Fátima e Nossa Senhora do Carmo

Em Fátima, a Virgem Maria também apareceu com as características de Nossa Senhora do Carmo. Que relação existe entre a mensagem de Fátima e a Ordem do Carmo? Essa questão é abordada por Dr. Plinio, com base no texto de uma revelação recebida por Santa Teresa de Ávila.

 

Gostaria de apresentar alguns traços da revelação de Fátima que a diferenciam de outras revelações anteriores.

Castigo por causa da imoralidade e da irreligião dos povos

Eis um traço muito curioso: é a única revelação que conheço, de tal maneira admitida, aceita e acatada em meios católicos e até pela hierarquia eclesiástica, a qual trata não só de um tema moral — porque isso é frequente em várias revelações —, mas tira derivações desse tema moral para o campo político, numa ilação que tem muito de comum com a doutrina que posteriormente tentamos expor no livro Revolução e Contra-Revolução.

O plano de ideias que Nossa Senhora apresenta para os homens é que há uma crise moral prodigiosa, a qual é, no fundo, uma crise religiosa; e essa crise religiosa e moral vai desembocar numa catástrofe política. Essa catástrofe política que Ela profetiza qual vai ser? A Rússia espalhará seus erros por toda a Terra. É um castigo por causa da imoralidade e da irreligião dos povos. Quer dizer, há um nítido conteúdo político.

Outro aspecto curioso que não encontrei ainda em nenhuma outra revelação — não digo que não houve, pois não pretendo ter conhecido todas —: Nossa Senhora Se mostra em três invocações sucessivas: com as características de Nossa Senhora de Fátima, mas também como o Imaculado Coração de Maria e como Nossa Senhora do Carmo.

Por que essas invocações? Encontramos fundamento para isso na própria revelação. Ela declara o seguinte: “Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará.” O que quer dizer que Ela quer ter um triunfo que vai ser uma enorme efusão de graças, porque o coração aí significa a bondade e a vontade, e o triunfo d’Ela vai se realizar depois de um castigo tremendo, por uma efusão de graças enorme. É o Reino do Coração d’Ela que Maria Santíssima anuncia.

Por causa disso, Ela como que referenda a devoção ao Imaculado Coração de Maria, apresentando-Se com essas características numa de suas visões. É para se compreender, para dar um estímulo à devoção ao Imaculado Coração de Maria.

Uma Ordem religiosa nos últimos tempos

Mas por que Ela Se apresenta como Nossa Senhora do Carmo numa das aparições?

Isto é muito menos claro. Que relação tem a invocação do Carmo com os tempos vindouros, em que seu Coração vai triunfar? Há alguma tarefa, alguma missão do Carmo dentro disso?

Essa pergunta nos interessa muito, tomando em consideração que quase todos nós somos terceiros carmelitas1. Há revelações muito impressionantes feitas a Santa Teresa de Jesus, que se encontram nas boas biografias desta Santa carmelita, e que dizem algo a esse respeito. São os parágrafos 12, 13, 14 e 15 das obras de Santa Teresa de Jesus, tomo I, Livro da Vida, capítulo 40. É algo oficial e documentado.

Parágrafo 12:

Fazendo uma vez oração com muito recolhimento, suavidade e paz, parecia-me estar rodeada de Anjos e muito perto de Deus. Comecei a suplicar a Sua Majestade pela Igreja. Foi-me, então, dado a entender o grande proveito que havia de fazer uma Ordem nos últimos tempos, e com que fortaleza seus filhos haviam de sustentar a Fé.

Uma Ordem que, como veremos, parece ser a própria Ordem do Carmo, à qual Santa Teresa pertencia e que por prudência e modéstia ela não queria mencionar. Haveria um tempo em que a Ordem do Carmo teria filhos que lutariam pela ortodoxia com muito denodo.

Parágrafo 13:

Quando certa ocasião rezava junto ao Santíssimo Sacramento, apareceu-me um Santo cuja Ordem esteve um tanto decaída.

Ela era exatamente a reformadora da Ordem do Carmo, que estivera muito decaída.

Tinha nas mãos um grande livro. Abriu-o e deu-me a ler as seguintes palavras escritas em letras grandes e muito inteligíveis: Nos tempos vindouros, florescerá essa Ordem, haverá muitos mártires.

Então, é um incremento de luta pela ortodoxia, martírio e florescimento dessa Ordem.

Religiosos com espadas nas mãos

Parágrafo 14:

Outra vez, durante Matinas, no Coro, vi diante de meus olhos seis ou sete religiosos dessa Ordem, com espadas nas mãos.

Notem que se tratam de espadas, símbolo da luta.

Significava isso, penso, que hão de defender a Fé, porque mais tarde, estando em oração, fui arrebatada em espírito e pareceu-me estar num vasto campo onde lutavam muitos combatentes e os desta Ordem pelejavam com grande fervor; tinham os rostos formosos e muito incendidos. Venciam deitando por terra numerosos inimigos e matando outros. Tive a impressão de que a batalha era contra hereges.

Parágrafo 15:

Ao glorioso Santo de que falei acima, tenho visto várias vezes. Tem me dito diversas coisas, agradecendo a oração que faço por sua Ordem e prometendo encomendar-me ao Senhor. Não assinalo a Ordem para que não se desagradem as demais. O Senhor declarará os nomes, se for servido que se saibam. Cada Ordem, ou cada um de seus membros deveria esforçar-se para que, por seu meio, fizesse o Senhor tão ditosa sua religião que em tão grande necessidade, como agora tem a Igreja, pudesse servir. Felizes as vidas que se sacrificarem por tão nobres causas.

Vemos aqui mencionar uma Ordem, provavelmente a do Carmo, que terá uma grande batalha pela Fé nos tempos futuros. Ora, até esse momento, não chegou essa batalha; a Ordem do Carmo não fez isto até agora.

E Nossa Senhora nos fala, precisamente, de grandes perseguições, de grandes lutas, de grandes martírios na revelação de Fátima.

