São José, esposo de Maria e pai adotivo de Jesus

Eleita pela Santíssima Trindade para ser a Mãe Admirável do Verbo Encarnado, Nossa Senhora é a mais perfeita de todas as meras criaturas. Mesmo se considerássemos,  num só  conjunto, as excelências dos Anjos, dos Santos e dos homens que existiram, existem e existirão até o fim do mundo, não teríamos sequer uma pálida ideia das  celestes perfeições de Maria, que reluziram aos olhos de Deus desde o primeiro instante de sua Imaculada Conceição.

Para cumprir os eternos desígnios da Divina Providência no tocante à Redenção da humanidade, foi preciso que, em determinado momento, essa criatura excelsa contraísse legítimo matrimônio. Assim poderia Ela, sem detrimento de sua reputação, conceber miraculosamente e dar à luz o Filho do Altíssimo.

O único homem à altura de Jesus e Maria

Ora, entre esposo e esposa deve haver certa proporcionalidade: não pode um ser por demais superior ao outro. Era necessário, portanto, surgir um homem que, por seu amor a Deus, por sua justiça, pureza, sabedoria, enfim, por todas as  suas qualidades, estivesse à altura daquela augusta Esposa. Mais ainda. É também conveniente que o pai seja proporcionado ao filho. Por isso, era preciso que esse mesmo  varão, com toda a dignidade, arcasse com a honra de ser o pai adotivo do Verbo feito carne.

E houve um único homem criado para essa sublime missão, um homem cuja alma recebeu do Pai Eterno todos os adornos e predicados que o colocassem inteiramente à  altura de seu chamado. Esse homem, entre todos escolhido por estar na proporção de Nossa Senhora e de Nosso Senhor Jesus Cristo, foi São José.

A ele coube essa glória, esse píncaro inimaginável de ser esposo da Virgem-Mãe e pai legal do Menino Jesus. Como legítimo consorte de Nossa Senhora, possuía São José  plenos direitos sobre o Fruto das imaculadas entranhas d’Ela, embora este Fruto houvesse sido engendrado pelo Espírito Santo. Quer dizer, sem contar a própria maternidade divina, não se pode conceber vocação mais extraordinária! É uma grandeza inconcebível.

Pensemos, por exemplo, nos momentos em que São José trouxe em seus braços o Menino Jesus, ou naqueles em que ele O viu praticar os atos da vida comum na santa casa  de Nazaré, ou ainda nas horas em que O contemplou imerso nos colóquios com o Padre Eterno…

Consideremos quão puros deviam ser seus lábios, e quão insondável a sua humildade para conversar com o Divino Infante, responder às perguntas d’Ele ou Lhe dar um  conselho, quando solicitado. Um simples ser humano, formado e plasmado pelas mãos do Criador, ensinando a Deus!

Pensemos, ainda, no trato repassado de elevação e respeito entre São José e Nossa Senhora, quando Ela se ajoelhava diante dele para o servir. Ele vê aquela Criatura, que é o  Céu dos Céus, inclinada à sua frente, e aceita seus préstimos. Como se tal não bastasse, a Esposa também se aconselha com ele, troca opiniões e acata suas ordens.

Numa palavra, ele era o homem que tinha bastante sabedoria e pureza para governar a Deus e a Virgem Maria. Então se compreende quão inimaginável é a grandeza de São José!

Excelências de príncipe e operário

Para se traçar o verdadeiro perfil moral do chefe da Sagrada Família, seria preciso saber interpretar a Divina Face do Santo Sudário de  Turim e, à maneira de suposição, deduzir algo da personalidade de quem foi o educador daquele semblante que ali está, e o esposo da Mãe d’Ele.

Casado com Aquela que é chamada de o “Espelho da Justiça”, pai adotivo do “Leão de Judá”, São José devia ser um modelo de fisionomia sapiencial, de castidade e de força.

Um homem firme, cheio de inteligência e critério, capaz de tomar conta do Segredo de Deus. Uma alma de fogo, ardente, contemplativa, mas também impregnada de carinho.

Descendia da mais augusta dinastia que já houve no mundo, isto é, a de David. Segundo São Pedro Julião Eymard, Fundador da Congregação dos Padres Sacramentinos, os  judeus reconheciam em São José o homem com direito ao trono real, caso a monarquia legítima fosse restaurada na Terra Santa. Direito este que Nosso Senhor Jesus Cristo herdou de seu pai legal, e por isso foi aclamado como “o filho de David”, quando entrou em Jerusalém. Ou seja, não era um descendente qualquer do Rei Profeta, mas o  primogênito pretendente ao trono. E São José era o varão por meio de quem esta dignidade se transferiu para o próprio Filho de Deus.

Quis a Providência nobilitar a classe operária, fazendo com que o pai adotivo de Jesus fosse também trabalhador manual, exercendo o ofício de carpinteiro. Desse modo, São  José reunia em si os dois extremos da escala social na harmonia interior da santidade e da pessoa dele. Estava no ápice como príncipe da Casa de David, mas era um príncipe empobrecido, que tirava do seu labor artesanal o sustento da Sagrada Família.

Como operário, soube ser humilde e tributar o devido respeito aos que lhe eram superiores. Como príncipe, conhecia também a missão de que estava imbuído, e a cumpriu  de forma magnífica, contribuindo para a preservação, defesa e glorificação terrena de Nosso Senhor Jesus Cristo. Em suas mãos confiara o Padre Eterno esse Tesouro, o  maior que jamais houve e haverá na História do universo! E tais mãos só podiam ser as de um autêntico chefe e dirigente, um homem de grande prudência e de profundo  discernimento, bem como de elevado afeto, para cercar da meiguice adorativa e veneradora necessária o Filho de Deus humanado. Ao mesmo tempo, um homem pronto  para enfrentar, com perspicácia e firmeza, qualquer dificuldade que se lhe apresentasse: fossem as de índole espiritual e interior, fossem as originadas pelas perseguições dos adversários de Nosso Senhor.

O herói da confiança

Consideremos, por exemplo, a tremenda provação que sobre ele se abateu, logo no início de seu matrimônio com Maria Santíssima. No Antigo  Testamento, a maior ventura que podia almejar um judeu era a de ser contado entre os ancestrais do Messias. Em vista disso, a imensa maioria do povo eleito procurava contrair matrimônio e ter filhos, não sendo raro considerar-se a esterilidade como um sinal de desprezo e opróbrio.

Mas, São José, movido pela graça, não quisera se casar, a fim de conservar a virgindade. Levava ele sua tranquila vida de homem casto e puro, quando, inesperadamente,  recebe uma convocação: todos os descendentes diretos de David deviam comparecer diante de uma Virgem chamada Maria, a fim de se poder escolher um marido para Ela.

Obediente, São José se apresenta ao lado de seus parentes, confiando na voz da graça que o fizera abraçar a virgindade. No seu íntimo, alimentava a certeza de que o  escolhido seria outro.

Como naquele tempo se viajava com o apoio de um bordão, todos se apresentaram com o seu. O sacerdote encarregado da cerimônia determinou: aquele em cujo bastão desabrochar uma flor, este será o eleito para se unir a Maria.

São José olha para seu cajado… e nele vê aparecer uma flor! Evanesceram de súbito todos os seus anseios de virgindade. Como será agora? Ele confia. É um milagre que o obriga a se casar com Maria. Entretanto, no fundo de sua alma, quer continuar virgem! Sereno e corajoso, aceita a disposição divina.

Entra em confabulação com a jovem e descobre que Ela também fizera voto de virgindade. A dificuldade parecia estar resolvida: ambos se manteriam intactos. Que  felicidade! Seus anelos permaneciam vivos. Com o passar dos dias, ele percebe a incomparável riqueza de alma dessa Virgem que foi posta no seu lar. Pensa: “Protegê-La-ei magnificamente. Aqui estou para defendê- La no esplendor de sua personalidade contra toda espécie de ataques.”

Em determinado momento, porém, o impensável acontece: ele nota que a Virgem está à espera de um Filho. No espírito de São José se estabelece a perplexidade. Ele não  podia entender o que se passava, depois de tantos milagres… O florescimento do bordão, o encanto com que os dois se comunicaram o recíproco desejo da perpétua  virgindade, a alegria de alma que então sentiram: “É claro! Deus nos colocou no mesmo caminho. Ele prometeu e está cumprindo a promessa!”

Mas, agora, o incompreensível… São José passa por uma inenarrável provação, e Nossa Senhora também, uma vez que Ela percebia em toda a medida o sofrimento de seu  esposo. Angústia tanto mais intensa quanto ele sabia ser impossível uma traição da parte d’Aquela Virgem incomparável. Ora, pela lei judaica, se uma esposa prevaricasse, o  marido tinha a obrigação de expulsá-la do seu lar.

Mas São José tinha a certeza de que Maria não havia cometido nenhum pecado. Não querendo tomar uma atitude injusta em relação a essa Virgem tão santa, e não sendo  capaz de encobrir  aquela situação irremediável, São José resolve deixar despercebido a casa de Nazaré. Antes da longa jornada que o esperava, resolveu descansar para  reparar suas forças. Na madrugada seguinte ele partiria, levando simplesmente seu bordão, um pouco de comida e o fardo de uma grande incógnita, mais pesada que o  Monte Everest: Como se passou isto? Meu Deus, meu Deus…eu confio na vossa promessa!

Apesar da aflição, tinha a alma tão confiante e tão serena que adormeceu. E, ao dormir, sonhou. No sonho teve esta recompensa: Deus lhe comunicou que aquela Criança  formada no claustro virginal de Maria era o  Verbo Encarnado, Filho do Divino Espírito Santo.

