Assemelhar-se ao Varão de Dores

Em mais uma exposição dedicada a comentar o opúsculo de São Luís Grignion de Montfort, Dr. Plinio ressalta a divina figura de Nosso Senhor Jesus Cristo como o “vir dolorum” — varão a cujas dores devemos estar associados, com veneração e gratidão profundas; a Ele nos unindo de modo crescente, ao aceitarmos os sofrimentos que a vida nos traz.

 

No intuito de afervorar seus discípulos no amor à Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, assim prossegue São Luís Grignion de Montfort: 

“Numquid et vos vultis abire” (Jo 6, 67)?

Isto é: “quereis vós também retirar-vos?”. Foi a pergunta que Nosso Senhor dirigiu aos apóstolos, quando alguns começaram a abandoná-Lo após ouvi-Lo proclamar que sua carne era verdadeira comida, e seu sangue verdadeira bebida. Ou seja, quando Ele aludiu à Sagrada Eucaristia. Vários discípulos se escandalizaram e O deixaram. Ele, então, fez aos que ficaram essa pergunta, cheia de melancolia patética: “Vós também quereis ir?” Como quem dissesse: “Se quiserdes, ide também vós”.

É uma pergunta de transpassar a alma de qualquer ouvinte que tenha um mínimo de sentimento. Nosso Senhor foi abandonado estúpida e ingratamente. Nessa ocasião, São Pedro pronunciou aquela frase magnífica: “Aonde iremos, Senhor, se só Vós tendes palavra de vida eterna?” (Jo 6, 68). Estava tudo dito, nada havia a acrescentar.

Riquezas, prazeres e honras: causas de abandono da Cruz

“Numquid et vos vultis abire?” (Jo 6, 67). Quereis vós também abandonar-me, fugindo de minha Cruz, como os mundanos, que nisto são outros tantos Anticristos; “Antichristi multi?” (1 Jo 2, 12)

Por mundano devemos entender aquele que coloca as esperanças de sua felicidade apenas neste mundo e nesta vida, procurando tão-somente as coisas terrenas. Esse foge da Cruz de Nosso Senhor e, por isso, São Luís Grignion o compara ao Anticristo.

Quereis, enfim, conformar-vos ao século presente, desprezar a pobreza de minha Cruz, para correr após as riquezas?

 Conforme o pensamento do santo autor, o apego às riquezas do século, ou seja, do mundo, seria um primeiro fator que inclina o homem a se recusar a seguir o Divino Mestre nas vias do sofrimento.

Evitar a dor de minha Cruz para procurar os prazeres?

O segundo motivo para a mesma recusa é a busca desordenada dos prazeres.

Odiar as humilhações de minha Cruz, para ambicionar as honras?

Estão, portanto, indicados os três grandes atrativos do mundo: as riquezas, os prazeres e as honras.

Onde não está a Cruz, não está Nosso Senhor

Tenho, na aparência, muitos amigos que me fazem protestos de amor, mas no fundo me odeiam, pois não amam a minha Cruz…

Esse pensamento de São Luís Grignion nos leva a uma importante consideração. Com efeito, pessoas há que parecem ser muito devotas de Nosso Senhor, mas, na hora de aceitar o sofrimento, de provar seu amor à Cruz, não o fazem. Ora, diz o santo, no fundo tais pessoas odeiam o Redentor, pois rejeitam sua Cruz.

A frase é dura, mas verdadeira. Interpretando-a, poder-se-ia apontar como ridícula a afirmação que se ouve aqui e ali: “cada um pratica a religião a seu modo; uns amam Nosso Senhor com a Cruz; outros O amam sem ela”. Pelo que nos ensina São Luís, essa postura de alma é equivocada. Onde não entra a Cruz, não se acha o Redentor. E o requinte de amor a Ele é o amor à sua Cruz. Cumpre ter espírito de sacrifício, pois sem isto não existe autêntica adoração ao nosso Salvador.

Compreendemos assim quanto é adequada a expressão de que todo católico deve se assemelhar ao Redentor enquanto “vir dolorum, um varão de dores”. Parece-me que esse qualificativo descreve de modo magnífico o Divino Mestre ao longo de sua existência terrena: um varão repleto de dores, que sofre profunda e lucidamente, e faz do sofrer o seu viver. Donde o autêntico católico dever se conformar a esse augusto exemplo, e levar sua cruz como Nosso Senhor levou a d’Ele, varonilmente, peito aberto, sem olimpismo, mas sem fraquezas.

Peçamos à Santíssima Virgem que nos alcance a inestimável graça de amarmos assim a Cruz de seu Divino Filho.

Necessidade da graça para tomarmos a sério esses ensinamentos

“Muitos [são] amigos de minha mesa, e pouquíssimos de minha Cruz. A este apelo amoroso de Jesus elevemo-nos acima de nós mesmos; não nos deixemos seduzir pelos nossos sentidos, como Eva; não olhemos senão o autor e consumador de nossa fé, Jesus crucificado. Fujamos da concupiscência do mundo corrompido; amemos Jesus Cristo da melhor maneira, isto é, através de toda sorte de cruzes. Meditemos bem estas admiráveis palavras de nosso amável Mestre, que encerram toda a perfeição da vida cristã: ‘Si quis vult venire post me, abneget semetipsum et tollat crucem suam, et sequatur me!’ (Se alguém quiser vir após Mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me)” (Mt 16, 24).

Vemos, assim, qual é o convite feito para os genuínos amigos da Cruz. Nosso Senhor Jesus Cristo fez tudo por nós. Seria inteiramente lógico que, por retribuição, nós O seguíssemos. Porém, a maldade do homem é tal que precisamos pedir uma graça particular para tomarmos a sério esses ensinamentos, os quais entretanto são de molde a comover as pedras; devemos implorar o dom da fé capaz de mover montanhas, e termos os olhos sempre voltados para a Cruz.

Pensemos: a morte de Cristo causou tanta perturbação no universo que o sol se toldou no firmamento, a terra tremeu e outros fenômenos do gênero se verificaram. Ora, se as próprias criaturas materiais como que se manifestaram diante da morte do Filho de Deus e Lhe preparam aquele funeral, como posso tomar conhecimento da Paixão e não me incomodar?

Pois a maldade do homem decaído pelo pecado original o levará a ser indiferente aos padecimentos de Cristo e à sua Cruz, caso ele não seja auxiliado pela graça. A inclinação para essa indiferença, qualquer um pode sentir dentro de si: ouvirá diversos sermões a respeito dos sofrimentos de Nosso Senhor, os mais lógicos e atraentes; porém, sem uma assistência da graça, daria no mesmo se lhe narrassem a Guerra de Troia. Quer dizer, não o abalaria nem o moveria a nenhuma boa disposição.

Daí adquirirem especial valor aquelas palavras singelas do cântico “Stabat Mater”, frutos da piedade popular, acessível e amável: Santa Mãe, fonte de amor, fazei-me sentir a intensidade de vossa dor, fazei-me chorar convosco. Quer dizer, depois de Nosso Senhor ter feito tudo por mim, preciso pedir a Maria Santíssima que me alcance graças para eu ter pena d’Ele, pois a Cruz, sem o socorro da graça, pode me parecer apenas um pedaço de madeira, e todo um ciclo de conferências sobre a beleza e riqueza do sofrimento não nos tocará a alma.

Oferecer com alegria nossos sofrimentos e renúncias

Ao concluir esses comentários, gostaria de frisar como é excelente nutrirmos em nós, de maneira constante, o desejo de um verdadeiro amor à Cruz, no seguinte sentido: se Nosso Senhor Jesus Cristo, se a Virgem Santíssima, minha Mãe e minha Senhora, pedirem-me alguma coisa, devo dá-la com alegria, sobretudo em se tratando de algo que me exija sacrifício, renúncia, sofrimento, de maneira que minha dor seja uma gota dentro do oceano das dores que Ambos padeceram por nós na Paixão. É por essa forma que melhor me unirei a Eles.

Uma vez mais: não deixemos de implorar a graça de termos esse abrasado amor à Cruz, de nos tornarmos ardentes amigos dela, não querendo coisa mais elevada e mais cobiçada do que a Cruz de nosso Salvador.

 

Plinio Corrêa de Oliveira, (Extraído de conferência em 8/7/1967)

Contemplando o Sagrado Coração de Jesus

Junho é o mês do Coração de Jesus. Dr Plino tinha essa devoção arraigada em sua alma desde a mais remota infância, e a desenvolveu ao longo de toda a sua vida, como se pode ver no texto da conferência que transcrevemos a seguir.

 

A devoção ao Sagrado Coração de Jesus é tão antiga em mim que — como já contei aos senhores — antes mesmo de eu saber dizer “papai” ou “mamãe”, quando minha mãe me perguntava: “Onde está o Sagrado Coração de Jesus?”, eu apontava para a imagem d’Ele.

Conhecer uma devoção é, sem dúvida nenhuma, debaixo de certo ponto de vista, degustá-la. E o degustar alguma coisa, para o meu modo de ser, nunca é completo enquanto eu não conhecer essa coisa até ao fundo. Uma das razões que me empolgaram tanto no livro de São Luís Maria Grignion de Montfort, “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem”, é que ele toma o assunto central e vai até onde se pode e se deve ir para ter conhecimento da questão. Vendo a montagem racional desse assunto, em função da doutrina católica, eu o compreendi. E compreendi bem, como gosto de compreender.

Entendendo desse modo, eu me sinto muito mais eu mesmo, sinto-me muito mais em casa para amar, porque a mente humana gosta de ver a insondabilidade das coisas, se com praz em de ver a força do raciocínio, se alegra em sondar palmo a palmo uma questão e ir até ao fundo dela.

É assim que o homem ama. Ao menos é assim que eu sei amar. Não sou, nem um pouco, amigo desses espíritos cartesianos que pensam que tudo se resume em compreender e que, uma vez compreendido, está tudo acabado. Não. É preciso ter o raciocínio, mas também o sentimento. Por que fazer a escolha entre o raciocínio e o sentimento? Se Deus fez o homem capaz de raciocínio e sentimento, tenhamos ambas as coisas, para fazer a vontade de Deus e para sermos nós mesmos.

O que se deve entender por “coração”?

Tomo os elementos que me parecem fundamentais nesse grande e misterioso assunto que é a devoção ao Sagrado Coração de Jesus.

Por “coração” os antigos entendiam não precisamente o que se entende hoje, mas algo que é ao mesmo tempo mais vasto e, em certo sentido, diferente.

Em nossos dias, o coração é quase o símbolo do sentimento desacompanhado da razão. Diz-se que o coração de uma pessoa vibra quando ela sente um certo enternecimento, quando é alvo de um ato de bondade, ou quando tem uma condescendência com algo.

Mas coração é só isso?

Para os antigos, não era assim. Eles tomavam o coração como o órgão que nós conhecemos, que pulsa, que tem aurículas, ventrículos, faz sístoles e diástoles, e em razão de cujo funcionamento — uns mais solidamente na sua jovem idade, outros mais precariamente nas idades avançadas — todos estamos vivos. Mas coração significava para eles algo mais. Era o conjunto das coisas que o homem vê, ama e guarda na sua mente, por assim dizer, como se fossem “slides”, porque lhe falaram mais.

A palavra coração representa esse conjunto de coisas enquanto amadas pelo homem com um amor que não é apenas uma conaturalidade ou uma simpatia, mas é um ato racional. As coisas que foram julgadas segundo certa doutrina verdadeira — que é o ponto de referência de tudo — e foram encontradas conformes a essa doutrina, e, por isso mesmo, amadas. A sensibilidade é um eco harmonioso, delicado e nobre, desse amor. Mas, é preciso ter compreendido bem e ter chegado bem até ao fim no julgamento, para amar inteiramente. É necessario compreender até ao fundo, para admirar e amar de corpo inteiro, de coração inteiro.

O coração do católico. O Coração de Jesus

O coração do católico representa, nesse sentido, a mentalidade dele, que inclui a sua sensibilidade, mas indica sobretudo aquilo que — estando de acordo com a doutrina católica, apostólica, romana — ele conhece pela Fé como verdadeiro. Aquilo que ele ama acima de tudo e toma como uma “linha rectrix” de todas as outras coisas, porque é conforme à verdade verdadeiríssima, à verdade soberana, à verdade padrão, segundo a qual todas as outras verdades são de fato verdades, e contra a qual todas as aparências de verdade não são senão erros enganosos.

Em todo caso, tendo já como pressuposto que o coração é o símbolo da mentalidade, nós podemos nos perguntar como era a mentalidade de Nosso Senhor Jesus Cristo. É um tema audacioso, é uma navegação tão alta que o homem tem medo de chegar até lá. Mas, de outro lado, esse ar atrai. Quanto mais alto se voa nele, mais se tem vontade de subir, e medo de ser obrigado a descer. É o contrário da aviação terrena.

O que nos é dado entrever daquilo que seria a mentalidade de Nosso Senhor Jesus Cristo em algum de seus aspectos?

Devemos considerar essa mentalidade muito mais na sua Humanidade Santíssima do que na sua Divindade. Nesta última, o tema subiria tanto que não seria fácil, pelo menos a um leigo, tratar da questão. Mas a Humanidade santíssima d’Ele está mais perto de nós. Um “perto” cuja distância vai de uma ponta a outra do universo, porque a perfeição d’Ele não tem comparação com nada e com ninguém.

A Fé nos ensina que o Verbo se encarnou e habitou entre nós. A natureza humana d’Ele está ligada pela união hipostática à natureza divina. A Segunda Pessoa da Santíssima Trindade encarnou-se e desse acontecimento único resultou Nosso Senhor Jesus Cristo. Essa dualidade de naturezas numa só pessoa significa que a sua Humanidade santíssima tinha com a Divindade um contacto mais íntimo que que teria com Deus o Santo mais perfeito.

Mistérios da união hipostática

Essa união, porém, não deixa de ter aspectos misteriosos para nós. Por exemplo, na Oração do Horto das Oliveiras, parece que a natureza humana de Jesus teve uma como que treva, uma como que noite escura, em relação à natureza divina, de maneira que Ele se sentiu abandonado e rezou:

— Meu Pai, se for possível afaste-se de Mim este cálice.

E veio um Anjo que o consolou, e Ele se reanimou.

