causou grande admiração, e a respeito do qual gostaria de tecer alguns comentários. Não tanto evocando seus traços biográficos, quanto ressaltando sua fisionomia moral, que deixou profunda impressão no meu espírito. Trata-se de São Domingos Sávio, discípulo de São João Bosco.

Obra-prima da educação salesiana

Faleceu ele antes de seu mestre, aos 12 anos de idade, e foi considerado a obra-prima da educação dada pelo célebre apóstolo da juventude. Menino eminentemente piedoso, exímio cumpridor dos seus deveres, conservou sempre uma castidade exemplar, tendo sido proclamado pelo Papa Pio XI como o padroeiro da pureza, depois de São Luís Gonzaga.

Essas reflexões se prendem a uma recordação pessoal, que me parece oportuno registrar.

Há alguns anos, a convite do Arcebispo de Mariana, Dom Helvécio Gomes de Oliveira, desloquei-me até essa histórica cidade de Minas para fazer uma conferência sobre São Domingos Sávio. Após o almoço, disse ao reitor do Colégio salesiano onde a sessão se realizaria à tarde:

— Peço que o senhor me consiga uma biografia de São Domingos, pois apesar de sabê-lo canonizado, ignoro os pormenores de sua vida.

Com muita solicitude ele me procurou uma biografia do Santo, porém bastante resumida. Comecei a lê-la e me lembro que o biógrafo acentuava diversas qualidades comuns aos bons meninos. Assim, São Domingos Sávio era muito devoto, obediente aos seus superiores, de modo especial a São João Bosco, além de fazer apostolado junto a seus colegas, sendo um exemplo de zelo pelas almas.

Os “birichini” de São João Bosco

Contudo, pensei: “Infelizmente, com esses dados, não me é possível proferir uma conferência que não seja uma repetição de tantas outras realizadas ou preparadas, a respeito de vários bem-aventurados…”. Com efeito, naquela época encontrava-se certos formulários para sermão ou exposição de vidas de santos, que diziam: “São tal, mudando a data e o nome, serve para tais e tais santos”.

Ora, ao ler o opúsculo que o reitor me conseguira, percebi que escapara ao biógrafo o traço mais marcante e acentuadamente contra-revolucionário da vida de São Domingos Sávio, que, creio eu, indicava o “segredo” de sua santidade.

Para que esse traço fique bem explicitado, importa considerarmos o fato de que nosso santo viveu em meados do século XIX, um período em que a Revolução atingia um auge, e o espírito revolucionário, portanto, lograva grande concessão da parte dos adolescentes que principiavam a frequentar escolas. De um lado.

De outro, temos que São João Bosco lecionava para os “birichini”, apelativo dado na região de Turim aos meninos de famílias modestas. Nesse sentido, é esplêndida a vocação dos salesianos: ensinar sobretudo para as classes populares, instruindo-lhes nos misteres profissionais em estabelecimentos para essa finalidade. Eram meninos com grande vitalidade e efervescência, mas tendentes a travessuras e à falta de seriedade (a qual, aliás, se alastrara por todas as camadas sociais).

Admirável apóstolo da seriedade

Nesses ambientes São Domingos Sávio mostrou-se um admirável apóstolo da seriedade, manifestando uma sabedoria superior à existente em meninos de sua geração. E na medida própria à mentalidade de uma criança, possuía uma compreensão invulgar de tudo quanto deveria fazer. De maneira que não praticava uma ação nem dizia uma palavra que não revelassem uma reflexão séria — nas proporções de um menino, insisto — baseada na fé e profundamente sobrenatural.

Por isso ele difundia em torno de si uma atmosfera de compostura, de seriedade, de calma, sem fazer com que os meninos deixassem de ser autênticas crianças. De outro lado, proporcionava-lhes assim um meio eficaz de se oporem à mania do brinca-brinca, da falta de educação, da ausência de cerimônia e boas maneiras.

“Morte ao pecado mortal”

Essa característica de São Domingos Sávio se faz notar num episódio de sua vida, do qual tomei conhecimento quando li outra biografia dele, escrita pelo próprio São João Bosco. Este escreveu:
Domingos veio ver-me no dia anterior ao início da novena da Imaculada Conceição, em 1854, e teve comigo o seguinte diálogo. Disse ele:
— Eu sei que a Virgem concede grande número de graças a quem faz bem suas novenas.
— E tu o que queres fazer nesta novena, em honra da Virgem?
— Quisera pedir muitas coisas.
— Quais, por exemplo?
— Antes de tudo quero fazer uma confissão geral de minha vida, para ter bem preparada a minha alma. Depois procurarei cumprir exatamente as florzinhas que cada dia da novena se darão nas boas noites.

“Florzinhas” (fioretti em italiano) significavam pequenos propósitos a praticar, recomendados na “boa noite”, gênero de alocução famosa que Dom Bosco dirigia aos seus alunos. Consistia geralmente de breves comentários de algum fato do dia, ocorrido no interior ou fora do colégio. Continua a narração, com a pergunta de São João Bosco:
— E não tens mais nada?
— Sim, eu tenho uma coisa: quero declarar morte ao pecado mortal.
— E o que mais?
— Quero pedir muito, muito à Santíssima Virgem e ao Senhor que me mandem antes a morte do que deixar-me cair no pecado venial contra a modéstia.

Ou seja, contra a virtude da castidade. E São João Bosco acrescenta:
“Deu-me então um papelzinho em que ele tinha escrito esse propósito e manteve suas promessas porque a Santíssima Virgem o ajudava. São Domingos Sávio tinha, nessa ocasião, doze anos de idade.

Ressalta-se, assim, na estrutura de alma de uma criança, o traço distintivo de São Domingos: extraordinariamente sério, conseqüente, lógico em tudo. Ao mesmo tempo, alegre, de espírito sadio e maduro.

Reflexão ratificada pelos devotos de São Domingos

Dando-me conta desse cunho característico de São Domingos Sávio, comecei a minha conferência em Mariana dizendo que me achava diante de todo o corpo docente de um colégio salesiano, numa sessão que se realizava sob a presidência de um Arcebispo também salesiano e, portanto, exporia minha impressão pessoal, submetendo-a ao juízo deles. Acrescentei que a leitura de uma vida de São Domingos Sávio deixara em meu espírito essa ideia: merecia ele ser chamado perfeitamente de apóstolo da pureza das crianças, mas deveria também ser denominado seu apóstolo da seriedade.

Desenvolvi o tema, mostrando a importância do papel da seriedade para se alcançar a perfeição espiritual: não basta ser sério para ser santo, porém não se pode ser santo sem ser sério.

Tão logo enunciei a tese de que São Domingos era o modelo da seriedade entre as crianças, houve um aplauso geral iniciado pelo Arcebispo e todos os professores, seguido naturalmente pelo público. Naquela época, São Domingos Sávio estava sob o foco das atenções, pois era recém-canonizado e os salesianos difundiam muito a devoção a ele. Sua vida, portanto, era bem conhecida de seus irmãos de vocação e devotos. A ratificação daquela tese concedida por esse corpo docente salesiano, com tal ênfase, demonstrava-me a veracidade da minha observação.

Como vivemos num tempo em que a falta de seriedade se torna cada vez mais aguda e crítica, parece-me de importância capital rogarmos a São Domingos Sávio que seja nosso padroeiro para a seriedade, e nos alcance do Sagrado Coração de Jesus, pelas mãos de Maria Santíssima, uma perfeita prática dessa virtude da qual ele é um excelso modelo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências em 9/3/1971 e 9/3/1973)

Vós fostes, Senhor

“Vós fostes, Senhor, um modelo de paciência. Vossa paciência não consistiu, entretanto, em morrer esmagado debaixo da Cruz, quando Vo-la deram.

Conta uma piedosa revelação que, quando recebestes das mãos dos verdugos vossa Cruz, Vós a beijastes amorosamente, e, tomando-a sobre os ombros, com invencível energia a levastes até o alto do Gólgota. Dai-nos, Senhor, essa  capacidade …. de sofrer heroicamente, não apenas suportando o sofrimento, mas indo ao encontro dele, procurando-o e carregando-o, até o dia em que tenhamos a coroa da vitória eterna.”

Plinio Corrêa de Oliveira

Santa Francisca Romana: discernimento e firmeza face aos demônios

Ao considerar as impressionantes revelações de Santa Francisca Romana a respeito dos demônios, Dr. Plinio manifesta sua admiração por esta filha da Igreja, em quem reconhece, através dos matizes de sua biografia, o verdadeiro espírito da Esposa de Cristo.