Quando São José despertou, a paz reinava na sua alma. E Nossa Senhora, ao ver o semblante luminoso de seu esposo, soube que a provação dele havia cessado. Porque foi  um herói da confiança, São José recebeu a maior e mais extraordinária missão que um homem teve na Terra. Ele era o consorte da Virgem Mãe, d’Aquela que daria à luz o  Homem-Deus e Redentor do mundo. Nisto florescia a promessa de virgindade que lhe fora feita. Tudo se cumprira além do inimaginável.

Cavaleiro-modelo na proteção do Rei dos Reis

Entretanto, as dificuldades não haviam abandonado as sendas pelas quais caminharia São José. Basta recordar, por exemplo, as recusas de que foi objeto nas estalagens de  Belém, quando procurava abrigo para Nossa Senhora, na iminência do nascimento do Menino-Deus. Ou então a fuga para o Egito.

“Fuga para o Egito”… Quatro palavras que a nós, homens do século XX, parecem banais: toma-se um avião e em pouco tempo se vai de Jerusalém ao Egito. Não era assim no  empo em que São José, recebendo o aviso de que o cruel Herodes procurava matar o recém-nascido Rei dos judeus, foi obrigado a tomar a Mãe e o Menino e com eles partir para a terra dos faraós.

Uma viagem incerta, longa, através de desertos onde se ocultavam toda sorte de perigos: das feras famintas aos ladrões e salteadores, capazes de não só roubar e matar,  como também de levar os viajantes em cativeiro, a fim de comercializá-los nos mercados de escravos. E São José, com seu coração de fogo, sua previdência e força varonil, enfrentou todos esses obstáculos, levando Nossa Senhora sobre um burriquinho e, ao colo d’Ela, o Menino Jesus, o Deus que quis ser fraco nos braços e nas mãos do glorioso patriarca.

Costuma-se apreciar e louvar, com justiça, a vocação de Godofredo de Bouillon, o vitorioso guerreiro que, na Primeira Cruzada, comandou as tropas católicas na nascido Rei dos judeus, foi obrigado a tomar a Mãe e o Menino e com eles partir para a terra dos faraós.

Uma viagem incerta, longa, através de desertos onde se ocultavam toda sorte de perigos: das feras famintas aos ladrões e salteadores, capazes de não só roubar e matar, como também de levar os viajantes em cativeiro, a fim de comercializá-los nos mercados de escravos. E São José, com seu coração de fogo, sua previdência e força varonil, enfrentou todos esses obstáculos, levando Nossa Senhora sobre um burriquinho e, ao colo d’Ela, o Menino Jesus, o Deus que quis ser fraco nos braços e nas mãos do glorioso Patriarca.

Costuma-se apreciar e louvar, com justiça, a vocação de Godofredo de Bouillon, o vitorioso guerreiro que, na Primeira Cruzada, comandou as tropas católicas na conquista de Jerusalém. É uma linda proeza! Ele é o cruzado por excelência.

Porém, muito mais do que retomar o Santo Sepulcro é defender o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo! E disso São José foi gloriosamente encarregado, tornando-se o  cavaleiro-modelo na proteção do Rei dos Reis e Senhor  dos Senhores.

Na coorte dos Santos, o primeiro abaixo de Nossa Senhora

Ao lado de todas as glórias que se acumularam sobre ele, São José recebeu, já nesta Terra, um prêmio inestimável: é o patrono da boa morte. Com efeito, dir-se-ia que ele teve um passamento de causar inveja, pois faleceu entre os braços de Nossa Senhora e os de Nosso Senhor, que o  cercaram de todo o carinho e consolação na sua última hora. Não se pode imaginar morte mais perfeita, com Eles ali, fisicamente presentes. De um lado, Nosso Senhor  cumulava seu pai adotivo de graças cada vez maiores, à medida que a alma de São José continuava a se santificar nos derradeiros transes da agonia. De outro, Nossa Senhora lhe sorria com respeito, e procurava aumentar-lhe a confiança:
— Meu esposo! Lembre-se de que tudo se cumprirá.

Coragem! vamos para a frente!

Em determinado momento, São José exala o último suspiro, e o Limbo se abre para a alma dele. Ali ficaria ele até o instante, entre todos bendito, em que a alma santíssima   de Jesus, que morrera crucificado, desceu ao encontro daqueles eleitos, a fim de colocar um jubiloso termo na sua grande espera. Alguns — Adão e Eva, por exemplo — lá se  achavam desde os primórdios da humanidade, aguardando durante milênios o Redentor que os levaria para a eterna bem-aventurança.

E o Messias veio. Podemos bem imaginar que toda a coorte do Limbo se reuniu em torno de São José para receber o Salvador. E que Este, tão logo ali se mostrou, resplandecente de glória, tendo perdoado e redimido o gênero humano, manifestou-se de modo especial a São José, como que exclamando: “Oh! meu pai!”

Era o ápice do cumprimento de todas as promessas, a perfeita realização de um chamado que passou por indizíveis perplexidades e incomparáveis glórias. E São José,  esposo de Maria Virgem, pai adotivo de Jesus, declarado Patrono da Igreja, ocupa no Céu um lugar tão eminente que recebe o culto de proto dulia. Ou seja, abaixo de Nossa  Senhora — a qual merece a devoção de hiperdulia — é ele o primeiro a ser venerado na extensa hierarquia dos Santos.

Grandiosa recompensa à qual fez jus esse varão que praticou em grau elevadíssimo a virtude da confiança.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

São José

Em geral, as pinturas e esculturas que representam a Fuga para o Egito mostram Nossa Senhora montada num burrico, trazendo aos braços, com uma imensidade de carinho, cuidado e respeito, o Menino Jesus. À frente ou ao lado d’Eles, caminha São José.

Sendo o membro mais forte da Sagrada Família, competem-lhe, explicavelmente, os maiores incômodos e cansaços da viagem. Fadiga que o castíssimo esposo de Maria  aceitava com sublime disposição de alma, pois sabia que devia cercar Nossa Senhora de todo o conforto possível: era Ela quem levava o adorável pequeno peso, aquele corpo divino que um dia seria suspenso nos braços implacáveis da Cruz…

Glorioso São José

A primeira das glórias terrenas de São José é a do homem recusado às portas das estalagens de Belém; a de se  refugiar num lugar ermo e ali ver nascer o Filho de Deus; a de ser um homem apagado, o “carpinteiro”, rejeitado por amor à justiça. A glória, exatamente, daquele que, enquanto comovedora prefigura, tomou sobre si as humilhações, a ignomínia, todo o peso do opróbrio que um dia recairiam sobre o divino Redentor.

São José

De todas as gloriosas palavras sobre São José, outras não dizem tanto quanto a simples afirmação de que foi esposo de Nossa Senhora e pai legal de Nosso Senhor Jesus Cristo. Pois Deus, tão magnificiente no predestinar, modelar e cumular de graças a Mãe do Verbo Encarnado, se-lo-ia menos no escolher e formar o homem destinado por Ele a ser esposo dessa Virgem Mãe e pai jurídico desse Filho?

São José, nobre e virgem

São José teve de modo supereminente a nobreza e também a pureza que é a virtude mais conveniente a um nobre.

Nosso Senhor Jesus Cristo, ao morrer, quis entregar sua Mãe Virgem a um apóstolo virgem. Não teria querido também que Ela estivesse sob a guarda de um esposo virgem? Para ser esposo da Virgem das virgens, alguém poderia não ser virgem? É uma coisa verdadeiramente inconcebível.

Em São José brilhava a dignidade, a categoria, a largueza de visão, a segurança de um homem que é patriarca, rei e príncipe. E, ao mesmo tempo, o fulgor da virgindade. Um varão segundo o Sagrado Coração de Jesus e o Imaculado Coração de Maria.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/10/1966)

São José, bem-aventurado entre os homens

Patriarca e Padroeiro da Igreja, São José era objeto de veneração e admiração profundas da parte de Dr. Plinio, quer por suas insignes virtudes, quer por ter sido escolhido para Esposo da Mãe de Deus e pai nutrício de Jesus. Admiração e veneração que Dr. Plinio procurava despertar também em seus discípulos, tecendo-lhes comentários como os transcritos a seguir, onde sobressaem os luminosos predicados da alma de São José.

 

Ao celebrarmos as excelsas virtudes de São José, talvez conviesse salientarmos, primeiramente, um aspecto da vida do glorioso patriarca pouco ressaltado nos comentários que sobre ele temos lido.

A glória de ter sido recusado

Refiro-me ao fato de ele, ao procurar um abrigo para Nossa Senhora prestes a dar à luz o seu divino Filho, ver que lhes recusavam lugar nas hospedarias de Belém. São José, Príncipe da Casa de David, nobre da família real ao mesmo tempo deposta e no seu apogeu, pois dela ia nascer o esperado das nações, bate às portas e é rechaçado.

Despedem a quem representava algo que a mediocridade de alguns homens sempre rejeitou, ou seja, a distinção, a majestade, enfim porque simbolizava a grandeza e a sublimidade do próprio Verbo Encarnado que Maria Santíssima trazia consigo.

Foi esta a primeira glória de São José, sua especial bem-aventurança de ter sido recusado no momento mais augusto da História. Nesse sentido, prenunciava em sua pessoa a renúncia tão mais acerba que Nosso Senhor Jesus Cristo sofreria mais tarde, culminando na crucifixão e morte no Calvário.

Sucessivas glórias e bem-aventuranças

Logo depois, teve São José a glória de conduzir Nossa Senhora aos arredores de Belém, e de com Ela se refugiar num lugar ermo, numa gruta que servia de habitação aos animais. Ali A acomodou e ali esteve, por amor à virtude, sozinho e abandonado dos outros homens. Ali também foi-lhe dada a suprema dita de presenciar o nascimento do Salvador.

A partir de então podemos dizer que as glórias se acumulam sobre São José, mas — oh! paradoxo! — quase todas negativas. Por exemplo, a de ser um homem apagado, do qual não se fala, ou a ele se referem com menosprezo. “Este (diziam os que motejavam de Nosso Senhor) não é filho daquele carpinteiro? Um filho de mero carpinteiro não pode ser Deus”. O que significa tomar São José como um fator de descrédito para o próprio Messias.

