O Homem-Deus – II

Continuando seus comentários à divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Dr. Plinio salienta a extrema maldade daqueles que O supliciaram.

 

Dir-se-ia que vindo à Terra o Homem-Deus, diante de provas tão claras, de manifestações de uma superioridade divina a todo momento, o povo eleito — o qual sabia que o Salvador nasceria dele, e estava esperando-O — haveria de reconhecer o Messias, aclamá-Lo com glória e eleva-Lo ao píncaro do gênero humano. Se o povo judeu tivesse reconhecido o Messias, com a força de Nosso Senhor Jesus Cristo, romanos, gregos, persas, egípcios, nada significariam. Esse povo seria elevado a um cume extraordinário!

Aqui se inicia o mistério da maldade humana. Esse povo que existia para isso, gemia porque o Messias não vinha; quando Jesus apareceu uma facção do povo se pôs desde logo contra Ele. E se cindiu: uma fração pequena do povo começou a adorá-Lo, a partir dos pastores que estavam em Belém e tiveram o anúncio do nascimento de Nosso Senhor. Mas, de outro lado, a maior parte passou a persegui-Lo.

Logo depois do nascimento de Jesus, Herodes fez o cálculo infame: “Deve ter nascido o Messias, porque os reis magos o estão dizendo. Ele ameaça o meu trono. É o Salvador previsto pelos profetas. Eu estou acreditando, ou pelo menos achando tão provável que até fico amedrontado”. E, para gozar a vida e ter o prazer de ser rei, Herodes quis matar Nosso Senhor sem nem sequer O ter visto, só porque Ele estava no mundo! Mandou, então, eliminar os inocentes, para evitar que o Inocente por excelência vivesse.

Desígnios misteriosos de Deus, caminhos que se compreendem só posteriormente! São José, coarctado pela falta de bondade da população em Belém, que não quis receber a ele e a Nossa Senhora, levou a Santíssima Virgem para uma gruta, fora da cidade.

Quando Nosso Senhor inicia sua vida pública, fazendo inúmeros milagres, o povo se entusiasma etc., aquele cálculo de Herodes se repete nas classes que mais O deveriam aclamar, quer dizer, na sacerdotal e na classe alta política, as quais começam a ter medo: “Quem é este homem que está levando atrás de si tais multidões? Ele é perigoso para nós; de repente nosso poder fica reduzido a nada!” Inicia-se, então, uma espécie de guerra, a “psy-war”, com calúnias e perguntas embaraçosas.

Os fariseus e os saduceus mandam pessoas fazer perguntas a Jesus, que O deixem mal à vontade. Pobres coitados! Se uma formiga quisesse lutar contra um animal quimérico, tão pesado como um elefante e forte como um leão, ela estaria mais próxima de vencer do que qualquer homem disputando com Nosso Senhor Jesus Cristo!

Questões elaboradas nos laboratórios da maldade e da insinceridade, todas retorcidas, cheias de ciladas. Posta a pergunta, vinha a resposta, em geral simples, direta, pulverizadora e luminosa.

— De quem é essa efígie?

— É de César.

— Pois dai a Deus o que é de Deus e a César o que é de César.

Não há mais nada a dizer.

O Evangelho conta que se difundiram calúnias a respeito de Nosso Senhor: era glutão, mundano, ambicioso… Como poderia ser ambicioso Ele que era tudo? É mais ou menos imaginar que um leão quisesse fazer carreira, transformando-se na abelha-mestra de uma colmeia…

Disseram que Ele comia em casa de publicano, para bajular as pessoas que tinham dinheiro… Falaram até — suprema calúnia, supremo insulto contra a evidência — que Nosso Senhor tinha parte com o demônio. Logo Ele, que era direta e esplendorosamente o contrário do demônio; nem é tão exato dizer que Jesus era o oposto do demônio: o demônio era o contrário d’Ele!

Várias pistas da conjuração por excelência que operou o deicídio

Começa-se a criar uma onda contra Nosso Senhor, a qual leva, em primeiro lugar, os muito ruins, que eram uma minoria bem colocada, poderosa e influente.

A partir da tintura-mãe dessa maldade da minoria, a onda começou a crescer de “proche en proche”, de vizinhança em vizinhança, a tomar os ambiciosos, os que se vendiam, aqueles que não queriam o mal pelo mal, mas se amavam tanto que, colocados diante de Nosso Senhor Jesus Cristo, eram capazes de dizer: “Ele é tudo isto, mas ficarei popular, bem-visto, terei importância, se ajudar a calúnia. Portanto, para que os maus me batam as palmas, me glorifiquem, vou também, embora não tenha certeza, começar a falar mal de Jesus”.

Depois desses maus de segundo grau, outra zona moral do povo foi atingida: a dos moles. “Se eu disser o que penso, serei perseguido, e isso não quero. Embora eu verifique que contra Jesus esteja se fazendo uma injustiça abominável, uma ignomínia, uma infâmia, essas coisas são com Ele, não comigo! Quero levar vida fácil, agradável, de maneira que eu possa me instalar bem nesta Terra. Comprometo a minha carreira, tomando a defesa de Jesus. Logo, vou também falar mal d’Ele.”

“Falar mal é horrível. Vejo fulano, um “molóide” como eu — que não tem coragem de enfrentar os outros para não ser perseguido —, falar mal de Jesus. Mas eu sou um homem reto, e não farei isso. Simplesmente não falarei bem. E quando disserem d’Ele, diante de mim, as coisas mais inverossímeis, ficarei quieto.

“Não sou inimigo d’Ele; no fundo, gosto d’Ele, às vezes rezo para Jesus e Ele é tão bom que me atende. Razão a mais para eu não tomar o partido d’Ele. Se Jesus não me ajudasse, eu talvez tivesse vantagem de tomar sua defesa, porque Ele então me atenderia… Mas, uma vez que Ele me auxilia até quando não tomo o partido d’Ele, fico bem com uns e com Ele. Encontro aí o caminho bom para mim, onde me ponho.”

Em seguida, vem a coorte imensa dos voluntariamente imbecis: “Não tenho bastante capacidade intelectual para me situar diante desse problema. Se eu o visse com clareza, tomaria posição. Mas, Deus me deu uma inteligência pequena, não tenho muito jeito para resolver isto. De maneira que vou fechar os olhos e deixar correr o marfim”.

Essas várias zonas do povo foram sendo atingidas, estabelecendo-se em torno de Nosso Senhor o vazio.

A crise no Colégio Apostólico e a traição de Judas

A entrada d’Ele em Jerusalém, no Domingo de Ramos, foi uma manifestação de quanto o povo, apesar de tudo, O via e apreciava, mas não na medida do necessário, do justo. Aclamavam-No, é verdade, mas Ele merecia muito mais!

Fazem-Lhe uma meia festa. Por isso, em geral, as pinturas e gravuras de Nosso Senhor entrando em Jerusalém O apresentam com tristeza, pesar, e dirigindo um olhar quase severo para a multidão que O aplaudia. Para Ele o interior das almas não oferece segredo, e Jesus percebia a insuficiência, a precariedade daquela ovação de que Ele era objeto.

Humildemente sentado sobre um burrico, Ele atravessava em meio à multidão, chamando a todos, pela sua presença, a amarem a Deus. Porém, ao mesmo tempo, percebia as negações, as recusas, a frieza, a hipocrisia deste ou daquele ato de admiração, e sofria com isso.

Se fôssemos estudar todo o padecimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, e não só a Paixão, dir-se-ia que a partir da primeira ingratidão Ele começou a sofrer. Quando teria sido essa primeira ingratidão? Não se sabe. Ela veio aos tufos, em grande quantidade, no Domingo de Ramos. Se fosse só isso…

Aproximam-se as festas judaicas da Páscoa. Nosso Senhor, inteiramente fiel à Lei — Ele era, como Deus, o Legislador —, realiza a ceia na quinta-feira e está com seus apóstolos à mesa. Sabia que um deles, portanto dos mais chegados, O havia traído. Esse apóstolo, que estava em crise, era um homem que Ele tinha chamado. Quer dizer, pela graça Nosso Senhor atraiu Judas Iscariotes para junto d’Ele, mas provavelmente Judas correspondeu mal, desde o primeiro momento. E foi um apóstolo medíocre, que deu depois num apóstolo infame. Crise, crise…

Confiaram a esse homem a guarda do dinheiro para as esmolas e, conta-nos o Evangelho, ele era ladrão. Roubava da caixa comum para gastos consigo a fim de satisfazer sua ganância.

Se fosse só essa crise… Os apóstolos “fervorosos” lá se encontravam com o Redentor; é o banquete. Ele lava os pés dos apóstolos, perdoa-lhes os pecados.

A tristeza vinha tomando a alma de Nosso Senhor; em certo momento disse o Redentor que um deles haveria de traí-Lo. Ele foi tão bom, que não afirmou outra coisa: “E vós todos haveis de Me abandonar”.

Ele conhecia a traição, e também o abandono. Um deles, São João, colocou o ouvido sobre o peito de Jesus, em gesto de amizade e intimidade, e perguntou quem era o traidor. Cristo respondeu: “Aquele a quem Eu der o pão molhado no vinho”. Ele não quis dizer o nome de Judas. Para não perceberem, deu uma resposta rápida, e falou baixinho. Tomou o pão e ofereceu-o amavelmente a Judas. Carinho para com Judas até o último momento.

Nosso Senhor dá a Judas aquela ordem misteriosa: “O que tens que fazer, faze-o logo”. E o traidor saiu durante a noite, e foi consumar o pecado dele.

Jesus não mandou Judas pecar. Mas Judas, naquele momento, rompeu com Nosso Senhor e retirou-se. Podemos imaginar seus passos aflitos, apressados: “Trinta dinheiros! Quero trinta dinheiros!” É melhor não excogitar como se fez o pacto, e o que Judas pensou quando sentiu os trinta dinheiros pesarem na sua sacola.

E quando Judas O oscula para que Jesus fosse preso, ainda é uma pergunta com carinho: “Judas, com um ósculo tu trais o Filho do Homem?” Judas não ligou. Trinta dinheiros, o resto não importa!

Todos conhecem essa história, que terminou ignobilmente numa figueira…

O Divino Redentor passa pela tristeza de constatar que também os Apóstolos escolhidos não O viam. No Horto das Oliveiras, quando dormiam, todos os esplendores de Nosso Senhor Jesus Cristo para eles eram nada. Estavam com sono, queriam dormir. E na hora do perigo todos fugiram. Até aquele que pousara o ouvido sobre o peito d’Ele, e ouvira as batidas de seu Sagrado Coração!

Os algozes não podiam deixar de perceber a perfeição de Jesus

Na Paixão, Nosso Senhor sentia-Se completamente recusado pelos homens, pelo povo eleito. Entretanto, Ele era divino, incomparável! Por que tinham feito isso? Que enorme injustiça, que impiedade sem conta, que revolta atroz contra Deus! Vislumbramos, então, a tristeza, a indignação, o sofrimento de sua Alma.

É neste ponto que entra a flagelação, o primeiro mistério do Rosário considerando a agressão física contra o Homem-Deus. Amarram-Lhe as mãos, atam-No a uma coluna e começam a fustigá-Lo por ódio a Deus.

Poder-se-ia objetar: “Mas eles não sabiam que Ele era o Homem-Deus, e até negavam isso. Como o senhor pode dizer que era por ódio a Deus?”

Eles viam aquela perfeição, que é uma com Deus, e tal perfeição eles odiaram. Portanto, agrediram Nosso Senhor por ódio a Deus.