 

Como se sabe, Santa Francisca Romana se caracteriza por visões extraordinárias a respeito dos demônios, e deixou revelações importantíssimas. Talvez nenhuma santa ou mística tenha se assinalado tanto na História da Igreja no que diz respeito a manifestações dos anjos maus do que Santa Francisca Romana. Essas revelações falam muito a respeito da presença na Terra dos tais demônios que ainda não foram para o Inferno e serão mandados para lá no fim do mundo. Embora sem tentar diretamente o homem para o pecado, eles predispõem a alma a aceitar a tentação dos demônios que estão no Inferno. Creio que no processo de canonização dela devem figurar muitas coisas dessas.

Os espíritos malignos e suas relações com os vícios

Diz uma ficha tirada do Pe. Rohrbacher(1).

9 de março, Santa Francisca Romana. Visão sobre os demônios.

A terça parte dos anjos caiu em pecado, as outras duas partes perseveraram na graça. Na parte decaída, um terço está no Inferno para atormentar os condenados; são os que seguiram Lúcifer por sua própria malícia com inteira liberdade. Eles não saem do abismo senão pela permissão de Deus, e quando se trata de produzir uma grande calamidade para punir os pecados dos homens, e são eles os piores dentre os demônios.

Os outros dois terços dos anjos decaídos estão espalhados nos ares e sobre a Terra: são aqueles que não tomaram parte entre Deus e Lúcifer, mas guardaram silêncio. Os que estão nos ares provocam frequentemente geadas, tempestades, ruídos e ventos com que enfraquecem as almas apegadas à matéria, conduzem-nas à inconstância e ao temor, induzem-nas a desfalecer na Fé e a duvidar da Providência divina.

Quanto aos demônios que circulam entre nós a fim de nos tentar, são decaídos do último coro dos anjos, e os anjos fiéis que nos são dados por guardiães são todos do mesmo coro. O príncipe e chefe de todos os demônios é Lúcifer, ligado ao fundo do abismo, encarregado pela divina Justiça de punir os demônios e os condenados. Caindo do mais elevado dos coros angélicos, os serafins, tornou-se o pior dos demônios e condenados. Seu vício característico é o orgulho.

Abaixo dele estão três outros príncipes: o primeiro, Asmodeu, tem o vício da carne como característica e foi chefe dos querubins. O segundo é chamado Mamon, caracteriza-o o vício da avareza e foi do coro dos tronos. O terceiro, chamado Belzebu, que foi dos coros das dominações, caracterizando-o a idolatria, o sortilégio e encantamentos; é o chefe de tudo quanto há de tenebroso e tem a missão de difundir as trevas sobre as criaturas racionais.

Resumindo, ela mostra que Lúcifer era um serafim que pairava no mais alto dos céus, e o pecado dele foi de uma grande responsabilidade porque os serafins constituem o mais elevado coro dos anjos. Tendo sido o maior dos revoltados, ele foi precipitado para o mais fundo dos infernos. Houve anjos que resolveram acompanhá-lo por uma iniciativa própria, e estão no Inferno com ele; Lúcifer os atormenta continuamente porque é mais poderoso do que os outros, e é encarregado pela Justiça divina de punir eternamente os espíritos que ele mesmo induziu, mas que, por uma maldade própria, foram juntos para a perdição.

Sob a direção de Lúcifer há três anjos principais. O primeiro é Asmodeu, o demônio da luxúria e que tenta os homens especialmente para a impureza. O outro anjo é Mamon, que pertencia ao coro dos tronos, quer dizer, da categoria dos anjos que acompanham a História e suas harmonias, enlevam-se vendo Deus compor a trama histórica pelos seus decretos e encaminhar a História dos anjos e do mundo; Mamon é o demônio da avareza. E Belzebu, que é o demônio da idolatria, dos sortilégios e dos encantamentos, quer dizer, dos bruxedos.

Lúcifer tem como característica o orgulho. Asmodeu, o vício da carne; era chefe dos querubins. Mamon, a avareza. E Belzebu é o chefe das idolatrias e das obras tenebrosas em geral.

Diferentes categorias de demônios

Vemos que os dois principais anjos rebeldes são, em primeiro lugar, Lúcifer e depois Asmodeu, os demônios do orgulho e da sensualidade. Isso está de acordo com a nossa concepção de que o orgulho e a sensualidade são os elementos que impulsionam e dão rumo à Revolução. Os anjos maus estão no Inferno, e Deus só raramente permite que algum deles saia para produzir catástrofes. Mas tenho a impressão de que, na época atual, a chave do poço do abismo caiu e o Inferno se abriu, e esses anjos péssimos estão todos espalhados por aí, e que a presença de Lúcifer é mais assídua, mais contínua, mais forte do que em qualquer época da História, do que na crucifixão de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Depois há outros anjos, que quiseram representar entre Deus e Lúcifer um papel de “terceira força”. Quer dizer, não se solidarizaram com Deus, mas também não se solidarizaram diretamente com Lúcifer; ficaram numa posição como que neutra, naturalmente com simpatia por Satanás. O resultado é que eles também foram condenados.

A Justiça divina tornou a condenação deles de algum modo um pouco menos terrível, porque em vez de estarem sofrendo o fogo do Inferno, eles ficaram na Terra, nos ares, padecendo penas terríveis. Mas quando chegar o Juízo Final, eles serão precipitados no Inferno e vão sofrer lá por toda a eternidade. De maneira que estão fora do Inferno por um curto lapso de tempo, porque o período que vai desde o pecado deles até o dia do Juízo Final é muito pequeno, menos do que um minuto, em comparação com a eternidade na qual eles serão atormentados no Inferno.

Esses anjos maus dividem-se em duas categorias: os que estão espalhados pelos ares e produzem as intempéries, as coisas que assustam as pessoas; outros ficam na Terra e são do mesmo coro dos nossos anjos da guarda.

Batalha entre espíritos angélicos

Há, portanto, uma batalha entre os anjos da guarda e os anjos perdidos, na qual naturalmente o predomínio é dos anjos da guarda sobre as almas que se entregam a eles.

Houve uma santa que teve a visão de seu anjo da guarda, que pertence à menos alta das hierarquias angélicas. Ela se ajoelhou pensando que fosse Deus, tal é o esplendor do anjo da guarda.

Podemos fazer ideia de qual é a sublimidade de um arcanjo, por exemplo!

Temos aqui uma lição muito importante: compreender como o homem é pequeno dentro da natureza material, em relação à qual ele poderia ser comparado a uma formiga. E acima dessa natureza existem ainda espíritos angélicos com uma força, um poder incomparavelmente superior ao dos seres humanos.

Em face dessa batalha de anjos que continua a se realizar por toda parte; anjos bons que descem do Céu e anjos maus que se misturam no meio dos homens, qual é o grande meio de defesa que temos contra os demônios?

Aqui se aplicam as palavras de Nosso Senhor: “É preciso vigiar e orar para não cairdes em tentação”(2). A vigilância consiste em crermos nos poderes angélicos e na ação dos demônios.

Por exemplo, suponho que normalmente, durante as exposições que faço, os assistentes recebem muitas graças vindas por meio de seus anjos. Acredito também que um ou outro dos aqui presentes sistematicamente é tentado pelo demônio. Quer dizer, enquanto estamos falando, há uma batalha entre anjos e demônios.

Faz parte do dinamismo das coisas haver pessoas que se dão mais a Nosso Senhor e outras menos. E devemos ter sempre em vista o princípio, aceito pela maioria dos teólogos, segundo o qual todas as vezes que um homem tem uma tentação por uma causa natural, o demônio junta-se a esta para agravar a tentação.

Se, por exemplo, um dos presentes está irritado com um companheiro que se encontra ao seu lado e fica infernizado com isto, esta pequena tentação de irritação será acrescida por um cutucão do demônio para agravá-la. Quer dizer, o demônio está sempre atuando, os anjos da guarda estão sempre nos protegendo. Devemos discernir a ação do demônio e pedir a do anjo da guarda.

Precisamos rezar e vigiar. É o que se deduz das revelações de Santa Francisca Romana.

Filha da Igreja, cônscia de sua missão e do poder divino

Ela possuía um discernimento fantástico a respeito dos espíritos malignos e frequentemente via demônios. Tomando conhecimento de sua história, fica-me a impressão de tê-la conhecido pessoalmente, porque a considero não como uma velha qualquer que tinha visões, mas sim como uma filha da Igreja dotada de determinadas características que, conhecendo o espírito da Esposa de Cristo, eu sei atribuir a ela através dos matizes de sua biografia. Percebo que era uma matrona romana firme, digna, e que olhava o demônio, não propriamente de modo ameaçador, mas com firmeza, de frente, cônscia de sua missão e do poder de Deus, enfrentando, descrevendo e intimidando. Ela considerava o que essas visões tinham, por assim dizer, de divino e amava o Criador através delas.