E ali a Santíssima Virgem Se mostra com as características de Nossa Senhora do Carmo. Parece haver entre tudo isso uma relação para a qual eu chamo a atenção a fim de prezarmos cada vez mais nossa condição de irmãos da Ordem Terceira do Carmo, e compreendermos o que há de providencial nessa pertencença à família carmelitana.  v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/5/1965)

 

1) Dr. Plinio e os mais antigos membros do Movimento por ele fundado pertenciam ao Sodalício Flos Carmeli, da Basílica Nossa Senhora do Carmo, em São Paulo.

 

Santa Maria Madalena – Contemplação unida à penitência

Depois de arrepender-se, Santa Maria Madalena passou a representar claramente duas virtudes unidas: a contemplação e a penitência.

Ela representou a contemplação, por distinção com sua irmã, no famoso episódio em que Nosso Senhor disse a Marta: “Maria escolheu a melhor parte e esta não lhe será tirada” (Lc 10, 42). Então, ela passou a representar a pura contemplação, não tanto unida à vida ativa, mas enquanto estado inteiramente contemplativo.

Ao mesmo tempo, por seu arrependimento enorme e sua fidelidade ao pé da Cruz, e pelo fato de ter sido a primeira a ter notícia da Ressurreição de Nosso Senhor, ela não representou apenas a contemplação, mas a penitência na sua glória, no estado do maior perdão, da maior intimidade com o Divino Mestre. A tal ponto que, com o exemplo de sua vida e de outros Santos, alguns teólogos pretenderam afirmar que o estado de penitência – uma penitência séria, profunda – é ainda mais bonito que o de inocência.

Plinio Corrêa de Olveira (Extraído de conferência de 22/7/1965)

Revista Dr Plinio 256 (Julho de 2019)

Em defesa do Beato Gaspar de Bono

Um exemplo característico de Revolução tendenciosa foi o que ocorreu em muitos meios católicos: não se ensinava claramente uma doutrina errada, mas por omissões que se inserem num coro de meios tons, meias verdades, os temperamentos foram se habituando a uma postura mole, de entreguismo, desarmando toda a linha de defesa da ortodoxia.

 

Perfeição cristã e belos feitos de guerra

Gaspar de Bono nasceu em Valência, em 1530. Seu pai, tecelão e, mais tarde, amolador de facas, era homem de vida religiosa profunda. Sua mãe, cega aos quarenta anos, era pessoa de grande paciência e resignação. Todas as manhãs o casal assistia à Missa e oferecia a Deus o seu dia; e, enquanto o marido trabalhava, a mulher meditava ou tecia. Desse casamento nasceram quatro filhos, e a um deles, Gaspar, os pais destinaram uma melhor educação, pois perceberam na criança dons excepcionais.

De fato, o jovem era dotado de grande inteligência, além de encanto pessoal. Seguindo o exemplo dos pais, era piedoso, sendo recebido muito cedo como terceiro dominicano. Adolescente, começou a trabalhar com um comerciante de seda, que custeou seus estudos. Mas a Providência encaminhou Gaspar para servir como soldado do Imperador Carlos V. E este jovem foi um extraordinário exemplo da união entre piedade e coragem, perfeição cristã e belos feitos de guerra. Jamais, como militar, o ouviram jurar em vão pelo nome de Deus, coisa comum entre seus companheiros; as visitas das damas as mais honradas lhe eram suspeitas; desagradavam-lhe as companhias menos dignas. Após o cumprimento de seus deveres, ia para as igrejas, hospitais e outros locais de devoção, onde consagrava sua alma a Deus e seu corpo a seu príncipe.

Corajoso e valente no manejo da espada

Devotíssimo da Santíssima Virgem, recitava todos os dias sua Ladainha, tendo devoção particular a Sant’Ana, São José, São Vicente Ferrer e às almas do Purgatório. Mas ninguém pense que por isso seu temperamento fosse estranho ou arredio. Era um dos mais belos e gentis jovens do exército e dos melhores nas armas, corajoso e valente com sua espada, que ele só empunhava pela honra de Deus e defesa de seu rei.

Foi assim que, em certa ocasião, estando com uma pequena companhia, foi atacado pelo grosso da cavalaria inimiga. Vendo que não podia enfrentá-la, foi-se retirando lentamente, procurando ao menos matar alguns adversários para enfraquecê-los. Não percebeu assim um fosso profundo, oculto por pedras, nele caindo – e seu cavalo também sobre ele. Bastante ferido, foi atingido ainda por três golpes de alabarda de um soldado contrário. Sentindo a morte próxima, recorreu à Santíssima Virgem, prometendo-lhe ingressar na Ordem de São Francisco de Paula, se fosse salvo. E o foi milagrosamente. Voltou a Valência e foi recebido naquela família religiosa, aos 35 anos de idade.

Grande humildade e invulgar mortificação

Na nova via, logo veio a se destacar como exemplo para os demais sacerdotes. Extraordinariamente virtuoso, chegou a extremos na prática da humildade, de uma invulgar mortificação, e do dom da conversão de pecadores empedernidos. Morreu em 1604, enquanto rezava uma Ave-Maria. Foi beatificado por Pio VI, em 1786. Chegou a Geral de sua Ordem, onde era muito respeitado.

Um seu contemporâneo e biógrafo assim o descreve:

“Quando jovem ele era extraordinariamente belo, de estatura mediana e de corpo muito bem proporcionado; quando mais idoso, tornou-se um pouco curvo, o que lhe deu um porte mais grave, e moderava sua extrema humildade e atitude recolhida, porque frequentemente tinha as mãos juntas e os dedos cruzados entre seu grande rosário.