Se alguém, tomando a fotografia de um dos que está aqui, diz, embora sem conhecê-lo: “Mas que tipo antipático, detestável! Vou crivar de punhaladas essa foto; depois amarrá-la numa árvore e dar tiros contra ela; e ainda atear fogo nos molambos de papel que restarem”.

A pessoa assim ultrajada diria: “Esse homem não me quer, ele me odeia”.

É claro! Eles sabiam, neste sentido, que ali estava Deus.

Começa, então, o contraste pungente entre a mansidão, a bondade, a voluntária incapacidade de defender-Se, de um lado; e o ódio brutal, estúpido, cruel, de outro lado.

Para amarrar Nosso Senhor, os algozes Lhe dizem com brutalidade: “Dá cá as mãos!” Ele, não com uma mão, mas apenas com um dedo poderia expulsar aquela gente toda.

Se quisesse, o Redentor chamaria as coortes do Céu para descerem e defenderem-No; elas viriam imediatamente, porque Ele não chamava, mas mandava!

Jesus entrega as mãos, que eles amarram com brutalidade, utilizando corda tosca, rude, e um modo de amarrar que, com certeza, atormentava, prejudicava a circulação, tolhia os movimentos etc. Tinham a ilusão estúpida de que, amarrando-O, Ele estava amarrado. Bastaria Ele dizer: “Corda, rompe-te”, que ela cairia no chão; ou, se quisesse, poderia transformá-la em serpente, que atacaria aqueles malvados.

Mas Nosso Senhor queria sofrer. O extraordinário é que uns queriam flagelá-Lo e Ele queria ser flagelado. Jesus Se entregou à flagelação.

Os algozes já tinham tirado a túnica do Divino Salvador, ou mandaram-Lhe que a tirasse. Sua vestimenta sagrada era a túnica inconsútil —que não tem costura —, a qual havia sido tecida por Nossa Senhora, e não tinha sujeira nenhuma, pois o Corpo divino só podia irradiar a mais alva limpeza. Por um ato de vontade do Redentor, nada podia macular esta túnica, e os verdugos jogam-na ao chão, com raiva. Ele pensa nas mãos de Nossa Senhora, que a teceram, mas nada diz: era mais uma dor que Nosso Senhor queria sofrer.

A doçura inefável dos gemidos do Homem-Deus atado à coluna da flagelação

Levam-No para junto de uma coluna e, certamente com bofetadas, empurrões, gargalhadas, amarram aquela corda que prendia suas mãos em alguma argola da coluna — porque assim se faziam as flagelações. E aqueles homens — que homens! —, com terríveis açoites, começam fustigá-Lo com toda a força, e Ele a gemer.

Podemos imaginar a doçura, a beleza harmoniosa desse gemido, aquele Corpo santíssimo que se contorcia de dor, pela brutalidade do tormento que estava sofrendo; pedaços de carne caíam ao solo: eram carnes do Homem-Deus! Seu Sangue salvador corria aos borbotões. Ele de pé, digníssimo, inteiramente manso, sem nenhum protesto, nem exclamação de dor, apenas falando com o Padre Eterno. Era o seu refúgio naquela ocasião. E seu Corpo, do alto da cabeça até a planta dos pés, ficou repleto de ferimentos gravíssimos. Era o martírio do qual haveria de resultar a Redenção do gênero humano.

Terminada a flagelação, mandaram-No — os tempos eram de mais pudor do que os de hoje — apanhar a túnica. Com dores inimagináveis devido aos movimentos, Ele foi buscá-la e a revestiu, sabendo que iria começar a “Via Crucis”. Quer dizer, Ele entrava em outra sequência enorme de tormentos de toda ordem.

Considerem a muito bonita imagem de Nosso Senhor que está neste auditório. Ela é principalmente expressiva, vendo-a de baixo para cima. Seu olhar mostra, segundo o artista — a meu ver com fundamento —, o estado de espírito de Jesus durante a flagelação: preocupação, a aflição diante do tormento que vinha, a dor que Ele estava sofrendo em todo o seu Corpo. Mas uma distensão completa, uma mansidão perfeita e uma dignidade de Rei. Nunca rei nenhum teve uma púrpura igual à d’Ele: a do seu Sangue infinitamente precioso.

Isso foi o pórtico, o começo da Paixão cruenta de Nosso Senhor. Depois veio a coroação de espinhos, a Via Sacra, uma série de sofrimentos até o alto do Calvário.

Ele, carregando a Cruz, caiu três vezes sob o peso dela. Pregaram-No na Cruz e seu Corpo ficou doloridamente pendente; tentava apoiar-Se nos pés, mas os cravos neles fincados faziam aumentar a dor… E sua sede ia progredindo, em razão da quantidade de Sangue que tinha perdido. As torturas, as sombras da morte começaram a invadi-Lo, até o momento em que Ele bradou: “Meu Pai, Meu Pai, por que me abandonastes?”

Até o último instante cuidando dos outros, com uma lucidez divina ordenando todas as coisas. Para São João: “Filho, eis aí a tua Mãe”; a Nossa Senhora: “Mãe, eis aí teu filho”. Para o bom ladrão, São Dimas: “Hoje estarás comigo no Paraíso.” Foi a primeira canonização, feita pessoalmente por Nosso Senhor; que glória, que alegria!

E, pensando o tempo inteiro no gênero humano que Ele redimiria quando completasse a Paixão, Jesus disse “Consummatum est”. Nesse momento, Ele salvou o gênero humano.

Nosso Senhor pensou em cada um de nós

Pensou em nós. Esta triste coleção dos homens passou diante de Nosso Senhor. Ele sofreu por este, por aquele, por aquele outro; por cada um dos que se encontram neste auditório, a fim de alcançar as graças pelas quais estamos aqui.

Quando cada um fizer o histórico de sua vocação — como foi chamado, de que modo correspondeu, se cambaleou, como se pôs de pé e continuou o caminho —, lembre-se que Nosso Senhor Jesus Cristo pensou em tudo isto no momento da flagelação!

Talvez, quando um pedaço de sua carne divina caía ao chão, em meio à dor, Ele tenha pensado: “É por aquele filho que há de viver no século XX, o qual amo especialmente e quero que traga outros a Mim. É terrível, mas está bem sofrido!”

E se algum de nós peca contra Ele, máxime em matéria grave, é a mesma coisa do que tomar o pedaço da carne que Jesus deixou cair ao solo por amor de nós, e Lhe atirar no rosto.

O que se pensaria de um flagelador tão cruel, ao qual Nosso Senhor dissesse: “Meu filho, por você caiu-Me esse pedaço de carne no chão”; e o flagelador respondesse: “Ah! é? Toma aqui”, e o lança na face? Seria pior do que qualquer açoite. Os católicos, sobretudo os especialmente chamados, fazem isso quando não são fiéis a Ele.  v

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/4/1984)

Revista Dr Plinio 152 (Novembro de 2010)

 

Carregar a cruz com dignidade suprema

Nós, católicos, podemos ser humilhados, espezinhados, calcados aos pés, mas sabemos que raiará o dia do Reino de Maria, e que os homens do futuro invejarão as humilhações pelas quais passamos.

 

Um tema muito bonito é Nosso Senhor na tríplice qualidade de Rei, Pontífice e Profeta.

Rei, Sacerdote e Profeta

Rei é aquele que está no alto de uma certa ordem e a governa, a ordem lhe obedece. Nosso Senhor Jesus Cristo, como Homem-Deus, é Rei de toda a humanidade e de toda a Criação. Como tal é Ele quem manda na História dos homens. Ele quis dar aos homens a faculdade de fazerem o bem e o mal, o poder de agirem contra ou a favor do Direito. De maneira que, quando os homens fazem o mal, eles vão contra a vontade divina, mas Deus quis que eles tivessem essa faculdade, para depois exercer a Justiça sobre eles.

Então, Nosso Senhor Jesus Cristo é Rei até quando os homens se revoltam contra Ele, porque foi Ele quem os dotou dessa liberdade. No fundo, no zigue-zague de toda a História, Ele faz acontecer o que Ele quer. Assim como Nosso Senhor é o Rei da História, é também Rei de todo o universo, do curso dos astros, de tudo quanto se passa na natureza.

Jesus Cristo é Sacerdote porque oferece a Deus toda a Criação no auge da qual Ele está, mas, sobretudo, porque é o Redentor do gênero humano. Ele é Vítima e Sacerdote, pois Se ofereceu a Si próprio para expiar por toda a humanidade. Ele é, pois, Sumo Sacerdote, o Pontífice que possui um pontificado universal. Os outros pontífices, o clero, são pontífices por participação d’Ele. O Pontífice é Ele.

Ele é o Profeta porque predisse o que faria e realizou sua profecia. Os outros profetas previram coisas que outros se incumbiram de cumprir, eles não cumpriram. Jesus previu e fez. Portanto é profeta numa plenitude especialíssima do termo.

Os homens do futuro invejarão as humilhações pelas quais passamos

A cada passo da sua Paixão, com a majestade infinita d’Ele, ao mesmo tempo em que estava sendo escarnecido, humilhado, sentindo todas as dores morais e físicas da situação em que Se encontrava, tendo ciência de que seria morto, sabia também que aquilo tudo seria objeto de uma glória como nunca ninguém teve; uma glória rainha e mestra de todas as outras glórias.

Então, enquanto estava com a coroa de espinhos, com a túnica, o manto e o cetro de irrisão e, portanto, no auge do desprezo e do abandono da parte de todo o mundo, Nosso Senhor sabia que um dia viria onde o poder d’Ele seria tão grande que os maiores reis da Terra se desvaneceriam diante da ideia de poder pôr no respectivo cetro um fragmentozinho daquela cana que servia de cetro de irrisão. Se não se tivesse perdido aquela cana, ter-se-iam construído catedrais para guardar fragmentos dela.

Aquela túnica de bobo tinha diversos significados místicos, teológicos, sobre os quais os maiores espíritos haveriam de escrever enlevados, certos de não chegarem até o fundo do tema. E aquela coroa de espinhos haveria de ser de tal maneira venerada que o maior rei da Cristandade, no seu tempo, São Luís IX, haveria de construir uma Sainte-Chapelle para abrigar um dos espinhos dessa coroa.

Nosso Senhor Jesus Cristo conhecia tudo isso e, do fundo de sua dor e de sua humilhação, carregava a majestade da vitória que haveria de vir.

“Mutatis mutandis”, com todos nós, católicos, é assim também. Podemos ser humilhados, espezinhados, calcados aos pés, mas sabemos que raiará o dia do Reino de Maria, e que os homens do futuro invejarão as humilhações pelas quais passamos. Quando as pessoas se lembrarem de um jovem casto, atravessando essas cidades impuras, pregando o nome de Nossa Senhora, cortando essas poluições, se ajoelharão ao pensar nisso.

Portanto, na nossa situação devemos carregar com dignidade suprema, como Nosso Senhor carregou, os emblemas da irrisão, da humilhação e do ódio que caem em cima de nós.         v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 26/11/1982)
Revista Dr Plinio 260 (Novembro de 2019)

Guerreiro justíssimo, defensor de uma causa santíssima

Nosso Senhor Jesus Cristo é Rei, tanto em virtude do poder espiritual quanto do temporal. A coroa que Ele usa simboliza a plenitude de seu poder. Não o domínio necessariamente limitado de um monarca terreno, mas o poder ilimitado de Deus.

Isto significa que a mais alta figura da organização humana não é um rei ou qualquer outro chefe de Estado, nem um papa, mas é Cristo Rei.