Então, Santa Francisca Romana me enche de admiração. E tenho certeza de que, estudando o processo de sua canonização, encontraremos a confirmação do que afirmei.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 8/1/1965, 8/3/1969 e 9/3/1980)

1) ROHRBACHER, René François. Histoire universelle de l’Église Catholique. Vol. XXI. Paris: Gaume Frères et J. Duprey – Libraires-éditeurs, 1858. p. 459-460.
2) Cf. Mt 26,41.
3) Cf. ROHRBACHER, René François. Vies des Saints pour tous les jours de l’année. Vol. II. Paris: Gaume Frères et J. Duprey – Libraires-éditeurs, 1853. p. 63-79.
4) Elevada posteriormente à dignidade de Basílica Menor, é também chamada de Basílica de Santa Francisca Romana.

As coisas terrenas passam, só a eternidade fica

A fisionomia de Santa Catarina de Bolonha é distendida. O mais expressivo deste semblante está nos lábios cerrados, longos e finos, com um leve sorriso, ao mesmo tempo de afabilidade e de  acolhida, como quem, com muita suavidade, mas com uma enorme transcendência, sorri de desdém de todas as coisas da vida, e diz:

“Olhe, tudo isso não é nada, tudo acaba, não tem importância; a figura das coisas terrenas passa, só a eternidade fica. Eu passei por tudo, sofri todas as dores, tive todas as provações, e terminados esses sofrimentos sorrio para eles. Porque aquilo que foram  mares encapelados, precipícios temíveis, montanhas intransponíveis, fica para trás. De longe, eu sorrio para tudo isso e percebo que só a eternidade é séria.”

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/5/1971)

Corpo, Sangue, Alma e Divindade…

Nosso Senhor Jesus Cristo, realmente presente na Sagrada Eucaristia, entra em contato conosco de um modo todo especial: de alma a alma! Cristo vem a nós quando comungamos. Nas páginas a seguir, Dr. Plinio nos sugere um modo eficaz e piedoso para bem aproveitarmos as graças que recebemos neste divino convívio.

 

Quando eu era menino, nas aulas de catecismo perguntava-se à criança se ela cria que Nosso Senhor Jesus Cristo estava realmente presente na Sagrada Eucaristia. Ela deveria dar uma resposta que me ficou até hoje nos ouvidos, muito bonita, como eram as respostas do catecismo: “Creio que Ele está presente em Corpo, Sangue, Alma e Divindade”.

Nosso Senhor Jesus Cristo não possui corpo humano e alma divina: sua Alma é humana como a nossa. Se Ele não tivesse alma humana, não seria verdadeiramente homem. Ele é Homem-Deus, com duas naturezas, a humana e a divina, estando a humana hipostaticamente unida à Segunda Pessoa da Santíssima Trindade.

Para bem comungarmos, devemos ter presente a seguinte verdade: não vemos Nosso Senhor Jesus Cristo, mas Ele está presente na Sagrada Eucaristia como esteve na Casa de Nazaré, em Betânia — com Marta e Maria —, nos braços sagrados da Santíssima Virgem, na Cruz.

E na Comunhão Nosso Senhor Jesus Cristo penetra em nós.

“Caro Christi, caro Mariæ”

Qual é a força da presença de Nosso Senhor Jesus Cristo em nós quando comungamos?

Imaginemos Nosso Senhor no seio imaculado e puríssimo de Nossa Senhora. A Santíssima Virgem, pelo fenômeno natural da geração, foi Lhe dando elementos para que seu Corpo se constituísse. Sendo Deus, desde o primeiro instante de sua Encarnação Ele possuía inteligência, mantinha comunicação direta, altíssima e insondável com a Santíssima Trindade, e recebia continuamente o culto de Nossa Senhora, a qual sabia que o Redentor estava presente n’Ela. Durante os meses da gestação, Nossa Senhora ia formando o Corpo de Jesus e fazia atos de adoração, de amor, cada vez maiores, porque conhecia o processo pelo qual Ele estava passando.

A Carne e o Sangue Sagrados d’Ele eram carne e sangue imaculados de Maria Santíssima.

“Caro Christi, caro Mariæ”, dizem os teólogos: a Carne de Jesus Cristo é a carne de Maria. A presença física de Nosso Senhor no claustro imaculado da Santíssima Virgem era tão íntima, interna, que determinava como que uma interpenetração das almas, assim como havia uma interpenetração dos corpos. E isso tornava a presença d’Ele extraordinariamente fecunda para sustentar ainda mais aquela montanha luminosa e cristalina de santidade que foi Nossa Senhora.

Cristo presente em nós pela Sagrada Eucaristia

Através da analogia com a presença de Nosso Senhor Jesus Cristo no claustro de Maria Santíssima, podemos, então, compreender o que é a presença eucarística em nós.

Ele entra em nós e, enquanto permanece, há uma ação d’Ele sobre todo o nosso ser. E como o nosso ser é composto de corpo e alma, Ele misteriosamente entra em contato santificante com nossa alma. E sendo nossa alma o que temos de mais alto, mais nobre, mais essencial, essa é a bem-aventurança extraordinária que cada um de nós recebe no momento em que comunga.

Durante o período em que as sagradas espécies ficam em nós sem se corromperem pelo fenômeno da digestão, temos Nosso Senhor presente em nós, agindo misteriosamente em nossa alma. Para compreendermos a ação de Nosso Senhor sobre nossa alma durante a Comunhão, recordo um fato muito bonito, narrado pelo Evangelho(1).

Jesus estava andando, e uma mulher enferma que queria ser curada por Ele, vendo aquela turbamulta em torno do Divino Mestre, desejosa de ouvi-Lo e vê-Lo ou ficar livre de alguma doença, não pôde chegar pela frente. Então, ela, por detrás tocou na túnica sagrada d’Ele. Nesse momento, Jesus voltou-se e perguntou: “Quem tocou em Mim?”, porque — diz o Evangelho — sentiu que uma virtude tinha saído d’Ele e passado para outra pessoa.

Quer dizer, Ele percebia que uma força — nesse caso, evidentemente, tratava-se de uma força vital — que saía d’Ele e, transmitida para aquela mulher, curou-a.

Ora, se uma pessoa com Fé, tocando em Sua túnica podia ser curada, o que significa recebê-Lo inteiro dentro de nós? É uma graça que não se pode medir.

Contato de alma a alma

Imaginemos uma pessoa que vai todos os dias à casa de alguém e com ele conversa. Se for uma pessoa distinta, preclara, eminente, santa, honrará a casa. Muito mais importante do que isso será o convívio de alma a alma. Conversam, e alguma coisa do talento, da nobreza, da excelência, das virtudes ou da santidade da alma do visitante é comunicada ao visitado.

Em grau imensamente maior, a Sagrada Comunhão nos proporciona esses bens, porque Nosso Senhor tem um contato conosco muito mais íntimo do que um visitante em nossa casa. Entrar no nosso corpo e ter ali esse contato de alma é como que uma interpenetração.

Suponhamos que Nosso Senhor Jesus Cristo entrasse agora neste auditório. Teríamos a reação a mais viva possível: todos nós nos prosternaríamos para dar passagem a Ele!

O Evangelho nos fala das várias atitudes de Nosso Senhor. Aquelas que mais me tocam são de duas espécies. Uma é quando Ele se dirige ao Padre Eterno; suas palavras são lindíssimas, humílimas. Ele é Deus, mas também Homem. E se víssemos um homem como nós rezar a Deus daquele modo, com aquela humildade, mas ao mesmo tempo com aquela intimidade, nos sentiríamos nesse sulco de luz, quase que transportados para o interior da Santíssima Trindade. Imaginemos que Ele ficasse aqui sobre o estrado deste auditório e, como diz o Evangelho, postos os olhos no céu, elevasse a voz dizendo: “Meu Pai…” e começasse a rezar…

Para mim, as orações de Nosso Senhor são mais bonitas do que seus sermões e de tudo quanto Ele fez. É natural, pois falando com o Pai Eterno, Ele diria coisas mais belas do que para nós, a quem Jesus disse palavras tão admiráveis que até o fim do mundo não se terá acabado de estudá-las.

Suponhamos ainda que, além de rezar, Ele olhasse e dirigisse palavras a Nossa Senhora — para mim é a segunda coisa mais tocante. O último olhar do Redentor para Ela do alto da Cruz, que coisa maravilhosa! Eles se entreolharam e disseram, um para o outro, coisas indicativas do máximo do respectivo convívio. Nunca se saberá até o fim do mundo qual foi o esplendor dessa troca de olhares!

Se víssemos aqui Nosso Senhor falar com o Padre Eterno e depois com Nossa Senhora, faríamos deste local uma capela.

Eu dizia ser necessário considerarmos Quem vamos receber e a imensa honra, o benefício incalculável a nós concedido por Aquele que assim entra em nós e se digna de estabelecer conosco aquela união.