“Sua fisionomia era clara, suave, agradável, mas muito alegre, mesmo quando atingiu idade avançada. Sua fronte era alta, os olhos azuis, nem grandes, nem pequenos, alegres e vivos, mas calmos e discretos; as sobrancelhas arqueadas e entremeadas de fios brancos que, em sua juventude, eram louros; o nariz bem proporcionado, um tanto aquilino, a boca mediana, de lábios bem visíveis; a barba muito espessa, toda branca, com alguns fios dourados; suas mãos eram longas e brancas, seu andar pausado e solene; ele gaguejava um pouco; sua compleição era sanguínea e colérica. Era, sem dúvida, um dos mais veneráveis anciões então conhecidos.”(1)

Biografia bem redigida, porém não isenta do sentimentalismo romântico 

Esta é uma ficha mais inteligente do que muitas hagiografias que por aí se encontram. Quem a redigiu teve o cuidado de fazer do Beato uma descrição quase de uma ficha policial de nossos dias. Dir-se-ia ser uma espécie de fotografia do tempo em que não havia fotografia. Tem todos os pormenores da fisionomia do Beato, descritos com muita vivacidade, de maneira que, por assim dizer, percebe-se sua alma por detrás da descrição.

De outro lado, trata de sua vida de um modo bastante completo, quer dizer, contando que ele foi um guerreiro; e não omite que foi um guerreiro eficaz. Porque normalmente as fichas impregnadas de um hagiografismo meio dulçoroso, ao tratar do santo como guerreiro, diriam apenas assim: “O santo mancebo foi também durante algum tempo um guerreiro”. E passariam adiante. Ou omitiriam que ele foi guerreiro, para dar a ideia de que um Santo jamais brande a espada, porque toda violência é intrinsecamente má e o católico é incapaz do uso da força a serviço de suas ideias. É uma concepção efeminada e sentimental do católico.

Não se pode dizer que essa ficha seja inteiramente sentimental, romântica. Entretanto, tal é a presença sutil do sentimentalismo romântico, que o texto descreve longamente o Beato como religioso, trata bastante da vida de piedade dele; porém não fala de nenhum dos seus feitos de arma, a não ser um em que ele faz o papel de derrotado e recebe um milagre, o qual lhe serve de ocasião para deixar a carreira das armas.

A combatividade militar é integrante da virtude de um santo

Ora, nós teríamos gostado de uma ficha que dissesse tudo quanto diz, mas que nos mostrasse esse Beato como um guerreiro valente, não só na retirada, mas no ataque, matando alguns, contando o caso de dez inimigos que ele fendeu com uma espadagada, bem como de um avanço em que ele se pôs a risco, esteve na iminência de ser morto, não no recuo, mas porque se meteu no meio dos adversários; então Nossa Senhora o socorreu fazendo aparecer um Arcanjo terrível que, por sua vez, expulsou outros tantos inimigos.

Assim, nós apreciaríamos ver a combatividade militar elogiada como integrante da virtude de um Santo. A Escritura, portanto o Espírito Santo, descreve assim Judas Macabeu, por exemplo.

Aqui não. Vê-se que por um esforço de objetividade hagiográfica o biógrafo chega até o limite da objetividade inteira, porque conta um caso muito bonito. O herói não é só aquele que ataca, mas o que recua também.

Até há uma forma especial de heroísmo em perseverar e continuar inteiramente corajoso, apesar da adversidade. Mas com tanto adocicamento da vida dos Santos, nós gostaríamos de outra coisa. E percebe-se que deve ter havido material para isso.

Altar ideal para se venerar um Santo

Qual é o corolário disso? O Beato Gaspar foi um frade da Ordem de São Francisco de Paula. É improvável que se tenham construído em louvor dele capelas em alguma igreja, por ser Beato. Mas, enfim, uma capela na igreja da Ordem dele é muito provável que tenham feito.

O normal seria que houvesse um nicho com a imagem dele e atrás uma pintura, um mosaico, dando vários aspectos da sua vida. Se isso fosse feito de acordo com o espírito católico integral, apresentaria alguns aspectos do Beato com toda a sua doçura, sua bondade, etc. E um outro aspecto dele combatendo, na hora de cravar a espada num adversário que estaria caindo.

Isso teria que ficar num altar para, ao pé desse quadro, pedirmos a virtude da fortaleza. Não pode ser que, na hora de manifestar a coragem e defender o bem, um católico esteja aquém de um guerreiro que luta pelo mal. Pelo contrário, se o católico tem razões sobrenaturais para oferecer sua vida, ele precisa exceder os combatentes do mal, dos quais o mais audacioso deve ser um tímido diante de um verdadeiro católico.

Mas acontece que essa figura do Beato no ato de liquidar um adversário haveria de produzir, em senhoras ou mocinhas que se preparam para a primeira Comunhão, algum arrepio sentimental.

Formação que adocicava o lado combativo dos Santos

Há dez ou quinze anos atrás, em muitos seminários se entendia que para o indivíduo se tornar autêntico padre precisaria não ser inteiramente varonil. Para um padre fazer um sermão elogiando isso, era preciso ter uma formação que os seminários não davam.

Então, vemos que mesmo numa ficha objetiva, bem feita sob vários aspectos, que contém dados verdadeiramente edificantes, úteis para nossa vida espiritual, entra a irradiação de todo um estado de espírito, um modo de ser que, durante muito tempo, dominou – pelo menos na América do Sul – a piedade de largos setores da sociedade católica; não sei bem como é na Espanha, na Itália, em Portugal.

De tal maneira que, como um abismo atrai outro abismo, no tempo em que a influência da Igreja e do clero se exerciam, grosso modo, num sentido reto, em que então um senso combativo poderia ter levado essa influência à vitória, entretanto desenvolviam sua atividade com fermentos que adocicavam completamente essa influência, e a tornavam pouco capaz de atingir a vitória que estava ao seu alcance.

Surge a combatividade a serviço do mal

E à medida que essa influência vai se exercendo num sentido mau, começa a aparecer uma posição combativa e agressiva nesses mesmos ambientes, mas então já a serviço do mal, a teologia da violência, que é o extremo oposto dessas omissões. E é a tese de que o padre, a freira, devem ser violentos, terroristas, para aplicar a justiça social, a qual é um corolário do Evangelho e que, portanto, é preciso ser imposta até mesmo pela violência. Portanto, um abismo vai atraindo outro abismo.