A doutrina da realeza de Nosso Senhor Jesus Cristo é própria a despertar uma profunda adoração a Ele, inclusive no referente ao poder temporal, considerado como mero instrumento do Homem-Deus, Senhor de todas as coisas e dominando tudo: “Rex regum et Dominus dominantium”.

Esta concepção de que o cetro global do poder encontra-se nas mãos divinas de Nosso Senhor Jesus Cristo eleva tanto a ideia sobre a sociedade temporal, que daí decorre a noção de sacralidade.

Por outro lado, Nosso Senhor, enquanto presente na Sagrada Eucaristia, tem um título de peculiar presença entre os homens e, portanto, também na História, na qual Ele é especialmente atuante a partir do Santíssimo Sacramento. Porque Jesus na Eucaristia é, por assim dizer, Nosso Senhor que desce do Céu à Terra e, como Homem-Deus, continua ao lado dos homens a luta que Ele começou por ocasião da Encarnação do Verbo.

Assim, seria preciso acrescentar a Nosso Senhor, ao lado de Sacerdote, Pontífice e Rei, o título de Guerreiro no exercício da realeza. Atributo que não se confunde com a realeza, mas lhe é inerente. Cristo Gladífero e Cristo Eucarístico estão, pois, na mesma linha, intervindo dentro da História, mas morando entre os homens.

Enquanto Eucarístico, Ele é o Bom Pastor; enquanto Gladífero, seria mais o Deus do Apocalipse, que nos apresenta Nosso Senhor Jesus Cristo como um cavaleiro que avança terrível, montado num cavalo branco com uma espada na boca, para batalhar(1). Portanto, o símbolo do cavaleiro mais do que armado.

Nós, como cavaleiros católicos, devemos querer imitar o Divino Mestre, que tem bondades inimagináveis, mas também severidades terríveis. Este é o verdadeiro cavaleiro: bondoso, misericordioso, paciente, mas que em certo momento recebe um sinal de Deus, por onde acaba a hora da misericórdia e começa a da justiça. Com este olhar devemos considerar aqueles que nos atacam e nos perseguem, perseguindo a Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

Se a Sagrada Escritura apresenta Jesus Cristo assim, é porque Ele tem também este aspecto, enquanto paradigma do cavaleiro. Nessas condições, Ele deve ser admirado e amado por nós como um guerreiro justíssimo, defensor de uma causa santíssima que é a Causa d’Ele, pois Ele é a própria Inocência e Justiça, que investe indignado contra aqueles que recusam a sua misericórdia e insistem em destruir a obra d’Ele. Visto deste ângulo, o Apocalipse é a narração das intervenções divinas na História, ou seja, Cristo Rei intervindo na História e vencendo.

Como corolário disso, temos a realeza de Maria Santíssima. Porque todo o poder d’Ele sobre os homens passa antes por Nossa Senhora. Ela é, por assim dizer, a Rainha-Mãe regente da Terra(2).

 

Plinio Corrêa de Oliveira

1) Cf. Ap 1, 16;  6, 2.

2) Cf. Conferências de 2/9/1982, 10/9/1989 e 30/4/1993.

Nossas obrigações para com a Cruz

Na seqüência de seus comentários ao opúsculo escrito por São Luís Maria Grignion de Montfort, Dr. Plinio ressalta esta grave advertência do santo: quem quiser ser um autêntico Amigo da Cruz, deve fugir do mundanismo que o conduzirá por um caminho de perdição, oposto ao da perfeição e santidade para o qual foi chamado.

 

São Luís Grignion de Montfort assim continua a sua Carta:

Sois por vossas ações, meus queridos Amigos da Cruz, aquilo que o vosso grande nome significa? Ou pelo menos tendes vontade e desejo autênticos de assim vos tornardes com a graça de Deus, à sombra da Cruz do calvário e de Nossa Senhora da Piedade? Entrastes no verdadeiro caminho da vida (Pr 6, 23; 10, 17; Jr 21, 8) , que é o caminho estreito e espinhoso do Calvário? Não estareis, sem pensar nisso, no caminho largo do mundo, que é a via da perdição? Sabeis que existe um caminho que parece ao homem reto e seguro, e que conduz à morte (Pr 14, 12)?

Justificadas apreensões de um Santo

Nestas perguntas transparece intensamente o espírito de São Luís Grignion. Quer dizer, de um lado ele toma em consideração os Amigos da Cruz como pessoas eleitas por Deus para um alto chamado. De outro lado, porém, ergue-se diante delas a malícia do século, e à vista das condições em que estas pessoas vivem, São Luís manifesta suas  apreensões. Donde formular questões como esta: “sois verdadeiros Amigos da Cruz?”

Ou seja, fácil é alguém tomar o nome de Amigo da Cruz, mas igual facilidade há para deixar de sê-lo. Portanto, trata-se de uma preocupação cujo fundamento é evidente. Então, insiste: “Pelo menos tendes verdadeiro desejo e vontade de assim vos tornardes com a graça de Deus”, etc.?

A formulação empregada por ele é muito apropriada e fina, porque um verdadeiro Amigo da Cruz é alguém que, em primeiro lugar, está em ordem com seus deveres para com a Santa Cruz. Mas também é aquele que possui ao menos um desejo autêntico de estar em ordem a esses deveres. Poderá ter suas faltas, suas fraquezas, mas almeja atingir a plenitude de entrega própria ao seu chamado. Este será considerado igualmente um verdadeiro Amigo da Cruz.

Dois graus de amor à Cruz

Percebe-se aqui dois graus de amor à Cruz, assim como pode haver dois graus de perfeição religiosa no cumprimento de uma vocação.

Antes de tudo, tal perfeição é a inteira conformidade do membro de uma ordem com sua respectiva regra. Contudo, pode dar-se o caso de que algum religioso, ainda neófito, não tenha alcançado essa conformidade; ou, por desventura, terá retrocedido na sua trajetória rumo àquela perfeição. Mas, se ele demonstrar o desejo de se tornar um verdadeiro religioso e de adquirir um elevado grau de observância, ele ainda se achará no seu lugar próprio dentro da ordem. Quer dizer, há para com ele, da parte de Deus e dos seus superiores, uma atitude de misericórdia, de compaixão, e até de compreensão, a par das graves exigências que a regra lhe impõe.

O mesmo se aplica ao Amigo da Cruz. Há aquele que se entregou por completo ao amor e ao serviço da Cruz para com ela se identificar; e há aquele que, por lacunas espirituais, ainda não alcançou essa plenitude de devoção, mas a deseja atingir. Então, olhando para estes últimos, São Luís Grignion escreve: “Não estareis, sem pensar, no caminho largo do mundo, o caminho da perdição? Sabeis bem que existe uma via que parece reta e segura, e na realidade conduz à morte?”

A expressão “sem pensar”  é curiosa,  e insinua bem o que poderia ser uma culpa inconsciente do Amigo da Cruz. Ora, o caminho do mundo é tão agradável, e o homem de tal maneira se habitua ao que lhe compraz, que ele por irreflexão acaba cometendo uma falta. Esta, embora não seja inteiramente consciente — e, portanto, não reúna as condições próprias ao pecado mortal — é um passo em falso. E a sucessão de faltas e concessões inconscientes, acabam desviando a pessoa para longe do caminho verdadeiro. Daí a nota da prudência pastoral, da vigilância de São Luís de Montfort em relação a esses Amigos da Cruz.

Censura aos que cedem à concupiscência do mundo

Continua ele:

Distinguis bem a voz de Deus e de sua graça, da voz do mundo e da natureza? Escutais a voz de Deus, nosso Pai, que depois de ter dado a sua tríplice maldição a todos que seguem as concupiscências do mundo: Ai, ai, ai dos habitantes da Terra (Ap 8, 13), grita‑vos amorosamente, estendendo‑vos os braços: separai‑vos, meu povo (Nb 16, 21). Separai‑vos, meu povo escolhido, queridos Amigos da Cruz de meu Filho, separai‑vos dos mundanos, malditos por minha majestade, excomungados por meu Filho (Jo 17, 9), e condenados por meu Espírito Santo (Jo 16, 8-11).

Importa compreender bem a razão dessas fortes censuras, dessa maldição tão pesada sobre o mundanismo.

Lembremo-nos de que, na linguagem da vida espiritual, o apego e o amor desregrado às coisas do mundo é, ao lado do demônio e da carne, uma das concupiscências que inclinam o homem para o pecado e o afastam de Deus. Portanto, o mundanismo assim entendido sempre foi algo ruim, ao qual o católico desejoso de alcançar a santidade deve combater.

No tempo de São Luís Grignion, o mundanismo ainda se revestia de uma aparência elevada e nobre, característica do Ancien Régime prévio à Revolução Francesa, mas que preparou largamente a irrupção desta no cenário europeu. Se tomarmos gravuras que representam burgueses dos séculos XVI e XVII, veremos que são ainda pessoas sérias, compassadas, dignas. Não era uma burguesia mundana, e tinha conservado toda aquela circunspeção dos antigos tempos. Pelo contrário, considere-se um burguês das vésperas da Revolução Francesa, e já não se o distingue mais do nobre, não só porque os trajes se igualaram, mas também por causa da atitude. Nivelaram-se. E o mundanismo revolucionário que impregnava as cortes, irradiou-se para as outras camadas da sociedade, putrefazendo-a por completo.

Em nossos dias, podemos dizer que o mundanismo se multiplicou pelo mundanismo, e as suas seduções, atiçadas por obra do demônio, são ainda mais perniciosas. Donde as censuras de São Luís Grignion conservarem toda a sua atualidade, e são perfeitamente aplicáveis aos que se entregam ao mundo, pois estes romperam com as amarras que os uniam a Deus Nosso Senhor.

Se desejamos ser autênticos Amigos da Cruz, devemos limpar nossas almas de qualquer laivo de mundanismo, de qualquer apego ao que há de frívolo, de laicista e de fundamentalmente contrário à sabedoria, nos costumes do mundo.

Contagiabilidade da virtude contra o vício

Continua São Luís Grignion:

Tomai cuidado para não vos sentardes em sua cadeira toda empestada, não sigais os seus conselhos, nem mesmo pareis em seu caminho (Sl 1, 1).

Essa cadeira toda empestada de que fala São Luís é uma referência ao Salmo 1, onde o salmista exclama: “Feliz o homem que (…) não se assenta entre os escarnecedores”, ou, segundo outras traduções, “que não toma assento na cátedra de corrupção dos pecadores”. Esta última expressão me parece ainda mais vigorosa. Quer dizer, trata-se da cadeira de onde o pecador ensina o pecado e, de certa forma, é a própria sede do pecado, na qual este se instala e aí faz luzir sua “glória”.

Fugi da grande e infame Babilônia (Is 48, 20; Jr 50, 8), não escuteis outra voz e não sigais outras pegadas senão as de meu Filho bem-amado, que vos dei por vosso caminho, vossa verdade, vossa vida (Jo 14, 6), e vosso modelo (Mt 17, 5).

Vemos aqui uma espécie de demolição ardente, levada a cabo por São Luís Grignion, contra toda a sedução exercida pela sociedade frívola do seu tempo. Ele queria os Amigos da Cruz afastados desse mundanismo.

Por outro lado, é também interessante notar que no meio dessa sociedade frívola surgiram outros movimentos de autêntica piedade católica, que reagiram a seu modo contra a decadência generalizada do ambiente em que viviam. Creio que tal reação se deve ao princípio da contagiabilidade da virtude, considerado por nós em exposição anterior. Ou seja, na ordem sobrenatural há reversibilidades, reciprocidades, interações pelas quais uma virtude séria e profunda praticada de um lado repercute no outro. Assim, havendo na Vandeia ou na Bretanha daquela época, muitos genuínos Amigos da Cruz, efetivamente separados do mundo, ainda que não conhecessem os Amigos da Cruz de Versailles, aqueles reforçavam a possibilidade de perseverança, de santificação e de vitória destes últimos no meio dos deleites e das delícias da corte mundana.