Bondosa visita

Não devemos ter apenas a sensação da honra, mas também da bondade. Nosso Senhor, na Sagrada Eucaristia, fica horas e horas sozinho, trancado num tabernáculo, isolado, numa capela onde apenas arde a lamparina do Santíssimo Sacramento. Muitas vezes as pessoas passam diante do templo e ninguém para para rezar, e Ele está ali à espera de alguém que venha comungar. O Redentor, então, se dá a qualquer um, entra em seu corpo e toma contato com sua alma para fazer-lhe o bem.

São Pedro disse a respeito de Nosso Senhor esta frase que me pareceu muito bonita, de uma simplicidade e profundidade assombrosas: “Pertransiit benefaciendum — Ele passou fazendo por toda parte o bem”(2). Nos lugares aonde ia, as pessoas mais pecadoras eram por Ele recebidas com bondade. Assim, durante a Comunhão devemos ter confiança de que Ele não é um juiz severo, mas um pai bondoso, um médico infinitamente poderoso e desejoso de nos perdoar.

Agirá de acordo com a condição de escravo de Nossa Senhora, segundo a espiritualidade de São Luís Maria Grignion de Montfort, quem se preparar para a Comunhão em união com Ela, pedindo-Lhe as graças necessárias. É assim que eu me preparo, dizendo à Santíssima Virgem: “Minha Mãe, preparai-me Vós para esta Comunhão, pondo-me na alma todas as boas idéias, todos os bons impulsos, para eu ter presente o que vai acontecer de extraordinário e a imensa honra que receberei. Porque rezastes, vosso Filho virá a mim”.

Em união com Nossa Senhora tudo se consegue.

Consideremos agora a entrada de Nosso Senhor em nós.

Antes da comunhão, se diz: “Senhor, eu não sou digno de que entreis em minha morada, mas dizei uma palavra e serei salvo”. Quer dizer, sou indigno de comungar, mas sede Vós o ornato da casa onde deveis entrar, enchei-a das luzes dignas de Vos receber. Recebida a partícula em nossa língua, fazemos um ato de adoração e imediatamente a deglutimos.

Métodos para bem aproveitar a Comunhão

Há, entre outros, dois métodos de comungar. Um deles consiste em ter algum pensamento que nos tomou o espírito, nos interessou tanto que, durante o tempo de ação de graças, continuamos a desenvolvê-lo(3).

Existe outro método que eu, por cautela, sempre emprego quando sigo o primeiro. Às vezes, preparo-me para a Comunhão muito rapidamente, porque há tanto tempo comungo diariamente que essas idéias facilmente se me tornam presentes. Ao receber a hóstia, mesmo tendo o pensamento focalizado em algum ponto relacionado com a Sagrada Eucaristia, faço os atos que a seguir explicarei.

Filosoficamente, os atos de culto que um homem pode prestar a Deus são: adoração, ação de graças, reparação e petição. Ainda que sumariamente, devemos realizar esses quatro atos por meio de Nossa Senhora, quer dizer, pedir-Lhe que os faça conosco.

Adoração

Por exemplo, quanto à adoração: “Minha Mãe, sei que minha adoração não é nada em comparação com a vossa. Adorai Nosso Senhor junto comigo!”

Maria Santíssima atende meu pedido. Então, devo imaginar como Ela, no Céu, está adorando a Ele presente em mim. Mas não se trata de uma imaginação; é uma coisa real que devo tornar presente ao meu espírito.

Consideremos agora algo um tanto mais complicado, mas que espero tornar claro. Há vários modos de compreender esta adoração. Um deles pode ser assim formulado: Nossa Senhora é a síntese das santidades de todas as pessoas boas que houve, há e haverá na Terra até o fim do mundo. Ou seja, a forma de santidade de cada uma, Ela possui de um modo excelso, inimaginável. Cada pessoa é diferente da outra, e uma alma que se salvou, em algo dará glória a Deus como ninguém o fez antes, durante, nem depois da vida dela. Cada um dos que estão neste auditório, desde o mais jovenzinho até eu que sou o mais velho, é capaz de adorar a Deus, fazer ação de graças, reparação e petição de um modo como só ele realizaria. E Nossa Senhora possui, à maneira d’Ela, todos esses modos.

Podemos, então, fazer-Lhe um pedido assim:

“Minha Mãe, entre vossas excelsitudes incontáveis há uma perfeição por onde fazeis de modo sublimíssimo aquilo que especificamente eu realizo. E no vosso modo de adorar a Deus existe um filão que é a arqui perfeição do meu modo de fazê-lo.

“Então, eu me uno a Vós para adorar vosso Divino Filho, como se eu estivesse falando ao Redentor com um alto-falante celeste. Ainda que fosse gago e rouco, minha voz se tornaria encantadora porque passou a ser vossa voz, ó minha Mãe.

“Vou agora adorá-Lo, e Vós, ao mesmo tempo, o fareis de modo insondavelmente perfeito.”

Podemos, durante a Comunhão, adorar Nosso Senhor em algum dos aspectos de sua vida terrena. Admiro e adoro, de modo especial, o mistério da agonia no Horto das Oliveiras, quando houve a crucifixão de sua Alma sagrada.

Então, adoremos a Nosso Senhor, lembrando-nos, por exemplo, de sua agonia no Horto ou nos braços de Nossa Senhora, ou simplesmente enquanto Ele tendo a bondade de vir visitar-me. Eu O adoro em união com a Santíssima Virgem, a qual, em certo sentido, é arqui-eu mesmo.

Há uma outra maneira de fazer adoração, considerando como Nossa Senhora adora o Divino Salvador de um modo insondável, como nenhuma pessoa foi capaz de fazê-lo.

Podemos, então, dizer: “Meu Deus, eu quereria Vos adorar como Nossa Senhora Vos adora. Aceitai minha boa vontade. Ofereço-Vos toda a adoração que Ela tem por Vós”.

Repetindo. No primeiro modo, referi-me a Nossa Senhora adorando o Divino Salvador exatamente — se assim se pode dizer — na linha em que eu adoro.

Mas Ela não se limita a isso, pois contém todas as adorações do presente, do passado e do futuro da humanidade, inclusive as adorações dos que pecaram e não adoraram. Assim, posso pedir à Santíssima Virgem que não ofereça a Ele apenas o meu modo, mas o d’Ela de adorar, dizendo a Nosso Senhor:

“Senhor, Vós vindes agora à minha casa. Muito mais do que a mim mesmo, tenho uma boa surpresa para Vos oferecer. Aqui está vossa Mãe, adorando-Vos não do único modo como sei adorar, mas de todos os modos de adorações, em todos os tempos e lugares, inclusive das que não foram feitas, as quais estão Vos sendo apresentadas por Ela em meu nome. Ó meu Senhor, é um presente verdadeiramente régio!”

São dois modos, como a face e o reverso de uma medalha.

É possível que, pela graça obtida por Nossa Senhora, o que estou dizendo lhes toque a alma. Porém, não se trata de meras expansões sentimentais, mas tudo é raciocinado como os elos de uma cadeia. E se não fosse raciocinado, para mim não haveria beleza. Explicações onde não entra o raciocínio claro, certo, controlado, sério, afinado com a doutrina da Igreja, à qual nos entregamos com toda a alma, não valem nada. Devem elas estar conformes à razão controlada pela Fé. Se for puro sentimento, não admito.

De fato, estou desenvolvendo aqui uma tese.

 

Continua no próximo número…

(Extraído de conferência de 16/7/1977)

 

1) Mc 5, 30.
2) At 10, 38.
3) Conferir Dr. Plinio, nº 143, página 17.

Dar muito não basta, é preciso dar tudo!

Nosso Senhor Jesus Cristo não deu muito por nós, mas deu tudo, e de um modo inimaginável!

Depois de estendido na Cruz, Ele morreu. Dir-se-ia que estava completo o sacrifício.

Não! Ele quis que um resto de água com sangue que havia no seu Corpo ainda fosse derramado por nós.

Veio, então, o soldado Longinus com a lança e transpassou o Coração d’Ele. O Redentor quis, portanto, que o seu Coração, símbolo do amor d’Ele por nós, ainda fosse transpassado por uma lança, símbolo dos pecados dos homens.

Uma oração que eu recomendo muito a vocês rezarem é “Anima Christi”. Há nessa oração uma invocação muito bonita: “Aqua lateris Christi, lava me”. Água que jorrou do lado de Cristo, lava-me. Quer dizer, todos nós temos defeitos e pecados. Essa água que jorrou do lado sacratíssimo de Jesus, água misturada com sangue, derradeiro tributo dado por Ele para a salvação dos homens, que essa água seja capaz de vencer as nossas últimas infidelidades e nos desapegar dos últimos falsos tesouros a que nosso egoísmo se agarra.

Eu gosto muito dessa invocação: “Aqua lateris Christi, lava me”. Jesus Cristo, que com tanta propriedade é chamado o Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo, quando deu tudo, brotou de seu flanco sagrado uma água que limpa os homens!