Esse estado de espírito inimigo de toda polêmica, de todo combate, de toda violência teve ainda sua responsabilidade num aspecto dessa crise dramática. Quando o neomodernismo, ou seja, o progressismo começou a renascer com uma insolência maior, teria sido facílimo esmagá-lo. Não se esmagou por quê? Porque o grande número dos homens que detinham o poder tinha essa mentalidade. Eles achavam que não se deve esmagar nada. No plano ideológico das censuras e das penas canônicas, da coragem eclesiástica de punir, ainda que não seja por meios materiais, eles reagiam com a mesma moleza que fica insinuada nesse horror à exercida em termos militares.

Então, nós tivemos crescendo, crescendo, crescendo a onda da violência e os adversários naturais – que não eram homens que quisessem a violência – não reagindo, porque foram educados na escola da não-violência. Então, compreendemos como foi possível a tão poucos se tornarem tão numerosos e fazerem tanto. Ainda é esse estado de espírito responsável por essa ordem de coisas.

Bigrafias mutiladas pela Revolução tendenciosa

Então nós vemos aqui os zigue-zagues da Revolução, afetando a vida de piedade, desenvolvendo-se no campo da vida espiritual de enorme número de católicos. Mais uma vez notamos o fenômeno de Revolução tendenciosa. Porque não está dada aqui uma doutrina errada, nem dito de modo positivo: o católico não deve ser um soldado corajoso. Até está afirmado de algum modo o contrário. Mas há omissões que se inserem num coro de meios tons, meias verdades, as quais acabaram insinuando essa posição e habituando os temperamentos a uma postura mole, de entreguismo, desarmando toda a linha de defesa da ortodoxia, antes mesmo de o adversário erguer a cabeça. Quando o inimigo ergueu a cabeça, as linhas de defesa estavam quase todas adormecidas.

Poder-se-ia fazer uma objeção: “Mas Dr. Plinio, isso é verdade apenas em parte, porque esses mesmos que o senhor disse serem contrários à energia eclesiástica, quando se trata de atacar a ortodoxia são extremamente enérgicos.”

Respondo: Não é uma contradição, mas está na lógica do preguiçoso. Nessa posição entra muito do vício capital da preguiça. E a psicologia do preguiçoso é precisamente esta: ele concorda com tudo e tem preguiça para tudo; entretanto, para com aquele que quer convencê-lo de não ser preguiçoso, deseja obrigá-lo a se mexer, ele agride sem preguiça.

Tomem um homem que está numa cama dormindo agradavelmente. Acordam-no e lhe dizem:

– Há divertimento.

– Não quero.

– Tem trabalho.

Ele dorme mais profundamente ainda.

– Faça uma oração!

Ele desmaia.

Procurem levantar o homem. Ele se ergue e dá um tapa, porque estão lhe tirando de sua preguiça. Esta é a lógica do preguiçoso.

Inúmeras vezes nós quisemos que essa gente combatesse. É claro que nos agrediam, pois estávamos tirando-os da lógica da preguiça.

Alguém me dirá: “O senhor não comentou a vida do Beato. O que fica da vida dele para nós?”

Fica, antes de tudo, uma defesa do Beato que foi apresentado de modo mutilado. E também uma defesa contra tantas hagiografias mutiladas que por aí se apresentam.             v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/8/1972)

Revista Dr Plinio 244 (Julho de 2018)

 

1) Não dispomos dos dados bibliográficos da obra citada.

Santa Maria Madalena: fruto da penitência e do desapego!

Estando profundamente arrependida, Santa Maria Madalena perdeu o apego às coisas da Terra que lhe foram ocasião e motivo de pecado, e voou à contemplação.

Meditando na vida da Santa Penitente, Dr. Plinio põe-se a seguinte interrogação: existirá alguma correlação entre espírito de contemplação, espírito de arrependimento, e desprendimento das coisas desta Terra?

 

Santa Maria Madalena mereceu ser a primeira pessoa a contemplar o Salvador ressuscitado.

No famoso episódio do banquete, em que Maria Madalena — tudo leva a crer que dela se tratava — ungiu os pés de Nosso Senhor, há aspectos colaterais os quais nos fornecem algumas perspectivas da alma e da vida dela, bem como de sua posição no firmamento da Igreja, que seria o caso de comentarmos.

Contemplação e penitência

Ela era irmã de Lázaro, o qual segundo a tradição, pertencia à alta sociedade porque era um homem muito rico. Portanto, Lázaro e suas duas irmãs eram pessoas de alta categoria, mas Maria Madalena havia decaído muito e se tornara uma pecadora pública.

Depois do seu arrependimento, Santa Maria Madalena passou a representar duas coisas que se tornaram claras: de um lado a contemplação, e de outro a penitência.

Ela se diferenciou de Marta, no célebre episódio em que Nosso Senhor disse a esta última — que censurava Madalena porque não estava se ocupando das coisas da casa, mas se limitava a olhar para Ele e ouvi-Lo —: “Marta, Marta, Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada!”(1)

A partir de então, Santa Maria Madalena representou o estado puramente contemplativo, destacado da vida ativa. E, pelo seu grande arrependimento, pela sua fidelidade ao pé da Cruz, e pelo fato de ter sido a primeira que teve notícia da ressurreição do Redentor, ela passou a simbolizar não apenas a contemplação, mas a penitência, a penitência na sua glória, no estado do maior perdão e da maior intimidade com Nosso Senhor.

Com o exemplo da vida dela, e de outros santos, alguns teólogos pretenderam que o estado de penitência séria, profunda, é mais bonito que o estado de inocência.

Judas, o oposto de Santa Maria Madalena

Em terceiro lugar, ela representou também a afirmação dos direitos da inocência e dos direitos de Nosso Senhor.

Em que sentido?