O exemplo de Maria Teresa d’Áustria

Recordo-me, a esse propósito, da figura da grande imperatriz Maria Teresa d’Áustria. Não se tratava de uma santa, mas era uma boa senhora católica, com o padrão mínimo de algo do qual a santidade é a expressão mais elevada. E ao considerar muitos aspectos de sua rica personalidade, poderemos ver quanta retidão, compostura, destreza, e quanta dignidade assentada sobre o trono, em meio a uma corte que, se não era a primeira, era das mais importantes do mundo, a do Sacro Império Romano Alemão.

Creio que essa situação só se tornava possível por esse trabalho de subestrutura da virtude que se contagiava entre os bons de lugares diferentes. E em seguida notava-se a recíproca: a Cruz levantada no mais alto degrau da corte, repercutia sobre todo o país e nas camadas profundas da população, gerando novos Amigos da Cruz. Esses são os grandes mecanismos por onde o amor de Deus se afirma, se multiplica e conquista as almas.

Abraçar a Cruz em união com o Divino Redentor

Prossegue São Luís Grignion:

Não escutais esse amável Jesus que, carregando sua cruz, vos conclama: vinde após Mim (Mt 4, 19), o que me segue não anda nas trevas (Jo 8, 12); tende confiança, Eu venci o mundo (Jo, 16, 33)?

Conforme o ensinamento de todos os grandes autores, São Luís Grignion acrescenta que a Cruz só é suportável quando carregada em união com Nosso Senhor. A Cruz concebida esquematicamente, apenas de modo teórico, aterroriza o homem e este foge dela. O único modo de a Cruz ser atraente, é considerar Aquele que nela se acha pregado e d’Ele receber as forças necessárias para aceitá‑la.

É palavra do próprio Jesus: “Quando Eu for elevado, atrairei a mim todas as criaturas”. Ou seja, o Divino Crucificado é o verdadeiro encanto da Cruz, o que realmente atrai as almas para ela. E não apenas atrai, como lhes concede as graças e o vigor indispensáveis para carregá-la. Com os olhos fitos n’Ele, pensando no seu Sagrado Coração e no precioso Sangue que por nós derramou, na sua agonia e morte, é que adquirimos forças para segui-Lo.

E não nos esqueçamos de que essas graças e essas forças nos são concedidas por intermédio de Maria Santíssima, a Medianeira Universal, que se encontrava aos pés da Cruz, com seu Coração Imaculado transpassado e coroado de espinhos.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 17/6/1967)

Revista Dr Plinio 116 (Novembro de 2007)

 

Por não aceitar a cruz o mundo apedreja o justo

Sempre desvelado formador de seus seguidores, em especial os mais jovens, Dr. Plinio se empenhava em lhes fazer compreender esta verdade que todo apóstolo deve ter em conta: a via da Cruz e  do sofrimento está em contradição com o espírito do mundo, o qual, por não aceitá-la, chega até a perseguir quem pratica o bem.

 

Há um ponto curioso em nosso apostolado, e de um modo geral na história da Igreja, que convém muito focalizar: o homem que se entrega à virtude, desejando progredir nas vias de Deus, é sujeito de vez em quando a movimentos de idiossincrasia ou de rejeição em relação àqueles mesmos que procuram levá-lo para o bem.

Ao considerarmos o fruto do trabalho de um apóstolo, será ingenuidade pensar que ele tomou contato com os que o seguem, abriu-lhes o caminho do Céu e, com toda a simplicidade, aceitaram o  convite que lhes foi feito, pondo-se a acompanhar os passos indicados, com amor, dedicação e fidelidade a quem lhes serve de guia.

Na realidade — e a vida dos Apóstolos é cheia de exemplos em sentido contrário — as coisas não ocorrem com essa singeleza, porque na alma humana existem movimentos contraditórios. E se é  verdade que em muitas ocasiões e circunstâncias somos levados a amar aqueles que nos servem de guia para a virtude, há também situações lamentáveis em que esses mesmos benfeitores são objeto de repulsa de nossa parte.

Por quê? Porque o caminho do bem é o caminho da cruz; o caminho da cruz é o caminho do sacrifício; o caminho do sacrifício é o caminho da dor. Ora, o caminho da dor não é aprazível… Se há  um homem que nos diz: “Adianta-se nessa direção! Sei que ir por ali dói, mas, depois, na ponta dessa trajetória está o Céu”, nós temos vontade de responder: “Bendito és tu que nos levas para o  Céu”. E logo em seguida somos tentados a acrescentar: “Que homem insuportável és tu que não encontras outro caminho para o Céu, a não ser pisando sobre espinhos!” É a miserável tendência do espírito humano.

A infidelidade dos Apóstolos na Paixão: o horror da cruz expulsou o amor

Isto se deu de um modo frisante nos Apóstolos com relação a Nosso Senhor.  O Divino Mestre os tratou como sabemos, deu-lhes a abundância de suas graças, manifestou aos olhos deles perfeições que até hoje encantam e entusiasmam a humanidade.

Mas a resposta dos Apóstolos foi a que todos também conhecemos pelas narrações do Evangelho. Tome-se, por exemplo, o discípulo bem-amado, incumbido pelos outros de fazer uma pergunta a  Nosso Senhor, e que foi erigido na qualidade de medianeiro de todos para discernir os arcanos de Deus. São João Evangelista, o primeiro homem que sentiu o pulsar do Coração de Jesus e,  portanto, o primeiro devoto — exceção feita de Nossa Senhora e eventualmente de São José — do Sagrado Coração, recebeu a prova de que o Divino Mestre era grato àquele pedido e ao modo  como era feito, isto é, pondo o ouvido sobre o peito d’Ele. Jesus respondeu: “Aquele a quem eu der o pão embebido no vinho, este é o traidor”. Mas, na hora da Paixão, São João Evangelista fugiu. Ele tinha dormido no momento em que devia estar acordado.

Quando Nosso Senhor repreendeu os Apóstolos por estarem imersos no sono, Ele não disse: “Com exceção de João Evangelista, por que dormis?” Ele pergunta a todos: “Por que dormis?!”  Lembra-o magnificamente o canto polifônico de Tomás Luís de Victoria: “Quid dormitis? Vel Judam non videtis quomodo non dormit, sed festinat tradere me?” — “Vós não vedes Judas que não  dorme, mas se apressa em me trair?!” O próprio discípulo amado estava nesse rol e dele não foi excluído.

Misteriosamente, São João aparece depois aos pés da cruz. Não se sabe em que instante nem de que modo ele se converteu, mas tudo me leva a supor que foi uma graça especial e personalíssima  obtida por Nossa Senhora. A Santíssima Virgem o terá visto passar por algum caminho e lhe disse: “João!”

Quando ele a ouviu pronunciar seu nome, todas as resistências más dele se dobraram, e o futuro Evangelista se transformou. Terá sido esta ou alguma outra graça do gênero. Talvez, por um  fenômeno de bilocação, Ela tenha aparecido e falado com ele num antro qualquer onde estaria escondido, e de algum modo tocou o seu coração. São hipóteses. Assim, vemos que São João Evangelista, apesar do grande amor que nutria por Nosso Senhor, de tê-Lo sempre seguido, em certo momento, quando percebeu como o Divino Mestre estava aterrado e compreendeu a avalanche que viria por cima dele, não resistiu ao espantalho da dor e da perseguição. Fugiu… O medo do sofrimento e o horror da cruz expulsaram  o amor. Só ficou o temor. E ele fugiu. O mesmo se deu com todo o resto do Colégio Apostólico.

Um israelita no qual não havia fraude prevaricou na hora da Paixão

Quando trato deste assunto, costumo comentar o fato impressionante de São Bartolomeu. Ele foi apresentado a Nosso Senhor,  que lhe demonstrou especial afeto e fez dele este elogio magnífico: “Eis um verdadeiro israelita, no qual não há fraude”. Tome-se em consideração que o israelita era o cidadão do povo de Deus.

São Bartolomeu era, pois, um verdadeiro israelita, com algo a mais: não havia fraude nele… O louvor de Nosso Senhor é extraordinário. Jesus, tendo-o visto, disse-lhe certas palavras que revelavam sua omnisciência; São Bartolomeu compreendeu e confessou que Ele era verdadeiramente Deus. Chega, porém, a hora da Paixão, e São Bartolomeu dorme, foge, não está presente em  nenhum momento. Só se sabe dele que apareceu depois no Cenáculo. Nada mais.

A imprevidência, o pecado e a contrição de São Pedro

Percebe-se, assim, o mecanismo singular da vocação, do chamado e da torpeza na alma de homens insignes, que tinham dado provas não negligenciáveis de fidelidade.

Por exemplo, quando Nosso Senhor disse que sua carne é verdadeiramente comida e seu sangue verdadeiramente bebida, e muitos de seus discípulos horrorizados com essa afirmação se  retiraram, Ele se voltou para os Doze e perguntou: “Vós também não quereis me abandonar?” Como quem diz: “Se quiserdes, ide! Porque o que Eu tinha que dizer, Eu disse. Está feita a minha afirmação!”

Nessa hora, São Pedro teve aquela frase lindíssima: “Para onde iremos, Senhor, se só Vós tendes palavras de vida eterna?” Mais tarde, Nosso Senhor lhe profetiza: “Antes que o galo cante, tu me  terás negado três vezes”. São Pedro, depois que Nosso Senhor foi preso, dirigiu-se àquele átrio onde estava acesa uma fogueira, “ut videre in finem”, para ver o que ia acontecer com o Mestre. De  espírito superficial, ele não se lembrou que deveria se acautelar, pois havia uma predição terrível de que ele renegaria, naquela noite, três vezes a Nosso Senhor! Ele se meteu dentro do perigo.

Ou seja, naquele momento, São Pedro revelou uma terrível imprevidência e uma grande superficialidade em não tomar a sério o que Nosso Senhor lhe havia dito. Sem embargo do que, Jesus teve  pena dele, e se conhece todo o resto. Até o fim dos seus dias São Pedro chorava, quando lhe voltava a lembrança desse episódio. E segundo piedosa tradição, seu rosto ficou marcado com o sulco das lágrimas que lhe corriam continuamente ao se recordar daquele divino olhar que o Redentor condescendera em lhe dirigir. Pode-se imaginar o que esse olhar queria dizer! Se nos fosse dado  ter um minuto de um olhar como aquele penetrando o nosso, estremeceríamos de reconhecimento, de confusão, de amor, de pedido de perdão…

Quanto tempo durou o olhar de Nosso Senhor para São Pedro? Como foi esta troca de olhares, a mais emocionante que houve na História dos olhares humanos, se excluirmos o primeiro olhar que  ossa Senhora trocou com o Menino Jesus quando Ele nasceu, e o último olhar entre Ela e Ele antes da morte na Cruz? Esses últimos são olhares pinaculares, que ficam acima de tudo quanto  se pode cogitar, mas depois, abaixo deles, é difícil imaginar que tivesse havido olhar mais comovedor do que esse para São Pedro.

Porém, antes desse olhar, colocado diante de Nosso Senhor que o atraía tanto, que o deslumbrava tanto, quanta infidelidade, quanta coisa irregular, quanta miséria — por que não dizer? — quanta  torpeza! Esse é o mecanismo miseravelmente perigoso da alma e do coração humanos.