Também, no alto da Cruz, Ele teve uma exclamação que parece lançar uma luz especial sobre o mistério das relações entre a sua natureza humana e a natureza divina. Ele bradou:

—Meu Pai, meu Pai, porque Me abandonastes?

É verdade que este é o primeiro versículo de um salmo que prenuncia a sua vitória, e, recitando-o, afirmava que ia ressuscitar. Mas, de qualquer forma, havia ali um brado de abandono.

Foi tão grande esse abandono que pouco depois Ele disse: “Consummatum est!” E entregou o seu Espírito.

Os senhores estão vendo, por aí, que havia mistérios, havia dores e padecimentos nesta humana natureza tão ligada à natureza divina. E como nesta vida há uma certa proporção entre os sofrimentos e as alegrias, que tremendos padecimentos devem ter sido os d’Ele, uma vez que devem ter sido tão extraordinárias suas alegrias! Os senhores podem imaginar, numa alma unida a Deus, formando com Deus uma só Pessoa, a alegria que isso pode dar! Nenhum Anjo do Céu tem essa alegria! Ele tinha e tem no Céu. Mas, de outro lado, se há uma proporção das alegrias com as dores, que dores, e que dores, e que dores Ele deveria sofrer!

“Tudo está consumado”: a dor do inexplicável

Poucas coisas fazem sofrer tanto o homem quanto a dor do inexplicável. Quando ele tem explicação para a sua dor, ele sofre menos. Mas, quando a dor é inexplicável e cai sobre ele como algo que ele não entende… Não é porque ele queira tomar satisfações de Deus, mas é que do não-entender lhe vem o medo de que aquilo seja um castigo por alguma culpa, que aquilo seja algo fora dos desígnios divinos.

Nosso Senhor não podia ter culpa, e Ele sabia disso, e nada para ele era inexplicável. Porém, que misteriosos sofrimentos Ele teve? Nós não o sabemos. Só sabemos uma coisa: é que Ele passou pelos tormentos mais pasmosos que jamais um ser tenha padecido na História. Esses sofrimentos de alma eram tão extraordinários que deixariam qualquer homem com a saúde arrasada em poucas horas: poderiam sobrevir enfartes, derrames cerebrais, e tudo o que os senhores possam imaginar. Ele aguentou até o fim, e seu último ato foi um ato de lucidez: “Consummatum est — Tudo está consumado”.

Depois de criar o universo, Deus o viu em seu conjunto e considerou que cada coisa era bela, boa e verdadeira, mas que o conjunto era mais belo do que cada uma das coisas em particular. Tem-se a impressão de que Nosso Senhor Jesus Cristo, ao morrer, considerou tudo o que sofreu e viu que tinha sofrido tudo o que devia padecer, e que era uma beleza, uma torrente de sangue e de dores, como nenhum oceano poderia conter. A última gota de sangue estava derramada, a última dor, a mais inexplicável, a mais pungente, estava sofrida. Estava tudo pronto. Ele contemplou a formosura deste horror e disse: “Está tudo oferecido pela Redenção do gênero humano: “Consummatum est”. Eu sofri tudo o que tinha que sofrer, e tudo o que se pode sofrer, Eu sofri de maneira a minha tarefa redentora estar inteiramente pronta: “Consummatum est”. Só me falta o último lance, que é a separação da alma do corpo. Depois disso, cessarei de sofrer. Mas esse último lance, Eu ainda tenho que dar: morrerei!”

E morreu… Que coisa maravilhosa! Com que sensibilidade, mas com que compreensão profunda de sua missão, com que força e continuidade Ele sofreu aquilo tudo! É algo que não se pode medir suficientemente.

Harmonia de perfeições

Ora, devemos imaginar o Homem Deus com todas essas forças e grandezas implícitas na alma, imaginá-Lo assim, vivendo os vários aspectos de sua vida terrena.

Por exemplo, quando Ele acariciou as crianças que vieram falar com Ele e disse: “Deixai vir a Mim os pequeninos, porque deles é o Reino do Céu”. Os senhores estão vendo o afeto, a bondade, a doçura… Não há homem de qualquer idade que vendo-O dizer: “Deixai vir a Mim os pequeninos”, não pense: “Bem, então há um lugarzinho para mim também, por mais que eu seja um pequenino, porque, em comparação com Ele, todo mundo é pequenino. Eu vou me aproximar”.

Que doçura nessas palavras! Essa é a suavidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, o qual era ao mesmo tempo tão forte e, no sentido mais sublime da palavra, tão decidido. Resolveu sofrer, sofreu até ao fim e até ao ápice tudo, e de bom grado, sem excluir nada. Tão terrível e tão misericordioso, a ponto de dirigir-se ao bom ladrão e fazer a primeira canonização na Igreja Católica:

— Tu hoje estarás comigo no Paraíso.

Os senhores podem imaginar como o bom ladrão se sentiu reconfortado e animado com essa promessa. Ficasse com inveja dele. Cada um de nós que, na hora da morte, ouvisse essas palavras: “Hoje estarás comigo no Paraíso”, se levantaria da cama para glorificar a Deus e dizer: “Mas então, Senhor, o que esperais? Vamos! Vamos, levai-me!”

Mas como pode uma alma humana compor esses quadros de conjunto, de maneira a, quando vir Nosso Senhor expulsando os vendilhões do templo, pensar n’Ele acariciando uma criancinha ou contando a parábola do Bom Samaritano; imaginá-Lo, com uma bondade indizível, curando este, aquele, e aquele outro, espargindo em torno de Si alegria, consolação, tranqüilidade, saúde; pensar n’Ele encantando os Apóstolos que O ouviam enlevadíssimos?

Como conjugar essas duas visões: Ele tão forte, tão incomparável, tão único, e, ao mesmo tempo, tão misericordioso e tão acessível aos pequeninos?

É preciso lembrar-se d’Ele como está no Santo Sudário, e aí se compreenderá como Ele era, no sentido mais nobre da palavra, o atleta de Deus, o herói de Deus! Siegfrid, Lohengrin, toda espécie de “heróis” dessa ordem, sublimados por Wagner, aqueles homens da mitologia antiga, tudo isso é quinquilharia em comparação com o Varão do Santo Sudário!

Como imaginar no Menino Jesus, apenas nascido em Belém, como imaginar que nessa Criança, cuja alma contém todas as canduras e inocências imagináveis e excogitáveis, estava o Herói que iria sofrer de maneira a impressionar os homens até ao fim do mundo?!

N’Ele todas essas perfeições se ajustavam de maneira a não se poder compreender. Ele é muito maior do que o campo de nossa visão. Ele é uma maravilha que, ou nós O consideramos por partes, ou não O conseguimos considerar.

Adorar todas as perfeições do Sagrado Coração de Jesus

Cada um adora Nosso Senhor como foi chamado a adorá-Lo. Como sou eu quem está falando, tenho de dizer o que me vai na alma. É meu modo de ser.

Eu nunca me contentaria de adorar só um desses aspectos sem procurar reuni-lo a todos os outros e, ao

menos muito sumariamente, fazer a ideia de como seria o conjunto. Eu tenho a impressão de que, se eu O conhecesse nesta vida terrena, uma das coisas que eu mais gostaria era de admirar e de adorar as transições de estados de espírito d’Ele, o como Ele passava de uma disposição para outra. De modo que eu pudesse compreender como é que uma disposição se encaixava na outra. E nessas transições, adorar a harmonia desses estados de espírito tão diversos. Parece-me que, com isso, o meu desejo das correlações, das reversibilidades e das harmonias, das ordenações em tudo, encontraria algo que o saciasse.

Há no teto da igreja do Coração de Jesus, em São Paulo, um afresco que é uma pintura boa, ao estilo do século

XIX. Esses quadros habituais de Nosso Senhor, muito respeitáveis e veneráveis, satisfazem muito a piedade, mas em geral fixam a atenção do homem num determinado estado de espírito de Nosso Senhor. Nos quadros do Sagrado Coração de Jesus, os autores fixam sempre — e a justo título, muito fundadamente — a sua misericórdia infinita. Mas a sua misericórdia infinita era só uma de suas perfeições. Não podemos sustentar que Ele não tinha outras perfeições, uma vez que Ele as tinha todas.

Como é belo esse afresco! Como é ótimo, como me tem feito bem ao longo de minha vida! Mas eu gostaria que outros quadros pintassem Jesus em outros estados de espírito.

Por exemplo, Ele meditando. O olhar absorvido, enlevado e contemplativo d’Ele, sozinho no deserto, durante quarenta dias de jejum. Gostaria de imaginá-Lo junto de uma pedra, no deserto árido, ou com uma vegetaçãozinha ordinária e muito rasteira, que seria o contrário da sublimidade da cena. Ou com uma bonita areia que se estende ao longe. No fundo, um pôr-de-sol em brasa e seu divino perfil se recortando sobre ele… Jesus meditando e orando. Portanto, sua natureza humana, por assim dizer, fazendo filosofia e teologia. Como é que seria a sua expressão fisionômica nessas ocasiões?

Se Ele já se tinha deleitado na contemplação do universo, quanto mais se deleitaria na contemplação daquilo que é mais do que todo o universo, Nossa Senhora! Gostaria de imaginá-Lo, então, na sua Humanidade e na sua Divindade juntas, olhando para dentro dos olhos de Nossa Senhora. Ela, enlevadíssima, num êxtase altíssimo. E Ele, enquanto Deus, pensando: “A minha obra-prima!”; e enquanto Filho e Homem pensando: “Minha Mãe! Que perfeição!”

O que um de nós daria para estar do lado de fora da porta e olhar pelo buraco da fechadura? Se nos exigissem como preço disso fazer qualquer sacrifício depois, nós faríamos. Morrer depois, não nos importaria! Ter visto essa cena e morrer… para que viver mais? E, de fato, me pergunto: haveria ânimo para viver, depois de ter visto isso? De que adiantaria, por exemplo, depois disso ver a beleza do mar? Eu gosto tanto do mar, mas depois de ter visto Maria, o que é ver o mar?…

Eis o Coração que amou tanto os homens!

Voltando àquele afresco da igreja do Coração de Jesus. Está Ele aparecendo a Santa Margarida Maria. O lugar da aparição está todo iluminado. Ele fala a ela com uma expressão de muita bondade, muito comprazimento, muita misericórdia. E ela está muito enlevada, naturalmente. A cena é ainda completada com as palavras tocantes de Jesus. Ele aponta o seu próprio Coração e lhe diz: “Eis aqui o Coração que tanto amou os homens e foi por eles tão pouco amado!”

Os senhores compreendem que é de cortar o coração! Que um tal Coração tenha amado tanto e tenha sido tão pouco amado, não se sabe o que dizer! Evidentemente, nós fomos amados por Ele muito mais do que nós O amamos, porque Ele é tão maior do que nós, que um ato de amor d’Ele deixa os nossos pobres amores muito atrás… Entretanto, o problema é que nós não O amamos até onde podemos, e era o que nós deveríamos fazer. Ele diz essas palavras com misericórdia e bondade. Mas eu gostaria de perceber ali todos os outros estados de espírito; gostaria de perceber essa correlação e de, por assim dizer, pela admiração, pela adoração — que é a palavra adequada quando se trata d’Ele — pela adesão, de algum modo tentar viver isso em mim. Enternecer-me como Ele, adorar como Ele, resistir como Ele, sofrer como Ele! Por que não?! Isso todos nós gostaríamos de fazer.

Uma coleção fabulosa

Se nós pudéssemos fazer uma coleção dos timbres de voz de Jesus ensinando como Mestre!… Ninguém foi mestre como Ele, que é o Divino Mestre! Explicando com clareza, com sabedoria, com profundidade, horizontes extraordinários, mas com uma simplicidade de desconcertar. Seu ensino é tão simples e, ao mesmo tempo, tão profundo! Santo Agostinho dizia que o ensinamento d’Ele era como um rio no qual um elefante se afogaria e um cordeiro passaria sem molhar senão os pés.

Como nós gostaríamos também de, por exemplo, colecionar os seus sucessivos olhares! Para não falar senão em dois : o olhar para São Pedro, que o converteu e o fez chorar a vida inteira, e um olhar para Nossa Senhora. Escolham o momento. Talvez o momento do último olhar nesta vida. Com certeza, antes de morrer, Eles trocaram um olhar em que transpareciam o carinho e a adoração da parte d’Ela, e o amor indizível, o apreço extraordinário e o carinho da parte d’Ele, ao se separarem.

Como seria a história de todos os seus olhares? E como seria o olhar d’Ele expulsando os vendilhões do Templo? Para Pilatos, desprezando toda a covardia do Procurador Romano? E o olhar de repreensão aguda e severa para Anás e Caifás?

Tudo isso era um reflexo do seu Coração. Esse Coração pulsou, ora com mais, ora com menos intensidade, ao longo de todos esses acontecimentos.

E por isso é belo pensar como a mente e o Coração d’Ele, numa união, viveram todos esses acontecimentos da sua vida terrena. Até ao fim do mundo haverá gente que adorará esses vários aspectos de Jesus.

Oração a fazer ao Sagrado Coração de Jesus

Que oração fazer a esse Divino Coração? Nós podemos repetir, olhando para Nosso Senhor crucificado, com seu Coração chagado pela lança do centurião, a jaculatória que está na Ladainha do Sagrado Coração de Jesus e que me encanta:

“Cor Jesu lancea perforatum, miserere nobis. — Coração de Jesus perfurado por uma lança”, tende compaixão de nós. Vós que levastes a pena de mim a ponto de quererdes que, depois de morto, vosso Coração ainda recebesse essa ferida, e que o resto de água misturado com sangue saísse de vosso lado por meu amor, tende pena de mim!”

E rezar também: “Anima Christi, sanctifica me. — Alma de Cristo, santificai-me”. Nada há de mais santo do que a Alma de Cristo… Que a Alma de Cristo, por assim dizer, toque em mim e me torne um Santo! Eu não quero outra coisa.

“Corpus Christi, salva me. — Corpo de Cristo, salvai-me. Sangue de Cristo inebriai-me. Água do lado de Cristo, lavai-me… e lavai-me mais ainda! Paixão de Cristo, dai-me forças. Olhai para minha miséria, minha moleza e minhas insuficiências. Dai-me força na luta contra os vossos inimigos. Ó Bom Jesus, ouvi-me, pelos rogos de Maria. Escondei-me nas vossas feridas. Cobri-me, com vossas feridas, da justa cólera do Padre Eterno. Na hora de minha morte, chamai-me e mandai-me ir para junto de Vós, para que Vos louve com os vossos Santos, com a Santa das Santas, por todos os séculos dos séculos. Amém.”