Nosso Senhor Jesus Cristo deu tudo! E a Quem deu tudo por nós, ou damos tudo por Ele ou não valemos nada!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 1986)

Paixão – O mais doloroso adeus

Quando Maria Santíssima levou o Menino Jesus ao Templo a fim de apresentá-lo ao Senhor, Simeão, dirigindo-se a Ela, profetizou que um gládio de dor Lhe transpassaria a alma.
Ao meditar na Paixão de Cristo, Dr. Plinio contempla o cumprimento deste prenúncio e a extrema angústia de Maria ao ver o padecimento de seu Divino Filho.

 

A Lei do Antigo Testamento estabelecia que, completados quarenta dias do nascimento de um filho primogênito, este deveria ser levado ao Templo a fim de ser resgatado; também a mãe da criança deveria ser purificada na mesma ocasião.

Apesar de ser Mãe do Homem-Deus e concebida sem o pecado original — portanto, isenta de tal obrigação —, Nossa Senhora, por respeito à Lei e à tradição, desejou apresentar a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade no Templo de Jerusalém.

A apresentação do Menino Jesus no Templo

Lá se deu o episódio mais marcante da história do Templo: o próprio Deus encarnado visita aquele ambiente de oração e recolhimento. Naquele instante, os anjos, cheios de alegria, pervadiram o edifício sagrado.

Porém, Nossa Senhora ali entrou sem que ninguém notasse tão grande presença.

Simeão, o Profeta escolhido por Deus para esta ocasião, recebendo o Menino nos braços, louvou a Deus, dizendo: “Agora, Senhor, deixai o vosso servo ir em paz, segundo a vossa palavra. Porque os meus olhos viram a vossa salvação que preparastes diante de todos os povos”.

Maria Santíssima ouvia as palavras daquele ancião que, profetizando o futuro do Menino, acrescentou: “Eis que este menino está destinado a ser uma causa de queda e de soerguimento para muitos homens em Israel, e a ser um sinal que provocará contradições, a fim de serem revelados os pensamentos de muitos corações. E uma espada transpassará a tua alma”.

Também Ana, a Profetisa, cantara as glórias do Divino-Menino. Por inspiração, ambos souberam o que somente São José e a Virgem Maria sabiam: o Menino era o Filho de Deus.

Coração de Maria, transpassado por um gládio de dor!

Pois bem, passaram-se os anos e o cumprimento da profecia de Simeão se aproximava — “uma espada transpassará a tua alma”…

Chegou, enfim, o momento em que Ele — já homem maduro, aos trinta anos de idade — despediu-se de sua Mãe e partiu para pregar a bondade, maravilhar os homens, e… por eles ser crucificado! Era o doloroso adeus!

Pode-se imaginar o que foi esse adeus: Nossa Senhora, indo à porta da casa e fitando-O; com o olhar, Ela acompanha seu Filho afastar-Se pela estrada.

A partir daquele instante Ela permaneceu sozinha. Para consolá-La, os anjos cantavam. Mas, de que valiam essas canções em comparação com um olhar ou uma manifestação do carinho de Jesus por sua Mãe? Ouvir o eco de seus pés divinos sobre o pobre assoalho da casa santa enchia a alma de Maria de contentamento mais do que qualquer concerto angélico!

Quem haveria de remediar essa ausência?

A criatura zelando pelo Criador

Outro episódio doloroso ainda se daria: o encontro de Maria com Jesus no caminho do Calvário. Apesar de não ser narrado pelos Evangelistas, creio ser o mais pungente que houve na Terra! A vocação de ser a Mãe do Verbo encarnado, pedia de Nossa Senhora uma perfeita aceitação das dores e angústias como as que Ela sofreu nesse doloroso encontro.

Maria Santíssima recebeu do Padre Eterno a missão de conceber o Verbo de Deus — o que Ela realizou esplendidamente. Porém, a missão de concebê-Lo compreendia também a de gestá-Lo. E grande foi o cuidado que Ela dispensou a seu Divino Filho, para que tudo se realizasse de forma adequada, conveniente e santa.

Pode-se imaginar o gáudio de Maria Santíssima ao sentir em Si mesma o Filho de Deus que se movimentava ainda antes de nascer; a santa comunicação existente entre ambos realizava-se através das inúmeras orações e meditações feitas por Ela, incessantemente. Nosso Senhor estava no interior d’Ela assim como está em alguém que O recebe condignamente no Santíssimo Sacramento.

O período iniciado pela primeira reflexão de Nossa Senhora a respeito do Salvador, chegou a seu termo no momento em que Ele nasceu e, pela primeira vez, os olhares d’Eles se cruzaram. O rosto d’Ele era ainda pequeno, cheio de inocência, mas já com semblante de Rei e Mestre. Tal era a intensidade de sobrenatural que se irradiava ao seu redor, que à sua proximidade qualquer enfermo de corpo ou de alma poderia sanar-se imediatamente.

Quando Adão e Eva pecaram, comendo o fruto proibido, seus olhos se abriram e Deus teve de confeccionar para eles os primeiros trajes. Entretanto, quando o Menino Jesus nasceu, Maria Santíssima vestiu o Criador: agora, era a criatura humana quem vestia o próprio Deus!

Por que me abandonaste?

Após o nascimento do Menino-Deus, Nossa Senhora tinha como missão educá-Lo e formá-Lo até que Ele chegasse à maturidade. Mas isto não bastava: quando Jesus atingiu a idade perfeita, Ela teve de acompanhá-Lo ao Calvário para, aos pés da Cruz, receber o último olhar d’Ele.

Ao cabo dos trinta e três anos de maravilhamento de Maria por seu Divino Filho, e de adoração cada vez mais ardorosa e incessante, tudo desfechou na paixão e morte d’Ele.

No momento em que Nosso Senhor rendeu seu espírito ao Padre Eterno, dizendo “meus Deus, meus Deus, por que me abandonaste?”, Maria, estando presente, certamente O ouviu. Qual não terá sido a repercussão desse sofrimento no coração de uma mãe? Sobretudo, d’Aquela Mãe para com Aquele Filho. Momentos depois, Ele inclinou a cabeça e rendeu seu espírito.

Nossa Senhora viu o Corpo de seu Filho repleto de feridas, já não mais trajando aquela túnica inocentíssima — que se diria feita de raios de luz — que Ela mesma confeccionara. Imaginemos a dor da Mãe contemplando o Filho que sofria tão grande despojamento!

Enquanto José de Arimateia e Nicodemos preparavam os bálsamos para cobrir as feridas do Divino Mestre, Maria Santíssima O sustentava em seus braços virginais.

Paz em meio à amargura

Ela viu a realização do desejo de Jesus de entregar a última gota de seu Sangue pela humanidade, quando a lança de Longinos penetrou o lado do Salvador. Nossa Senhora contemplou aquele flanco ferido e, certamente, rezou: “Coração de Jesus perfurado pela lança, tende piedade e nós!”

Como era costume entre os judeus, envolveram o Corpo Sagrado de Jesus num sudário. Finda a preparação do cadáver, aquele divino Corpo foi depositado na sepultura. Rolaram a lápide que fechava a sepultura; tudo estava acabado, a morte reinava!

Após esses momentos de extrema dor, Nossa Senhora voltou para casa acompanhada por seu novo filho, o Apóstolo virgem. As santas mulheres que A seguiam não se continham em prantos, e Ela, ao invés de ser consolada, precisava consolá-las.

Imagino que, acompanhados por Nossa Senhora, os Apóstolos e discípulos dirigiram-se para o cenáculo. Lá rezavam e choravam. Maria Santíssima deve ter permanecido em silêncio, pacífica e serenamente lembrando-se dos fatos ocorridos. Assim se cumpriam as palavras proféticas do livro de Isaías: “Ecce in pace amaritudo mea amaríssima — Eis na paz a minha amargura enormemente amarga”.

Comparados com o tamanho da amargura de Maria, os oceanos são pequenos, o suficiente para caberem na concha de uma mão!

Para que se faça a vossa Vontade

Em meio a tantas dores pelas quais Ela passava, havia uma consolação: Quem obteve a redenção para o gênero humano senão o Filho que Ela concebeu? Ele — o Redentor e fonte de toda Graça — caso não tivesse morrido na Cruz, não redimiria a pobre humanidade pecadora.

Essa torrente de Graças que jorra sobre a humanidade abriu-se para os homens a partir do momento em que Ela disse: “Fiat mihi secundum verbum tuum!”; e abundou sobre o mundo quando Maria deu seu consentimento a fim de que Nosso Senhor Jesus Cristo morresse na Cruz.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/2/1985)

Revista Dr Plinio (Março de 2010)

 

Nós também

Em nosso último artigo, mostramos que as meditações que tão freqüentemente se fazem a respeito da ingratidão, da covardia e da cegueira dos Apóstolos, durante a Paixão, não devem ter, para  nós, interesse meramente especulativo. Também nós temos, para com Nosso Senhor, ingratidões, covardias e cegueiras muito parecidas com as dos Apóstolos, e seria ridículo pensar apenas nos  defeitos deles, sem tomarmos também em consideração a “trave que está em nosso próprio olho”. Ninguém se santifica pela meditação sobre as virtudes ou defeitos alheios, se não o fizer de modo   a acrescer suas próprias virtudes, ou combater seus próprios defeitos.