Nossos beneficiados nos apedrejam, porque não querem aceitar a cruz

E todos nós que desejamos levar outros a Nossa Senhora e, por meio d’Ela, a Nosso Senhor Jesus Cristo, devemos esperar essas resistências, essas grosserias de alma, essas recusas, esses  apedrejamentos vindos da parte de quem beneficiamos. E devemos esperar como algo muito provável, presente no caminho daqueles que querem conduzir almas a Deus. Pois aqueles a quem  fazemos bem, esses normalmente — salvo exceções raríssimas — nos apedrejarão, falarão mal de nós, objetarão nossas palavras, etc.

Por quê? Porque sentem a atração do Céu para o qual os convidamos, mas sentem também o convite da cruz. E diante deste chamado, sentem repulsa: “Eu terei que fazer tal coisa, terei de aceitar  tal outra, terei de me conformar com tal situação! Esse homem quer isso de mim! Não haverá um meio mais simples de arranjar isso? Será que eu tenho de pagar todo esse preço?! Dizem-me: ‘Ele tem o direito de te exigir esse preço, porque ele mesmo o  pagou’. Minha resposta é: que tenho eu lá a ver com o preço que ele pagou?! Ele quis pagar, pagou! Eu não tenho força para pagar e não pago! E me ponho contra ele, faço-me inimigo dele!”

imprevidência, o pecado e a contrição de São Pedro

Quantas vezes na história do apostolado católico vemos amizades se transformarem em indiferenças brutais, em hostilidades declaradas, em sistemáticas oposições, às quais cumpre responder como Nosso Senhor respondeu aos seus inimigos quando carregava a cruz: com mansidão, com paciência, sem um momento de cólera, oferecendo os seus sofrimentos por aqueles mesmos que O  injuriavam e O traíam.

Pode-se imaginar, durante a Via Sacra, quantas vezes Nosso Senhor pensou nos Apóstolos que não estavam lá? E quantas vezes Ele terá oferecido a dor pungente que Lhe causava a ausência dos  preferidos? E como Ele, pela voz da graça, pedia a Nossa Senhora, pedia a todas as almas fiéis, às Santas Mulheres que estavam ao pé da cruz, se unissem às orações d’Ele para que aqueles se convertessem?  Imitemos, pois, o nosso divino modelo, e saibamos converter em outro precioso fruto de apostolado, as rejeições e indiferenças de que sejamos objeto.

Senhor, dai-me forças que Vos seguirei!

Para conseguir o Reino de Maria —­ o grande ideal de sua vida — Dr. Plinio compreendia ser necessária muita dor, a fim de que a impiedade reinante no mundo atual fosse derrotada. Assim como o Redentor derramou todo o seu Sangue para esmagar o demônio, ele estava disposto a sofrer tudo para que, em união com os padecimentos de Cristo, fosse alcançada a vitória de Nosso Senhor sobre os ímpios.

 

Após o pecado de nossos primeiros pais, o gênero humano poderia ter sido exterminado com a precipitação de Adão e Eva no inferno. Porém, Deus não quis isso, mas sim que seu plano primitivo em relação aos homens, seres intermediários entre os Anjos e os animais, se realizasse, fosse perpetuada a ordenação do universo como Ele a havia concebido, e se operasse, em certo momento, a maravilha da Encarnação do Verbo.

Era preciso que a dor e a derrota fossem o preço da grande vitória

Com efeito, Ele quis precisar de um Homem que tivesse um mérito infinito, para expiar pelo pecado de Adão e de Eva. Então, Deus Pai decretou:

“A natureza humana, na qual a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade irá se encarnar, padecerá tudo. Ela sofrerá, será derrotada, esmagada, crucificada e liquidada aos olhos dos homens, até o momento glorioso da Ressurreição. Mas pelo valor infinito deste sofrimento, será esmagado Satanás e se abrirão para os homens as portas do Céu. Desta mesma estirpe maculada dos filhos de Adão nascerá a Virgem imaculada que, por obra do Espírito Santo, dará à luz o Imaculado por excelência, Jesus Cristo, meu Filho, no qual haverá a união hipostática. Oh! maravilha! Isto Eu farei porque Jesus resolveu sofrer até o fim. O sofrimento, a derrota, o padecimento d’Ele serão a minha vitória sobre a morte, o demônio e o pecado.

“O gênero humano vai padecer, vai pecar. Mas virá um dia em que uma Virgem nascerá. E essa Virgem, concebida sem pecado, pedirá que venha o Messias. E o que ninguém alcançou, Ela alcançará, e o que Ela não imagina se dará: o Messias será concebido, por obra do Espírito Santo, das entranhas puríssimas dessa Virgem, e esse Messias, com o consentimento e o oferecimento d’Ela, será sacrificado no alto da Cruz. Derrota espetacular! Derrota tremenda! Ela O receberá morto sobre os joelhos e presidirá a cerimônia fúnebre por onde o cadáver d’Ele, recortado de golpes, de pancadas, de dilacerações, será coberto das ervas aromáticas, que, segundo o rito judaico, devem acompanhar os corpos dos mortos na sepultura. Ela O seguirá até lá e, depois, ficará num isolamento misterioso, enquanto Ele estiver no isolamento do seu sepulcro. Três dias depois, Jesus ressuscitará num esplendor único e começará a série de vitórias. O demônio ficará arrasado!”

Era preciso, portanto, que Um resolvesse sofrer, expiar, tomar ares de derrotado, de repudiado pelos acontecimentos, pelas circunstâncias, e que a dor e a derrota d’Ele fossem o preço para a grande vitória de Deus.

Taça de dor oferecida a Nossa Senhora

Desde então, nunca deixou de haver na Igreja, ao longo de toda a sua História, almas que se oferecessem na aparência da derrota, da humilhação, das demoras inexplicáveis, dos desmentidos esmagadores de suas esperanças, vertendo, com isso, o sangue de suas almas. Mas Deus quer esse sangue para vencer as batalhas que Ele trava.

E se o Reino de Maria brilhar, como nós temos certeza que brilhará, e o demônio for esmagado, estejamos certos de que contribuíram para isso os nossos padecimentos, ao longo de todas essas décadas: os meus velhos sofrimentos e os vossos jovens sofrimentos. Tudo isso somado terá contribuído para preencher uma taça de dor que nós entregaremos a Nossa Senhora, quando chegar o último momento de sofrer, e dissermos:

“Mãe, tudo quanto é produzido por nós, apresentado a Deus sem ser por Vosso intermédio, não vale nada. Mas, oferecido por meio de Vós, vale tudo. Aqui está tudo quanto nos pedistes: todo o suor, todo o sangue, todas as lágrimas que enchem, de sobejo, essa taça. Condescendei em sorrir para tanta dor! Dignai-Vos abençoar e purificar isso que, se não passar por Vós, não tem condições para agradar a Deus. Sorri para essa oferenda, ó Mãe, purificai-a e apresentai-a ao vosso Filho!”

Nesse momento em que Maria Santíssima Se voltar para Jesus e disser “Filho, a última gota foi posta por eles, a última perfeição foi posta por Mim”, o som de um gongo simbólico percorrerá todas as vastidões dos Céus e da Terra e começará o triunfo.

”Christianus alter Christus”

O último sangue que o homem tem que verter, e que de fato verte, é o mais precioso que ele dá. É por essa razão que eu tenho tanta devoção ao episódio de Nosso Senhor transfixado pela lança de Longinus. Ele tinha derramado todo o seu Sangue, mas queria — por um desígnio insondável — dar mais. E havia ainda algum soro no interior de seu Corpo Sagrado, e esse soro, misturado com uns restos de Sangue, precisava ser vertido. Então, aquele soldado vem e crava a lança no Sagrado Coração, e jorram Sangue e água.

É a última barbaridade, a última tortura, a última dor, o último Sangue. É o perfume mais magnífico, a doação suprema, a entrega mais esplêndida. É aquilo que mais deixou os Anjos encantados no Céu, e Nossa Senhora, ao mesmo tempo rompida de dor, mas extasiada de admiração na Terra.

Esta dor, este sofrimento é o contributo para tudo quanto nós esperamos. E se é preciso que eu sofra, aqui estou, como vítima à maneira do Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo. “Christianus alter Christus”: o cristão é um outro Jesus Cristo. Se é meu dever unir meus padecimentos aos sofrimentos divinos d’Ele, eu aceito! Descarregue-se em mim a dor, se for necessário! Eu me ofereço como vítima e digo: “Senhor, se o raio de vossa cólera tem que cair sobre minha inocência para comprar a vossa vitória sobre os ímpios, que caia Senhor, mas vencei-os!”

Foi preciso que o Cordeiro de Deus, puríssimo além de toda expressão possível de pureza, fosse morto para expiar pelos pecadores infames. O mérito do Sangue do Cordeiro, por assim dizer, deu a Deus o direito de resgatar das garras do demônio aquilo que não se lhe tiraria mais. E, desse modo, o demônio foi esmagado. Mas o Altíssimo quer que demos o nosso sangue junto com o d’Ele. Deus quis que nosso Rei, o Rei de toda a glória, Se apresentasse na hora da vitória coberto de chagas, de dores. Um dos profetas pôde dizer que o Redentor Se tornara como um leproso, e que do alto da cabeça até a planta dos pés, por causa da Paixão, não havia n’Ele uma parte do Corpo que estivesse sã.

Então, Nosso Senhor sofreu por mim, e eu não sofrerei por Ele? Que horror!

A alegria de participar do grande desfile inaugural do Reino de Maria

Quando o padre celebra a Missa — esse símbolo me encanta! —, após colocar o vinho no cálice, verte nele uma gota de água. Qual a razão de ser dessa água, se é o vinho que vai ser transubstanciado? Ela representa os sacrifícios dos homens, unidos ao sacrifício de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ao misturar-se com o vinho, aquela água forma com ele uma só substância; ela, de si, não poderia ser matéria para a transubstanciação, mas unida ao vinho transubstancia-se em Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Assim também os nossos sofrimentos, unidos aos de Nossa Senhora e aos de Nosso Senhor, adquirem o mérito que nunca teriam, e como tais se apresentam diante de Deus, que quer essa gota de água e nos pede: “Meu filho, não é uma gota, mas um tonel, pois é tudo o que há em ti. Sento-Me à tua cabeceira e te digo: Queres dar-Me?”

Como dizer “Senhor, não”?!  A única resposta possível é: “Senhor, quanta bondade de terdes pensado em mim! Eu inteiro sou vosso; dai-me forças que Vos seguirei!”

Vemos, portanto, a beleza dessa espera que padecemos. Enquanto essa espera se dá, nós estamos comprando a vitória. Talvez não entendamos, mas a Fé nos ensina que isso é assim. E quando chegar a hora da vitória, Nosso Senhor, na sua glória, Nossa Senhora, magnífica no reluzimento de sua realeza, sorrirão para nós e dirão: “Meus filhos, vós bem sabeis que sangue entrou nisso! Lembrai-vos de tal hora, de tal momento, de tal ocasião? Tudo isso ajudou para comprar agora este triunfo. Vinde,  Nós vos associamos à nossa glória!”

Qual será, então, a alegria daqueles que, pela própria dor, compraram a promulgação do Reino de Maria? A participação no grande desfile inaugural do Reino de Maria! Não há palavras que indiquem isso suficientemente.

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/1/1983)
Revista Dr Plinio 187 (Outubro de 2009)

 

Uma ilustre conquista de Nosso Senhor Jesus Cristo

Ser um autêntico Amigo da Cruz significa nutrir na alma um particular amor aos valores sobrenaturais, e ter sempre em vista esta subida verdade: fomos engendrados durante a Paixão de Cristo; mil dores e gemidos precederam nosso nascimento, que se deu através da chaga aberta no flanco do Redentor. Dr. Plinio prossegue suas considerações sobre o opúsculo escrito por São Luís Grignion de Montfort.