Meu filho, aprenda a sofrer!

O sofrimento, tão comum e tão evitado por todos os homens… Com a acuidade que lhe é própria, Dr. Plinio mostra como sofrer representa uma glória para o verdadeiro católico.

 

A dor é algo que não pode ser extinto da vida do homem. Para cada indivíduo ela se apresenta de uma maneira especial. Porém, há alguns sofrimentos que são comuns para todos: fazer os sacrifícios necessários para não pecar; não se limitar a evitar o pecado, mas crescer cada vez mais na virtude; salvar sua alma e também as almas dos outros.

Sobretudo para quem possui uma vocação especial como a nossa, a Providência tem a intenção de que salvemos certo número de almas. O esforço comum da organização à qual pertencemos deve visar salvar um número quase incontável delas, porque os males que há na civilização contemporânea são enormes, e muitas pessoas se perdem.

Assim, é preciso que nos ergamos contra a iniquidade praticada e lhe digamos como São João Batista: “Não te é permitido!”

É difícil calcular o número de pessoas que poderiam salvar-se caso tivéssemos a alma plena dessa convicção. Pois bem, nesse esforço comum cada um deve dar tudo o que recebeu da Providência para produzir o rendimento necessário. E isto significa carregar a cruz.

O ódio ao mal faz parte do amor a Deus

É preciso evitar o pecado, porém não apenas cumprindo este ou aquele Mandamento isoladamente; devemos, acima de tudo, amar a Deus sobre todas as coisas.

Ama-se a Deus desejando tudo aquilo que é conforme a Ele, e odiando tudo aquilo que se Lhe opõe. Por exemplo, considerando a Paixão, deve-se adorar Nosso Senhor Jesus Cristo na perfeição moral indizível, divina, que Ele manifestou ao sofrer tudo aquilo. E também encher-se de indignação contra os que O ofenderam.

Um indivíduo que fique com muita pena de Nosso Senhor, mas não se indigne contra quem praticou aquele mal, é um hipócrita e está mentindo. Porque se vejo uma pessoa praticar um crime e tenho muita pena da vítima, mas não tenho indignação contra o criminoso, estou querendo mentir a mim mesmo.

Até o rompimento com uma amizade má pode representar uma cruz

Por mais duro que seja, caso eu tenha uma amizade que me conduz ao pecado, devo romper com ela inteiramente. Neste caso, não posso fazer um rompimento leve, distanciando-me aos poucos. A ruptura precisa ser completa, porque, ou evito meticulosamente tudo quanto me leva para o mal, ou, no fundo, estou à procura do caminho da perdição.

E é um sofrimento a alma adquirir uma têmpera tão forte, que olha de frente cada dificuldade dessas e diz inexoravelmente “não” ao pecado! E realiza o sacrifício já, por inteiro e definitivamente.

Um sacrifício que se faz arrastando: Devo romper com tal amigo, mas não o faço hoje e deixo para a semana seguinte. Faço depois uma ruptura incompleta e dentro em breve encontro-me com ele num bar, num ônibus, e aquela relação péssima se refaz, e a tentação continua. Isto não vale nada. É preciso dizer que rompeu de vez; se não tem pretexto, é sem pretexto. Isso significa cruz, porque muitas vezes é dificílimo fazê-lo, mas devemos imitar nosso Divino Salvador que tomou a sua Cruz e foi para frente. Assim, preciso romper e não mais olhar para trás, de tal modo que nem me lembre mais daquilo; é um episódio de minha vida que se apagou.

Mas se eu lembrar um pouquinho, quando menos eu esperar, em casa de um parente que vou visitar ou em qualquer outra circunstância, lá está ele; e aquilo tudo renasce. Quer dizer, há certas coisas que devem ser extirpadas como um câncer: arranca-se de uma vez só, senão ele volta e todo o drama se reapresenta.

A gloriosa falange dos esquecidos por amor a Deus

Há outras coisas às quais se deve renunciar. A pessoa forma na vida tantos sonhos aos quais tem apego: gostaria de ser isto, aquilo, aquilo outro. Porém, aparece o jogo das circunstâncias na vida e a salvação eterna pede que ela não seja nada daquilo, mas tome outro caminho.

Por exemplo, um jovem imagina ser locutor de rádio porque nos círculos dele se considera isso uma maravilha. Ele já sonhou cem vezes falando no rádio e alcançando sucesso: o povo o espera para aplaudi-lo; quatro ou cinco pessoas disputam quem vai conduzi-lo de automóvel para casa; um outro grupo de indivíduos se oferece para levá-lo a uma confeitaria para comer coisas saborosas; todos querem falar com ele, julgando-o genial. Caso ele passe a fazer parte de algum movimento religioso e tenha de renunciar à carreira que almejava, certamente não vai obter o sucesso esperado anteriormente. Ele fará parte da gloriosa falange dos esquecidos. Neste caso ele, então, deve dizer: “Eu quero ser empurrado de lado, com Nosso Senhor Jesus Cristo. Aceito qualquer coisa, contanto que eu siga o Redentor.”

Combati o bom combate

Como isso é difícil! Em nossa vida, desde a infância até a ancianidade, quantas e quantas vezes circunstâncias análogas se apresentam, tendo como causa apenas o fato de sermos católicos, apostólicos, romanos, leais e fiéis, difundirmos aquilo que temos a vocação de difundir.

Assim, quando morrermos, poderemos dizer como São Paulo: “Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé. Resta-me agora receber a coroa da justiça, que o Senhor, justo Juiz, me dará naquele dia”.

Segundo uma lindíssima tradição, ou lenda, com o grande Apóstolo — que, a bem dizer, converteu toda a bacia do Mediterrâneo, da qual depois se irradiou para o mundo a Igreja Católica e a Civilização Cristã — aconteceu o seguinte: levaram-no para junto a um tronco de árvore para ser decapitado com um gládio; ele se ajoelhou, a espada bateu com todo o vigor e sua cabeça rolou longe, pulando três vezes no solo, e dali nasceram três fontes. Tais fontes mostram a santidade de São Paulo e a divindade da Igreja. Até depois de morto, sua cabeça abriu fontes de água viva. Para trilharmos o caminho da santidade é preciso ter muita resolução de sofrer.

Às vezes, a Providência dispõe que infortúnios de outra natureza caiam sobre nós: uma doença, uma calúnia, etc.

Nosso Senhor Jesus Cristo disse que não cai um pássaro de uma árvore, nem um fio de cabelo de nossa cabeça sem que Ele saiba e queira. Se eu fui atingido assim, Jesus quis; se Ele quis, eu quero, assumo esse sofrimento até o fim.

A quem Deus ama, permite o sofrimento

Isto supõe uma lógica, uma coerência a toda prova. Não basta entender ser necessário o sofrimento; devo efetivamente sofrer o que está no meu caminho. E sem ter surpresa, porque preciso estar preparado. Não devo ter a ideia: “Quem sabe se eu escapo com um jeitinho, e Deus não me peça o sofrimento!” Porque se Ele não me enviar a dor, é sinal de que não me ama.

É claro, pois a cruz é uma honra, um sinal de predileção, que Nosso Senhor dá para os seus prediletos. As almas a quem Ele não faz sofrer são aquelas que preferem seguir as vias cujo termo final é o inferno.

Deus, na sua justiça infinita, dispõe que o pecador seja mais feliz na Terra do que quem vive virtuosamente. Isso parece um absurdo: o Criador não deve amar mais aqueles que são virtuosos? Amando mais os virtuosos, não é natural que Ele lhes dê mais felicidade?

Não, por uma razão muito simples: os sofrimentos da alma após a morte são muito maiores do que os havidos durante a vida. Enquanto se está vivo, pode-se sofrer muito, mas isso não é comparável às chamas do purgatório! E uma alma pode ficar um tempo indefinido dentro do purgatório, queimando! E a queimadura da alma dói muito mais do que a do corpo! Não nos deixemos levar pelo seguinte sofisma: “O purgatório, em última análise, queima a alma, mas não o corpo, o que seria pior”. A alma nos é muito mais interna do que o corpo. De maneira que meu eu é muito mais atingido por um fogo que queima a alma do que por chamas que queimam o corpo.

É algo misterioso que a alma, sendo espírito, entretanto pode ser atingida pelo fogo e por isso sofrer terrivelmente. E para poupar os bons das chamas do purgatório — já não falo do terrível fogo do inferno —, a Providência manda-lhes sofrimentos muito grandes nesta Terra para punir os males que praticam: pecados veniais, às vezes mortais já perdoados. Quando morrem, Deus lhes abre os braços e eles vão para o Céu diretamente.

Deve causar-nos alívio a ideia de que nossos sofrimentos obtêm a expiação dos nossos defeitos e, ao mesmo tempo, nos abre diretamente a glória do Céu. Algumas almas morrem já na alegria do Paraíso, sorriem, têm visões sobre a felicidade eterna. É que tudo já foi sofrido, a dívida está paga, e elas entram no banquete eterno do Céu.

Também os inocentes são chamados ao sofrimento

Há pessoas especialmente amadas por Deus a quem Ele pede uma coisa especial. O Homem-Deus, sendo a própria inocência, sofreu para expiar os pecados do mundo. E a Ele se reza: “Agnus Dei, qui tollis peccata mundi, miserere nobis — Cordeiro de Deus, que tirais o pecado do mundo, tende piedade de nós”. Deus, para salvar certas almas que estão se perdendo, a fim de obter certas vitórias para a sua Igreja, quer não apenas o sofrimento do pecador.

O Redentor bate à porta de certas almas, dizendo: “Meu filho, tua alma é inocente; Eu a preservei até agora do pecado, e tu correspondestes à minha graça. Como Eu te amo, meu filho, quero de ti esta pedra preciosa que é o sofrimento do inocente; quero de presente um grande rubi, teu sangue não do corpo, mas da alma. Aceitas isso, ó meu filho inocente?”

Às vezes é para ganhar uma só alma, mas a partir desta Deus quer salvar muitas outras. E a alma inocente, que não é mole — inocente e mole são coisas contraditórias; o mole não é inocente, e o inocente não é mole —, a alma rija aceita e diz: “Senhor, quero sofrer por Vós. Não tenho palavras para Vos agradecer a inocência com que me preservastes. Além de sofrer como inocente, peço-Vos padecer tudo quanto queirais, de maneira que, quando cerrar meus olhos, eu possa dizer: Sofri tudo quanto Deus queria de mim, o cálice das dores eu o bebi até o fim, não hesitei, e o fiz em goles grandes e generosos. Cumpri vossa vontade. No Céu Vós me direis qual é o bem que quisestes fazer por meu intermédio.”

Os sofrimentos de Santa Teresinha do Menino Jesus

Lembro-me de fatos da vida de santos que são verdadeiramente desconcertantes nesse sentido. Um exemplo: Santa Teresinha do Menino Jesus. Desde muito cedo a alma dela, inocentíssima, foi convidada pela graça para sofrer pelo amor de Deus. Ela entrou para o Carmelo de sua cidade, Lisieux, e tinha um desejo ardente de morrer o quanto antes pelo Redentor.

De fato, ela teve que sofrer bastante no Carmelo…

Num convento carmelita, lugar onde as freiras são inteiramente dependentes de sua superiora, Santa Teresinha teve uma que, em vez de dar o exemplo de todas as virtudes, deixava muito a desejar… Para se ter ideia das coisas que fazia a superiora, cito apenas um exemplo: ela possuía um gato, e a freira que quisesse obter uma licença, um ato de misericórdia da superiora, deveria tratar bem o gato dela.

Além disso, a superiora era muito mundana e vivia recebendo visitas da pequena sociedade de Lisieux. Estas pessoas vinham contar-lhe coisas como as seguintes: Fulana brigou com a amiga; uma outra ficou noiva; uma terceira rompeu o noivado… E a superiora se intrometia para resolver esses casos. À noite, ela reunia as freiras para narrar-lhes tais acontecidos.

Nesse ambiente, as freiras não compreenderam a santidade de Santa Teresinha, nem o esplendor de sua pessoa.

Ela era de uma bondade celestial para com todos, sobretudo para as noviças, das quais foi nomeada mestra. Durante todo o tempo de sua vida no convento, fecharam os olhos para a sua virtude, exceto uma noviça que certa vez ajoelhou-se diante dela e disse: “Irmã Teresa do Menino Jesus, eu vos peço: rezai por mim, porque um dia vós sereis uma grande santa e todo o mundo dirá: Santa Teresa do Menino Jesus, rogai por nós. E eu me antecipo e digo: Ó grande Santa Teresa do Menino de Jesus, rogai por mim”.

Certa noite, Santa Teresinha expeliu sangue pela boca; era o sinal da tuberculose, doença naquele tempo considerada gravíssima, com muito menos possibilidade de cura do que hoje.

Chegou o dia de sua morte. Há muito tempo, Santa Teresinha não podia mais se mover, e uma pessoa que estava em seu quarto viu-a, em certo momento, erguer seu tronco e, com ar transfigurado de alegria, ela disse “Ó meu Deus!” Era uma última consolação de Deus, que lhe poupava o último instante de dor. Em seguida, caiu morta e um perfume de violeta espalhou-se por todo o convento.

Ela praticara a humildade na perfeição, e a violeta é o símbolo dessa virtude. Até mesmo a superiora, que não gostava de Santa Teresinha, foi beijar os pés do cadáver; a alma dela já estava no Céu.

Isto é sofrer até o fim. E cada um de nós, em relação aos sofrimentos que nos estão destinados, deve, por meio de Maria Santíssima, pedir a Nosso Senhor Jesus Cristo a graça que o Divino Salvador implorou no Horto das Oliveiras: “Meu Deus, se for possível, sejam diminuídos esses sofrimentos, mas faça-se a vossa vontade e não a minha”.

Roguemos a Nossa Senhora a graça de padecermos tudo quanto for inevitável, e de sofrermos até o fim, com coragem e decisão. Se assim caminharmos com passo decidido e forte, entraremos no Céu onde os anjos e os santos nos receberão.