Os evangelistas são lacônicos ao mencionarem a figura do pai do Menino Jesus. Sobre ele pouco se sabe. Transparece nesse quase anonimato a glória daquele que padeceu, previamente, as humilhações e todo o peso da renúncia que devia cair sobre Nosso Senhor.

Bem-aventurado São José, que sofreu por amor à justiça, assim como bem-aventurado porque nele se cumpriam todas as bem-aventuranças que o Divino Mestre enumerou no sermão da montanha. Varão bem-aventurado entre os homens, abaixo do próprio Jesus e de Maria Santíssima, limpo de coração como nenhum outro, porque esposo virginal da Virgem por excelência.

Único homem à altura de Maria

Esposo de Nossa Senhora! Todos os louvores e exaltações, todas as enaltecedoras palavras sobre São José não podem dizer tanto quanto a simples afirmação de que ele foi o esposo de Maria e o pai adotivo do Menino Jesus.

Compreende-se que a Divina Providência, ao eleger a mãe do Verbo Encarnado, adornou-a de qualidades e atributos insondáveis inerentes a tão excelsa prerrogativa. Donde excederem a toda capacidade de intelecção humana o conceber os limites desses atributos e qualidades existentes na pessoa de Maria Santíssima. Ela é, inconteste, a mais perfeita dentre as simples criaturas. Se tomarmos a soma das excelências de todos os anjos e de todos os homens que já existiram, existem e existirão na face da Terra, não teríamos sequer pálida ideia da perfeição da Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Ora, então pergunta-se: se Deus foi tão magnificente no predestinar e modelar a mulher que daria ao mundo o Salvador, e em cumulá-la das mais preciosas graças, seria Ele menos pródigo no escolher o homem que deveria ser o esposo dessa Virgem e dessa Mãe?

Evidentemente não. Um homem tinha de ser considerado proporcionado a essa esposa: por seu amor a Deus, pela sua justiça, pureza, sabedoria e todas as demais qualidades. Esse homem, escolhido por tal adequação à pessoa de Nossa Senhora, foi São José.

Proporcionado ao Filho

Em segundo lugar, o pai deve ser proporcionado ao filho. E só nesse aspecto a grandeza de São José se nos apresenta indizível. Cumpria que o homem escolhido para tal missão a desempenhasse com incomparável dignidade, e assumisse a posição de verdadeiro pai do Redentor, mostrando-se à altura d’Ele. São José foi este homem. Estava na proporção de Jesus Cristo, assim como estava na proporção de Nossa Senhora.

Para formarmos alguma ideia do que representa essa maravilhosa condição de pai e protetor do Verbo Encarnado, pensemos, por exemplo, nas imagens de Santo Antônio que se veneram em certos altares: o santo traz em seu braço o Menino Jesus, e para este dirige um olhar embevecido, repassado de uma felicidade imensa porque, em razão de um milagre, teve o Filho de Deus em seus braços durante alguns instantes. E nós, do nosso lado, fitamos a imagem igualmente embevecidos, exclamando em nosso interior: “Feliz Santo Antônio, ao qual foi dada essa honra inefável de carregar o Menino-Deus”.

Ora, quantas vezes São José terá conduzido o Divino Infante em seus braços? Dias, meses, anos ele O viu crescer, rezar, praticar todos os atos de sua vida comum.Ouvi-O, e teve, ele mesmo, os lábios suficientemente puros e a humildade suficientemente grande para fazer essa coisa formidável: responder a Deus, dar ao Menino os conselhos que Este lhe pedia, sabendo que era a criatura aconselhando o Criador…

Vemos, então, essa glória única de São José, a de ser o homem capaz de governar a Sagrada Família, de cuidar das necessidades terrenas de Nossa Senhora e de Jesus Cristo, inteiramente adequado e proporcionado à altura dessa dignidade.

Modelo de devoção mariana

Devemos acrescentar a tais excelências essa outra: São José é o modelo do devoto mariano. Com efeito, ninguém representa melhor a devoção a Nossa Senhora do que o homem escolhido para ser seu esposo, aquele que — podemos imaginar — A contemplava continuamente, admirando-A nos seus gestos e nas suas palavras, haurindo dessa contemplação ricas lições de sabedoria, recebendo a propósito dela graças extraordinárias, e a todo momento conformando sua alma à d’Ela.

Por isso mesmo, além de perfeito devoto de Nossa Senhora, São José é também o modelo do espírito contemplativo, do espírito afeito ao cultivo da vida interior, para o qual elevar-se às altas cogitações e considerar todas as coisas em função de Deus constitui a genuína felicidade de sua existência. Glorioso São José, modelo de sabedoria, de força, de pureza.

A verdadeira face de São José

Concluo esses comentários com uma ponderação colateral, porém a meu ver oportuna.

Não raro nos deparamos com gravuras e imagens que representam São José com um perfil moral muito aquém de todas essas excelsas qualidades e virtudes que acima salientamos. Donde me parecer não devermos aceitá-las como legítimas manifestações da verdadeira personalidade do pai de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Creio que, para se ter alguma ideia do semblante espiritual de São José, seria preciso deduzir, à maneira de suposição, o caráter de um homem que esteve à altura de ser o pai d’Aquele cuja Sagrada Face está estampada no Santo Sudário de Turim. Quer dizer, o homem que foi o educador, o guia, o protetor do senhor daquele rosto impresso no sudário; um homem que foi da mesma linhagem, parente e esposo da Mãe d’Ele.

Conceber algo menor que isso é não ter ideia da extraordinária figura de São José, modelo de fisionomia sapiencial porque consorte da Sede da Sabedoria, do Espelho da Justiça, Maria Santíssima. Modelo de fortaleza, porque pai do Leão de Judá, Nosso Senhor Jesus Cristo.

A este verdadeiro São José devemos elevar nossas preces, rogando-lhe interceda por nós junto à Virgem Santíssima e a seu Divino Filho, e nos alcance a graça de o imitarmos nas suas magníficas virtudes.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências em 19/3/1966 e 18/3/1967)

Nobreza e lógica de São José

Amor à hierarquia e espírito lógico são características fundamentais do contrarrevolucionário. Dr. Plinio analisa as razões pelas quais São José pode e deve ser cultuado enquanto nobre, e louva a lógica, levada até o heroísmo, do Patrono da Santa Igreja.

 

O texto que pretendo comentar é tirado do capítulo VII do livro “Suma dos dons de São José”, do Padre Isidoro de Isolano, dominicano do século XVI, um dos primeiros teólogos católicos a atacar Lutero. É de longe o mais importante Doutor da Teologia sobre São José. Esta ficha parece conter dados muito interessantes a respeito deste Santo e o espírito da Contra-Revolução.

Carpinteiro e príncipe da Casa de Davi

Não está muito conforme com os mistérios das Sagradas Letras essa nobreza de sangue tão louvada em São José.

Aqui o autor cuida de São José enquanto nobre de sangue. Ele era, ao mesmo tempo, trabalhador manual, carpinteiro e, como tal, pertencente — ao menos do ponto de vista econômico — à camada mais modesta da sociedade. Mas, de outro lado, descendia do Rei Davi e de toda uma linhagem de reis de Israel.

A Casa de Davi decaiu e, com o tempo, perdeu o trono e afastou-se do poder. Seus membros continuaram a morar em Israel, mas essa Casa era cada vez menos influente, menos poderosa e menos rica. A tal ponto que quando, afinal, da raça de Davi nasceu Aquele que, na intenção de Deus, era a razão de ser da raça, Nosso Senhor Jesus Cristo — a esperança e a alegria de todo o povo, e que deveria ser um filho de Davi —, a Casa de Davi estava no auge de sua decadência.

E São José era um trabalhador manual, um mero carpinteiro. É bem verdade que, nessas sociedades muito rudimentares, as classes sociais e econômicas não se diferenciam de um modo absolutamente tão nítido quanto nas sociedades mais desenvolvidas; e nem sempre é um sinal de muita decadência econômica o fato de a pessoa ter pertencido a uma grande família e passar a exercer um trabalho manual.

Conheço zonas do interior do Brasil, por exemplo, em que das grandes famílias do lugar há gente que é, por exemplo, chauffeur de praça, carregador da estação, ou algo análogo, mas que se casa com ramos mais ricos da família e, depois, ascende novamente na escala social.

Portanto, essa situação de São José não queria dizer necessariamente tanta prostração quanto seria a de um descendente de reis que chegasse a ser, hoje em dia, trabalhador manual. Mas ao menos se pode afirmar que era, na ordem econômica das coisas, o mínimo que uma pessoa pode ser.

Então, São José pode e deve ser cultuado enquanto operário, mas também enquanto príncipe da Casa de Davi. É por essa razão que, falando a respeito dele, o Papa Leão XIII, um dos Pontífices que mais inculcaram a devoção a São José, disse taxativamente que este Santo deve ser cultuado não só como modelo do príncipe, mas também como o modelo, o ânimo, o estímulo de todos aqueles que pertencessem a grandes linhagens decadentes; para que essas pessoas compreendam como, pela virtude, pela fidelidade a Deus, podem erguer-se ao mais alto grau da santidade e realizar esplendidamente os desígnios da Providência sobre elas.

Argumentação tomista

O Padre Isidoro de Isolano está analisando, precisamente nesse capítulo, São José enquanto aristocrata. Então, escreve ele: São José foi eleito para conhecer a verdade do Verbo de Deus. São Paulo disse: “Não há, entre vós, muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos nobres. Antes escolheu Deus a estultice do mundo para confundir os sábios, e a fraqueza para confundir os fortes” (1Cor 1, 27). Logo, não se deve louvar a nobreza de São José, escolhido por Deus.