 

Como vimos em nossa última exposição, São Luís Grignion estabelecia certas características fundamentais do autêntico Amigo da Cruz, entre elas, o possuir um espírito metafísico, desapegado dos interesses terrenos e voltado primordialmente para os valores sobrenaturais.

Cumpre formar as almas no amor às verdades metafísicas

Ora, para se ter esse feitio de alma é necessário uma formação católica que cultive, com seriedade, o amor às verdades metafísicas, que proporcionará ao fiel uma sólida disposição para abraçar a Cruz e o sofrimento. Infelizmente, tal formação não é corrente, e essa lacuna traz como funesta conseqüência, entre outras, o fato de pessoas se subtraírem às aulas de catecismo e abandonarem prematuramente a prática da religião. Afirmar, pura e simplesmente, que elas rejeitaram a ascese e por isso se expõem ao risco da condenação eterna, é um julgamento sumário.

Ponderemos. Foi-lhes explicada a doutrina da Igreja sobre as virtudes católicas em toda a sua importância e magnitude? Por outro lado, mostraram-lhes até onde chega a degradação dos vícios? Ou apenas se lhes falou dos Dez Mandamentos, com referências concisas, sem explanações complementares?

Quer dizer, há portanto toda uma ascese para se amar a Cruz, a qual, ao longo dessas exposições, à medida que o texto o favorece, procuramos apontar.

São Luís Grignion nos deu, até aqui, dois pressupostos para se tornar um Amigo da Cruz. O primeiro consiste na ternura diante dos padecimentos infinitos de Nosso Senhor Jesus Cristo no Calvário. Segundo, acima lembrado, o espírito metafísico por onde a pessoa se destaca da consideração das realidades meramente palpáveis e dirige seu pensamento para o invisível, para os bens sobrenaturais. Quem quiser se formar na escola dos Amigos da Cruz deve, pois, cultivar esses traços de alma.

Indivíduos particularmente chamados

Continuemos a analisar as palavras de São Luís Grignion:

Um Amigo da Cruz é uma ilustre conquista de Jesus Cristo crucificado no Calvário, em união com sua Santa Mãe…

Faço notar, uma vez mais, que em toda a Carta, São Luís escreve “Amigo da Cruz” com A e C maiúsculos, pois ser membro dessa sociedade por ele fundada é uma “ilustre conquista de Jesus Cristo”. Ou seja, Nosso Senhor conquistou cada um particularmente, derramando seu Sangue para que este e aquele fossem mais chamados e recolhidos no cenáculo dessa instituição. E — belíssima característica de São Luís Grignion — a referência nunca esquecida a Nossa Senhora:

…em união com sua Santa Mãe. É um Benoni ou Benjamin, filho da dor e da destra…

Refere-se aos dois nomes dados ao último filho de Jacó: o primeiro por sua mãe, Raquel, o outro por seu pai (Gn 35, 18). “Filho da dor e da destra”, bonita expressão, indicativa de traços da própria alma de São Luís Grignion de Montfort. Com efeito, embora ele não explique, entre a destra e a dor há certa correlação. Pode-se entrever que a dor propicia méritos para o indivíduo se tornar um filho da destra, isto é, um filho que é direito, sério, honrado, objeto de especial preferência. Não há destra sem dor, e toda dor santa tem algo de destra.

Filhos da dor, cobertos pelo Sangue de Cristo

… gerado em seu dolorido Coração, vindo ao mundo por seu lado direito atravessado e coberto da púrpura de seu Sangue.

Eis uma comparação em extremo contundente, própria a surpreender as almas superficiais. Imaginemos um marquês do Ancien Régime(1), trajado com roupas vistosas e de espírito frívolo, a quem São Luís Grignion afirma que deveria “ser gerado no dolorido Coração de Jesus, vindo ao mundo por seu lado direito atravessado e coberto da púrpura de seu Sangue”… A superficialidade do nobre receberia um duro golpe!

Pois outro não é o paralelo estabelecido pelo santo. Ele compara o nascimento do filho da destra, ou seja, do Amigo da Cruz, à gestação e ao parto dolorosos de uma criança; no caso, vindo à luz em meio ao sofrimento, através do Coração de Cristo aberto por uma lança. Aí nasceram os especialmente chamados, que vêm à Terra cobertos pelo Sangue do Redentor. São filhos da dor, da agonia e da morte, e não do prazer. Nasceram para as sublimidades dessas perspectivas e não para a frivolidade. Seu feitio de espírito é o oposto ao do homem mundano, que deseja viver apenas para a fruição das transitórias alegrias terrenas.

Esteio da mentalidade de um autêntico católico

Importa termos sempre em vista essa subida verdade: fomos engendrados durante a Paixão de Cristo. Mil dores e gemidos precederam nosso nascimento. Este se deu tragicamente, através da chaga do lado de Nosso Senhor, provocada pela lança de Longinos. Portanto, onde a última gota de água, o último sangue, a derradeira oblação, a extrema generosidade se fizeram notar. Compreende-se, assim, a diferença entre essa visualização e o mundanismo.

Recordo-me de que nas antigas cerimônias de Semana Santa, durante a Via Sacra se cantava: “Pelas lágrimas de Maria, tende de nós compaixão; por vossa última agonia, tende de nós compaixão; Jesus, perdão, perdão”. Nesse hino as pessoas se compraziam em considerar a luminosa e sublime tristeza de Nosso Senhor, e ao ouvi-las cantando, eu pensava comigo mesmo: “Embora muitos não estejam compenetrados, o fato de entoarem esse cântico lhes dá uma tal ou qual participação no valor daquilo que a letra da música exprime”. Ou seja, participavam do amor à Cruz de Cristo.

Reafirmo, portanto: nada em matéria de pensamento de vida interior vale qualquer coisa se não proceder desse sofrimento, do ato sacrifical de Nosso Senhor no alto da Cruz e de nossa gestação dolorosa aí realizada. Isto constitui o esteio da mentalidade de um autêntico católico. Todos os santos foram assim. E todos somos chamados a nos enternecer com a Paixão de Nosso Senhor, com sua Sagrada Face ensanguentada, desfigurada, machucada.

Mortos para o mundo, a carne e o pecado

Continua São Luís Grignion:

Dada a sua extração sangrenta, ele [Amigo da Cruz] só respira cruz, sangue e morte ao mundo, à carne e ao pecado, para estar totalmente oculto aqui na Terra com Jesus Cristo em Deus.

Trata-se, pois, da atitude em face dos adversários da Cruz, isto é, o mundo, a carne e o pecado. Além disso, refere-se o Santo à passagem da epístola de São Paulo aos colossenses: “estais mortos, com efeito, e vossa vida é toda oculta em Deus com Jesus Cristo” (Cl 3, 3). É uma metáfora com a qual ele indica que devemos morrer para as coisas materiais e carnais, utilizando-nos destas apenas na medida em que favorecem nossa união com Deus, e não para os meros deleites que podem nos proporcionar.

Enfim, um perfeito Amigo da Cruz é um verdadeiro porta-Cristo, ou antes, um Jesus Cristo, de maneira que possa, em verdade, dizer: “vivo, mas não eu, é Jesus Cristo que vive em mim” (Ga 2, 20).

Magnífica afirmação de São Luís Grignion, mostrando-nos o Amigo da Cruz como um porta-Cristo, ao mesmo tempo que nos faz essa soberba promessa de apostolado: aonde vai o Amigo da Cruz, este leva Nosso Senhor consigo. Portanto, sua evangelização se reveste de uma suprema eficácia.

Vê-se, assim, uma vez mais, a grande necessidade de formar as pessoas para compreenderem o atrativo da Cruz, amá-la e, desse modo, deixarem Nosso Senhor Jesus Cristo viver nelas. E isto supõe uma profunda gravidade de alma, contrária a tudo quanto podem pensar os espíritos superficiais.

 

(Continua em próximo artigo)

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 3/6/1967)

1) Período da história da França iniciado em princípios do século XVII e extinto em 1789, com a Revolução Francesa.

 

O Homem-Deus

Ao iniciar uma das concorridas conferências de Dr. Plinio, jovens membros de seu Movimento pedem-lhe que comente a flagelação de Nosso Senhor Jesus Cristo. E proclamam os seguintes trechos de um artigo por ele escrito(1):

 

Por que foi o Bom Jesus manietado por seus algozes? Por que impediram eles o movimento de suas mãos, prendendo-as com duras cordas? Só o ódio ou o temor poderiam explicar que assim se reduza alguém à imobilidade ou à impotência. Por que odiar assim estas mãos? Por que temê-las?

A mão é uma das partes mais expressivas e mais nobres do corpo humano. Quando os pontífices e os pais abençoam, fazem-no com um gesto de mão. Quando o homem inocente perseguido se vê saturado de dores e apela para a justiça divina, é ainda com as mãos que ele amaldiçoa. E por isto, os homens osculam as mãos que fazem o bem e algemam as mãos que praticam o mal.

Vossas mãos, Senhor Jesus — agora sangrentas e desfiguradas, entretanto tão belas e tão dignas —, desde os primeiros dias de vossa infância, quem pode dizer, Senhor, a glória que estas mãos deram a Deus, quando sobre elas pousaram os primeiros ósculos de Nossa Senhora e de São José?

Quem poderia dizer com quanta meiguice e com quanto carinho fizeram a Maria Santíssima o primeiro carinho? Com quanta piedade se uniram pela primeira vez em atitude de prece? E com quanta força, quanta nobreza, quanta humildade, trabalharam na oficina de São José? Mãos de Filho perfeito, que outra coisa fizeram no lar, senão o bem?

Por que, Senhor, tanto ódio? Por que tanto medo, que pareceu necessário atar vossas mãos, reduzir ao silêncio vossa voz, extinguir vossa vida? É porque alguém receasse ser curado ou afagado? Quem, porventura, teme a saúde, ou quem odeia o carinho?

Senhor Deus, para compreender esta monstruosidade, é preciso crer no mal, é preciso reconhecer que tais são os homens, que sua natureza facilmente se revolta contra o sacrifício. E que, quando entra no caminho da revolta, não há infâmia, nem desordem de que não seja capaz. E quando alguém diz “não”, começa a Vos odiar, odiando todo o bem, toda a verdade, toda a perfeição de que sois a própria personificação.

E se não Vos tem à mão sob forma visível, para descarregar seu ódio satânico, golpeia a Igreja, profana a Eucaristia, blasfema, propaga a imoralidade, prega a Revolução! Vossos inimigos amam tanto o mal, que percebem ainda sob as humilhações das cordas que vos prendem, toda a força de vosso poder, e tremem!

Ó Bom Jesus, vossos adversários tremem diante da Igreja, enquanto eu, miserável, vendo-a manietada, reputo tudo perdido…

Vossa Igreja, entretanto, participa de vossa força interior e pode, a qualquer momento, destruir todos os obstáculos com que a cercam!

Nossa esperança não está nas concessões, nem na adaptação aos erros do século. Nossa esperança está em Vós, Senhor!

Atendei às súplicas dos justos, que vos imploram por meio de Maria Santíssima:

Enviai, ó Jesus, o vosso Espírito, e renovareis a face da Terra!

O que, fundamentalmente, fazia sofrer a Nosso Senhor Jesus Cristo?