Nossa fidelidade pode estar sendo sustentada por uma vítima expiatória

Em certo momento de minha infância, já entrando na adolescência, o peso da fidelidade me foi tão grande que muitas vezes cambaleei, não no sentido de que hesitasse em sair do bom caminho, mas eu percebia que as minhas forças não eram suficientes. Porém, na hora “H” essas energias se espichavam e eu conseguia mais um pouquinho e ia para frente, e assim cheguei até os 81 anos.

É possível que esta fidelidade tenha sido conseguida por alguma alma que tenha resolvido sofrer muito por mim. Lembro-me de que, com frequência, eu via nas igrejas uma mulher baixinha, com um cabelo preto liso e não muito abundante, bem penteado, com uma risca ao meio. Era pobre, mas muito limpa, com uns trajes comuns de mulher do povo. Porém ela não tinha nariz, e usava um pano que dava toda a volta na cabeça para tapar a hediondez do buraco no meio da face.

Ela andava depressa, em geral carregando diversos pacotes e um guarda-chuva. Via-se que ela tomava muito cuidado com a chuva — no clima de São Paulo é compreensível. Estava sempre com a fisionomia alegre e atraía os olhos de todo o mundo que passava, porque para uma mulher sem nariz olha-se ainda que não se queira.

Eu muitas vezes pensava: “Quem sabe se essa mulher — e eu notava que ela passava perto de mim e me fixava — está oferecendo por mim essa humilhação de não ter nariz, e todos os incômodos daí decorrentes. Certamente no Céu eu lhe agradecerei muita coisa, pois — caso ele tenha de fato feito tal oferecimento — eu seria um pernibambo se não fosse ela”.

Ela me olhava, mas poderia adivinhar que daquele moço nasceria nosso Movimento? E se essa pobre mulher ofereceu seu sacrifício nesse sentido — ela era bem mais velha do que eu, e deve ter morrido —, podemos imaginar a glória dela no Céu, ouvindo-me falar isto?

Aquele que se dedica à salvação do próximo, sofrendo como deve, em certo momento receberá uma glória indizível, porque quem salva seu irmão, salva sua própria alma e brilhará no Céu como um sol por toda a eternidade. Por uma alma! O que dizer de nosso Movimento que ajuda a salvar tantas almas em tantos lugares e frear a Revolução, para que venha ao mundo o Reino de Maria!

 A glória do sofrimento

É claro que na vida de um católico nem tudo é sofrimento; existem momentos de alegria. Porém precisamos nos habituar à ideia de que em certas etapas da existência há sofrimentos, sofrimentos e mais sofrimentos. Saibamos carregá-los, pois a glória de alguém não consiste em ser grande homem, mas grande sofredor. Sendo grande sofredor, será grande batalhador. E se for grande batalhador vencerá para conquistar o Céu. É isso que cada um de nós deve fazer.

 

(Extraído de conferência de 7/4/1989)

 

 

 

Como obter indulgências durante o Tríduo Pascal?

Durante o tríduo pascal, constituído pela Quinta-feira Santa, Sexta-feira Santa e Sábado de Aleluia, os fiéis vivem o mistério central da Fé Cristã da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo; um tempo que também traz inumeráveis graças para os fiéis através das indulgências e seguindo simples condições.

Assim se pode obter a Indulgência Plenária durante o Tríduo Pascal:

Quinta-feira Santa

Neste dia se revive a Instituição da Eucaristia, tem lugar uma Missa comemorativa da Última Ceia de Nosso Senhor Jesus Cristo, com o lava-pés, se celebra a Ordem Sacerdotal e o “Mandamento do Amor”, que é a própria Eucaristia.

É possível ganhar a indulgência plenária se, após a Missa da Ceia do Senhor, se rezar piedosamente o hino eucarístico ‘Tantum ergo”, escrito por São Tomás de Aquino:

“Tantum ergo Sacramentum

Veneremur cernui:

Et antiquum documentum

Novo cedat ritui:

Præstet fides supplementum

Sensuum defectui.

Genitori, Genitoque

Laus et jubilatio,

Salus, honor, virtus quoque

Sit et benedictio:

Procedenti ab utroque

Compar sit laudatio.

Amen.”

***

Tão sublime Sacramento,

adoremos neste altar,

Pois o Antigo Testamento

deu ao Novo seu lugar.

Venha à fé por suplemento

os sentidos completar.

Ao eterno Pai cantemos

e a Jesus, o Salvador.

Ao Espírito exaltemos,

na Trindade eterno amor.

Ao Deus uno e trino demos

a alegria do louvor. Amém.

Também é possível obter a indulgência plenária se neste dia se visita por espaço de meia hora o Santíssimo Sacramento que tenha sido reservado no monumento Eucarístico.

Sexta-feira Santa

Na Sexta-feira Santa se comemora a Paixão e Morte de Jesus. Tem lugar a celebração da Paixão do Senhor com a adoração da Cruz, ato litúrgico que não se realiza com Eucaristia.

Neste dia se concede indulgência plenária aos fiéis cristãos que assistam piedosamente a adoração da Cruz na solene ação litúrgica.

Também se pode ganhar a indulgência se se realizar o exercício piedoso da Via Sacra diante das estações legitimamente estabelecidas e meditando a Paixão e Morte de Jesus Cristo.

Sábado Santo

Durante o Sábado Santo não há celebrações litúrgicas até a Vigília Pascal. É um dia de grande silêncio, para intensificar a oração em memória da morte de Cristo e acompanhar Nossa Senhora em sua dor. Se concede indulgência plenária quando duas ou mais pessoas rezam juntos o Santo Rosário.

Vigília Pascal

Esta é a celebração mais importante do ano litúrgico e dos fiéis cristãos, já que se faz memória da Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo. A Vigília ocorre na noite do sábado, e, em alguns lugares, se estende até o amanhecer do Domingo da Ressurreição.

Os fiéis podem obter a indulgência plenária se participarem na celebração da Vigília Pascal e renovarem nela as promessas batismais.

Condições da indulgência

Para que os fiéis ganhem a indulgência plenária é necessário ter em conta várias condições: exclusão de todo afeto para qualquer pecado, inclusive o venial; confissão sacramental, comunhão Eucarística e orar pelas intenções do Santo Padre.

As condições podem ser cumpridas alguns dias antes ou depois da ação para ganhar a indulgência, mas se recomenda que a comunhão e a oração pelo Sumo Pontífice ocorram no mesmo dia.

Toda indulgência plenária pode ser obtida somente uma vez por dia e pode ser aplicada aos fiéis defuntos.

 

João Sérgio Guimarães

Atitudes erradas em face dos “slogans” da Revolução

Reafirmando a necessidade de se combater a Revolução como esta age em concreto junto à opinião pública, Dr. Plinio alerta os contra-revolucionários sobre o triste equívoco de se apresentarem sob uma luz “simpática e positiva”, esquivando-se de atacar o adversário. Com essa atitude, adverte-os, a Contra-Revolução só tende a perder em conteúdo e dinamismo.

 

O mais importante para combater a Revolução é ler muitos livros?

“O esforço contra-revolucionário não deve ser livresco, isto é, não pode contentar-se com uma dialética com a Revolução no plano puramente científico e universitário.  Reconhecendo a esse plano toda a sua grande e até muito grande importância, o ponto de mira habitual da Contra-Revolução deve ser a Revolução tal qual ela é pensada, sentida e vivida pela opinião pública em seu conjunto.  E neste sentido os contra-revolucionários devem atribuir uma importância muito particular à refutação dos ‘slogans’ revolucionários” (p. 119).

Sem polêmica, diminui a reação contra-revolucionária

Não seria mais eficaz eliminar os aspectos polêmicos da ação contra-revolucionária?

“A ideia de apresentar a Contra-Revolução sob uma luz mais ‘simpática’ e ‘positiva’, fazendo com que ela não ataque a Revolução, é o que pode haver de mais tristemente eficiente para empobrecê-la de conteúdo e de dinamismo” (p. 119).

Poderia desenvolver este ponto?

“Quem agisse segundo essa lamentável tática mostraria a mesma falta de senso de um chefe de Estado que, em face de tropas inimigas que transpõem a fronteira, fizesse cessar toda resistência armada, com o intuito de cativar a simpatia do invasor e, assim, paralisá-lo.  Na realidade, ele anularia o ímpeto da reação, sem deter o inimigo.  Isto é, entregaria a pátria…” (p. 120).

O exemplo do Divino Mestre

Mas às vezes não é necessário empregar uma linguagem matizada?

“Não quer isto dizer que a linguagem do contra-revolucionário não seja matizada segundo as circunstâncias.

“O Divino Mestre, pregando na Judeia, que estava sob a ação próxima dos pérfidos fariseus, usou de uma linguagem candente. Na Galileia, pelo contrário, onde predominava o povo simples e era menor a influência dos fariseus, sua linguagem tinha um tom mais docente e menos polêmico” (p. 120)(1).  v

 

1) Para todas as citações: Revolução e Contra-Revolução, Editora Retornarei, São Paulo, 2002, 5ª edição em português.

 

Os “Exercícios Espirituais”, programa de santificação

Na seqüência de sua exposição sobre a Companhia de Jesus, durante as celebrações do IV centenário desta instituição, Dr. Plinio salienta a primordial característica dos “Exercícios Espirituais” de Santo Inácio de Loyola: constituem eles, não um meio para simplesmente nos corrigirmos de um defeito ou adquirirmos uma virtude, mas um programa de reforma total do homem para durar a vida inteira.

 

Não é difícil perceber que o cumprimento dessa altíssima tarefa [para a qual o jesuíta é chamado] requer raro equilíbrio de inteligência, vontade e sensibilidade.

Inteligência sutil, vontade enérgica, amor ilimitado a Deus

Dotado de uma inteligência particularmente sutil e penetrante, o jesuíta precisará saber ler, não apenas nas linhas, mas também nas entrelinhas, discernindo e apontando os pensamentos subjacentes, as conclusões necessárias dos princípios de cada autor, ainda mesmo que este não os tenha explicitamente enunciado; as idéias recônditas dos políticos e as intenções veladas dos diplomatas. Munido de um espírito de observação finíssimo, deverá o jesuíta ter uma visão bastante clara e serena da realidade, para aplicar efetivamente e a fundo, os princípios doutrinários na ordem prática. Favorecido por uma vontade especialmente enérgica, deverá ser bastante equilibrado para jamais presumir de suas forças e tentar o impossível, se bem que nunca subestime suas energias, e deixe de tirar delas o proveito que, para a glória de Deus, seria de esperar. Olhos postos em Deus, só d’Ele esperará auxílio. Mas, voltados para si, empenhar-se-á como se só da aplicação total de suas forças lhe pudesse vir a vitória.

Claro, essa tarefa não é própria aos temperamentos comuns, para as inteligências banais, para os homens sem fibra. O fundo de toda esta enumeração de deveres supõe um total desprendimento das criaturas e um amor sem limites a Deus, uma grandeza de alma e um equilíbrio os quais somente serão obtidos pela intransigente fidelidade à vontade divina — o que se alcança pela graça.

Perfeito equilíbrio dos afetos

De fato, para ser fiel a essa altíssima missão, não basta ao jesuíta que tenha desterrado de si todos os afetos ilegítimos. Cumpre que de seu espírito esteja ainda banida toda e qualquer complacência para com os mil matizes em que o erro se dilui, para penetrar nas almas crentes. A aversão declarada e militante aos erros que se parecem com verdades, a proscrição dos mil artifícios pelos quais se enunciam certas verdades, dando-lhes ares e tons de erro para cortejar e atrair o adversário, tudo isto é essencial ao jesuíta.

Por essa razão se exige também que, em sua alma, a ordem dos afetos legítimos seja perfeita, e saiba amar tudo em Deus e só por Deus. Por pouco que nele se empalideça a noção da hierarquia dos valores, se obnubile a idéia de que tudo lhe será lícito somente quando Deus for a causa e o termo de seu amor, tornar-se-á um homem relativa ou inteiramente aleijado para o cumprimento de sua especialíssima e excelsa missão.

De um pequeno erro, uma negligência insignificante cometidos de modo consciente neste terreno, quantas e quantas catástrofes podem originar-se!

Evidentemente, essa missão não poderia ser assegurada sem que a Companhia de Jesus tivesse — como garantia da continuidade de seu espírito — elementos para se certificar de que ela era sempre realizável em seus membros.

Daí a ascética de Santo Inácio.

Inestimável valor dos Exercícios Espirituais

A suprema garantia dessa grande obra está, evidentemente, em Nosso Senhor, sem cuja graça vivificadora e santificadora os homens não podem produzir frutos de salvação. Mas aprouve a Deus dotar a Companhia de Jesus de um meio humano que, constantemente fecundado pela graça, asseguraria a continuidade e autenticidade de seu espírito. Este instrumento são os Exercícios Espiri­tuais de Santo Inácio de Loyola, livro pequeno, mas de ouro, o qual, conforme muito bem disse o Revmo. Pe. J. de Guibert, na Revue D’Ascetique et de Mystique, contém toda a espiritualidade da Companhia de Jesus.

Os Exercícios Espirituais de Santo Inácio não são um meio para simplesmente nos corrigirmos de um defeito, adquirirmos apenas uma virtude, ou fazermos uma ou outra vez algumas meditações. São um recurso para reformarmos nossa personalidade, pela rejeição de todos os defeitos, aquisição das mais altas virtudes, regeneração de nossa inteligência na Verdade, restauração de nossa vontade no Bem, morigeração de nossa sensibilidade na mortificação. Em outros termos, os Exercícios não oferecem apenas matéria para uma fase da vida espiritual, mas constituem um programa para todas as etapas de combate interior contra os vestígios do pecado original e as tentações do demônio, bem como para todos os dias de uma existência, por mais longa que seja. Reforma total do homem para durar a vida inteira, eis o programa dos Exercícios.

Como realizar bem um retiro espiritual

No que consistem eles?

Evidentemente, podem ser feitos num só dia, por qualquer pessoa que viva no século. Normalmente, entretanto, quando feitos em forma de retiro fechado em alguma casa religiosa, chegam a durar até trinta dias, os quais o retirante deve passar no afastamento de todas as preocupações humanas.