Todos se lembram deste fato: estando o Divino Salvador em Betânia, foi oferecida uma ceia em sua honra. Madalena entrou e, quebrando um vidro de perfume, começou a ungir os pés de Nosso Senhor. Judas censurou-a a esse respeito, mas o Redentor justificou a atitude dela(2).

Vemos aí a penitência, juntamente com a contemplação, numa espécie de irredutível oposição ao espírito sem nenhum arrependimento de Judas. Este, em vez de arrepender-se, caiu no desespero, como mostra o ato pelo qual ele se enforcou na figueira.

Enquanto ela, como contemplativa e penitente, representava a renúncia aos bens da Terra, Judas, como ladrão, traidor — e traidor por dinheiro —, simbolizava o apego aos bens deste mundo.

Dois itinerários que se cruzaram

O que pode ter levado esse miserável a ter tanto apego ao dinheiro? Um apego que naturalmente chegou ao ódio ao Redentor, porque ninguém faz uma traição como aquela, apenas por lucro, sem ódio; no fundo, um ódio que domina o próprio espírito de lucro. A roubar as esmolas coletadas para os pobres? Ele que era o defensor dos direitos dos pobres, na hora em que se verteu o perfume nos pés de Divino Mestre… Ao desejo de se tornar rico, para ter uma carreira colateral à de apóstolo, e ser um homem considerado importante naquela sociedade de Jerusalém, julgando que ele perdia algo de sua carreira humana seguindo a Nosso Senhor Jesus Cristo, a quem os fariseus desdenhavam como um homem sem importância?

Judas fez tais coisas porque, quando ele estava junto a Nosso Senhor e ouvia as prédicas e assistia aos milagres do Divino Mestre, o seu espírito saía de lá e começava a pensar em Jerusalém, nas suas praças ou no Templo, onde ficavam os tão “finos, simpáticos e inteligentes” fariseus.

Porque não se reteve nas contemplações do Redentor e começou a aspirar às coisas do mundo, ele caiu em pecado. E esse pecado, chegando até o extremo, o conduziu ao desespero: Judas então se enforcou na figueira maldita.

Podemos admitir a possibilidade de que, em determinado momento, Judas esteve em estado de graça e Maria Madalena em pecado mortal. Ela saiu do pecado, para subir a um alto grau de virtude, e ele desceu da condição de apóstolo, para a qual tinha sido convidado por Nosso Senhor — houve, portanto, uma hora em que o Redentor não só o amou, mas o amou até o fim, e Judas amou a Nosso Senhor —, ele desceu desta condição, para ser o vendilhão do Salvador.

Vemos assim quanto pode subir uma alma que está no lodo, e quanto pode cair uma alma chamada para o que há de melhor. Foram dois itinerários que se cruzaram; é uma coisa que nos arrepia, enche de terror.

Santa Maria Madalena e Judas; espírito de Jacó e de Esaú

A oposição das figuras de Santa Maria Madalena e de Judas torna-se tão flagrante que vai até ao Calvário e à Ressurreição.

Ela estava ao pé da Cruz, e ele, o apóstolo maldito, o homem execrando, foi quem encaminhou Nosso Senhor para a Cruz. Santa Maria Madalena é a primeira a presenciar a Ressurreição, enquanto ele se enforca e sua alma cai porcamente no Inferno.

As antíteses entre um e outro estado de alma são tremendas; os espíritos são diferentes. Compete-nos fazer uma análise dos traços desses espíritos.

Que nexo há entre arrependimento, pura contemplação e desapego dos bens do mundo, de um lado; e de outro lado, impenitência final, desespero, apego aos bens do mundo, enchafurdamento na vida prática, ativa, como fazia Judas, homem que naturalmente roubava e fazia negócios desonestos? Que paralelismo existe entre uma coisa e outra?

Há algum tempo tratei neste auditório a respeito de Esaú e de Jacó, e falei sobre o espírito de ambos.

Santa Maria Madalena nos afigura como quem teve o espírito de Jacó. Quer dizer, espírito superior, voltado para as coisas elevadas, portanto para Deus, e indiferente às coisas materiais do mundo.

Judas é o tipo do Esaú. Mais do que vender o direito de primogenitura por um prato de lentilhas, ele vende seu Salvador por trinta dinheiros, o que é muitíssimo pior. E não teve verdadeiro arrependimento, porque nele não havia mais nenhuma forma de virtude sobrenatural. Fracassou totalmente, caiu no desespero e suicidou-se.

Contemplação nascida da penitência e do desapego

Então, que nexo existe entre estas três coisas: o espírito de contemplação, o espírito de arrependimento, e o desprendimento das coisas desta Terra?

É fácil compreender, pois uma pessoa, de qualquer um desses pontos parte para o outro. Estando profundamente arrependida, com arrependimento eficaz, ela perde o apego às coisas da Terra que lhe foram ocasião e motivo de pecado; e, tendo esse desapego, facilmente vai para a contemplação. A pura contemplação e a renúncia das coisas devido às quais ela pecou, levada ao último extremo, são o próprio da penitência. Quem pratica a verdadeira penitência não se limita a separar-se daquilo que o conduziu ao pecado; ele o execra. E por isso coloca, entre aquilo por onde pecou e si mesmo, a maior das distâncias.

Para praticar essa penitência tão grande, convinha a Santa Maria Madalena separar-se completamente do mundo. E não ficar apenas no estado de uma vida contemplativa e ativa, mas levar vida puramente contemplativa, em que tudo foi abandonado, e qualquer forma indireta de contato com a matéria execrada devido ao pecado foi também cortada; assim, não lhe restava outra coisa senão a contemplação. Contemplação que, nascida da penitência e do desapego, faz compreender a excelência das coisas do Céu, e que todas as coisas da Terra foram feitas para as do Céu. Portanto, era justo e bom derramar unguento nos pés sacrossantos de Nosso Senhor Jesus Cristo, mesmo quando houvesse pobre que precisasse de esmola.