Percebe-se que o autor adota o método de São Tomás de Aquino. Ao tratar desse tema, o Doutor Angélico perguntaria, por exemplo: “Deve ser São José louvado também enquanto nobre?”

Então ele daria, em primeiro lugar, as razões pelas quais parece que não deve. Citaria um, dois, três argumentos negativos. Depois apresentaria os argumentos positivos, como quem faz um cálculo de conta corrente: tem o débito e depois o crédito. Por fim, tira a conclusão: Se tais são os argumentos pró e tais os contra, como responder? Então ele refuta os argumentos da tese que ele quer refutar, faz alguma grande citação em abono da ideia dele — sobretudo citações da Sagrada Escritura — e depois tira a conclusão. É o método lógico perfeito.

Nota-se, então, que o Padre Isidoro adota esse mesmo processo. Começa por dar os motivos pelos quais não se deve louvar a nobreza de São José. E aqui está uma razão tirada de São Paulo que, dirigindo-se aos primeiros católicos, diz: “Entre vós não há muitos que sejam cultos, nem nobres, nem poderosos de acordo com o mundo. Mas desde que sirvam a Deus, isso basta.” Então, daí se tira um argumento contra a nobreza, a cultura, o poder, que são coisas sem importância e não devem ser louvadas. É o primeiro argumento, que depois ele vai rebater. E continua:

Isso mesmo se confirma com a autoridade da Glosa sobre essas palavras do Apóstolo: “O Deus humilde veio a buscar os humildes e não os poderosos, entre os quais são considerados os nobres pelos mortais.”

Esgrima da inteligência

No século XVI os nobres eram considerados poderosos. Na reviravolta das coisas de hoje, um diretor de sindicato é, o mais das vezes, mais poderoso do que um duque. Então, ele diz: “Se é verdade que Nosso Senhor Jesus Cristo, ao encarnar-Se, não veio procurar os poderosos — os nobres, portanto —, não há importância em ser nobre. Logo, não se deve louvar São José enquanto nobre.”

E passa adiante:

A humildade de Deus foi extrema na Encarnação. Mais humilhação era escolher um pai putativo pobre do que um nobre. Logo, não deve elevar-se a nobreza de São José. A argumentação está muito bem desenvolvida. Nosso Senhor Jesus Cristo veio para Se humilhar. Por isso escolheu um pobre como pai putativo, isto é, a quem se atribui a paternidade, mas que não era o verdadeiro pai. Então, não tem importância que esse pobre seja nobre. Nosso Senhor também não olhou para isso, mas apenas para o lado da pobreza. Portanto, ser nobre não vale nada.

Continua o autor: A nobreza não parece ser outra coisa senão a antiguidade das riquezas, como disse Aristóteles. E José, pobre até o ponto de ter que exercer o ofício de carpinteiro para ganhar o pão de cada dia, não podia gabar-se de ser nobre.

O argumento também é interessante. Diz ele que, segundo Aristóteles, a verdadeira nobreza é ter uma fortuna muito antiga. Quem tem uma fortuna que passou por várias gerações, esse ficou nobre. Ora, São José não tinha nenhuma fortuna e, portanto, já não era nobre. Logo, não era o caso de louvar a nobreza dele.

Esses argumentos parecem-me muito bem feitos, o autor sabia objetar bem. Deve fazer parte da destreza do nosso espírito que apreciemos esse florete da argumentação, gostemos de ver argumentos feitos ainda que sejam contra nossas teses para, depois, dar a nossa resposta. É como uma esgrima. Muito mais alta e mais bela do que a esgrima da espada é a esgrima da inteligência. Aqui estão quatro estocadas bem desferidas contra nós. Vamos ver, agora, como o nosso bom padre responde a essas estocadas.

Descendente de rei, de sacerdote e de profeta

Para solucionar essa dificuldade, tenha-se em conta que a nobreza humana pode considerar-se em sua causa, em sua essência e em sua ação.

Está muito bem lançado! Para responder, começar por ver o que é a nobreza, para depois desencaixar daí os argumentos contrários. E, para saber o que é a nobreza, ela deve ser considerada em sua causa, em sua essência e em suas ações, ou seja, no que a causou, no que ela é e no que ela causa. Está perfeito. Não falta nada!

Considerando-a em sua causa, é a nobreza de origem, no que foi singularíssimo São José, pois tem sua origem numa tríplice dignidade: corporal, espiritual e celeste. Ou seja, uma dignidade real, sacerdotal e profética, que é celestial, pois predizer o futuro é só de Deus. Davi foi rei, Abraão foi patriarca, Natã, profeta, e os três foram antepassados de São José.

Ao analisar a causa da nobreza de São José, o Padre Isidoro explica que ele descende de varões dignos a três títulos diferentes: segundo o corpo, por ser descendente de rei; conforme o espírito, por descender de estirpe sacerdotal; segundo as coisas sobrenaturais, porque era descendente de profeta.

Ora, descender de rei, de profeta e de sacerdote confere a mais alta nobreza que uma pessoa possa ter. É esplendidamente bem argumentado.

Que relação há entre rei e corpo? O rei é o chefe do Estado. O Estado cuida, entre os homens, daquilo que diz respeito ao corpo.

O sacerdote faz para a alma o que o Estado realiza para o corpo. Ele cuida das coisas da alma, do espírito.

O profeta é o representante de Deus, o porta-voz da palavra do Altíssimo. Sobretudo quando se trata do profetismo oficial, de um homem mandado por Deus e cuja missão era garantida com milagres, e que falava oficialmente em nome do Criador, como o embaixador fala oficialmente em nome de seu rei. Evidentemente isso é uma altíssima situação, uma altíssima missão.

São José tinha, portanto, as três causas mais altas de nobreza, representativas de três aspectos da vida do homem: o aspecto material, o espiritual e a representação de Deus. É muito bem tratado, superiormente inteligente.

Vejamos agora o que ele diz sobre a essência.

Varão justo, esposo da Rainha do Céu e pai nutrício de Jesus

São José era nobre em sua essência, quer dizer, na sua própria pessoa, porque encontramos nela tríplice nobreza: ele foi justo em sua alma, alcançou a dignidade de esposo da Rainha do Céu e teve ofício de pai nutrício do Filho de Deus.

Consideremos que aquele fotógrafo, Antony Armstrong-Jones, que se casou com a Princesa Margaret, irmã da Rainha Elizabeth da Inglaterra, antes do casamento foi elevado à dignidade de Conde de Snowdon, porque para se casar com a irmã da Rainha tem que ser nobre.

Mas que pouca coisa é ser casado com a irmã da rainha, em comparação de ser esposo da Mãe de Deus! Se isso não constitui nobreza, e se o homem que se casou com a Mãe de Deus não é nobre, então não há nobreza na Terra! O estado dele é, por definição, nobiliárquico.

Nossa Senhora é Rainha do Céu e da Terra, não por uma alegoria, uma imagem, mas Ela o é efetiva e autenticamente. Se a Rainha Elizabeth fosse católica e reconhecesse, portanto, a realeza da Santíssima Virgem, ela, aparecendo diante de Nossa Senhora, teria que se ajoelhar e colocar a coroa dela aos pés da Mãe de Deus. Porque onde Nossa Senhora está ninguém é rei, ninguém é rainha. Somente Ela é a Rainha e tem todo o poder. Os reis e as rainhas não são senão os representantes d’Ela. Nossa Senhora é que manda, porque todo o poder que Deus tem sobre o universo, Ele deu a Ela. Maria Santíssima é a Rainha de todo o universo. Ora, aquele que se casa com a Rainha de todo o universo é nobre, evidentemente.

Notem a coisa interessante: antes de mencionar a nobreza de São José como fidalgo casado com Nossa Senhora, o autor refere a nobreza de São José porque ele era justo, um varão virtuoso que vivia na graça de Deus.

Temos aí uma tese muito interessante em matéria de nobreza. Aos olhos dos homens, um nobre pode valer mais do que um plebeu, porque não está escrito na fronte de ninguém se ele está ou não na graça divina. Mas, aos olhos de Deus, o plebeu em estado de graça vale incomparavelmente mais do que o nobre que esteja em estado de pecado. Quer dizer, o primeiro foro de nobreza é a graça de Deus. É uma coisa evidente.

De tal maneira que no Reino de Maria, se houver uma nobreza, sou da opinião de que os nobres que vivam oficial e publicamente em estado de pecado percam a nobreza. Mas, depois, o Padre Isidoro diz bem: São José não foi apenas o esposo de Nossa Senhora, mas também o pai nutrício do Menino Jesus. Ora, ser o pai nutrício do Filho de Deus é a mais alta honra a que um homem possa chegar, depois da honra de ser a Mãe do Filho de Deus, que é, evidentemente, maior.

Mais do que governar todos os reinos e impérios do mundo

Também em suas obras ele deu provas, ao mundo inteiro, de uma singular nobreza, pois recebeu em sua casa o Salvador do mundo, conduziu-O são e salvo através de vários países, serviu-O e alimentou-O durante muitos anos com seus trabalhos e seus suores.

Quer dizer, ele não só foi nobre porque se casou com Nossa Senhora, mas porque Deus o investiu na mais alta função de governo que possa haver na Terra, abaixo de Maria Santíssima. Exercer uma alta função de governo, de acordo com os conceitos da sociedade tradicional daquele tempo, nobilitava, conferia nobreza. Ora, ser o pai do Menino Jesus, governá-Lo, bem como a Nossa Senhora, é mais do que governar todos os reinos e impérios do mundo. Isso não lhe veio só do casamento; Deus o escolheu para essa tarefa. Compreende-se a nobreza excelsa que lhe vinha disso, evidentemente.

Esses são os novos raios que emite a nobreza do santíssimo José, tornando-a mais resplandecente que o mesmo Sol.