Assim, pois, olhos postos na Paixão de Nosso Senhor, não devemos por isto nos esquecer de nós mesmos, pois que Nosso Senhor nos pede, não tanto que choremos com Nossa Senhora os  padecimentos do Cordeiro de Deus, mas que cuidemos de não transformar nossa própria alma em uma segunda edição dos que O imolaram. Essa reflexão, absolutamente verdadeira no que diz respeito às suaves tristezas da Semana Santa, também se aplica, ponto por ponto, às austeras alegrias da Ressurreição.

Tanta gente se admira e se indigna com a perturbação cheia de abatimento, e a vacilação de espírito manifestada depois da morte de Nosso Senhor, pelos Apóstolos, a propósito da Ressurreição. O  Redentor tinha predito de modo positivo que ressurgiria dos mortos.

Entretanto, tendo Ele expirado na cruz, os Apóstolos se deixaram dominar por um abatimento que fazia transparecer claramente toda a vacilação que lhes ia na alma. E São Tomé quis tocar com os dedos o Salvador, para crer na objetividade da Ressurreição.

Ora, a realidade é que também nós estamos sujeitos à mesma fraqueza e não raramente ela vence em nós, contando com nosso próprio consentimento. Certamente, todos nós cremos, graças a  Deus, com toda a firmeza e sem a menor vacilação, na objetividade da Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas há uma outra verdade, que sem dúvida admitimos, mas que admitimos às  vezes com tanto temor, que lhe damos um  sentido quase puramente especulativo e tão restrito, que nos tornamos perfeitamente merecedores da censura do Espírito Santo: “Estão diminuídas as  verdades entre os filhos dos homens”. Não se trata de uma verdade posta em dúvida, mas sobre a qual temos, em nosso espírito, uma noção diminuída. Entretanto, quantos e quantos erros daí  decorrem!

Essa verdade que Nosso Senhor afirmou de modo insofismável, e a respeito da qual sua palavra não é menos infalível do que quando predisse sua ressurreição, é a fecundidade sobrenatural da  Santa Igreja Católica Apostólica Romana, que permanecerá de pé, sobranceira em relação às investidas de todos os seus inimigos, até a consumação dos séculos, sempre capaz de atrair pela graça   os homens de boa vontade.

Todos os católicos, evidentemente, estão obrigados a crer nessa verdade. A Igreja jamais perderá esse dom de atrair as almas. Negá-lo implica em negar que Jesus Cristo é Deus, ou que os  Evangelhos são livros inspirados. Negá-lo é, pois, negar a própria Religião. Mas essa verdade, que todos aceitam, todos a possuem em igual extensão? Todos vêem com igual clareza? Todos tiram dela as mesmas conclusões?

Nos dias torvos que atravessamos, quando vemos a heresia se dilatar por toda a Europa, e ameaçar o mundo inteiro, quanta gente há que julga a Igreja tão ameaçada, que se sente inclinada a  concessões doutrinárias perante os atuais dominadores do mundo? Hoje em dia, a paganização geral dos costumes penetrou em todas as esferas da sociedade, e cavou um abismo que se vai tornando cada vez mais profundo, entre o espírito da Igreja e o espírito da época. À vista disto, quanta gente aconselha concessões morais capazes de a reconciliar com esta sociedade sem cujo  apoio se receia, no mundo, que ela venha a sofrer um colapso que, se não fosse a morte, seria ao menos um prolongado desmaio? À vista da formação de correntes pseudo-científicas cada vez mais  contrárias aos ensinamentos infalíveis da Igreja, quanta gente desejaria que a Igreja, se não alterasse as verdades já definidas, ao menos não explicitasse sua doutrina em pontos ainda controversíveis, em que qualquer definição por parte do Catolicismo poderia tornar as divergências com a nossa época ainda maiores?

Evidentemente, todos estes erros procedem de um temor mais ou menos inconsciente quanto à fecundidade da Igreja.

De fato, o que é a doutrina católica? É um conjunto de verdades. Desde que, nesse conjunto, uma só verdade fosse adulterada, a doutrina católica já não seria ela mesma. Assim, tentar acomodá-la, adaptá-la, ajeitá-la, é trabalhar para que ela perca sua identidade consigo mesma: em outros termos, é tentar matá-la. E achar que o apostolado não é possível sem essa adaptação é achar que a  Igreja só pode vencer morrendo!

Evidentemente, essa vacilação, em um verdadeiro católico, não se pode referir a certas verdades já irretorquivelmente definidas pela Igreja. Mas há um sem número de aplicações práticas de  princípios, ou de deduções doutrinárias a respeito de princípios já definidos, em que essa fraqueza se manifesta. Em lugar de se procurar, na utilização doutrinária ou prática dos princípios, a  verdade, toda a verdade, e só a verdade, as reflexões feitas a este respeito se deixam imbuir mais ou menos pela preocupação de condescender com os erros do século. E, assim, em vez de procurar  tirar do tesouro das verdades católicas todos os frutos de ordem intelectual e moral que contêm, procura-se saber mais o que pode ser rotulado como discutível, e portanto como matéria livre, do  que o que pode ser rotulado como verdadeiro, e portanto como matéria certa.

Em outros termos, a mania invariável de condescender leva muita gente a procurar dilatar os espaços intelectuais reservados à dúvida. Em presença de uma afirmação deduzida da doutrina  católica, a pergunta deveria ser esta: posso incorporar mais esta riqueza ao patrimônio de minhas convicções? Mas, em geral é esta outra: que razões posso descobrir, para duvidar também disto?

Pio XI, recebendo em audiência o Exmo. Revmo. Sr. Arcebispo de Cuiabá, lhe deu como palavra de ordem para os jornalistas católicos do Brasil: “Dilatate spatia veritatis”. [Dilatai os espaços da  verdade.] Muita gente gosta de fazer o contrário: em lugar de se esforçar por descobrir novas verdades doutrinárias deduzidas das já conhecidas, ou de estender o mais possível a aplicação dessas  verdades na prática, todo seu esforço vai em negar o mais possível qualquer coisa de positivo que se faça neste caminho. Em suma, isto é exatamente o oposto do verdadeiro espírito construtivo, é  dilatar espaços, não da verdade, mas da dúvida.

Se a Revelação é um tesouro, e a difusão do Evangelho um bem, quanto mais esse tesouro se espalha e esse bem se distribui, tanto mais contentes devemos ficar. Muita gente, entretanto, acha que  é o contrário.

Quanto mais se ocultam os desdobramentos lógicos da Revelação e se encurtam as conseqüências do que está no Evangelho, tanto mais caridoso se é! Como Deus teria sido caridoso, se tivesse   imposto uma moral menos severa! Por que não previu Ele que no século XX, essa moral seria um trambolho indifusível? Corrijamos a obra de Deus: encurtemos o que na sua obra está por demais  longo, empanemos a luz do que brilha demais, e assim teremos beneficiado largamente a humanidade. Quanta gente, na prática, raciocina assim!

Ora, proceder assim não reflete o receio de que a Igreja já não conte com o apoio de Deus, e, se não se baratear, já não possa arrastar as turbas? E essa dúvida  sobre o auxílio sobrenatural que  Deus dá à Igreja, não se parece muito com a dúvida que, antes da Ressurreição, se sentiu a respeito deste fato? Reflitamos nisto. E peçamos a Nosso Senhor que, fazendo ressuscitar em nós os  tesouros das graças que rejeitamos, voltemos novamente àquela ortodoxia virginal da Fé, e àquela perfeição de vida, que talvez o pecado, por nossa máxima culpa, nos tenha roubado.

Plinio Corrêa de Oliveira (Publicado no “Legionário”, nº 448, 13/4/1941)

MEU DEUS, MEU DEUS, POR QUE ME ABANDONASTES?

Causa-me assombro como essa fisionomia expressa uma forma de sofrimento de Nosso Senhor que não me lembro de ter visto representado, de modo tão preciso e extremo, em nenhum outro crucifixo.

Olhos escancarados e salientes, a tensão de toda a carnatura da face e a posição do pescoço dão a impressão de algo muito mais aflitivo do que a dor: é o mal estar.

Um mal-estar terrível, pior do que qualquer padecimento, inundando completamente a Alma adorável e o sagrado Corpo de Nosso Senhor no alto da Cruz. Dir-se-ia que, nessa posição e com essa expressão fisionômica, o Divino Redentor não estava distante de dar o brado sublime que precedeu de momentos a sua morte: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?” Tudo n’Ele está  prestes a estalar, a desaparecer. O “consummatum est” se aproxima.