Na agonia — contemplada no primeiro mistério doloroso — a Alma santíssima de Nosso Senhor sofreu de modo inenarrável. A repercussão desse sofrimento da Alma sobre o Corpo ocasionou o suor de sangue. O Corpo sagrado de Nosso Senhor ainda não fora atingido de modo direto, mas somente à maneira de reflexo, de corolário.

O primeiro mistério em que contemplamos o Corpo d’Ele ferido diretamente é a flagelação. Seguem depois a coroação de espinhos, Nosso Senhor com a Cruz às costas e a Crucifixão. Assim, nos cinco pontos sucessivos dos mistérios dolorosos, a Paixão inteira de Nosso Senhor, de Alma e de Corpo, está expressa.

Mas, de fato, a dor da Alma não cessou de nenhum modo quando começaram os sofrimentos do Corpo. Pelo contrário, foi num crescendo; a Paixão de sua Alma foi se desenvolvendo à medida que a Paixão do Corpo aumentava. E chegou ao ápice no momento do “Consummatum est” — Tudo está consumado, e Jesus expirou.

Na Paixão, Ele padeceu no Corpo, mas, sobretudo na Alma. O que, fundamentalmente, fazia sofrer a Nosso Senhor Jesus Cristo?

Seria preciso um oceano de tempo para fazer uma meditação completa sobre este tema. Mas alguns pontos podem ser dados, sumariamente. Assim, entro diretamente no assunto.

Verdadeiramente homem, verdadeiramente Deus!

Em Nosso Senhor Jesus Cristo há uma só Pessoa com duas naturezas, a divina e a humana. A Igreja definiu esta verdade nos primeiros séculos, depois de ter saído das catacumbas, contra muitas heresias que pretendiam desfigurar essa realidade, ora afirmando que Cristo era exclusivamente um homem, ao qual Deus tinha, por assim dizer, extrinsecamente tocado um pouco; ora dizendo, pelo contrário, que Ele era um fantasma, uma figura que Deus suscitara para dar a impressão de que tinha havido a Encarnação. Porque eles não queriam se consolar com a ideia desse arco voltaico sublime, feito entre Deus Onipotente e Criador e o homem tão miserável.

Conforme o ensinamento da Igreja, Nosso Senhor Jesus Cristo é uma só Pessoa, com duas naturezas. Para dar alguma comparação, consideremos o homem que tem uma parte animal e outra espiritual, as quais formam uma só pessoa. Essas duas naturezas, o aspecto animal e o aspecto espiritual — o aspecto anjo, digamos —, convivem perfeitamente, de tal maneira que a muitos de nós nunca passaria pela mente perguntar como somos constituídos.

Em Nosso Senhor Jesus Cristo, a natureza divina e a natureza humana coexistem perfeitamente e estão hipostaticamente unidas, de modo a constituírem uma só Pessoa, a segunda Pessoa da Santíssima Trindade, o Verbo de Deus que se fez carne, quer dizer, formou-se nas entranhas puríssimas de Nossa Senhora, resultante do esponsório da Santíssima Virgem com o Espírito Santo.

Segundo inúmeros teólogos, ainda que não houvesse o pecado original e, portanto, não fosse necessário Nosso Senhor vir à Terra para resgatar os homens, teria havido a Encarnação do Verbo.

Embora representasse perfeitamente o gênero humano, Adão não possuía o mais alto grau que a natureza humana pode atingir.

Deus dispôs toda a Criação admiravelmente: os anjos com suas três hierarquias, e em cada uma delas três categorias, formando nove coros, que cantam perpetuamente a glória divina; abaixo dos anjos — em certo sentido, pouco abaixo; em outro sentido, enormemente abaixo dos anjos —, vêm os homens.

Adão, o primogênito do gênero humano, Deus o criou com grandeza de inteligência, bondade de vontade e riqueza de personalidade. E com uma força, bem como um aspecto perfeito da face e do corpo, que o faziam digno de ser o primeiro dos homens, o primeiro jorro desta torrente, que deveria ser a Humanidade.

Ele era belo e grande em todos os sentidos da palavra. O Criador o fizera esplendidamente dotado de alma, o elevou à ordem sobrenatural, vivia na graça de Deus. Havendo nele a ordem perfeita, seu corpo e notadamente sua face eram o símbolo perfeito de sua alma.

Tinha, portanto, a beleza física, que era o aspecto material de sua beleza moral, e que se completavam harmonicamente. De maneira que, quem olhasse para Adão, veria a perfeição do gênero humano manifestada de modo adequado e esplêndido.

Tudo isso entrou em decadência, em degradação, com o pecado original. E os homens nascidos de Adão e Eva tiveram a marca do pecado original e, depois, a dos pecados que foram cometendo, causando os resultados por nós conhecidos.

Se não tivesse sido cometido o pecado original, e os homens nascidos no Paraíso Terrestre lá continuassem — porque eles, no Éden, seriam pecáveis; muitos poderiam pecar, mas seriam expulsos —, constituiriam como que uma raça perfeita, eleita, magnífica, repetindo de algum modo as grandezas e os esplendores de Adão.

Adão, embora representasse perfeitamente o gênero humano, que haveria de nascer, não era seu ápice. A perfeição é escalonada, e ele não possuía o mais alto grau que a natureza humana pode atingir.

Nosso Senhor Jesus Cristo, considerado na sua humanidade santíssima, é a suprema perfeição do gênero humano.

Deus, na sua sabedoria infinita, não cria as coisas como quem retira de uma sacola punhados de confete e os joga na rua, sem saber sua quantidade e o local para onde os lança. Muitas pessoas têm a impressão de que a Criação foi assim: Deus tirou do nada — que seria o saco de confetes — tufos de pessoas, que começaram a viver meio espantadas de estarem juntas, não havendo uma ordenação superior que as reuniu para determinado fim.

Mas o Criador faz as coisas de um modo especial, ou seja, com uma perfeição que só Ele pode proporcionar. A partir do barro, criou Adão. E depois os outros homens, fazendo com que se reproduzam como conhecemos, e dotando cada um de uma alma espiritual. De tudo isto, no plano de Deus, forma-se uma coleção ordenada, como seria, por exemplo, uma coleção de leques, de relógios, de armas, em que cada peça tem sua individualidade, sua razão de ser, e constitui uma harmonia com as outras peças.

Para melhor exprimir essa ideia de harmonia, todos os homens — o gênero humano — constituem uma harpa colossal, com milhões de cordas que vibram sob o olhar de Deus. Se cada corda vibrar como Ele quer, executa uma harmonia digna dos anjos e do próprio Criador.

É claro que, nesta coleção, Deus haveria de fazer as coisas com graus de perfeição desiguais. Pelo princípio da unidade deve haver variedade. E em razão do princípio da unidade na variedade, ou da variedade na unidade, nessa coleção estabelecida, planejada pela Providência, teria que existir um ser supremo.

Esse supremo, que leva a perfeição do gênero humano a um grau inconcebível por nós, é Nosso Senhor Jesus Cristo, considerado na sua humanidade santíssima.

Se imaginarmos o mais perfeito dos homens, física, moral e intelectualmente falando, sem comparação com os outros, não teríamos nem de longe uma ideia completa do que era Nosso Senhor Jesus Cristo na Terra, e do que é no Céu, onde Ele está com seu Corpo glorioso, acrescido de esplendor de modo verdadeiramente maravilhoso.

Devemos considerar que este Homem não era apenas um santo, o qual levou sua santidade ao mais alto grau. Ele é o Homem-Deus! Aquele Corpo, aquela Alma humana, ligados pela união hipostática à natureza divina, formavam uma só Pessoa. Não era apenas um santo, mas a própria santidade!

Ficamos diante de uma ideia de grandeza, de perfeição, que excede a tudo quanto se possa cogitar. E devemos acrescentar outra reflexão: o Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo — porque é próprio do corpo refletir a alma — era a expressão perfeita de sua Alma humana; exprimia a própria Divindade.

O Homem-Deus, no que tinha de humano, amava infinitamente o que possuía de divino

Entendemos assim quem é Nosso Senhor Jesus Cristo e, portanto, qual a atitude de adoração, de veneração, de respeito, de fidelidade, etc., que Ele naturalmente devia despertar em todos.

Nosso Senhor veio à Terra para salvar as almas; portanto, esse efeito, tão salvífico para as almas, Ele queria produzi-lo. E, neste sentido, o Divino Salvador amava sua própria figura, sua própria inteligência, sua própria santidade, não só porque era Deus — e Deus não pode deixar de amar-Se a Si mesmo infinitamente —, mas pelo fato de que aquilo de humano que havia n’Ele era o melhor reflexo de tudo quanto fora criado.

Lemos no Gênesis que Deus, depois de ter criado o universo, descansou, contente, vendo a harmonia que Ele havia feito. Porque cada coisa era boa e o conjunto ainda melhor.

Ora, tudo quanto há no universo valia menos do que Nosso Senhor Jesus Cristo. Podemos imaginar o seu comprazimento — santíssimo, sem nem de longe se assemelhar àquilo que chamamos egoísmo, paixão tão vil —, conhecendo-Se como era, e a natureza humana dizendo dentro d’Ele às três Pessoas da Santíssima Trindade: “Eu sou o vosso espelho mais exato em toda a Criação, glória a Vós!”

O Homem-Deus, no que Ele tinha de humano, amava infinitamente o que possuía de divino; por causa disso, Nosso Senhor tinha gosto em que, por amor a Deus — evidentemente não por uma vaidade; isto está inteiramente afastado — os homens contemplassem esse reflexo do Criador e O adorassem. E para Ele era uma razão de alegria, quando as multidões iam ao seu encalço, sendo preciso que os Apóstolos O protegessem, para não chegarem perto demais.

Ensinava fazendo o bem

O Evangelho narra a cena de Nosso Senhor pregando para o povo de dentro de uma barca, para que pudesse ser ouvido por todos. Ele tinha a voz perfeita — com que suavidade, força, grandeza, riqueza de inflexões! — e dali podia falar admiravelmente as coisas mais fulgurantes, ou mais doces, ouvidas a qualquer distância.

O Redentor passava por algum lugar e via uma pessoa que estava sofrendo, sozinha, numa estrada ou num caminho. Ele via as almas que se abriam para Ele, e tinha com isso a felicidade que Deus tem na sua própria glória, observando que a criatura, que Ele criou e chamou para amá-Lo, é tocada pela graça e exclama: “Meu Senhor e meu Deus!”

Para provar aos homens ser Ele o Homem-Deus — sua missão consistia em ensinar quem era Ele —, Nosso Senhor tinha como instrumentos, primeiro — e que instrumento incomparável! — a Si próprio. Depois o que Ele dizia: sua doutrina maravilhosa, simplicíssima, delicadíssima, fortíssima, de lógica inquebrantável, verdade intocável, irrepreensível, perfeita. Até o fim do mundo, os homens estudarão os sermões do Divino Mestre que estão no Evangelho, e não chegarão até o fundo.

Além disso, Ele aconselhava, ajudava, praticava milagres para curar. Tais benefícios mereceram que São Pedro fizesse de Nosso Senhor este elogio tão simples e tão grandioso: “pertransivit benefaciendo” — passou pelo mundo fazendo o bem(2). Em todos os lados, de todos os jeitos, Ele praticou o bem, até mesmo quando punia.

E quando Jesus tomou um látego na mão e expulsou os vendilhões do Templo, teve bondade para com eles. Aterrorizou-os, mas deve ter-lhes dado a graça do temor, para que se convertessem. O seu braço fortíssimo, divino, atingia e metia em fuga, mas, ao mesmo tempo, a sua graça procurava levantar as almas, para se unirem a Ele através do temor de Deus.