Esse longo e fecundo período de meditação, dividiu-o Santo Inácio em quatro semanas. Mas a palavra “semana” não deve, aí, ser tomada em sentido estrito. Algumas fases podem durar mais ou menos dias, conforme as possibilidades, os desejos e as necessidades espirituais do retirante.

Durante esse tempo, o retirante somente conversará consigo mesmo, com o Padre Pregador ou com Deus, Nossa Senhora, os Anjos e Santos, submetendo-se a um horário que deve guardar um sábio equilíbrio entre a austeridade e a prudência. Mais de uma vez por dia, o Padre Pregador far-lhe-á exposição sobre um tema, e não propriamente um sermão. Segundo as regras de Santo Inácio, o retirante não é um indivíduo plenamente passivo. Pelo contrário, fará seu trabalho pessoal de elucubração, ou seja, sua meditação.

Na primeira fase, “deformata reformat” [reforma-se o que está deformado], Santo Inácio dispõe as meditações de maneira a fazer com que o retirante renuncie inteiramente ao pecado e às suas más inclinações. Na segunda fase, “reformata conformat” [dá-se forma ao que está reformado], fá-lo escolher a vocação ou o teor de vida mais conforme à santa vontade de Deus, e o inicia na imitação de Nosso Senhor. Na terceira fase, “conformata confirmat” [confirma-se o que já possui forma] aperfeiçoa, torna mais sólidas, práticas e eficazes as disposições adquiridas na etapa anterior. Na quarta, “confirmata transformat” [transforma-se o que se confirmou], vencidos finalmente todos os obstáculos, fixa o retirante na vontade progressiva e absoluta de alcançar a perfeição, substituindo nele seu sentimento de pesar pela separação das coisas ilícitas e a sensação de fadiga devida ao esforço realizado em adquirir a virtude, pela santa alegria das almas que vivem em Deus.

Método claro e simples para tender à santidade

A grande característica dos Exercícios consiste em ser um método não apenas lógico, mas ainda psicológico; em outros termos, em querer não somente persuadir o homem de que deve evitar o mal, praticar o bem e adquirir a perfeição, mas em fazê-lo renunciar efetivamente ao mal, adquirir realmente a virtude, e tender com generosa lealdade à aquisição da perfeição.

Os Exercícios Espirituais não têm um caráter diretamente apologético, ou seja, em geral são úteis apenas às pessoas de fé. Assim, nota-se em Santo Inácio a preocupação de simplificar e auxiliar o mais possível o papel do entendimento, deixando que a vontade, nua e privada dos subterfúgios que normalmente uma razão tortuosa e sofística lhe oferece, fique exposta diretamente à ação saneadora do livre arbítrio e aos raios vivificadores da graça.

Por isto, os temas que Santo Inácio apresenta são claros, simples e indiscutíveis. Bastará que lhes dê alguns exemplos. Como vereis, neles não haverá lugar para sofismas, recuos ou meios termos. Ou o homem confessa a si próprio sua má vontade sem qualquer pretexto, ou resolve emendar sua vida.

I — Para persuadir-nos de que devemos subordinar nossa vida à doutrina e moral católicas: a) todas as coisas só valem na medida em que realizam seu fim; b) ora, o homem tem por fim supremo honrar, servir e dar glória a Deus; c) logo, o homem que não honra e serve a Deus neste mundo, nem O glorifica no outro por toda a eternidade, de nada vale.

II — Com o intuito de nos levar à rejeição de uma vida pecaminosa: para me salvar, o Homem-Deus suportou as dores inenarráveis da Crucifixão, e teria padecido todas elas só por mim, ainda que não houvesse nenhuma outra pessoa a redimir. E eu não farei este ou aquele sacrifício para me emendar?

III — A fim de nos incitar ao apostolado: a famosa meditação do reino. Se um rei me convidasse a ir lutar com ele contra os in­fiéis, e se submetesse a todas as fadigas e riscos que eu mesmo deveria arrostar, prometendo-me em troca toda sua amizade e todo seu afeto, que covardia a minha, se recusasse! Ora, Jesus Cristo, sendo Deus se fez Homem, padeceu e morreu para a salvação das almas, convida-me a batalhar com Ele pela salvação do próximo, tendo suportado para isto fadigas incomensuravelmente maiores, dores inefavelmente mais meritórias que as minhas! O prêmio que Ele me oferece não é a amizade precária de um rei, mas o amor de Deus. E eu recusarei?

Como se vê nestes três exemplos, a inteligência fica como que deslumbrada e paralisada na sua capacidade de engendrar subterfúgios. E a vontade fica frente a frente com a verdade. É a hora augusta entre mil, da vitória do livre arbítrio tonificado pela graça.

A característica das verdades que Santo Inácio aponta em seus Exercícios consiste em serem lúcidas, simples, breves. Em sua conceituação, não encontra a inteligência reta qualquer pretexto para divagações que lhe facilitem a evasão para a ordem meramente especulativa. E tais verdades, Santo Inácio as funda em argumentos tão claros, diretos e irrespondíveis que os ócios e as subtilezas da dialética ficam decididamente relegados para um segundo plano. Começa então esse formidável diálogo entre o homem e a verdade, que está na essência dos Exercícios Espirituais.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Continua em próximo artigo.)
Revista Dr Plinio 109 (Abril de 2007)

 

Extraído dos “Anais do IV centenário da Companhia de  Jesus, Ministério da Educação  e Saúde, Serviço de  Documentação, 1946, pp. 369-382.)

O perigo começa com a vitória! – II

Após analisar a primeira fase medieval, Dr. Plinio nos mostra como, a partir de um relaxamento, operou-se a corrupção da sociedade.

 

Dessa primeira fase em que a Idade Média se revela ainda ponderada, equilibrada, passamos para uma época em que os prazeres se vão acentuando. São ainda honestos, legítimos e até equilibrados. Há, porém, uma sede de prazer que se vai tornado progressivamente acentuada. Numa terceira etapa notamos todo o corpo social da Idade Média já deteriorado.

Tratava-se de um relaxamento e não uma deliberação explícita em fazer o mal

É uma espécie de febricitação, de agitação, de delírio, que já define bem o século XV, fazendo com que muitas pessoas do tempo pensassem que o mundo iria acabar.

Nota-se, então, a passagem sucessiva de um apogeu para um estado de decadência. O ponto de partida foi seguramente a falta de cuidado, a falta de prevenção. Uma atitude despreocupada da Cristandade Medieval foi a causa da decadência.

Despreocupação esta que se caracterizava pela excessiva confiança em si mesmo, julgando haver na própria sociedade medieval raízes e lastros de virtudes suficientes para se eliminar qualquer preocupação.

Não se pode, entretanto, afirmar que havia má intenção nesta atitude. Tratava-se apenas de um relaxamento e não de uma deliberação em praticar o mal. Nessa fase de afrouxamento do modo de viver, a Idade Média até nos impressiona pelo que tem de temperante, de digna, de nobre, mesmo nos seus prazeres.

Note-se que isto não é uma afirmação, não é uma tese que venha acompanhada de documento, mas uma hipótese baseada em alguns conhecimentos. Mas, quando formulamos esta hipótese os fatos se alinham de tal maneira que tudo se torna claro. Assim sendo, os acontecimentos ficam arquitetonicamente explicados.

Está na substância da santificação o desejo da cruz

É necessário considerar que isto não se refere a desvios existentes, mais ou menos excepcionais, embora até profundos. Encontramos na Idade Média fenômenos marginais, como as heresias, mas que não são a Idade Média; casos de satanismo, mas que não são a Idade Média; um imperador que é até arabizante e muçulmanizante, mas isto também não é a Idade Média. É a doença inteira do corpo social que estou procurando descrever, e não apenas certas chagas.

Isto interessa muito aos contrarrevolucionários, sobretudo tendo-se em vista o Reinado do Imaculado Coração de Maria conforme sua promessa em Fátima: “Por fim o meu Imaculado Coração triunfará”.

Estes princípios são tão verdadeiros que se aplicam até aos fenômenos de vida espiritual dos contrarrevolucionários de hoje. Em virtude de quase todos os ambientes atualmente estarem, uns mais outros menos, impregnados do espírito revolucionário, quando uma alma ao converter-se torna-se contrarrevolucionária, entra em uma fase de lutas e enormes provações.

Há depois, uma segunda fase, de estabilização, em que tudo se torna menos árduo e mais fácil. Esta é a fase perigosa. Não se devem temer tanto as lutas de conversão como as batalhas de segunda fase, porque é aí que vem a tentação de se viver sem preocupações dentro da virtude, o que significa abandonar a virtude e viver fora dela. Está na substância da santificação o desejo de cruz.

As várias etapas da decadência medieval

A primeira das várias etapas da decadência se caracteriza pelo agradável-bom que se acentua demais, mas ainda honesto, nobre e equilibrado. É exemplo disto o traje feminino habitual na Idade Média. Era lindíssimo, com os belíssimos chapéus de cone com véus pendentes, ou em forma de gomos, com uma coroa. É algo de muito nobre e bonito, e também muito calmo e repousante. Toda a arte medieval produz uma sensação muito agradável.

O agradável encontra sua melhor expressão no Gótico “Flamboyant”. Mas o “Flamboyant” vai invadindo todos os campos, e em vez de ser apenas um agradável-bonito para a sala de visitas, passa a ser a nota dominante em quase todos os ambientes.

Tudo piora sensivelmente a partir do momento em que o agradável se torna ilícito e, portanto, imoral. O mesmo se dá na literatura de Cavalaria e em inúmeros outros setores da vida medieval.

Para se analisar como a crise se generalizou no corpo da sociedade medieval, é necessário ver as profundidades dessa crise. Por profundidade entendemos as várias camadas dessa sociedade; a mais baixa, a do povo, constituía a última profundidade. A mais elevada seriam as cortes.

A corrupção da sociedade a partir das elites

Antes de prosseguirmos, seria conveniente lembrar um princípio.

Ao analisarmos alguém de personalidade encontramos — sobretudo caso se trate de um liberal — várias personalidades conjuntas que entram numa espécie de diálogo. Há num mesmo homem o monarquista e o republicano, o católico e o protestante. É o princípio das várias personalidades opostas, estabelecendo um diálogo interno, e que se dá na vida espiritual de um homem.

Na Idade Média o princípio do diálogo interior entre várias personalidades dava-se conforme as classes sociais. Esse processo de deterioração começou com os mais ricos e poderosos.

O fenômeno é mais evidente nas cortes reais, e mesmo em certas cortes principescas tão altas quanto as cortes de reis. Começa-se então uma vida de extravagância. A metástase, à maneira de câncer, foi se dando, de “proche en proche”(1), para as demais classes sociais.

A corte corrompe a média nobreza, que por sua vez corrompe a pequena. A alta burguesia, sempre a primeira a corromper-se com os reis, deteriora a média burguesia e a pequena. Este processo é lento, mas terrivelmente eficaz.

Houve tempo, na Idade Média, em que se nota muito claramente este fenômeno de corrupção nos altíssimos letrados, nos altos aristocratas, nos altíssimos argentários, e mesmo no mais alto clero.

Há, no entanto, correntes de opinião e umas tantas classes sociais que constituem centros naturais de resistência. É o que se passou com o movimento humanista e renascentista, que tanto floresceu entre os altos intelectuais, mas que encontrou focos de resistência nas universidades, a tal ponto que estas durante muito tempo ficaram à margem do movimento novo, apegadas às fórmulas antigas.

Entre as camadas inferiores do povo a corrupção é muito mais lenta, havendo muita resistência. Mas esta resistência sofre um processo de degradação que se delineia mais ou menos da seguinte maneira: inicialmente há uma indignação e resistência profunda à deterioração; a seguir, uma contemporização, apesar da não adesão e até da resistência; por fim, tolerância indiferente seguida de admiração, inveja e adesão ao processo que já estava vitorioso há muito tempo nas camadas superiores da sociedade.

A decadência deveu-se à tolerância dos bons

Quando estudamos o problema da decadência da sociedade medieval, ocorre-nos uma indagação no sentido de saber por onde ela se vergou à Revolução.

Muitos afirmam que a decadência coube aos reis e ao clero, que deram o passo inicial. Há outra teoria, mais simpática, que é a de que tudo foi possível a partir do momento em que a resistência deixou de ser caracterizada por uma intolerância agressiva, indignada e militante. Só a reação enérgica é capaz de deter o progresso do mal. O mais lamentável não é que os maus sejam audaciosos, mas que os bons não lhes oferecem a intolerância e resistência que eles demonstram para com o bem.

Se alguém denuncia publicamente o mal praticado pelos revolucionários, algo se lhes atrapalha, ainda que eles não queiram. E é esta espécie de atrapalhação interna, que produz o estertor dos revolucionários. Poucos têm coragem para argumentar contra quem lhes denuncia. E vence quem argumenta com mais intolerância, no sentido mais profundo da palavra. Pode-se, em certo sentido, dizer, sob este aspecto, que tudo depende inteiramente da intolerância.

O mal começa a vencer quando os bons deixam de ter essa intolerância ousada e triunfante.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de maio de 1959)

 

1) Pouco a pouco.

 

A História: um imenso drama

Ao longo dos milênios em que o homem peregrina sobre a terra, incontáveis foram os disparates e os lances de selvageria ou torpeza, praticados por gente comum ou por personagens altamente colocados. Será que, no ensino da História, é proveitoso para os alunos apresentar-lhes esses episódios sinistros da vida da humanidade, muitos deles passados em eras remotas? Questão um tanto  inesperada, e relacionada com estas outras: de que  adianta estudar História? De que vale conhecer o passado? As respostas são dadas por Dr. Plinio na conferência que transcrevemos nas páginas seguintes.

 

Conjecturar o futuro não é tarefa das mais fáceis. Para fazê-lo, importa arquitetar uma série de raciocínios, de cálculos, etc., até se vislumbrar algo do que ele nos reserva. Em certas circunstâncias, esse conhecimento é de extrema utilidade, dado podermos adequar nossos objetivos e ações em vista do que irá acontecer.

Mais ainda. Sabendo como outros planejaram o futuro, estará a nosso alcance “desplanejá-lo”, caso tenhamos intenções contrárias às deles. Tome-se o exemplo de dois rivais políticos. Na disputa que travam, vencerá aquele que melhor compreender quais os desejos do adversário, os lances, manobras e combinações que este realizará amanhã, pois, conhecendo- os de antemão, poderá  tomar a dianteira e sair vitorioso.