Sofrimento indizível, cuja consideração deve nos preparar para nos unirmos a Jesus, pelos rogos de Maria Santíssima, em nossas dores, em nossas perplexidades  aflições de espírito, nas horas em que parecemos sucumbir ao peso da angústia e pensamos estar, nós também, abandonados pela Providência.

 

Comentários de Dr. Plinio sobre o milagroso crucifixo que se encontra no altar-mor da Igreja de São Francisco de Assis, em São João del Rey, MG (foto acima).

 

O caminho da dor – I

A trajetória de um homem que ao longo de sua vida procura santificar-se é repleta de sofrimentos. Quem, à semelhança de Nosso Senhor, abraça com amor e resignação as cruzes que lhe advêm adquire têmpera moral, corrige-se de seus defeitos e chega à glória eterna.

 

Quais são as dores que uma pessoa precisa sofrer ao longo da vida?

A Providência permite que alguém, em determinado momento, sofra dores extraordinárias. Por exemplo, ser caluniado injustamente e, por causa disso, passar anos mal visto por todos aqueles a quem mais se admira.

Sacerdote caluniado por jansenistas

São Luís Grignion de Montfort, em uma de suas obras, menciona um padre, grande devoto de Nossa Senhora — para mim isso tem um luzimento parecido com o de uma canonização; ser elogiado por São Luís Grignion, enquanto grande devoto de Maria, é o auge dos auges.

Esse homem, que era muito bom padre, estava certo dia na sacristia para atender o público, quando lá entrou um dos meninos que serviam à igreja, o qual mexeu numa coisa qualquer, saiu correndo e dirigiu-se a uma rua ou praça, situada junto ao templo, gritando uma calúnia medonha, dizendo que o sacerdote tinha querido atentar contra a pureza dele.

Bastou esse menino, sem outras testemunhas, gritar na via pública tal calúnia, que se produziu na cidade uma emoção extraordinária. Embora esse padre fosse de vida muito digna, todos acreditaram na calúnia. O Bispo o privou dos cargos eclesiásticos, e o sacerdote, que possuía alguma coisinha para subsistir, durante dez anos viveu no horror e na rejeição de todo mundo. Dez anos se passaram, mas podia-se temer que isso durasse uma vida inteira…

Determinado dia, o Bispo se apresenta e lhe diz amavelmente: “Meu padre, faz favor, venha cá.” Ele se aproximou para beijar o anel do Bispo, o qual o abraçou. Vieram também outras pessoas as quais contaram que aquele menino, que se tornara moço, havia morrido. E, antes de falecer, diante de testemunhas, declarou que ele tinha feito aquela calúnia, pago por uma corrente teológica, na aparência católica, chamada jansenista, existente naquele local e que, aliás, tinha se espalhado como uma lepra por toda a Europa. Para difamar esse padre, que criticava muito aquela corrente, um dos seus chefes deu dinheiro ao menino.

Creio que a corrente interessada nisso — é opinião minha — mandou colocar gente próximo à igreja naquela hora, para acreditar imediatamente: “Oh! que horror! Mas imagine…”, e assim dar corpo à calúnia, a qual se difundiu como um mar sobre a cidade. E somente quando a Providência dispôs que esse menino, depois moço, mal à morte, dissesse a verdade — ele sabia que não podia ir para o Céu se não se retificasse, morreria em estado de pecado mortal e, com o inferno diante de si, acabou confessando —, o padre foi reabilitado. Mas foram dez anos terríveis.

Então, sobre um homem que levava sua vida normal de padre, com os sacrifícios inerentes à vida de sacerdote, de repente caiu como que um raio e estraçalhou-o durante algum tempo.

Madre Mariana de Jesus Torres padeceu tormentos do inferno

Creio que já narrei aqui a história da Madre Mariana de Jesus Torres, religiosa diante da qual se deu o milagre primeiro de Nossa Senhora do Bom Sucesso, em Quito, no Equador. Tendo sido eleita abadessa do seu convento, ela começou a governar com muita bondade — era uma pessoa de virtudes eminentes; espero que seja canonizada. Havia ali algumas freiras novas, que eram descendentes de índios. Como manda a Igreja, com toda a sabedoria e razão, não fazer segregação racial, essas filhas ou netas de índios foram recebidas no convento.

Entretanto, uma delas, que tinha vontade de ser abadessa, tramou a destituição de Madre Mariana de Jesus Torres e a substituição por ela mesma, criando um choque entre as freiras índias e as freiras espanholas ou descendentes de espanhóis. Houve então uma divisão entre as religiosas, e afinal de contas tornou-se abadessa essa revoltosa, ou uma freira dependente da revoltosa. E a primeira coisa que fez foi mandar prender Madre Mariana de Jesus Torres na prisão do convento, porque naquele tempo os conventos tinham cárceres. E Madre Mariana ficou muito tempo presa, injustamente.

Durante esse período, vivendo a pão e água, com toda a serenidade, ela rezava pela alma de sua perseguidora. E a Providência deu-lhe a entender que essa freira era tão ruim, estava tão comprometida que só havia um jeito de salvá-la: Madre Mariana de Jesus Torres deveria oferecer-se para, em espírito, passar cinco anos sofrendo, inclusive fisicamente, as chamas infernais. Uma coisa horrorosa!

Ela contou depois que, às vezes, durante esse tempo, pensava estar condenada de fato; mas ao mesmo tempo tinha a ideia um tanto contraditória de que ela sofria isto para salvar a alma da outra.

Ela então dizia: “Se eu estou condenada, que minha condenação sirva pelo menos para salvar minha inimiga. Considero meu sofrimento por bem empregado”. É belíssimo!

Durante esses cinco anos, Madre Mariana sofreu barbaramente. Terminado o prazo, foi libertada, saiu do inferno, voltou a paz para sua alma e ela foi reeleita abadessa.

A freira revoltosa adoeceu, e Madre Mariana tratou-a com a maior bondade possível, de maneira que aquela freira acabou reconhecendo que tinha andado mal, pediu perdão e faleceu. E Madre Mariana de Jesus Torres recebeu a revelação de que a alma dessa freira foi para o purgatório, onde deveria ficar por um prazo longuíssimo, se não me engano, até o fim do mundo. Uma coisa de assustar! Assim ela salvou essa alma.

Foi um sofrimento que a Providência pediu a Madre Mariana e ela aguentou.

Médico famoso que ficou cego repentinamente

Lembro-me de um médico de São Paulo, que era famoso e rico. Ele estava assistindo a corridas de cavalos; pôs o binóculo e começou a acompanhar o percurso dos equinos na pista. Em certo momento, não viu mais nada. Achou esquisito, tirou o binóculo e nada enxergava. Ficou cego de repente, devido a um deslocamento de retina.

Como era muito rico, ele contratou o melhor oculista de São Paulo para ir com ele à Europa — os grandes centros médicos, naquele tempo, eram exclusivamente os europeus; a América do Norte ainda tinha se destacado muito menos –, a fim de consultar os maiores oculistas. Para abreviar, não tinha mais solução; ele continuou cego e morreu vinte anos depois.

A vida de um verdadeiro católico é repleta de sofrimentos

Mas não é propriamente desses sofrimentos que vou tratar. Isso é fácil compreender; são episódios que ocorrem na vida de uma pessoa.

O problema é diferente: todo homem, mesmo que não lhe aconteçam coisas dessas, deve sofrer muito na vida. O curso comum da existência de um homem verdadeiramente católico, apostólico, romano, praticante, é cheio de sofrimento, primeiro ponto.

Segundo ponto: com esse sofrimento o homem atinge a têmpera moral que deve possuir. Terceiro: ele se corrige dos seus defeitos. Quarto: com isto pode chegar até a santidade.

De maneira que essas grandes tragédias, esses grandes sofrimentos, com frequência acontecem na vida dos santos. Um teólogo do século XIX fazia uma afirmação interessante: “Dai-me um frade que cumpre simplesmente a regra de sua Ordem e eu vos darei um santo”. Como? Sofrendo coisas extraordinárias? Não. Aguentando o duro da vida, como Deus quer.

Como é esse duro da vida? Como os presentes neste auditório estão mais próximos do começo da vida do que do fim, e as suas memórias só versam sobre esse início, falemos dele.

Uma criança desobedece a seus pais…

Desde pequena, a criança começa a ser partilhada entre dois impulsos contrários. Por um lado, ela quer muito bem a seus pais, gosta de ser acariciada por eles, etc. Mas, de outro lado, os progenitores lhe dão ordens: não faça tal coisa, faça tal outra.