A pecadora arrependida amava Nossa Senhora, e o traidor A detestava

Todos os que têm tratado deste particular dizem o seguinte: Judas com certeza não tinha devoção a Nossa Senhora. Se tivesse para com a Santíssima Virgem um mínimo de instinto filial, de simpatia, de amor, quando ele caiu inteiramente em si iria procurar por Ela; e ter-Lhe-ia pedido que arranjasse a situação dele. Mas Judas tinha antipatia por Nossa Senhora, e A detestava. O Evangelho diz, de modo taxativo, que o demônio tinha entrado nele. E o demônio afastava-o o quanto possível da Virgem Maria.

Qual o resultado? Ele não se dirigiu Àquela que é o canal das graças, e isto ocasionou a sua perdição.

São Pedro, depois de ter renegado Nosso Senhor, talvez tenha tido tentação de desespero. Mas é certo moralmente que ele procurou Nossa Senhora. Por isso, ele, que também tinha pecado muito, foi fiel, sendo o primeiro Papa da Santa Igreja Católica.

Santa Maria Madalena sempre aparece fazendo parte do cortejo da Santíssima Virgem, intimamente unida a Ela em todos os momentos, sobretudo na hora régia da vida de Nossa Senhora, quando Nosso Senhor Jesus Cristo, com dores indizíveis, disse “Consummatum est”.

Podemos imaginar Santa Maria Madalena junto a Nossa Senhora, na hora da piedade, quando  Mãe de Deus tinha Nosso Senhor Jesus Cristo sobre seu colo.

Naquele momento tremendo, Nossa Senhora ficou inteiramente abandonada: Nosso Senhor no sepulcro, o Colégio Apostólico vacilante, a cidade de Jerusalém entregue a terremotos, e os justos da Antiga Lei andando de um lado para o outro. A Santíssima Virgem, nessa situação tão pouco conhecida, estava completamente só.

Tenho a impressão de que não Lhe faltou a assistência de Santa Maria Madalena, a qual estava junto d’Ela. E porque permaneceu junto à Mãe de Deus, ela recebeu um rosário de glórias, cada uma mais extraordinária do que outra.

Quando vemos tudo isto, é impossível não estremecermos com a nossa própria fraqueza. Mas é impossível também que não nos sintamos concertados com este ponto: por mais fraco que o homem seja, desde que ele se apegue muito a Nossa Senhora, peça-Lhe muito por sua própria perseverança e para que Ela o ampare, nunca o abandone, ele encontra aí um ponto de firmeza, de solidez.

A última das pecadoras aproximou-se de Nossa Senhora e se tornou uma penitente gloriosíssima. Um apóstolo, que era distante de Nossa Senhora e frio para com Ela, tornou-se o filho da maldição e da perdição, que Dante coloca no Inferno dentro da boca de Satanás, com as pernas para fora, o eternamente triturado. Enquanto que podemos imaginar, no Céu, Santa Maria Madalena posta bem perto do Sagrado Coração de Jesus e do Imaculado Coração de Maria, agradecendo os favores imerecidos de que ela foi repleta. 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/7/1965)

1) Lc 10,42.
2) Cf. Jo 12,1-8.

São Lourenço de Bríndisi e o luxo do século XVI

O contraste harmônico dá-se sempre entre duas perfeições, as quais, por serem muito  diversas entre si, como que se equilibram. Na conferência transcrita a seguir, Dr. Plinio aplica essa tese à presença de um austero capuchinho em meio ao luxo e requinte da vida de corte.

Para ser comentado hoje, foram-me fornecidos trechos da obra de um jesuíta, a “Vida de São Lourenço de Brindisi”, cuja festa se celebra em 22 de junho.

Antes de passar à leitura e comentários, vale a pena termos uma noção do que era um capuchinho no século XVI, para melhor avaliarmos a projeção da figura desse santo no mundo daquele  tempo.

Conhecemos o traje clássico dos capuchinhos. É aquele hábito marrom-claro, na cintura um rosário, sendo que as fileiras de contas são unidas pela figura de uma caveira. Calçam sandálias sem meias, usam a barba grande e cabelo aparado quase rente.

O capuchinho entrava, desse modo, num contraste violento com o modo de se trajar e de se apresentar dos homens da época. A Renascença estava no fim, e se ia passando para o Barroco e o  Rococó, as modas masculinas iam atingindo um auge de rebuscamento, de elegância, de finura e, às vezes, de efeminamento, como poucas vezes aconteceu na História.

Os homens se trajavam de seda, de damasco, trazendo na roupa botões e outros ornamentos de pedras preciosas.

Usavam anéis, meias de seda, sapatos de verniz (com salto vermelho, quando eram nobres) com fivelas de ouro ou de prata e pedras preciosas. Perfumavam-se. Quando usavam barba, era aparada no formato chamado de “pera”, muito bem cuidada, e os bigodes finos e sedosos — não era o bigode à “kaiser”, com a ponta voltada para cima. Por cima do cabelo natural, ou da cabeça rapada, punham cabeleiras, super preparadas em estabelecimentos especiais. Não falemos da apresentação da dama, porque, se assim era a do homem, mais requintada era a feminina.

Dentro dos sábios equilíbrios da Civilização Cristã, o capuchinho representava a tônica oposta de tanto luxo e tanto bom gosto.

Harmonia baseada nos contrastes

Não seria eu quem haveria de censurar que a Civilização Cristã engendrasse os mais magníficos trajes. Eu teria, certamente, alguma restrição a alguns aspectos desses trajes no século XVI. Mas, na linha geral, a ideia de  acentuar a dignidade do homem por meio de trajes magníficos me parece muito boa e própria a realçar a sabedoria do plano de Deus, o qual, a serviço do rei da Criação, que é o homem, dispôs de materiais capazes de afirmar adequadamente essa realeza.

Sobretudo quanto esse rei é, ao mesmo tempo, membro do Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo, e tem, portanto, uma dignidade maior do que a própria dignidade humana.