Seguindo, como dissemos, o método de São Tomás, o Padre Isidoro deu os argumentos contra a tese que ele ia sustentar; depois defendeu a tese e apresentou os raciocínios a favor dela. Agora ele vai destruir os argumentos contrários à tese por ele sustentada.

A humildade é o melhor ornamento da nobreza

Respondendo à primeira dificuldade: São Paulo se refere aos pregadores que levariam a Fé ao mundo, que deviam ser de origem humilde e simples, para que não se atribuísse ao seu poder e sabedoria a dignidade das maravilhas que obrava a graça de Deus, mediante o ministério deles; restando daí glória à Cruz de Cristo. Por isso lhes disse a Glosa: se não houvesse um honrado pescador, teríamos poucos pregadores humildes.

O pensamento é o seguinte: era natural que entre os primeiros católicos houvesse poucos nobres, e daí não se tira nenhum argumento contra a nobreza. Porque se entre os primeiros católicos existissem muitos nobres, muitos poderosos, muitos ricos, dir-se-ia que o Evangelho conquistou toda a Terra por causa do prestígio desses homens. Ora, não foi isso. Não houve nem nobres, nem sábios, nem poderosos, nem ricos. Foram homens simples que conquistaram. Donde o milagre fica patente. E não é porque a Providência não gostasse da nobreza, ou não lhe desse valor, mas foi para glorificar mais especialmente a Deus que foram escolhidos homens de uma condição modesta para esse primeiro passo. Está muito bem argumentado.

Agora, outra razão: Mas não era apropriado que o Rei dos reis convivesse na intimidade com quem não era nobre nem de espírito nem de sangue. Não era razoável que Aquele a Quem servem milhões de Anjos, escolhesse por pai a quem não fosse nobre de linhagem; nem tampouco que a Virgem escolhida por Mãe, a Quem admiram os moradores da Jerusalém celeste, fosse desposada por um homem de origem plebeia.

[…]

…sabemos que a humildade não é incompatível com a nobreza, mas que, pelo contrário, é o seu melhor ornamento; pois, quanto maior é uma pessoa, tanto mais deve humilhar-se em tudo. Deus ama singularmente os humildes. Assim disse a Santíssima Virgem: “Porque Ele olhou a humildade de sua serva, por isso todas as gerações me chamarão bem-aventurada” (Lc 1,48).

Tanto é verdade que a grandeza e a humildade não se excluem, que em Nosso Senhor tiveram uma aliança admirável.

O Magnificat

Foi [Nosso Senhor] pobre em bens de fortuna, mas não na excelência de sua Pessoa, que é o verdadeiro fundamento da nobreza.

Está muito bem argumentado. De fato, Deus ama eminentemente a humildade, porém esta não é uma virtude exclusiva dos plebeus; é também dos nobres, pois é a virtude dos grandes e dos pequenos.

A humildade é a verdade. É humilde aquele que, olhando para si, reconhece a verdade a seu respeito, contenta-se com o que é, não quer ser mais nem menos, porque Deus Nosso Senhor, que manda nele, o colocou na posição que ele tem. Por isso uma pessoa pode ser muito humilde, embora seja de altíssima categoria.

O autor cita exatamente as palavras do Magnificat. Porque olhou a humildade de Nossa Senhora, todas as gerações A chamarão bem-aventurada. Quer dizer, colocou-A no ápice porque era humilde, tinha a respeito de Si uma ideia perfeitamente precisa. Se a grandeza fosse incompatível com a humildade, colocando Nossa Senhora em tal excelsitude, Deus Nosso Senhor A teria impedido de ser humilde. Ora, Ela foi humilde até o fim da vida, sendo a maior das meras criaturas. Logo, entre grandeza e humildade não há incompatibilidade. É um argumento que não permite resposta. É perfeito.

Formas de grandeza de Nosso Senhor Jesus Cristo

Terceiro argumento:

Constatamos que a Encarnação revelou a suprema humildade de Deus:
1º- O revestir-Se da carne humana. “Ele Se aniquilou, tomando a forma de servo” (Fl 2,7).
2º- Por sua humilde vida. “Aprendei de Mim, que sou manso e humilde de coração” (Mt 11,29).
3º- Pelas terríveis dores de sua Paixão. “Olhai e vede se há dor comparável à minha dor” (Lm 1,12).

Contudo, nem sempre apareceu no exterior com a mesma humildade; mas, pelo contrário, mostrava sua grandeza quando convinha. Assim vemos que Ele ensinou com autoridade, fez milagres e ressuscitou vitorioso dentre os mortos.

Também está muito bem argumentado. Afirma o autor: tanto é verdade que a grandeza e a humildade não se excluem, que em Nosso Senhor tiveram uma aliança admirável. Ninguém na vida foi mais humilde do que Nosso Senhor Jesus Cristo, mas ninguém teve grandeza maior do que a d’Ele.

E ele indica três formas da grandeza do Redentor. O ensinamento de Nosso Senhor; ensinar é um atributo da grandeza. Mostra, de outro lado, o seu poder de fazer milagres, a ponto de ressuscitar mortos; é manifestar uma grandeza que ninguém tem. Quando qualquer potentado da Terra, no auge de seu poder, ressuscitou um morto? Só Deus o pode fazer. Mas, terceiro, ressuscitou-Se a Si próprio, o que é um milagre ainda muito maior. Porque, estando morto, ressuscitar-Se a Si próprio é uma grandeza que desafia qualquer palavra. Então, Aquele que foi o mais humilde de todos foi o maior; logo, a humildade não é incompatível com a grandeza. Não há o que dizer! Está perfeitamente respondido.

Mais ainda: a humilhação de Deus na Encarnação não teria sido maior por escolher um pai de origem humilde; foi extrema a humilhação e nada poderia acrescentar-se à humildade que supõe revestir a divindade da natureza humana.

Ele quer dizer o seguinte: falar que Nosso Senhor Se humilhou muito, sendo filho de operário, é uma coisa inteiramente secundária. A humilhação verdadeira d’Ele, sendo Filho de Deus, foi consentir em ficar homem. Diante disso o resto é inteiramente secundário.

Nobreza “en sommeil”

Por último, foi pobre em bens de fortuna, mas não na excelência de sua Pessoa, que é o verdadeiro fundamento da nobreza, como já foi declarado. Além disso, ele careceu do supérfluo, mas não do necessário. Nem tampouco se opõe à nobreza o ganhar o pão com o suor de sua fronte, pois o trabalho evita a degradação, e ninguém pode glorificar-se da nobreza se não souber cobrir suas necessidades com o trabalho de suas mãos. A natureza, que dá essa nobreza aos homens, aborrece a ociosidade, combatendo-a com todas as suas forças. E assim dizia Aristóteles: “Todo o que trabalha ordena sua operação ao obrar”. O trabalho tem a si mesmo por seu próprio efeito; e também Deus e a natureza nada fazem inutilmente.

O princípio que o autor desenvolve aqui é muito interessante. Ele diz que o trabalhar com as próprias mãos de si não destrói a nobreza, porque não há uma incompatibilidade radical da nobreza com o trabalho manual; este não é uma vergonha, não é um pecado. Um nobre pode estar reduzido à condição de trabalhador manual e, com isso, não perde a sua nobreza. Ele pode readquirir, de futuro, a sua posição, porque não fez uma ação vexatória, criminosa. São José foi assim. O que ele fez com seu trabalho manual foi tudo quanto havia de mais nobre e de mais alto e, por causa disso, não se pode dizer que ele tenha desmerecido a nobreza de seus antepassados, trabalhando manualmente.

Certa ocasião li um livro sobre a nobreza no qual o autor mostrava que, em determinadas regiões da Europa, havia essa delicadeza de alma: quando um homem de uma família nobre perdia a fortuna e era obrigado a trabalhar com suas próprias mãos, não se afirmava que ele tinha perdido a nobreza, dizia-se que sua nobreza estava “en sommeil” — a expressão é muito bonita: em estado de sono —, e que ela despertaria no dia em que suas condições materiais lhe permitissem viver no estado nobre. É um infortúnio, ele ficou pobre, está trabalhando, mas não está fazendo nada degradante.

É verdade que para um homem que se tornou, por exemplo, copeiro não é próprio dizer para ele: “Alteza, traga-me um copo d’água!” A nobreza dele entrou num estado de sono; ela está como que dormindo dentro dele. Mas, as circunstâncias melhorando, a nobreza dele refloresce.

O Padre Isidoro de Isolano aplica isso à nobreza de São José. Perfeitamente bem pensado, bem concluído, bem articulado.

Alegria proporcionada pelo raciocínio

Enquanto eu desenvolvia o pensamento desse sacerdote a respeito de São José, notei como as expressões fisionômicas dos ouvintes indicavam adesão e satisfação, não apenas pela tese sustentada por ele, mas também por verem a agilidade de sua argumentação.

Permitam-me, nesta reunião um pouco mais íntima, tratar de algo à margem do tema.

Aqueles que sentiram algum contentamento em ouvir a argumentação desse padre tiveram um prazer por onde se esqueceram, por alguns instantes, das preocupações e dos aborrecimentos da vida de todos os dias; experimentaram certa serenidade, certa tranquilidade.

Façamos uma comparação entre a alegria que dá a torcida e a proporcionada pelo raciocínio, com essa serenidade da alma, quando o homem está no estado de repouso, de distensão, e acompanha o passo majestoso e cadenciado dos argumentos que se seguem uns aos outros como uma bonita parada; em que ele aprecia o gume de cada arma da lógica, e tem esse prazer soberano de ver a arma da lógica entrar no corpo, na carnatura do erro e fender.

O argumento que, como o bisturi de um médico excelente, entra e talha, corta o tumor e o organismo respira satisfeito. Magnífico! O mal ficou inutilizado, prostrado, arrasado.

Assim faz a lógica clara, precisa, elegante, que como um Anjo dardeja um raio sobre o erro e o liquida. Vemos o erro ser apresentado com todos os seus enfeites, mas depois surge a lógica e o joga ao chão com uma sapecada certa, um golpe certeiro.