Um modo especial de jogar xadrez

O mesmo princípio se aplica a dois jogadores de xadrez que se olham de frente. Se um é capaz de perceber qual será a próxima jogada de seu contendor, pode mexer  determinada peça e ganhar a partida. Vem a propósito evocar de passagem uma reminiscência do meu tempo de moço. Um tio meu, muito apreciador do jogo de xadrez, gostava de aproveitar as tardes livres dos fins de  semana para uma partida com seus filhos ou sobrinhos. Diversas vezes era eu o escolhido e de bom grado assumia o outro lado do tabuleiro.

Em determinado momento, eu percebia que meu tio fazia seus planos olhando para as peças, procurando descobrir as minhas intenções. Eu, porém, procedia de modo diferente: enquanto meu  oponente observava as peças, eu lhe fitava o rosto e o olhar, acabando por descobrir qual seu próximo lance. Empurrava, então, um cavalo, uma torre, bloqueando-lhe o caminho, sem ele nunca  haver atinado com minha estratégia…

Era uma maneira de conhecer o futuro, que também tinha, naquele âmbito familiar e recreativo, a sua utilidade.

A história dos assírios: “O que eu lucrei em saber dessas selvagerias?”

Mas, quando  e trata de História, de nos voltarmos para o passado, retrocedendo até os primórdios da humanidade, que proveito nos advém desse conhecimento?

Eu me situo novamente na minha sala de aula, no tempo do Colégio São Luís, quando o professor de História entrava, sentava-se à sua mesa e dizia: “Hoje vamos estudar os assírios!” O tema me despertava um interesse apenas moderado.

Porque, afinal, em pleno século XX, com os assírios ou sem eles, as coisas mais ou menos se resolvem. Eu pensava comigo: “O que me importam esses reis, aliás muito antipáticos?”

De fato, uma antipatia que me ficou da consideração de uma gravura existente no meu livro de História Universal, reproduzindo um alto-relevo da época assíria. A cena esculpida era  confrangedora. Tratava-se de um rei tomando atitude de vencedor diante de prisioneiros de guerra. Ele, representado como um homem alto, usando chapéu cônico (mas um cone truncado, não  em ponta) de material muito rico, sob o qual escachoavam abundantes cabelos, eximiamente frisados, formando filas, como se diria de soldados em ordem de batalha.

A barba, igualmente farta, alternava-se em segmentos lisos e cacheados. Estava vestido de túnica e calçava sandálias. Uma fisionomia de expressão feroz, certos olhos compridos e em diagonal,  característicos daqueles povos, nariz adunco de ave de rapina, e uma lança na mão.

À frente dele, lavrados em tamanho menor, uma série de prisioneiros, cada um com argolas atravessando o seu lábio inferior, e todas essas argolas presas por cordéis que chegavam até a mão do  rei vitorioso. A cena perpetua o momento em que dois daqueles infelizes estão ajoelhados diante do soberano, e este na iminência de lhes furar os olhos com a lança. Terrível castigo que ele  infligiria às centenas de vencidos, para se vingar e, posteriormente, ter braços que trabalhassem para ele  sem lhe causar grandes estorvos. Estão cegos, não podem fugir, fazem o que se lhes manda.

Transformam-se em animais de tração. Era costume dos assírios fazer grandes obras públicas, muros muito altos, etc., e necessitavam de homens que construíssem pacientemente essas imensas  edificações. Ora, como tais empregados provinham, em geral, das prisões de guerra, era preciso destinar inúmeros soldados para vigiá-los e impedir que desertassem. Então aquele rei — a quem a  legenda da gravura dava o nome de Assurbanipal Tiglapilazar — teve a horrível ideia de cegar todos os prisioneiros, de modo a não poderem escapar. Nessas condições, um único guarda bastava para tomar conta de quinhentos ou mais escravos.

Quando a faina diária terminava, os desgraçados eram levados para um cocho qualquer, recebiam uma péssima refeição e dormiam, para tudo recomeçar na manhã seguinte.

Uma situação pavorosa, abominável, fruto da civilização pagã, alheia à noção de que, embora desiguais entre si, os homens são iguais pela natureza. E que, portanto, essa desigualdade tem limites,  ão sendo lícito a um homem abusar de seu semelhante.

Então, eu pensava com meus botões: “Valeu a pena essa visão de pesadelo e drama passar por meus olhos e minha mente, como pelos de todos os alunos que estão aqui? O que eu lucrei em saber  dessa selvageria e torpeza? Não lucrei nada. É uma coisa horrorosa! Para que ensinam isso?”

Desatinos de certos personagens históricos

Se não eram assírios, eram os babilônios, era a Índia, e era a luta dos persas contra os gregos, envolvendo uma série de fatos, alguns inexplicáveis. Dario, imperador da Pérsia, homem de imenso  poder, levou suas tropas até as margens do Mediterrâneo, numa caminhada que se tornou célebre, porque muito difícil. De fato, a grande distância que separa a Pérsia desse mar não podia,  naquele tempo, ser vencida pelo exército inteiro montado a cavalo. Tinha-se de ir a pé, sobrepujando inúmeros obstáculos.

Chegados ao Mediterrâneo, os persas encontrariam ali uma poderosa frota que os aguardava para conduzi-los à Grécia. Porém, quando já se dispunham a embarcar nos navios, um vento fortíssimo  soprou, encapelando as ondas e dispersando toda a frota. Assim, a pequena Grécia, com poucos soldados para se defender contra a Pérsia, viu-se livre da invasão.

Diante do fracasso, Dario ficou furioso e ordenou que um certo número de chicoteadores do seu exército açoitassem o mar, para se vingar do que este havia feito com suas naus.

Eu pensava: “Aqui é outro desatino! Do que adianta chicotear o mar? O mar vai e vem, quando quiser, sobe, inunda o lugar onde estão todos os chicoteadores, leva alguns consigo e os mata. O mar  az o que quiser. De que adianta flagelá-lo? É uma estupidez!” Mas era preciso aprender que Dario mandou chicotear o mar… O que lucrei com isso?

Tudo se explica em função de Nosso Senhor Jesus Cristo

Certo dia caiu-me nas mãos um livro de História, de cujo título não me lembro, que infelizmente já desapareceu de circulação. Era uma verdadeiro tesouro e uma maravilha de erudição. Baseado  em textos de autores pagãos, mostrava o mundo de tolices, asneiras e crimes que se cometiam antes de ser difundida a doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo pela face da Terra, e como aqueles  cessaram depois dessa propagação.

De súbito, aquelas velhas histórias do meu professor secundário tomaram vida para mim: “Ah! Agora eu compreendo. Quando penso em Nosso Senhor Jesus Cristo e no Tiglapilazar… Quando  considero a suavidade e a doçura dEle ao curar cegos, coxos e doentes de toda ordem, com infinita bondade, e, de outro lado, vejo a ferocidade desse rei animalesco, e imagino que todos daquela  época eram como esse soberano, eu entendo que essas crueldades sem nome foram se apagando lentamente, à medida que os ensinamentos de Nosso Senhor  se propagaram pelo mundo e dulcificaram os povos.”

Ao ver que dessas populações dulcificadas floresceu a Cristandade, eu pensava: “Estou  compreendendo a História, ao ver nela os passos de Nosso Senhor Jesus Cristo, os passos da Igreja dEle! É  por causa da doutrina que Ele trouxe aos homens, da Igreja que Ele fundou, da graça que essa Igreja difunde, e que Ele mesmo diretamente esparge sobre as almas, a rogos de Nossa Senhora, a  todo momento e de todos os modos — que se formou essa realidade incomparável chamada Cristandade, a imensa família das nações católicas apostólicas romanas”!

“Que papel admirável teve Ele na História! Como Ele é grande! Que maravilha!”

A História, ao girar em torno do Verbo Encarnado, tomou sentido para mim. Ela deve ser vista, portanto, enquanto ordenada em relação a Nosso Senhor: a narração de todos aqueles crimes,  infâmias e ignomínias que O precederam, que Ele viria remir; como também a descrição de todos os restos de belo, bom e verdadeiro que ainda subsistiam na natureza humana, e que Ele iria  tomar, elevar e conduzir à sua excelência. O bem, antes dEle minoritário, incompleto, esmagado, com Ele sairia vitorioso.

Em função de Jesus Cristo, tudo toma interesse. Sem a presença dEle, a História se parece com uma sala durante a noite. Esta pode estar decorada com os mais belos quadros do mundo; se, porém, estiver imersa numa escuridão absoluta, do que me adianta estarem ali as mais célebres obras-primas da Terra? Eu não as vejo! Alguém poderá me dizer: “Ali está um Fra Angelico  magnífico!” A minha resposta é: “O que tenho eu com isso? Não estou vendo! Não me interessa!”

Contudo, acende-se a luz… “Ah! Que esplêndido quadro de Fra Angelico!” É a reação normal, porque eu passo a ver as coisas e elas tomam interesse para mim.

É o que acontece quando estudamos a História em ordem a Nosso Senhor Jesus Cristo. Com a presença dEle, a luz brilha nas trevas, tem-se vontade de acompanhar os fatos, de entendê-los, etc., em função dEle, que é não apenas o centro, mas o ápice da História.

O sentido profundo da História: uma luta, um imenso drama

Vista assim, a História se divide em três grandes períodos: o primeiro, da criação do homem, passando pelo pecado original, até o advento de Nosso Senhor Jesus Cristo; o segundo, quando Ele  nasceu e morreu na cruz por nós, resgatou o gênero humano e fundou a Igreja; terceiro, os séculos que antecedem a outra vinda dEle, no fim do mundo, para julgar os vivos e os mortos,  encerrando a História da humanidade.

É tomada nesse amplo contexto, relacionada não apenas com um povo ou uma civilização, mas com a globalidade do gênero humano, que a História adquire o seu sentido profundo e merece ser  examinada. Um sentido profundo que remonta a Deus Criador, tirando do nada o universo, com todas as suas incomensuráveis riquezas, os anjos, e a síntese da matéria e do espírito que é o  homem, posto por Ele no Paraíso Terrestre, lugar de delícias e de extraordinária felicidade física, espiritual e intelectual.

Se não tivesse havido o pecado original e, portanto, o gênero humano continuasse a se propagar no Paraíso, este, com o contínuo e magnífico crescimento da virtude, inspirando os mais variados e  excelentes talentos, teria se tornado resplandecente de glória e beleza. Desse modo, o homem prestaria sua colaboração para deixar ainda mais esplendorosa a obra de Deus. E assim o foi de início,  quando — diz a Escritura — às tardes o Senhor descia ao Éden numa brisa fresca, para passear e conversar com Adão, fazendo com que este compreendesse e aperfeiçoasse a beleza de  todas as coisas.

Porém, essa ordem e esse plano maravilhoso foram frustrados pelo Pecado Original. Adão e Eva caíram, e foram expulsos do Paraíso. Punidos, iniciam nesta Terra de exílio a sua vida difícil.  Nascem os primeiros filhos. Um deles é a flor da progênie: Abel. Abel o suave, Abel o bom, Abel o perfeito.

O outro, Caim, é um filho torto, que vê com maus olhos o irmão virtuoso, em relação ao qual se consome de inveja e de vontade de liquidar. Os pais notam a perversidade no íntimo da alma de  Caim e procuram aconselhar: “Abel é seu irmão, você precisa amá-lo”.

Debalde. Cedendo à tentação, Caim mata Abel. E aí, presumivelmente, pela primeira vez Adão e Eva viram uma criatura morta, e puderam contemplar em todo o horror — na pessoa de seu filho —  morte que viria para eles e para todos os seus descendentes, por culpa deles.

Podemos imaginar a atitude de Eva, sentada sobre uma pedra, com Abel em seu colo, sem vida. Ela segurando a cabeça de seu filho dileto, enquanto, ao longe, Caim se afasta gritando ultrajes!… Ela tinha ali a figura do primeiro assassinato, do primeiro morto e do primeiro bandido. É a História do gênero humano que vai começando.

Passam-se os séculos. Os “Nabucodonosores”, os “Assurbanipais” aparecem. Os reis também vão se tornando celerados. Tudo vai se tornando crime pelo mundo. Mas, em Israel, no povo eleito, uma  Virgem imaculada havia, a qual, ao lado de alguns poucos justos, insistentemente rogava a Deus a vinda do Messias. “Rorate coeli desuper, et nubes pluant justum” — reza a Igreja no Advento. 

“Destilai, ó céus, lá dessas alturas o vosso orvalho; e as nuvens chovam ao Justo”. Quer dizer, que venha o Bem-amado e o Bem-esperado de todas as gentes.

O Perfeito surgiu, afinal, para modificar o curso do mundo. Durante séculos O esperou a nação de Israel. Eis que o Redentor chegou. O que fez esta nação? Matou- O! Uma minoria fiel O  acompanhou e constituiu a Igreja. A maioria, infiel, sacrificou o Verbo Encarnado! Mas não sabiam que o Salvador, com sua morte, resgatava o gênero humano! O pecado original e todos os pecados atuais, até o fim do mundo, necessitavam de uma expiação condigna diante do Altíssimo. Esta, o Homem-Deus a satisfez inteiramente.

Redimido o homem, perdoado, pelo mundo começam a soprar outros ventos. Aparecem os santos, os mártires, e as obras de caridade de toda ordem. Em determinado momento, surgem os  eremitas e os doutores da Igreja, gerados do sangue infinitamente precioso de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Iniciou-se, igualmente, a grande batalha da Cruz através dos séculos. Assim como no Céu, Deus se serviu de São Miguel Arcanjo e dos Anjos bons para de lá expulsar os demônios, assim também,  na Terra, é desejo de Nosso Senhor que os homens bons combatam os maus, numa luta que perdurará até o fim do mundo. Temos, então, de um lado, a história da graça divina, que vai soprando  aqui, lá e acolá, para tal pai de família, para esta e aquela pessoa, etc., a fim de serem melhores que os outros, para chamá-los e guiá-los. A história do Santo Sacrifício da Missa que se repete  diariamente no mundo inteiro, da Igreja que vai distribuindo os Sacramentos, vai ensinando, governando e santificando os homens, no intuito de que todos alcancem o Céu. É a tarefa por  excelência da Hierarquia sagrada. E dos fiéis, sob as ordens da Hierarquia, travando essa batalha com vistas a levar para a bem-aventurança eterna o maior número de almas.