Mas é próprio do gênio, do talento da Igreja Católica estabelecer a harmonia baseada nos contrastes. Uma coisa é a contradição; outra coisa são os contrastes harmônicos. Estes últimos são sempre contrastes entre duas perfeições — não entre um defeito e uma perfeição e, menos ainda, entre dois defeitos — as quais, sendo muito diversas entre si e por serem muito diversas entre si, como que se equilibram.

Um tal esplendor nos trajes, uma tal magnificência na vida de Corte, exigia que se lembrasse ao homem, ao mesmo tempo, os valores opostos da austeridade, da sobriedade, da sobranceria em relação às coisas terrenas, do único valor profundo das coisas sobrenaturais, etc. Só por essa forma a humanidade poderia chegar impunemente a tais requintes de luxo.

Como, em sentido contrário, a afirmação magnífica — eu quase diria brutal — da morte, da pobreza, de tudo aquilo que leva o homem a sofrer na vida, a renunciar, a lutar, só poderia ser um valor geral para a sociedade, freqüente, presente em todos os aspectos da vida social, se, em sentido contrário, o esplendor da vida terrena aparecesse também.

Um exemplo de contrários harmônicos

São esses contrários harmônicos que são os fatores de equilíbrio da alma humana. É muito belo ver, em quadros do tempo, cenas de vida de Corte. Lembro-me de um quadro que eu via muito quando era pequeno.

Era uma sala com um rei e uma rainha, algo me sugere que eram soberanos espanhóis, ambos com coroas na cabeça. A Corte inteira de pé, como se recebesse alguém: dignitários, cardeais vestidos de púrpura, guerreiros, ministros, etc., formando um grande semicírculo.

Era a cena da Corte na sua magnificência, parada, à espera de um ato que se devia realizar. A pequena distância do rei ou da rainha, a figura de um capuchinho. Espadaúdo, enorme, forte, com uma barba colossal, e com sua roupa terrível. Natural no meio daquilo, na sua pobreza entre os mais importantes e mais ricos, e cercado de respeito e de delicadeza, constituindo no quadro um  equilíbrio moral que eu não sabia explicitar, mas que me deixava maravilhado. Era esse o papel simbólico dos capuchinhos na civilização daquele tempo. Representavam tudo quanto há de austero na vida, e constituíam a contrapartida harmônica de tudo quanto havia de magnífico na vida, que a civilização daquele tempo estava elaborando.

Um protesto vivo

Temos, pois, um santo, São Lourenço de Brindisi, que é chamado a desempenhar essa missão, simbolizar esse valor na sociedade daquele tempo. O mundo era então marcado pela presença de dois adversários terríveis, que quase liquidaram a Europa.

Um deles era a Primeira Revolução, o protestantismo, contra o qual São Lourenço de Bríndisi lutou com êxito.

A Primeira Revolução, como mostro no livro “Revolução e Contra-Revolução”, foi marcada por uma explosão de orgulho e de sensualidade. De orgulho, afirmado pela negação da hierarquia  eclesiástica e pela inconformidade, na esfera eclesiástica, de todos os súditos com a autoridade. O Bispo não querendo tolerar Papas, os sacerdotes não querendo tolerar Bispos, os leigos não querendo tolerar sacerdotes. Uma verdadeira revolução comunista dentro da estrutura eclesiástica daquele tempo.

De outro lado, a sensualidade, afirmada pela ruptura com o princípio da indissolubilidade do vínculo conjugal, quer dizer, pelo estabelecimento do divórcio em todas as seitas protestantes e, de outro lado, pela abolição do celibato eclesiástico e do estado religioso com celibato.

Nesse mundo marcado pela perpétua insatisfação de todos, o capuchinho representava um protesto vivo. Ele era pobre o mais das vezes voluntário, um homem que possuíra bens na terra, maiores ou menores, e optara por ser pobre; que renunciara a toda carreira terrena, não ocupava altos cargos nem altas situações, vivia na humildade do voto de obediência pelo qual renunciara à própria vontade para viver sob o império da vontade de um outro; e mantinha a castidade perfeita.

Ele representava, então, um contraste vivo com todo o desregramento do tempo, e passeava naquela sociedade revolucionária como um tanque evolui no meio de batalhões adversos de infantaria. Com serenidade, sobranceria e ação de presença, ia aniquilando.

Desde a infância preparando a alma para grandes batalhas

Vamos agora estudar a vida desse Santo sob esse aspecto. Passo, portanto, à leitura de trechos da biografia dele. Nasceu em Brindisi, em 1559. Foram seus pais das mais nobres famílias daquela cidade. Tinha apenas quatro anos quando pediu aos pais para entrar no convento dos Frades Menores. Os pais acederam. Lourenço era aplicado. Gostava muito de ouvir sermões, retinha-os facilmente e os repetia com exatidão.

Às vezes faziam-no pregar no Capítulo, para que todos ouvissem. Que encanto um capuchinhozinho com voz de criança, mas já com catadura de atleta de Cristo, fazendo sermões que ele ouvia e repetia! Isso ia formando o menino para as grandes batalhas que ele ia travar, para o desembaraço que constitui uma das formas da grandeza capuchinha. O Arcebispo, a quem a notícia chegou, quis também ouvi-lo, e o obrigou a ir pregar na catedral diante de numeroso público, que muito proveito tirou. Levemos em consideração que, naqueles lugares pequenos da Itália — sem rádio, televisão, cinema — qualquer singularidade despertava curiosidade.

Assim a Catedral se enchia para ouvir o sermão de um meninozinho extraordinário. O povo, como era naquele tempo, falante, exuberante, fazendo comentários antes de chegar o menino. De repente, este sobe,  começa a fazer ouvir sua voz, o silêncio se estabelece aos poucos. Terminado, o órgão toca, alguém canta uma Ave-Maria, e o público vai lentamente se escoando depois de ter recebido a bênção do Bispo.

O menino entra no convento e não ouve nenhuma das repercussões. Vai dormir e, na manhã seguinte, está limpando o chão.