Esse elogio da lógica seja feito em homenagem a São José, tão lógico, tão coerente, que levou a lógica ao verdadeiro heroísmo durante a sua vida.

Uma calma que só os homens lógicos possuem

Qual foi um lance da vida de São José em que ele levou a lógica até o heroísmo? Foi aquele episódio muito conhecido, quando ele viu que Nossa Senhora tinha concebido um filho do qual ele não era pai. O Evangelho trata disso. Então, ele ficou colocado diante de uma situação absurda. Maria era evidentemente santa, e ele não podia disso duvidar, porque a santidade d’Ela reluzia de todos os modos possíveis; de outro lado, estava criada uma situação que ele não conhecia, mas com a qual ele não podia conviver.

Ao invés de denunciá-La, como mandava a lei hebraica, ele saiu com a única solução lógica: “Quem está demais nessa casa, não é essa Mãe, que é a dona e rainha desse lar; nem o filho que Ela concebeu. Alguém está demais, mas esse alguém sou eu. Vou abandonar a casa e sumir; porque não compreendo esse mistério, mas contra ele não me levantarei. Passarei meus dias longe, venerando o mistério que não entendi.”

Resolveu, então, fugir da casa, deixando Nossa Senhora com o fruto de suas entranhas. Ele tinha que abandonar o maior tesouro da Terra, a Virgem Maria, o que para ele representava um sofrimento inenarrável, inimaginável.

O Evangelho nos conta que ele estava dormindo quando apareceu um Anjo e lhe deu a explicação. Quer dizer, antes desse lance tremendo, São José dormia. Ele ia viajar e tinha que se preparar por meio do repouso para essa viagem. E foi durante o sono que o Anjo veio e lhe explicou tudo. Ele continuou a dormir. Vejam a calma dele! Essa calma só os homens lógicos têm. De manhã, acordou e a vida continuou normalmente. Suma normalidade, suma coerência, suma lógica!

Em louvor dessa lógica de São José, fica este rápido comentário.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/3/1976)

São Patrício

Bela “esmeralda encastoada no mar”, a Irlanda, pelo apostolado de São Patrício, tornou-se a “Ilha dos Santos”. Ameaçando chefes piratas e expulsando demônios com Fé e destemor, São Patrício foi um exímio discípulo do Senhor nessas terras de missão.

 

No dia dezessete de março, comemora-se a festa de São Patrício.

No livro de Hello(1), “A fisionomia dos santos”, há alguns dados biográficos magníficos a respeito da figura dele.

“São Patrício é, sem dúvida alguma, um dos santos de vida mais extraordinária que se conhece. Aos doze anos foi raptado por piratas e levado para a Irlanda.”

Vale lembrar que quem era raptado por piratas tornava-se escravo.

“Ali foi feito pastor, recebendo o dom da oração. Ajoelhava-se no meio do campo e rezava, cercado por seus animais.”

Esmeralda encastoada no mar

A grama da Irlanda é extraordinariamente verde e cobre grande parte do país. Por isso, os poetas antigos diziam que a Irlanda era como uma esmeralda encastoada no mar, ao norte da Europa.

Imaginemos a bonita cena: São Patrício, pequeno, mas já com fisionomia de santo, pastorzinho pobre e humilde, rezando sobre a relva esplendidamente verde da Irlanda, e os animais fazendo círculo em torno dele, para protegê-lo ou a contemplá-lo. Cenas semelhantes eram comuns na hagiografia da Idade Média, constituindo fioretti(2), servindo para iluminuras, vitrais de catedral, etc. A história e a fantasia nelas se reúnem para a realização de um aspecto magnífico do poder da oração, bem como da candura, da inocência, quando fortalecida por carismas vindos de Deus.

“Depois de seis anos, ele sai dessa região, fazendo várias viagens cheias de peripécias, mas se tornou novamente escravo.”

Depois de seis anos dessa forma pastoril tão encantadora, ele consegue fugir, mas se torna escravo de novo.

“Enfim, chegou ao mosteiro de São Martinho de Tours. E como sempre sentira que sua vocação estava na Irlanda, partiu para evangelizá-la. Mas tal era a via estranha pela qual Patrício era conduzido que, apesar de seus desejos, de sua santidade, de seu zelo e do chamamento sobrenatural por ele recebido, fracassou completamente. Foi tratado como inimigo.”

Provação dos santos

Vemos como Deus prova os seus santos, fazendo com que caminhem por uma série de lados, sem conseguirem o objetivo que o próprio Deus tem em vista. Em determinado momento, esse objetivo lhes vem às mãos.

Compreendemos, assim, que nosso Movimento sofra dificuldades, como é natural que em nosso apostolado tenhamos revezes. Os santos progridem assim. Os não-santos progridem rapidamente nas suas obras de pseudo-apostolado; o verdadeiro apostolado somente é feito por quem é santo ou, pelo menos, tende para a santidade e a admira com todas as veras de sua alma.

“Ainda não chegara a hora, a Irlanda não estava pronta. Patrício volta à Gália onde passa três anos sob a direção de São Germano de Auxerre. Depois se retira para a solidão da ilha de Arles.”

Quanto esse homem viaja e quantas curvas tem sua vida antes de voltar para a Irlanda! Ele vai para a Gália, onde aprende com um santo as vias da vida espiritual, torna-se eremita, depois se distancia ainda mais da Irlanda porque se dirige para Roma…

“…onde o Papa São Celestino lhe dá a bênção apostólica. E ele retoma então o caminho da Irlanda, aí aportando em 432. Logo dirigiu-se à assembléia geral dos guerreiros da Hibérnia.”

Hibérnia era o antigo nome da Irlanda.

Pregou a Fé com destemor

Imaginemos como seria bonita, em meio à natureza suave da Irlanda, uma assembléia geral de guerreiros para deliberar a respeito das coisas da nação. Os guerreiros eram os nobres que compareciam a essas assembleias revestidos de suas armas. E quando havia dificuldades nas votações, brigavam entre si utilizando essas armas. Era regime de barbárie. Às assembleias comparecia também o colégio dos druidas, sacerdotes pagãos da Gália e da Irlanda, que pertenciam, então, à mesma raça.

Ali se apresentou São Patrício, que atacou de frente o centro religioso e político da nação. Perante todos os seus inimigos agrupados, pregou ele a Fé. Que destemor! Nada de meias medidas, de panos quentes, de recuos; ele era um santo e tinha o poder dos santos.

“A partir desse momento, as maravilhas se sucederam com rapidez. Houve conversões de famílias reais inteiras.”

Anjos no Céu se inclinam para ouvir os bardos da Terra

Naturalmente, “famílias reais” significam federações de tribos. Não podemos pensar, por exemplo, em princesas como as filhas de Luís XV pintadas por Nattier, mas em nossa Paraguaçu(3): as “princesas reais” de então eram umas “Paraguaçus” louras, mas autênticas “Paraguaçus”.

Enfim, devemos imaginar a selvageria dessas hordas e São Patrício dizendo-lhes todas as verdades. Ele desperta admiração; os guerreiros começam a ficar pensativos, depois contritos, as mulheres a mudar de atitude. Famílias reais inteiras são batizadas, seguidas das respectivas tribos. Que cena linda!

“A Irlanda se transforma rapidamente na ilha dos santos. Naquela terra onde outrora fora escravo, Patrício anda agora como conquistador triunfante. Reis, povos e também poetas vêm a ele.”

A Irlanda é uma das mais antigas pátrias da poesia.

A cítara, uma pequena harpa, com a qual cantavam os bardos irlandeses e do País de Gales, faz parte da bandeira da Irlanda. O maior cantor que houve na Irlanda tornou-se cristão.

“O Homero da Hibérnia inclinou os velhos heróis ante o estandarte do Deus desconhecido. Então, diz um velho autor, os cantos dos bardos ficaram tão belos, com a conversão lucraram tanto em sua beleza, que os Anjos de Deus se inclinavam na beira do Céu para escutá-los.”

Como é linda essa ideia de os bardos cantando na Terra; e no Céu, aberto como se fosse uma claraboia, revoadas de Anjos ouvindo aquelas vozes. Isso tem uma indiscutível poesia, com um aroma e uma força de atração verdadeiramente extraordinários.

Como bem disse certa vez Montalembert(4), a Idade Média foi a “doce primavera da Fé”. Tudo isso se parece com a primavera: é uma energia que surge, com todo o dinamismo para crescer, vencendo todos os obstáculos, iluminando tudo como o sol nascente, ou como uma boa estação do ano que vai entrando.

Como é diferente o dinamismo desse apostolado com a situação que hoje vemos!

Ameaça a um chefe pirata

“Entretanto, as invasões dos piratas desolavam a Irlanda. Patrício escreveu a Corotido, chefe da quadrilha.”

Esses piratas vinham da Dinamarca, da Noruega e da Suécia — quão mudadas daquele tempo para cá! — e eram chamados reis do mar. Nações inteiras, em naus — com proas monumentais, velas bonitas — singravam com rapidez os mares e desciam em hordas pelas praias, devastando os povos, as plantações. Então, para um tal Corotido, ou Corótido — não sei como se pronuncia — nosso santo escreveu o seguinte:

“Patrício, pecador ignorante, mas coroado Bispo de Hibérnia…”

Quão linda a ideia de que o bispo é coroado como um rei!

“… refugiado entre as nações bárbaras por causa de seu amor a Deus, escrevo de próprio punho estas letras para serem transmitidas aos soldados do tirano.

“A misericórdia divina que eu amo não me obriga a agir assim, para defender aqueles mesmos que não há muito me fizeram cativo e trucidaram os servos e as servas de meu pai?”

Quer dizer, ele enfrentou perigos e mostrou os desígnios de misericórdia da Providência.