Essa é a história da  salvação

De outro lado, é a história dos maus, que constituem organizações, que tramam entre si e promovem propagandas para arrastar as almas ao inferno. E o grande, o verdadeiro sentido da vida  cotidiana, não é saber se tal povo irá conquistar tal outro, ou se o preço do petróleo vai subir ou cair. Essas são coisas completamente acidentais. O problema é: eles estão se salvando ou se  perdendo? Nós estamos nos salvando ou nos perdendo?

Quando saímos à rua e observamos o fluxo contínuo de pessoas a pé ou de carro, a pergunta que devemos nos fazer não é: Para onde vão? Qual é a marca do automóvel de cada uma delas? Tudo  isto é secundário. A questão é: elas são ou não de Deus? Estão ajudando o bem ou o mal?

Este é o sentido mais profundo da História da humanidade. Toda ela é uma luta pela salvação ou perdição de muitos, uma batalha em que uns homens influenciam outros, aproximando-os ou os  afastando de Nosso Senhor Jesus Cristo. E compreendemos que, assim, ela deixa de ser o formigamento de um sem número de pessoas que nem conhecemos, que morreram muitos séculos antes  de nós, que não tinham nada a ver conosco, e se transforma na história de um imenso drama.

E nós podemos compô-la como um quadro gigantesco, onde percebemos nossas próprias pessoas dentro do drama. Porque todos nós, cada homem nascido em um determinado século, faz parte  do drama da sua época, e tem um inalienável papel — disposto pela Providência — a desempenhar na ingente luta pela salvação das almas.

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 11 (Fevereiro de 1999)

Conhecendo e amando Nosso Senhor

Desde criança, analisando a fisionomia de Nosso Senhor representada em belas imagens, Dr. Plinio discernia sua Alma e procurava compor como deveria ser a mentalidade correspondente àquele semblante. Ao tomar conhecimento dos episódios narrados nos Evangelhos, compreendeu que eles condiziam inteiramente com aquela mentalidade.

 

Amor e compreensão

Ao considerar as narrações dos Evangelhos, percebe-se que os Apóstolos e todas aquelas pessoas que tinham convívio com Nosso Senhor — excetuando naturalmente Nossa Senhora — não haviam entendido bem o Redentor.

Com o curso do tempo, depois dos primeiros equívocos, eles acabaram pelo menos não formando ideias erradas a respeito de d’Ele. Mas nota-se que eles não tinham uma ideia exata de como era a Pessoa de Nosso Senhor.

Essa compreensão era de uma importância transcendental para eles O amarem como deviam ter amado. Em contrapartida, se tivessem amado como deviam, teriam compreendido tanto quanto podiam. Ora, eles compreenderam menos do que podiam, e também não O amaram o quanto deviam. Assim é o jogo entre o amor e a compreensão. E eles não tiveram esse amor. O resultado é que custou para eles reconhecê-Lo como Deus.

Nosso Senhor perguntou-lhes: “E vós, quem dizeis que Eu sou?” (Mt 16, 15). São Pedro disse que Ele era o Filho de Deus. Então Nosso Senhor manifestou seu agrado com São Pedro, constituindo-o fundamento da Igreja e estabelecendo o Papado. Pelo que me parece, nessa ocasião ele reconheceram a Nosso Senhor Jesus Cristo como Filho de Deus. Mas antes…

A voz, os olhares, os gestos de Nosso Senhor

Quem é Nosso Senhor Jesus Cristo?

Ele forma com o Verbo de Deus uma só Pessoa. Não há duas pessoas, a do homem e a do Verbo de Deus, ligadas de algum modo. Não é isso. É uma só Pessoa, que tem duas naturezas: a divina e a humana.

Há, portanto, n’Ele uma verdadeira Alma, um verdadeiro Corpo, unidos entre si como o estão a alma e o corpo em cada um de nós. Mas essa Alma e esse Corpo estão unidos hipostaticamente à natureza divina, constituindo uma só Pessoa, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade.

Portanto, cada vez que Ele falava, era o Verbo de Deus quem falava; cada vez que Ele olhava, era o Verbo de Deus quem olhava; cada vez que Ele fazia qualquer gesto, era reflexo da natureza divina na natureza humana o mais perfeito que se possa imaginar.

Manifestava, assim, uma santidade, uma perfeição, uma superioridade da qual não podemos ter ideia, nem sequer remota, se não nos ajudar a graça de Deus.

Se formássemos uma ideia tão exata quanto podemos e devemos de como foi Ele, teríamos começado a amá-Lo como precisamos amar.

A voz, os olhares, os gestos d’Ele… que espelho eram da Santíssima Trindade! Nós precisamos reconstituir um pouco isso para O amarmos como Ele merece ser amado, e não haver equívocos, amando-O como Ele não é. Porque se amarmos Nosso Senhor como Ele não é, acabaríamos um pouco amando quem Ele não é. Todos compreendemos o perigo disso.

Esse é um trabalho muito delicado e, se não fosse com a ajuda da graça, não se faria na alma de ninguém. Porque é muito mais alto do que a cogitação de qualquer homem. Além disso, seria preciso utilizar dados muito imponderáveis; ser um psicólogo extraordinário para recompor. Naturalmente não se pode exigir isso de uma pessoa como condição da salvação.

Analisando uma imagem do Sagrado Coração de Jesus

Então, por causa disso, tenho a impressão de que, com o Batismo e as primeiras impressões religiosas, nos é dada uma primeira noção d’Ele, que vai se aprimorando com o tempo.

Por exemplo, posso me lembrar de como essa noção foi se constituindo aos poucos na minha própria alma.

Graças a Deus, tomei como ponto de partida que a fisionomia habitualmente apresentada pelas imagens de Nosso Senhor era fiel. Aquele era o rosto que Ele teve na vida terrena. E, portanto, aquela fisionomia já queria dizer alguma coisa.

Lembro-me de que, dado a examinar as pessoas pelo rosto, instintivamente eu analisava, por longos períodos, a fisionomia d’Ele. Sobretudo naquela imagenzinha do Sagrado Coração de Jesus que há no oratório do quarto de mamãe.

Longa, atenta e meticulosamente — quanto possa caber na mente de uma criança — eu a examinava. E isso condizia com as imagens existentes na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, num altar lateral e no teto também, e formava uma resultante, uma espécie de figura central correspondente ao essencial dessas várias imagens, e era como eu imaginava, mais ou menos, a Ele.

Ao tomar conhecimento dos episódios da vida de Nosso Senhor, eu procurava me perguntar se condiziam com aquilo que imaginava da mentalidade d’Ele. E percebia que não só estavam de acordo, mas tomavam um realce extraordinário, imaginando os predicados daquele Varão, com aquela fisionomia e aquela atitude. Aquele rosto explicava o episódio, o episódio explicava o rosto. E eu me sentia, portanto, na verdadeira pista de entender como Ele era.

Depois eu procurava ver também na Igreja: dado que Ele possuía tal fisionomia correspondente a tal personalidade, se Ele tivesse que fazer a Igreja, tê-la-ia feito como ela é? E eu chegava à conclusão de que sim, era inteiramente o que Ele devia fazer.

De onde uma confirmação da Fé originária que recebi, pela bondade de Nossa Senhora, logo ao ser batizado. Com o Batismo tornamo-nos templos do Espírito Santo, a graça habita em nós. Isso ajuda enormemente para a formação religiosa vista como um todo e, por sua vez, favorece o amor, o qual auxilia a conhecer melhor.

Fusão das virtudes opostas, formando uma harmonia extraordinária

Antes de tudo, a impressão causada em mim por Nosso Senhor, ao ver sua humanidade santíssima, é a de estar Ele envolto em cogitações enormemente superiores a tudo quanto se possa imaginar, de uma elevação sem proporção com nada. Entretanto, sem poder chegar com o pensamento, nem de longe, até onde Ele chegava, alguma luz dessas cogitações se fazia brilhar n’Ele, e eu como que via a Alma de Nosso Senhor inundada dessas luzes das quais Ele estava repleto.

Seria mais ou menos como um homem que não pode entrar numa catedral à noite, mas vê do lado de fora que ela está com as lâmpadas acesas em seu interior. Ele olha, portanto, os vitrais iluminados, aproxima-se e ouve a música, avizinha-se ainda mais e o perfume do incenso chega ao seu olfato. Ele se encanta com a catedral, onde ele não entra. Os sinais da catedral o fazem perceber algo da sua beleza. Assim seríamos nós — ao menos eu — com Ele.

Percebia dessa forma qualquer coisa de uma elevação prodigiosa; porém, desde o primeiro momento, pelo ponto mais profundo pelo qual eu O poderia compreender, com essa característica de uma fusão, em nível indizivelmente alto, das virtudes mais opostas, formando uma harmonia extraordinária.

Por exemplo, uma força incomparável e, ao mesmo tempo, uma bondade sem par; uma severidade inquebrantável e um perdão de uma doçura infinita; um poder de tranquilizar extraordinário aliado uma capacidade insuperável de mover para a luta; uma transcendência divina com a possibilidade de descer à última pessoa, e até a um cachorrinho, e fazer um benefício qualquer. Estou certo de que, se um cachorrinho se aproximasse de Nosso Senhor, Ele Se alegraria com isso.

Tudo isso indica a superioridade e a imensidade maravilhosas de Nosso Senhor, para que virtudes tão opostas, levadas a um grau sumo, possam caber n’Ele com tanta harmonia.

Nessa harmonia estaria exatamente o que melhor o meu olhar podia captar dos reflexos da graça divina transparecendo na natureza humana de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Com isso e por isso, também muita gravidade e uma seriedade enorme! Seria impossível imaginá-Lo falando uma coisa banal ou mesmo dizendo algo que não tivesse por detrás uma razão infinitamente elevada e perfeita.

Variedades do modo de ser do Redentor

Mesmo quando Ele dormia, seu sono era de uma perfeição, um equilíbrio, uma doçura, uma força, com tal poder de manifestação de toda sua santidade, que se uma pessoa, entendendo quem e como Ele era, pudesse apenas passar uma noite inteira vendo-O dormir, consideraria essa noite como a mais feliz de sua vida.

Ele possuía a natureza humana na sua perfeição e inundada pela união hipostática, com favores divinos insondáveis. Portanto, Ele olhando para cada um de nós conhecia inteiramente como era, e sabia como tratar. De tal maneira que, conforme Ele quisesse, a pessoa se sentia vista até o fundo da alma nos lados ruins ou nos aspectos bons.

Os lados ruins, com uma rejeição por onde o indivíduo teria vontade de fugir do seu próprio pecado. Os aspectos bons, com uma atração tal que a pessoa desejaria multiplicar por cem quintilhões a sua virtude, logo de início!

No entanto, por uma bondosa condescendência para com os homens, Ele não olhava inteiramente nem de um jeito nem de outro, a não ser nas situações excepcionais, para as pessoas poderem viver ao lado d’Ele.

Os episódios da vida de Nosso Senhor são todos maravilhosos. Mas não me impressiona tanto este, aquele ou aquele outro episódio quanto as variedades do modo de ser pessoal d’Ele, enquanto andava de um lado para outro.

Um brado majestoso que fende a sepultura e ressuscita Lázaro

Por exemplo, durante toda minha vida me impressionou a majestade d’Ele diante do sepulcro de Lázaro. Em primeiro lugar, a bondade com a qual Ele chorou junto ao sepulcro porque Lázaro morreu. E depois, como que não podendo conter a sua própria dor, brada: “Lázaro, vem para fora!” (Jo 11, 43), com um brado que eu imagino majestoso e fendendo a sepultura. E a vida volta em Lázaro. É uma coisa majestosa!

Imaginá-Lo recebendo a censura de Marta: “Senhor, se tivésseis vindo antes, meu irmão não teria morrido…” (cf. Jo 11, 21). Parece estar insinuado que, pela relação de amizade existente entre os dois, Jesus tinha a obrigação de evitar a morte de Lázaro. E talvez tivesse mesmo… Entretanto, Ele fez algo melhor do que salvá-lo da morte: tirou-o da morte!

Naquele momento, talvez Ele tivesse parecido a Marta ligeiramente tisnado de culpa… E como Nosso Senhor Se portou nessa ocasião, em que Ele não deu a ela nenhuma satisfação? Foi para a sepultura, e quase pareceu justificar a censura dela, chorando.

Então, por que deixou morrer? Por que não veio mais cedo? Vós chorais a morte que poderíeis ter evitado? Que pranto é este?

Ele, então, faz Lázaro ressuscitar, deixando Marta extasiada! Essas coisas não comportam comentário.

Depois, a cena dos fariseus dizendo que Ele precisava ser morto (cf. Jo 11, 50-53). A primeira vez em que eles falaram em matar Jesus foi quando viram Lázaro ser ressuscitado. E Ele conhecia tudo isso.

Podemos imaginar também Nosso Senhor vendo Marta, com certeza prostrada diante d’Ele, chorando com emoção dulcíssima, e Ele atendê-la como quem diz: “Minha filha, Eu te perdoo. Deverias ter compreendido que não tenho falta! Mas dei-te um dom que não esperavas.” Em seguida, passar perto dos fariseus e lançar um olhar… Que olhar! Não se consegue imaginar; podemos apenas ter vislumbres disso.

Podemos considerá-Lo em outra circunstância, indo a Betânia descansar. Então imaginá-Lo afável, repousando no convívio com Marta, Maria, Lázaro, os Apóstolos, Nossa Senhora, na vida cotidiana da residência de Lázaro, recebendo as honras, conversando na intimidade. Como tudo isso devia consolá-Lo de tanta infâmia, ao ver o que havia de maravilhoso naquelas almas que Ele estava formando na virtude.

Essas várias atitudes d’Ele se sucedendo, sobretudo no momento de passar de uma posição para outra, deixam-me especialmente encantado.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/6/1984)

A “Carta circular aos Amigos da Cruz” – VI O partido de Jesus e o do mundo

Na continuação de seus comentários ao opúsculo de São Luís Maria Grignion de Montfort, Dr. Plinio nos faz compreender, uma vez mais, como todo aquele que ousa abraçar o sofrimento, a pobreza e as humilhações por amor a Deus, identifica-se com Nosso Senhor Jesus Cristo e dispõe sua alma para que nela habite a sabedoria.