No momento em que os pais lhe dão uma ordem, põe-se para ela um problema: “Se você quer realmente bem a seu pai e sua mãe, não fará o que eles estão proibindo; se fizer, vão ficar tristes. Mas ninguém proíbe uma pessoa de fazer algo que não seja gostoso. Porque, se não é gostoso, ela não faz, e se faz é porque acha gostoso. Você recebeu uma proibição… Como é isso?” É um não gostoso que se põe no caminho da criança. Então vem a questão da escolha.

Imaginemos o seguinte:
O pai ou a mãe diz à criança: “Somente suba na cadeira, para pegar o brinquedo que está em cima do armário, se houver uma pessoa mais velha para ajudá-la. Do contrário, não dou licença”. É-lhe explicada a razão evidente: se subir sozinha, terá que fazer certo esforço para alcançar o objeto, digamos um boneco, poderá cair e se machucar. A criança mais ou menos entende isso.

Seus pais saem de casa, a criança fica só e sente o desejo de apanhar o boneco para brincar com ele. Surge, então, em sua cabeça uma porção de pensamentos: “Meus pais não estão aqui; quando voltarem vão me ver brincar com o boneco… Mas eles não mais se lembrarão se o boneco estava em cima ou embaixo. Subo na cadeira, pego o boneco e depois coloco a cadeira no lugar em que estava; posso passar um bom tempo brincando com o boneco, porque eles me disseram que eu ficaria trancado neste quarto umas duas horas, até que voltassem”.

Em certo momento, a vontade de brincar com o boneco é tão grande que a criança empurra a cadeira, sobe e pega o boneco; e na hora de descer da cadeira, com o boneco nas mãos, a cadeira cambaleia, a criança tem um susto enorme, quase cai, mas dá um jeito e se equilibra.

…e vêm à sua mente algumas questões…

Ela começa a brincar e, depois do primeiro momento, vem à sua mente uma questão: “Eu deveria ter feito o que fiz?”

E uma reflexão desagradável: “Mamãe, chegando, ao ver que estou com o boneco aqui, é capaz de lembrar-se que ele estava em cima do armário, e notará minha desobediência. Quem sabe se seria melhor, para evitar o castigo, eu desobedecer uma segunda vez, subir na cadeira novamente e pôr o boneco lá em cima? Já andei mal uma vez… Quando faltar mais ou menos meia hora para meus pais voltarem, colocarei o boneco no lugar em que estava”.

Mas o pensamento continua: “Agora que você andou mal, aguente. Brinque com o boneco e quando eles chegarem você dirá: ‘Olha, me perdoem, eu peguei o boneco’. Eles vão se zangar com você, será uma coisa desagradável”.

A criança cessa de brincar e diz a si mesma: “Por que pensar nisso tudo? Falta uma hora e meia para eles voltarem. Quando faltar quinze minutos, vou resolver esse problema. Agora vou brincar”.

Ficam, então, na cabeça da criança três convites. Primeiro: agir bem, quer dizer, contar para os pais o que ela fez; segundo: agir mal, desobedecer mais uma vez e colocar o boneco em cima do armário; terceiro: não pensar no problema, a não ser no último momento, e brincar, ou seja, gozar a vida.

É possível que, conforme a psicologia da criança, esse problema do boneco estrague a tarde dela. Ela pode ainda pensar: “Seria melhor eu não ter desobedecido. Nunca mais vou desobedecer”, Mas depois lhe ocorre esta ideia: “Mas a vida fica tão cacete se eu nunca mais desobedecer que, de vez em quando, desobedecerei”.

…cuja solução significa um programa para sua vida

Conforme a decisão dessa criança, que pode ter quatro ou cinco anos de idade, ela traçou um programa para sua própria vida: Ela escolheu o prazer ou a dor.

Digamos que a criança desobedeça e coloque o boneco novamente em cima do armário; os pais regressam, nada percebem e encontram a criança alegre, a mãe trouxe-lhe um docinho, e o pai, uma revista para ela ver. Agradam a criança e a vida continua.

Mais tarde a criança pensa: “Valeu bem a pena enganá-los. Fiz o que eu não devia, ganhei presentes e passei uma tarde gostosa. Em alguns casos, talvez minha atitude dê errado, mas tantas vezes dará certo que vou fazer assim.”

E pode começar a existir uma dobra no espírito da criança, devido à qual vai ficando cada vez mais difícil para ela andar direito, e mais fácil andar mal. Ela vai inventando jeitos, habilidades para desobedecer, ideias novas, outras travessuras para fazer coisas mais gostosas; quer dizer, desobediências ainda maiores, por onde, praticando uma falta venial, pecado de criança, ela compra um prazer. E essa dobra vai se marcando cada vez mais.

A grande batalha pela castidade

Imaginemos dois tipos de crianças. Uma, que sempre pratica o bem e nunca desobedece aos pais. Outra, fazendo sempre o mal e desobedecendo de duas maneiras: ou pensando: “Eu quero fazer o mal”, ou não pensando, mas no fundo praticando o mal.

Elas chegam aos dez anos de idade, mais ou menos, quando começa a crise da puberdade e se apresenta a primeira tentação contra a pureza. Qual das duas crianças está preparada para travar a grande batalha pela castidade? A criança da travessura, que seguiu a escola do prazer? Ou a séria, que pensa nas coisas retamente, ama a verdade? Esta última, quando se lhe apresenta a tentação da impureza, diz: “Isso não pode ser!” Ela reage e não peca.

Mas quanto à outra criança, há noventa e nove probabilidades sobre cem de que, se lhe apresentando o prazer da impureza, ela peque. Ela está habituada a não se recusar nenhum prazer. No momento em que aparece um prazer que seduz os homens muito mais do que brinquedos de criança, ela está muito menos preparada para resistir àquela pressão. Resultado: ela cai. E vai ser um homem impuro, porque foi uma criança que não quis a dor.

Essa criança deveria ter sido séria e não ter levado as coisas na brincadeira; precisaria ter raciocinado: “Eu não quero o mal, mas o bem. Percebo que estou indo por uma via ruim que vai me conduzir para o inferno; não quero isso. Amo aos meus pais, mas sobretudo amo a Deus, a Nossa Senhora, não quero ofendê-los. E, por causa disso, não vou fazer uma ação má”. Então, ela começa uma luta.

Lutando contra si, ela se torna forte. Se a criança vence a crise da pureza, ao cabo de ter feito a batalha da castidade, ela se torna um herói. O homem que nunca pecou contra a pureza pode dizer: “Graças a Nossa Senhora, pelo favor que Ela me obteve de Deus, sou um herói”.

Se ela pecou contra a pureza, mas se arrepende, poderá dizer: “Sou um pecador regenerado e a graça de Deus pousou sobre mim, arrancou-me do charco imundo onde eu estava, levantou-me; minha alma hoje é pura, graças a Deus. Nossa Senhora, Virgem Puríssima, rogai por mim!”

Um osso partido, quando se consolida, fica mais forte no local da fratura do que nos outros pontos. Assim também, a pessoa que caiu em matéria de pureza, arrependeu-se e depois praticou a castidade, torna-se mais forte.

Dizer não para si mesmo e sim à voz da graça

Ao fim de uma longa existência, oitenta, noventa anos, se a pessoa viveu sempre assim, ao morrer, os braços de Deus estão abertos para ela. Nosso Senhor Jesus Cristo lhe sorri, ela vê no peito do Redentor o Sagrado Coração que pulsa de amor por ela. Nossa Senhora a afaga e a conduz junto ao Divino Salvador. Seu Anjo da guarda canta, há uma alegria em toda a corte celeste por uma alma que entra para o Céu. O objeto dessa alegria é ela, porque no fundo compreendeu que toda a prática da virtude é um dizer não para si mesmo, e sim à voz da graça, a qual nos convida a cumprir o dever.

A graça diz no interior da criança: “Obedeça a seu pai, a sua mãe; obedeça a Deus que ordenou honrar pai e mãe.” Sendo fiel à graça, ela vai se fortificando e resistindo a outras tentações. Por exemplo, uma criança que aprende a não brincar com os brinquedos não permitidos, aprende também a estudar nas horas em que deve. É claro, porque uma coisa é reversível na outra.

Aprendendo a estudar nas horas em que precisa estudar, ela vence a preguiça de pensa, a preguiça do trabalho mental, e se torna uma pessoa que gosta de ler um livro, estudar uma doutrina, e pode ser um homem inteligente e até célebre. Pode tornar-se um defensor da Fé.

Se a criança não estuda, fica com preguiça de estudar. No tempo de minha infância, conheci um menino que às vezes batia na testa e dizia: “Eu sou burro! Mas não tenho culpa de ser burro.” E pedia aos colegas para fazerem redação para ele, a fim de ele copiar com a letra dele e passar no exame. Os colegas o atendiam, mas eu, que o conhecia bem, sabia que ele era burro de preguiça, mas se fizesse esforço poderia tornar-se uma pessoa razoável. Entretanto, devido à preguiça, ficou fadado a ser burro a vida inteira.

Continua no próximo número…

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/8/1986)