Ao receber pressões da mãe, São Lourenço foge

Tendo morrido seu pai, quis a mãe que o filho voltasse para casa, a fim de lhe fazer companhia. Mas o jovem procurou esquivar-se às solicitações dela e fugiu para Veneza, onde estava um tio seu, sacerdote, reitor do Colégio de São Marcos.

Veneza de manhãzinha, com seus palácios, seu panorama aquático magnífico, mil jogos de luz maravilhosos. O fradinho que fugiu e viajou a noite inteira entra tranquilamente na cidade, toma uma gôndola e, de pé, olhando os palácios e pensando em como o Reino dos Céus é maior do que o da Terra, chega à casa do tio para estudar.

O tio era aliado de Deus e o acolhe, e a mãe desiste de exercer seu poder. Concluindo ele os estudos de filosofia, seu tio o destinou à Faculdade de Direito Canônico. Chegado aos 17 anos, pediu o hábito capuchinho, e o Provincial lhe concedeu com gosto. Em 24 de março de 1576, ele fez a solene profissão.

Maravilhosas conversões

Aos 36 anos, foi nomeado Ministro Geral para toda a Ordem. Quando Clemente VIII mandou os capuchinhos para a Alemanha, o Santo foi um dos encarregados. O Imperador [do Sacro Império] teve grande satisfação nessa escolha e concedeu-lhe ampla autorização para fundar mosteiros. Fundou-os na Boêmia, Áustria, Morávia e Silésia.

Fundar mosteiros é encontrar vocações para eles, encontrar dinheiro para construí- los e superiores para dirigi-los. É difícil encontrar quem queira levar a vida austera de um capuchinho. Mas ele formou mosteiros em todas essas regiões.

Os Sumos Pontífices confiaram-lhe as mais delicadas missões. Várias vezes foi enviado como embaixador a cortes de diversos príncipes. Estes o honravam também com o caráter de seu  embaixador.

Assim compareceu às cortes dos príncipes da Alemanha e até à Dieta do Império. Seu zelo reteve naquele país e heresia luterana.

Podemos imaginar cenas de Cortes: o arauto anuncia que vai entrar no salão o Embaixador do Santo Padre, tido como o decano dos diplomatas em todos os países católicos, e entra o frade capuchinho na singeleza de seus trajes. Grande reverência ao rei, e prossegue, no meio dos tapetes de luxo, do esplendor, sereno e indiferente, sem revolta e sem admiração, com os olhos postos no Céu e pregando a verdade, às vezes terrível.

Imprudente no nível humano, prudente no sobrenatural

O Imperador desejou que alguns capuchinhos fossem como capelães do exército à Hungria. São Lourenço foi à frente da missão. Era general o Arquiduque Matias, irmão do Imperador, o qual, estimulado pelas promessas que lhe fazia Lourenço da parte de Deus, de alcançar vitória sobre os inimigos, determinou atacá-los perto de Alba Real. O Arquiduque, excelente general, considerava imprudente atacar os maometanos, que estavam chegando pelos Bálcãs para atacar a Hungria e depois a Áustria, por assim dizer, pelas costas, enquanto os Habsburgos tinham de enfrentar o ataque dos protestantes da Alemanha e a oposição política francesa.

Situação crítica para a Casa d’Áustria. O Arquiduque Matias, parente do Imperador, generalíssimo das tropas do Império Romano-Alemão, diante dos turcos duvida se ataca ou não. Podemos imaginá-lo numa tenda magnífica, reunido com seus homens de guerra, olhando mapas sobre uma mesa de emergência, discutindo se avança ou não, com dados obtidos pelos espiões. Segundo as regras da técnica militar, a batalha é imprudente.

Entra então a sentinela e diz: “Frei Lourenço quer falar”. O Arquiduque Matias aquiesce e o capuchinho entra, avisando a revelação de Deus: “Podem dar o ataque, porque vencerão”. Há um momento de sensação, quando, ouvido o religioso, que não dá razões técnicas, mas só as ouvidas do Céu, os generais vêem o Arquiduque hesitar. Alguém um tanto incrédulo diz: “Alteza, não permita essa luta. Será o fim dos exércitos e o fim da Arqui família” (chamavam desse modo pitoresco a família dos Arquiduques).  — Não — repete Frei Lourenço. — A glória da Arqui família está na batalha. Seus caminhos passam pelos caminhos de Deus. Para a frente!

Ordena o ataque. Naquele tempo ainda havia Fé. Os homens criam. O Arquiduque decide dar a batalha, porque Frei Lourenço lhe prometeu vitória. Batalha imprudente no terreno humano, mas prudente no terreno sobrenatural, que ia ser abençoada por Deus. Os cristãos, embora inferiores em número, acometeram com tal ímpeto que galgaram de espada em punho as trincheiras, conseguindo uma vitória completa e a conquista de Alba Real. Os turcos recuaram. Esse sucesso, que custou apenas 30 homens aos cristãos, julgaram todos que foi devido às orações de Lourenço, o qual, durante todo o combate, montado em um cavalo, animava os soldados a combaterem pela fé.

Que cena magnífica! O capuchinho montado a cavalo, segurando as rédeas com uma mão e a cruz com outra. E o tempo inteiro percorrendo as fileiras e estimulando à luta, prometendo o Céu para quem morresse.

E aqueles homenzarrões, com parte do armamento ainda de metal, tendo de enfrentar tiros de canhão ainda incipiente, projéteis com pedras, e a carga contrária dos maometanos, o ouvem tão inflamados que vão com ímpeto, fazendo os maometanos flectirem e fugirem. Podemos imaginar como foi o declínio da tarde sobre Alba Real conquistada pelos católicos. A alegria das tropas católicas diante do milagre evidente. O Arquiduque talvez na casa do governador maometano de Alba Real; todos descansando nos vários lugares da batalha. Repicam os sinos. Frei Lourenço está chamando para a prece.

A igreja está cheia. Entram, ele está junto ao altar e canta um magnífico Te Deum.

Isso é viver!