 

Dirigindo-se aos membros da Confraria dos Amigos da Cruz, por ele fundada, São Luís Grignion assim escreve:

Eis, meus caros confrades, dois partidos que se defrontam todos os dias: o de Jesus Cristo e o do mundo.

Duas falanges de servos que lutam por dois senhores

Conforme ficou explicado no início dessas exposições, São Luís redigiu sua carta circular durante um retiro, e essa ideia dos “dois partidos” evoca a meditação das “duas bandeiras”, proposta por Santo Inácio de Loyola nos seus Exercícios Espirituais. Lembra, também, o que o próprio São Luís afirma no seu Tratado da Verdadeira Devoção:  por natureza, o homem é escravo, e o será de Nosso Senhor Jesus Cristo ou do demônio, príncipe deste mundo.

Então, esses dois partidos são as duas grandes falanges de servos que lutam por dois senhores. Faço notar que há apenas dois partidos, sem possibilidade de uma terceira posição. Donde toda a História se resolver, em última análise, no seu sentido mais profundo, no confronto desses dois interesses, desses dois princípios, desses dois seres antagônicos: Jesus Cristo e o demônio.

Sempre pequeno, o número dos Amigos da Cruz

Conforme tal noção, o santo autor prossegue:

O [partido] de nosso amável Salvador está à direita, em aclive, num caminho estreito e que assim cada vez mais se tornou devido à corrupção do mundo. Caminha à frente o Bom Mestre, os pés descalços, a cabeça coroada de espinhos, o corpo todo ensanguentado e carregando uma pesada cruz. Apenas algumas pessoas, das mais corajosas, O seguem, porque sua voz tão delicada não se ouve no tumulto do mundo; ou porque não se tem coragem para segui‑Lo em sua pobreza, suas dores, suas humilhações e suas outras cruzes que necessariamente é preciso carregar, a seu serviço, todos os dias da vida.

À esquerda está o partido do mundo, ou do demônio, o mais numeroso, magnífico e  fulgurante, pelo menos na aparência. Todos os indivíduos mais brilhantes correm para ele e, apesar de serem largos como nunca os caminhos que a ele conduzem, atropelam-se em virtude das multidões que por aí passam como torrentes. São caminhos juncados de flores, emoldurados de prazeres e de divertimento, cobertos de ouro e de prata.

O santo indica, pois, duas categorias de pessoas bem diversas. As que constituem o partido de Nosso Senhor estão à direita, em aclive. Ou seja, em ascensão, na subida que torna difícil a caminhada por se ter de vencer o peso da gravidade. Essa trajetória se faz cada vez mais estreita, isto é, o esforço pela salvação se apresenta a cada dia mais árduo, devido à corrupção do mundo, às solicitações maiores do pecado, à insistência das más influências e dos maus exemplos.

Porém, à frente vai o Bom Mestre, pés descalços, coroado de espinhos, coberto de sangue e carregando sua Cruz. Trágica visão de uma vítima que sofre em todo o seu corpo, seguida apenas por algumas pessoas, e das mais corajosas. Vê-se o numero sempre pequeno dos autênticos Amigos da Cruz, daqueles que ousam aceitar o sofrimento e compreendem que nesta vida estamos sujeitos a toda sorte de provações. Pelo contrário, incontável é o número dos homens que fogem do sacrifício e procuram não considerá-lo de frente.

Ensurdecedor ruído das paixões desordenadas

Na seqüência de seu pensamento, São Luís Maria fala do tumulto do mundo que abafa a delicada voz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Quer dizer, há um barulho, um ruído ensurdecedor no mundo que seduz as pessoas e estas, em tais condições, não escutam a suave voz do Divino Mestre.

 Esse barulho, embora possa ser tomado no sentido material da palavra, antes de tudo significa o tumulto das paixões humanas desordenadas que nos levam a agir e a nos movimentarmos de maneira igualmente desordenada. Donde uma espécie de perturbação difusa nas grandes cidades, uma agitação da vida moderna e seus acontecimentos, que embriagam e fascinam imensa parcela dos habitantes dos maiores centros urbanos. Ora, enquanto houver numa alma esse deleite com o tumultuar do século, algo da delicada voz de Nosso Senhor Jesus Cristo não chegará até ela. Nesta sua lamentável surdez irão esbarrar e se deter as inspirações da graça.

Daí, por outro lado, a necessidade de o verdadeiro Amigo da Cruz, desejoso de seguir o Bom Mestre, pedir-Lhe o horror e a aversão ao tumulto do mundo.

Pobreza, dores e humilhações

Ou porque não se tem coragem para segui‑Lo em sua pobreza, suas dores, suas humilhações e suas outras cruzes que necessariamente é preciso carregar a seu serviço todos os dias da vida — acrescenta São Luís Grignion.

Ou seja, quem deseja servir a Nosso Senhor deve estar disposto a abraçar três coisas: pobreza, dores e humilhações.

A pobreza é, de algum modo, a virtude católica por excelência, pois para fazermos inteiramente a vontade de Nosso Senhor, temos de ser desapegados de tudo o que possuímos.  Do contrário, ao nos ser pedido, em nome do serviço de Deus, a renúncia de algo a que nos afeiçoamos, bem mais difícil será a nossa conformidade com o superior desígnio divino. Portanto, para ser fiel à vocação de seguir o Mestre, a alma precisa ser pobre, desapegada.

Além da pobreza, as dores. A vida de todo homem comporta sofrimentos, e estes serão talvez maiores para os poucos que souberem aceitá-los com o autêntico espírito de Amigo da Cruz.

Por fim, as humilhações. Não é fácil discernir qual das três coisas é a mais pesada, pois as dificuldades variam de pessoa a pessoa conforme o temperamento de cada uma. Estas aceitarão melhor as dores e sofrerão mais com as humilhações; aquelas se alegram na pobreza, mas se arrepiam com as humilhações; enquanto outras padecem de boa mente as penúrias materiais e as humilhações, mas sofrem demasiado com as dores físicas e morais.

Claro está, naturalmente falando, sem o concurso da graça homem algum se dispõe a esses três tipos de sofrimento, e menos ainda estão inclinados a tal os que compõem o partido do mundo. Portanto, devemos compreender que Nosso Senhor Jesus Cristo concede graças e dons especiais aos seus seguidores, para que estes aceitem e abracem o duro preço dessa admirável vocação.

O aparente brilho do partido do demônio

Em seguida, São Luís Maria Grignion de Montfort descreve o partido do demônio, “o mais numeroso, magnífico e  fulgurante, pelo menos na aparência”.

É curioso notar como a felicidade confere certo brilho ao indivíduo. Tome-se, por exemplo, alguém que tenha sido sorteado numa loteria, ganhando avultada soma. Nesse dia ele se torna mais luminoso, mais bem disposto, sente-se seguro de si e demonstra um garbo invulgar, proporcionado pelo êxito. E não há coisa que mais tire o garbo de uma pessoa do que o insucesso. Um general perder a batalha, um rei perder a guerra, um advogado perder a causa, e aparecerem garbosos num jantar de gala? Não se pode concebê-lo.

  Pois esse esplendor do êxito e da felicidade possuem os que seguem o partido do mundo ou do demônio. Daí ser este grupo, na aparência, o mais reluzente, magnífico e numeroso. “Todos os indivíduos mais brilhantes correm para ele”, afirma São Luís. De fato, a experiência da vida nos mostra que, por uma razão difícil de definir, o indivíduo naturalmente brilhante, dotado de maiores qualidades apreciadas pela gente do mundo, é mais propenso a se perder do que aquele que não possui esse brilho pessoal.

Além disso, existe a imensa falange dos que se abalam para o partido do demônio por causa de reflexões oportunistas: “Eu, me alistar sob a bandeira da pobreza, da dor e da humilhação, enquanto no outro lado terei brilho e fortuna? Não há dúvida na escolha”.

Inútil dizer até onde essas reflexões podem levar a alma que lhes dá ouvidos.

Largas e cobertas de ouro, as vias da perdição

Esses caminhos do mundo, assevera o santo autor, “são mais largos do que nunca, e neles as pessoas se atropelam, em virtude das multidões que por aí passam como torrentes. São caminhos juncados de flores, emoldurados de prazeres e de divertimento, cobertos de ouro e de prata”.

Percebe-se, pela ideia exposta por São Luís, que a impiedade no tempo dele se mostra maior do que nas épocas anteriores. Então, as vias do mal nunca foram tão largas, e as multidões que passam por elas, perdendo-se, são tais que esses caminhos se dilatam.

Essa situação me faz recordar o caso de uma freira carmelita que, tendo de se deslocar para outro convento, viajou pela primeira vez por uma estrada asfaltada. Indagada sobre as impressões que tivera da “moderna” rodovia, ela respondeu:

— Creio que assim deve ser o caminho que leva ao inferno: agradável, largo, asfaltado, e as pessoas correndo sobre ele…

A meu ver, uma observação muito sagaz e verídica. Não raro, ao considerarmos a trajetória de certos ímpios, vemo-los a correr, desimpedidos, na estrada do mundo, enquanto o homem que procura trilhar as vias da retidão caminha passo a passo, em meio a dificuldades de toda espécie. Por quê? Porque as sendas da perdição são espaçosas e lisas; as de Nosso Senhor são estreitas e penosas, e seu fim é o Calvário.

“É preciso ser conforme a imagem de Jesus Cristo ou condenar-se”

Prossegue São Luís:

À direita, o pequeno rebanho que segue Jesus Cristo só fala em lágrimas, penitências, orações e desprezo do mundo; ouvem‑se continuamente essas palavras, entrecortadas de soluços: “soframos, choremos, jejuemos, oremos, ocultemo‑nos, humilhemo‑nos, empobreçamo‑nos, mortifiquemo‑nos, pois o que não tem o espírito de Jesus Cristo, que é um espírito de cruz, não pertence a Ele”.

Trata-se do despojamento próprio àqueles que desejam ser escravos de Nosso Senhor e de Nossa Senhora. Estes sofrem, choram, jejuam, humilham-se, rezam, mortificam-se e abraçam a pobreza. Atributos dos quais o mundo tem verdadeiro pavor. E por que essas almas se sujeitam a tais sofrimentos? Porque desejam adquirir o espírito de Jesus Cristo, receberem as graças d’Ele a fim de com Ele se identificarem.

Os que são de Jesus Cristo mortificaram a carne com as suas concupiscências; é preciso ser conforme a imagem de Jesus ou condenar‑se. “Coragem, exclamam eles, coragem! Se Deus está por nós, em nós e diante de nós, quem estará contra nós? Aquele que está em nós, é mais forte do que o que está no mundo”.

São Luís aponta a solução: se Jesus Cristo habitar em mim, serei capaz de aceitar o preço por segui-Lo; se Ele não estiver em mim, faltar-me-á coragem para tal.

Combater segundo o Evangelho e não conforme a moda

O servo não é maior que seu senhor. Um momento de leve tribulação redunda num peso eterno de glória. Há menos eleitos do que se pensa. Só os corajosos e os violentos arrebatam o céu de viva força; ninguém ali será coroado se não houver combatido legitimamente segundo o Evangelho, e não conforme a moda. Combatamos, pois, vigorosamente; corramos para atingir a meta, a fim de ganharmos a coroa. Eis uma parte das palavras divinas com que os Amigos da Cruz mutuamente se animam.

Portanto, a oposição entre os dois partidos está bem estabelecida. De um lado, Jesus Cristo, o modelo; de outro lado, a moda, os costumes do mundo, aos quais São Luís alude, dando a entender tudo quanto possuem de viscoso, de fascinação por coisas vãs, em última análise, de ilusões.

Pelo contrário, os mundanos, a fim de se animarem a perseverar na sua malícia sem escrúpulos, gritam todos os dias: “Vida, vida! Paz, paz! Alegria, alegria! Comamos, bebamos, cantemos, dancemos, brinquemos! Deus é bom, Deus não nos fez para nos perder; Deus não nos proíbe de divertir, nem seremos condenados por isso. Nada de escrúpulos!”

Temos aqui a ideia infelizmente muito difundida de que, no fundo, o vício não será punido, pois Deus é bom. Na verdade, trata-se, não do Deus de misericórdia que acolhe o pecador arrependido, mas de um Deus de falsa bondade, indiferente ao pecado. Mais uma vez, é a oposição entre duas mentalidades.

Amor à Cruz, sinal de que a sabedoria habita em nossa alma

Concluo essas considerações de hoje com uma observação a respeito dos mistérios que cercam a alma humana.

São Luís Grignion escreveu essas palavras porque as considerava úteis, e as concebeu sob um evidente sopro da graça. Ou seja, a graça divina teve a intenção de animar essas páginas. Entretanto, de tal maneira nos parece árduo carregar a Cruz junto com Nosso Senhor, que, ao lermos os pensamentos expressos pelo santo, dificilmente não nos virá ao espírito a seguinte ideia: “Isto tudo é um lero-lero surrado, já conhecido por mim e por todos, que não precisa ser relido”.

Quer dizer, esses princípios na verdade tão pouco repetidos, quase nunca ensinados, penetram em nossa alma uma vez e a repetição deles nos dá a sensação de algo fastidioso e monótono. Nós, que seríamos capazes de ouvir inúmeras vezes uma mesma música, assistir duzentas vezes uma mesma peça de teatro ou manter durante horas uma conversa com a mesma pessoa, desde que aproveitem ao nosso interesse e apego, julgamos tratar-se de lengalenga essas altas e inapreciáveis reflexões de um santo.

 Vemos, por aí, como é de fato penoso elevar o espírito humano através do sofrimento; como há uma repulsa quase instintiva ao amor à Cruz. E, portanto, como a devoção a essa mesma Cruz é algo de suma importância e indispensável para a nossa vida espiritual.

Eu diria mais. Se nos empolgarmos ao ouvir falar da Cruz e do sofrimento, se admirarmos a dor cristãmente aceita e sentirmos o vazio de uma vida sem padecimentos, tais disposições serão um sinal de que a sabedoria habita em nossa alma.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 1/7/1967)