Ele prediz que a realeza de seus inimigos será menos estável que a nuvem e a fumaça.

“Em presença de Deus e dos seus santos — acrescenta Patrício — atesto que o futuro será tal qual eu previ.”

Ele, portanto, os ameaça dizendo que não adianta atacar, porque vão perder o que estavam querendo conquistar.

“Alguns meses depois, Corotido, acometido de alucinação mental, morria no desespero.”

Podemos imaginar o desespero de Corotido, matando pessoas e depois se golpeando a si mesmo, porque ficara louco. Era o resultado da maldição de São Patrício. “Os inimigos de Patrício caíam mortos, os amigos ressuscitavam. Os túmulos pareciam um domínio sobre o qual ele tinha direito”.

Assim se converte um povo! Se pudéssemos imitar São Patrício, como tudo seria mais simples! Não precisaríamos nem de burocracia, nem de máquinas. Bastaria irmos à sepultura de Dom Vital e de outras pessoas virtuosas para ressuscitá-los. E muita coisa mudaria. Mas a nós isso não foi dado.

Quando se tem esse direito sobre os túmulos, abre-se e fecha-se a porta da morte dessa forma, o que mais é necessário?

Poder sobre os demônios

“Quando de sua chegada à Irlanda, os demônios, diz um historiador do século XII, fizeram um círculo com que cingiam toda a ilha para lhe barrarem a passagem. Patrício levantou a mão direita, fez o sinal da cruz e passou adiante.”

Lindo tema para uma iluminura: um barquinho em cuja proa está São Patrício, fragilzinho, tendo um pé colocado para frente e outro para trás, um halo de santidade, e uma sarabanda de demônios correndo. Para pintar os demônios, pediríamos o auxílio da arte moderna que realmente os representa como eles são. E ao lado, outro quadrinho: São Patrício dando uma bênção, e os demônios, com fogo saindo de suas pernas, caem de ponta-cabeça dentro do mar; e monstros marinhos fugindo espavoridos de todos os lados — porque os demônios até aos monstros causam horror. Outras cenas: o barquinho de São Patrício ancorando sereno; ele descendo, amarrando a pequena embarcação e penetrando na Irlanda. Lamento não saber pintar iluminuras para representar coisas dessas.

“Depois derrubou o ídolo do sol, ao qual as crianças, como ao antigo “Moloch”, eram oferecidas em sacrifício.”

Isso eu gostaria muito mais de pintar: um ídolo horrendo, em pé, numa atitude sanguinária, diante do qual há adoradores infames; uma mãe que entrega espavorida seu filhinho; ao lado, restos de cadáveres de crianças mortas; e São Patrício que chega. Segundo quadro: o santo faz uso da palavra com veemência. Terceiro: ele derruba o ídolo. Quarto: a população festeja.

Assim é que se tocam as coisas para frente. Mas para isso é preciso ser santo.

O bastão de São Patrício enxotou serpentes da Irlanda

Certa vez perguntaram a Napoleão — pode-se imaginar quão cretino era o indivíduo que fez tal indagação — por que ele não se fazia aclamar como deus. Napoleão respondeu: “Olhe, meu caro, depois de Jesus Cristo, só há um jeito para alguém ser deus: tomar a cruz, subir ao Calvário e fazer-se crucificar. E eu não tenho vontade disso. Porque depois d’Ele ninguém toma a sério outro deus”. É bem verdade. Assim também, para fazer essas coisas é preciso ser santo. Se quiséssemos verdadeiramente ser santos, talvez pudéssemos realizá-las.

Continua Hello:
“Atribui-se ao bastão de São Patrício o poder de enxotar as serpentes.”

Parece que esses animais são desconhecidos na Irlanda, e sua ausência é atribuída a uma bênção particular: a bênção do bastão que São Patrício segurou nas mãos. Por que não pedimos um pouco dessa relíquia para o Brasil? Positivamente, é falta de imaginação. Poder-se-ia andar tranquilamente pelos matos, com a cruz de São Patrício na ponta de um bastão.

Propulsor, em escala mundial, da vida da Igreja

“A figura desse santo assemelha-se um pouco a um navio que se distancia da pátria: durante algum tempo pode ser visto distintamente; mas depois, ele parece desaparecer quando o céu e o mar se confundem no horizonte. Assim também São Patrício, no céu e nos mares da Irlanda.”

Essa história coloca diante de nossos olhos uma dessas figuras de fundadores e evangelizadores de povos, de homens da destra de Deus.

Há certas pessoas que Deus escolhe a fim de fazer um apostolado circunscrito e pequeno. Para isso são eficientes e poderosas, pois o Deus lhes dá as graças necessárias. Porém, tais pessoas não são muito salientes por suas obras. No período de evangelização da Europa, houve um grande número de santos e de santas que fundaram cristandades em lugares onde haveria de futuro dioceses — alguns desses santos se tornaram diretamente seus bispos — e foram patronos desses locais.

Seus sepulcros ficam nesses lugares, onde se celebram seus cultos, às vezes com peregrinações. Dir-se-ia que eles são animadores desse aspecto riquíssimo da Igreja, como de toda grande sociedade, que é a vida regional.

Mas há outros santos que são propulsores da vida da Igreja, em escala mundial. E esses são propriamente os homens da destra de Deus. Os obstáculos parecem insignificantes diante deles. Tais santos realizam coisas que nunca ninguém poderia imaginar, fazendo acelerar muito a marcha da História e o progresso da Igreja. Isto se pode dizer de São Patrício e também da nação irlandesa.

A Revolução conspurca até as coisas mais esplêndidas

Os irlandeses participaram da ação missionária do império de Carlos Magno, evangelizando a França, a Holanda e, sobretudo, a Alemanha. A Irlanda foi um ponto de irradiação extraordinário da Religião Católica nesta época, mais ou menos como, séculos depois, a Península Ibérica, da qual partiu a evangelização de toda a América Latina, parte da África e regiões da Ásia.

Tal qual aconteceu com a Península Ibérica, depois se apagou a glória internacional da Irlanda, mas algo de sua fidelidade restou. Espanha e Portugal — este último em medida infelizmente menor — têm resistido a toda espécie de tentativas para obrigá-los a apostatar. Na Espanha houve até resistência a uma terrível revolução comunista, e a Irlanda sofreu perseguições atrozes, mas não apostatou, como prêmio pelo fato de ter sido uma nação apostólica, e continua firme para a glória de Deus.

Isso é bonito, edificante, e eleva os nossos corações.

(Extraído de conferências de 18/3/1966 e 16/3/1967)

 

1) Ernest Hello, escritor francês. 1828-1885. Não possuímos referência exata da ficha original usada por Dr. Plinio.
2) Termo retirado da coletânea de histórias de São Francisco de Assis intitulada I Fioretti (As florzinhas).
3) Índia tupinambá, esposa de Diogo Álvares Correia (Caramuru).
4) Charles de Montalembert, 1810-1870.

Santa Ceia

Nossa alma não pode deixar de transbordar de reconhecimento, de enlevo e de gratidão por aquilo que Nosso Senhor operou na Santa Ceia. Somente uma inteligência divina poderia excogitar a Sagrada Eucaristia, e imaginar esse Sacramento santíssimo como um meio de Jesus permanecer presente neste mundo, depois de sua gloriosa Ascensão.

Mais ainda: de estabelecer um convívio íntimo e inexcedível, todos os dias, com todos os homens que O queiram receber nos seus corações. Sim, só mesmo Deus poderia realizar esse mistério tão maravilhoso, essa obra de misericórdia prodigiosa para com suas humanas criaturas.

Plinio Corrêa de Oliveira

São Clemente Maria Hofbauer e a lição do “rio chinês”

Arrostando um quotidiano semeado de ziguezagues, onde o caminho traçado pela Providência parecia mudar a todo momento, São Clemente Maria Hofbauer (1751-1821) se manteve incólume na Fé. Firmeza esta muito admirada por Dr. Plinio, cujos comentários à vida do santo redentorista o exaltam como exemplo de constância e confiança diante das aparentes contradições no cumprimento do chamado divino.

A vida de São Clemente Maria Hofbauer se reveste de um interesse particular, pelo fato de nos servir como exemplo de confiança e perseverança no meio das adversidades. Com efeito, sua existência se compõe de dois aspectos. Primeiro, uma longa trajetória de “rio chinês”(1), na qual ele, homem inteligente e dotado de maravilhoso poder de atração e de persuasão, parecia fadado a uma vida quebrada, errada, fracassada. Dir-se-ia que a Providência o chamou para algo superior, mas orientou seus passos num rumo diverso, fazendo-o conhecer, larga e dolorosamente, as vias tortuosas de um ziguezague aparentemente incompreensível.

O segundo aspecto é o da vitória sobre o primeiro. Após uma série curiosa de circunstâncias, tudo se transforma nos dez últimos anos da vida de São Clemente. Ele se viu transferido para Viena, cidade‑chave dos acontecimentos políticos e sociais europeus do seu tempo, e ali esse homem, até então posto à margem, exerceu profunda influência nas almas de pessoas igualmente chaves, e realizou assim a missão para qual fora suscitado por Deus.

Após sua morte, em idade não muito avançada, multiplicaram‑se os milagres operados por sua intercessão. Abriu-se o inquérito de sua existência, sua santidade foi comprovada e a Santa Sé o canonizou. É o grande São Clemente Maria Hofbauer.

Piedoso desde menino

Ele nasceu no território do antigo Império Austro‑Húngaro, cuja capital era Viena, debaixo de certo ponto de vista o centro de gravidade da Europa. Seu pai, de origem tcheca, era um homem de condições bastante modestas, e mudou-se com a família para Viena, à procura de melhores oportunidades. O jovem Clemente contribuía para aumentar o orçamento doméstico: levantava-se de madrugada e, nas primeiras horas do dia, punha-se a distribuir pães pelas ruas de Viena que despertava.

Pelo que consta em suas biografias, foi desde menino muito piedoso e devoto da Santíssima Virgem. Frequentava os sacramentos, e levava uma existência modelar, ocupada, semeada de trabalhos, na qual a graça lhe falava e atuava na alma.

Assim, enquanto entregava os pães, Clemente refletia, dava-se a meditações cujo fundo, pode-se entrever, era essencialmente religioso e que o amadureciam para, em determinado momento, encontrar sua vocação.

Eremita nas florestas europeias

Após algum tempo desse cotidiano de esforços e reflexões, e ainda durante seus afanosos dias, através da ajuda de benfeitores que se interessaram por ele, São Clemente pôde cursar a universidade, e se mostrava aluno muito estudioso.

A Providência, porém, reservava-lhe o “rio chinês”. Certa ocasião a graça lhe bate à porta da alma: “Tu serás ministro de Deus. Interrompe teu curso acadêmico e dirige seus passos para a vida sacerdotal”. E no intuito de prepará-lo para ingressar nessas novas vias, Nosso Senhor o inspirou a se tornar eremita. Naquele tempo, a Europa era muito menos povoada, havia regiões silvestres mais abundantes do que em nossos dias, e os desejosos de se retirarem do mundo iam viver nas florestas, como outrora viviam os eremitas nas tebaidas do Egito.

Na congregação redentorista

Após um tempo de isolamento, São Clemente Hofbauer se depara novamente com o “rio chinês”. Movido pela graça, ele procura outro eremita que habitava pela mesma região, e lhe disse: “Irmão Hübl (era o nome do amigo), façamos uma peregrinação a Roma, a pé, porque lá nos espera um maior chamado de Deus”. Hübl aceitou.

Partiram, atravessando aqueles desfiladeiros, vales e montanhas, correndo toda espécie de perigos, até alcançarem a Cidade Eterna, onde se hospedaram numa pensão qualquer. No dia seguinte, pela manhã, decidiram ir à Missa. São Clemente disse ao companheiro:

“Roma é tão grande, tem centenas de igrejas, e não sabemos a qual ir. Então, a igreja cujo sino ouvirmos em primeiro lugar, é aquela onde assistiremos a Missa. Vamos esperar que ali haja algo da Providência para nós.”

Dali a pouco, no meio do silêncio de uma Roma ainda sonolenta, o eco de um sino se fez ouvir. Os dois logo se puseram a caminho em direção ao local de onde partia o som, e encontraram uma pequena igreja. Entraram e se sentiram inundados de consolação ao participar da celebração eucarística. Todo o ambiente lhes pareceu muito piedoso. Era uma igreja dos padres redentoristas, filhos de Santo Afonso de Ligório.

Ao término da Missa, São Clemente e o amigo procuraram se informar a respeito da instituição que cuidava daquele templo, e lhes explicaram tratar-se de uma obra destinada a difundir em todas as classes sociais a doutrina católica e a religião, por meio da oratória e da pregação.

São Clemente sentiu que era aquele o chamado de Deus. Solicitou um encontro com o superior daquela comunidade, e expôs a este os seus anseios.

— Ora, então o senhor acaba de encontrar o que procura — respondeu-lhe o padre. — A vocação que deseja abraçar é essa, ela realiza seus desejos.
— Quer dizer que o senhor nos aceita como noviços redentoristas?
— Aceito!
Após uma certa relutância de Hübl, os dois ingressaram na ordem redentorista. Mais uma lição do “rio chinês”: seria normal que ambos estivessem de pleno acordo, e o amigo fosse um poderoso auxiliar para São Clemente. Pelo contrário, tornou-se naquele momento um fardo. Se São Clemente desistisse, provavelmente ter-se-ia mudado a história da congregação redendorista e de uma importante obra da Igreja. Não desistiu. Insistiu, perseverou, convenceu o amigo.

Precioso ensinamento para nós. Se quisermos andar depressa rumo ao mar em que acaba o “rio chinês”, carreguemo-nos de fardos. Suportemos tudo, sejamos amáveis para com os ingratos, e o nosso objetivo caminhará em direção a nós. A distância rumo ao mar se encurta, se aceitarmos escolhos nas nossas costas. Aceitemos as atrapalhações, como Nosso Senhor Jesus Cristo aceitou a cruz.

De cidade em cidade, fazendo o bem

Entram na congregação redentoristas, são ordenados padres, e recebem do superior geral a incumbência de fundar uma casa e fazer apostolado em Varsóvia, na Polônia. Ali, acompanhados de um terceiro, hospedam-se nas dependências de um convento quase em ruínas, onde quatro padres de uma ordem em extinção lhes deram abrigo. O lugar era uma velha tapera. São Clemente e os dois companheiros começaram a trabalhar, a pregar missões, e atraíram o povo. O velho convento encheu-se de gente, o fervor reverdeceu nas almas, e a vida de piedade se desenvolvia naquela região.

Foi o bastante para incomodar as autoridades civis e anticlericais sob cujo governo eles se achavam. Não demorou para que viesse um decreto ordenando o fechamento do convento. São Clemente consulta o geral dos redentoristas, e recebe a resposta: “Partam para a Suíça, procurem as cidades católicas e ali se estabeleçam. Se forem expulsos de um lugar, dirijam-se para outro. E assim vão passando de cidade em cidade, fazendo o bem”.

Não é difícil compreender que vida de ziguezague e de vai-vens que tal programa anunciava. E assim foi, literalmente. Estabeleciam-se numa cidade, pregavam, colocavam a vida religiosa do povo em ordem, e, pouco depois, uma ordem do governo local os expulsava.

Anos e anos de apostolado transcorreram dessa maneira. Por toda a parte aonde ia, São Clemente fazia o bem, e muito bem. Mas, a Providência permitia que logo fosse removido, à semelhança de uma plantação que o agricultor é obrigado a transferir de terra para terra, sem que nenhuma produza todos os frutos que se era de se desejar. São Clemente passou, na aparência, fazendo ninharias fracassadas ao longo de mais ou menos vinte anos de sua vida.

No centro do movimento romântico

Afinal de contas, depois de percorrem as cidades católicas da Suíça, recebem ordem do superior geral de retornarem a Viena.

De volta à capital do império, São Clemente começou a prestar assistência religiosa nessa e naquela igreja, num convento e noutro, e, a partir daí, a ter uma certa influência nos meios católicos vienenses.

As vias da Providência, através de sendas tortuosas, o encaminharam para aquela situação. Depois de tanto labutar em terrenos menos férteis, São Clemente Maria Hofbauer se viu posto no próprio centro de um movimento que, naquele tempo, ia tomando conta da Europa, e que tinha em Viena um de seus principais focos de irradiação: o chamado movimento romântico. De tal maneira que alguns homens, cujos nomes se acham nos compêndios de Filosofia, tornaram-se comensais de São Clemente, porque foram por este convertidos.

O apostolado do santo tomava envergadura e alcançava ótimos resultados. Aquelas celebridades anunciavam sua conversão e passavam a ser excelentes católicos, militantes, empenhando-se em atrair outros para a Igreja.

Por razões de vida social, esses intelectuais eram ligados a pessoas da nobreza de Viena e, sobretudo, de Budapeste. Assim, estabeleceram-se assíduas relações entre São Clemente Hofbauer e os nobres húngaros, donde também resultaram inúmeras conversões.

Com isso, o movimento romântico mudou de figura e passou a ser organizado por São Clemente, de propósito, para dar uma orientação católica aos rumos do império austro-húngaro. Ele procurou constituir uma obra, não predominantemente de padres, mas de leigos postos em situações estratégicas na vida social e política, alguns com altos cargos diretivos, que tinham por missão trabalhar no respectivo meio de maneira a formar um grupo católico de irradiação. Através dessa influência, poderiam alcançar o objetivo que os norteava, ou seja, alicerçar a sociedade nos fundamentos da doutrina católica apostólica romana.

Ação de presença no apostolado

É interessante salientar um aspecto do apostolado de São Clemente Maria Hofbauer: o modo como ele convertia as pessoas.

Pelas narrações de sua vida, percebe-se que São Clemente era uma inteligência pouco acima da média, em comparação — note-se — com os filósofos e pensadores inteligentíssimos que se deixavam convencer por ele. Então, alguns redentoristas, curiosos de saber o “método” empregado pelo santo, procuravam esses convertidos e lhes perguntavam como as coisas tinham se passado, se eles haviam se tocado por um jogo da razão ou por uma ação da graça.

Resposta: “Pela razão e pela graça. Clemente argumenta muito bem. Mas, além disso (e vem aqui o papel da graça), há algo nele de indefinido que nos toca no mais fundo da alma, fazendo-nos compreender a argumentação dele e, ao mesmo tempo, nos comovendo a respeito dessa argumentação. De maneira que ele não é um mero professor que atrai e convence, mas também um formador que move para a ação”.

Os inquiridores insistiam: “Como assim, algo indefinido?”

Os outros diziam: “Pelo modo de Clemente falar, pela sua personalidade imponente e influente, pela sua extrema bondade. Enfim, porque ele é ele. Não sabemos explicar exatamente como é, mas é assim! E estamos persuadidos.”

São Clemente tinha, portanto, sua boa e santa influência afirmada. A missão para a qual a Providência o suscitara estava cumprida. Pouco depois ele entregaria sua alma ao Criador. Obediente à vontade divina, submeteu-se aos sofrimentos do “rio chinês”. Mas, após ter provado todo o seu desinteresse e sua submissão caminhando nessa via sem sentido, num momento tudo se lhe abriu para que realizasse seu chamado.

Esta é, para todos nós, a grande lição da vida de São Clemente Maria Hoffbauer.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 19/12/1990)

1) Imagem usada por Dr. Plinio para significar as idas e vindas numa determinada trajetória, até se atingir o objetivo desejado, assim como certos rios chineses que dão muitas voltas antes de alcançar o oceano.