Milagres, que quantidade! Milagres físicos: curas que Nosso Senhor realizou; milagres morais: pessoas péssimas, perdidas, completamente desviadas pelos recantos da vida, e que, entretanto, conhecendo-O, se voltavam para Ele e ficavam limpas.

Mais ainda: pessoas tão embotadas no mal, que O conheciam, convertiam-se por pouco tempo e caíam novamente no pecado. O Redentor as procurava, reconduzindo-as para o bem. Ricos como Lázaro, pobres como as multidões que O acompanhavam, poderosos como Nicodemos, José de Arimateia, todos O seguiam, encantados.

 

Continua no próximo número…

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/4/1984)

 

1) Artigo publicado na revista “Catolicismo”, de abril de 1952.

2) At 10,38

 

Finura no trato e santidade

A civilização cristã, nascida do Preciosíssimo Sangue de Cristo, produziu frutos em abundância. Um deles foi o trato cavalheiresco.

 

Para se entender as relações entre finura no trato e santidade, deve-se compreender bem o que significam trato e finura.

O trato é um conjunto de fórmulas por onde expressamos para com os outros a nossa atitude de espírito, interior. Quer dizer, o trato envolve de fato duas coisas: em primeiro lugar uma conduta e depois maneiras.

Há um modo de tratar que não é apenas feito de maneiras, mas de elevação de espírito. Por exemplo, tratar os outros com benignidade, força, fidelidade, nobreza; isso não é exatamente igual à maneira.

Imaginemos um homem que deve dinheiro a seu amigo. O modo pelo qual esta relação de crédito e débito se desenvolve diz respeito ao trato. O lidar de um com outro em torno de uma situação naturalmente tensiva pode ser mais elevado ou menos, mais generoso ou menos, independente das maneiras de cortesia que nesse trato se empregam.

Os modos de cortesia são as fórmulas, a linguagem, as expressões do rosto, os gestos das mãos, a atitude de toda a pessoa; isso constitui um elemento secundário e extrínseco do trato.

A santidade necessariamente conduz a um trato muito elevado, no sentido fundamental da palavra, ou seja, no seu aspecto profundo. Uma pessoa que é santa — a santidade é a raiz de todo procedimento perfeito — tem em relação aos outros uma conduta e um trato exemplares. Ela trata os outros com toda a distinção, com todo o esmero, respeito, afeto, ou com toda a força e energia que as circunstâncias exigem. Sob esse aspecto, a santidade é co-idêntica com a perfeição no trato.

Onde foi tirado o verdadeiro amor a Deus, não pode haver autêntico amor aos homens

No sentido profano, pode haver pessoas não santas que tratam os outros eximiamente.

Isso ocorre quando há uma grande tradição de civilização católica, a qual não morre de um momento para outro. Embora a moralidade possa cair muito rapidamente, a tradição do trato ainda continua. Usando uma imagem de São Pio X, que ele aplicava a outra coisa, não podemos pôr rosas num jarro sem que este se impregne do perfume e continue perfumado, mesmo depois de serem retiradas as flores.

Assim também, certo cavalheirismo e certa fidalguia de trato, no sentido mais profundo da palavra, podem subsistir como uma tradição católica num ambiente que é pouco católico, ou deixou de ser católico. Por exemplo, alguma coisa da nobreza de trato de certos lordes ainda é uma remota tradição da Inglaterra, proveniente do tempo em que era católica.

Mas essas boas tradições vão morrendo. Um homem pode ser muito elegante no trato, em matéria de negócios comerciais, porém deselegante quanto ao modo de adquirir dinheiro, ou em assunto de adultério, ou qualquer outra matéria. Ele, por exemplo, julgará que é um defeito de trato ir à casa de um amigo e roubar uma colherinha, mas rouba a esposa do amigo.

Quer dizer, são tradições que ficam meio hirtas e têm uma vida artificial. Aos poucos vão minguando e acabam desaparecendo.

Tendo cessado o estado de graça, a finura do trato é como uma trepadeira da qual se corta a raiz. Durante algum tempo algumas flores, que tinham começado a desabrochar, se desabrocham inteiramente. Pode haver, portanto, uma ilusão de vida naquela trepadeira. Mas é uma pós-vida, porque ela morrerá mesmo. Onde foi tirado o verdadeiro amor a Deus, não pode haver autêntico amor aos homens. Não havendo amor a Deus nem amor aos homens, o trato, neste sentido elevado da palavra, evidentemente tem que desaparecer.

Na natureza há símbolos magníficos dessas situações. Contaram-me que em certos cadáveres a barba ainda cresce um pouquinho. É um resto do desenvolvimento vital num corpo que está morto. Assim também pode haver aparente florescimento de maneiras numa civilização já sem vida. Sob certo ponto de vista, podemos dizer que o trato continuou esplêndido, cristão, aristocrático e acidental na Europa até há pouco. Mas era uma coisa defectiva, tendente a cair, o resto de algo magnífico que tinha existido.

A perfeição no trato gera maneiras esplêndidas

Qual a diferença entre trato e maneiras?

As maneiras são fórmulas, gestos, atitudes, que têm muito de natural, mas também alguma coisa de arbitrário, convencional, pelas quais os povos chegam a exprimir, por um consentimento geral, os seus estados de espírito e o seu bom trato.

Os povos podem ser muito virtuosos antes de terem maneiras perfeitas. Têm um trato muito elevado e maneiras apenas corretas, suficientes, às vezes até com um resto de barbárie, não com selvageria; mas algo de trivialidade, banalidade, falta de elegância, pode ser que exista.

Um santo pode, portanto, ter menos boas maneiras do que uma pessoa não santa. As maneiras são elaboradas lentamente pelas civilizações; constituem o produto de toda uma sociedade. E existe sempre a seguinte relação: a perfeição no trato acaba gerando ao longo do tempo maneiras esplêndidas. Estas são uma espécie de fruto remoto do trato. E, portanto, um fruto um pouco mais remoto ainda, da virtude. E vivem necessariamente só da virtude. De maneira que se virtude não houvesse, as maneiras seriam também muitíssimo inferiores. E quando a virtude morre, o trato vai se deformando; as maneiras ainda continuam, porque é uma coisa externa, material, cujo desaparecimento choca mais.

Na França, nas vésperas da Revolução, havia maneiras requintadíssimas, mas já indicando que iriam desaparecer.

O trato decorre, então, necessária e imediatamente das virtudes. As maneiras provêm necessariamente das virtudes porque decorrem do trato, mas não imediatamente quanto às maneiras requintadas, esplêndidas, que são fruto de uma civilização.

É claro que uma pessoa sem virtude pode ter bom trato em alguns pontos, e a “fortiori”(1) boas maneiras. Porém, com o tempo isso desaparecerá.

Como são as maneiras de uma civilização sem Deus?

Para terminar, eu gostaria de dizer apenas o seguinte. O histórico das civilizações, se fosse bem feito, mostraria que as maneiras perfeitas só existiram como fruto da civilização católica; mas não antes. Havia povos cujas aristocracias, sob alguns aspectos, tinham maneiras excelentes e de certa forma até insuperáveis. O povo chinês, por exemplo, e mesmo romanos, gregos etc., debaixo de alguns pontos de vista tinham um direito bom, uma arte, uma cultura, uma literatura boas. Mas nunca com a elevação que as coisas atingiram com a civilização católica.

Fala-se de civilização clássica, romana. Vejamos, porém, como era um banquete em Roma. Os convivas, deitados naqueles triclínios, comiam e bebiam desbragadamente, de um modo indecente, com uma glutonice sem igual, e se embriagavam de tal modo que eram levados para fora da sala. Quando alguém se sentia — a expressão é muito prosaica, mas afinal temos que empregá-la — cheio demais, levantava-se e ia para as salas contíguas, onde havia escravos com a habilidade de provocar, por meio de penas de aves, cócegas no palato; ele, então, restituía tudo o que havia comido e bebido. Depois vinha outro escravo trazendo vasilhas com água; a pessoa lavava as mãos e, se quisesse, secava-as nos cabelos do próprio escravo, que serviam de toalha. O escravo ficava, portanto, todo emporcalhado.

Imaginemos a cena nos seus pormenores. O glutão ou a glutona de bocarra aberta e o escravo fazendo cócegas na garganta: surge a ânsia e, afinal, a explosão gástrica. A pessoa anda de um lado para outro, cambaleia, para com disparos de coração etc. Por fim, equilibra-se o monturo, oscila mais um pouco e volta para comer. E tudo recomeça.

Isto é o horror em matéria de maneiras. Eu poderia citar cem outras coisas em cem espécies de civilizações.

Hoje em dia, quando uma pessoa recebe outra em sua casa, a fórmula polida, o dito elegante, interessante, a atitude rasgada e gentil são substituídos por uma acolhida parda; há uma frieza recíproca, indicando a completa decadência em matéria de trato. Isso tudo é efeito de um desbotamento de alma, o qual tem uma raiz moral; e esta última possui uma causa religiosa.

Em suma, o trato e as maneiras “pocas”(2) são consequências da tibieza.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/12/1965)

 

1)   Com maior razão.

2)  Dr. Plinio assim denominava as pessoas ou as coisas inexpressivas, medíocres.

A felicidade de fazer o bem

Cortesia, polidez, gentileza, amizade… são conceitos muito afins com Dr. Plinio.

Quando menino, eu possuía colegas com os quais, de vez em quando, estabelecia amizade. No primeiro período da amizade havia simpatia mútua, interesse, agrado. Mas, em determinado momento, parecia-me perceber o fundo da mentalidade de meu companheiro, e com isso sua companhia ficava sem graça, perdia a atração.

Vinha-me, então, uma sensação frustrante: “À distância, as pessoas dão-nos uma boa impressão, mas quando as conhecemos de perto, percebemos algo que repele”.

Isto, naturalmente, quando não dava em ruptura, gerava pelo menos um trato tenso.

Qual seria, entretanto, o fundo deste desapontamento? O que faltaria para a continuidade dessa amizade? O próprio Dr. Plinio responde:

Lendo fatos relativos ao “Ancien Régime”— onde a cortesia estava presente no trato, e correspondia a um hábito social —, eu percebia como as pessoas daqueles tempos viam-se numa perspectiva completamente diferente: elas possuíam alegria por causar alegria, satisfação por causar satisfação. O convívio era outro, a “douceur de vivre” estava implantada entre os homens…

Esta ideia levou‑me à seguinte pergunta: No tempo pagão, isto era assim?

A resposta era clara, bastava olhar para a História. Tomemos, por exemplo, um romano que manda chamar o escravo, e lhe diz: “Quero matar um inimigo, e para isso preciso testar este veneno. Você vai, então, tomá-lo para que eu possa ver se ele é forte o suficiente”. E o escravo morria em meio a contorções terríveis, diante de seu dono.

Quer dizer, os pagãos importavam-se apenas com suas vantagens próprias; a felicidade dos outros não lhes interessava.

Ora, em comparação com os antigos tempos, nas pessoas de minha geração, por mais que o trato não fosse igual ao dos romanos, a cortesia era meio cinematográfica. Pode‑se dizer que ela estava morrendo para dar lugar ao trato correto, mas que não possuía mais as doçuras de outrora.

Eu pensava: “Se eu conhecesse alguém capaz daquela dedicação, daquela solidariedade, eu começaria a achar sua companhia interessante e teria alegria em me dedicar também a ele”.

***

Quatro palavras explicam a história da doçura entre os homens: Nosso Senhor Jesus Cristo!

Ele veio à Terra quando o mundo estava imerso na noite das mais densas trevas. Então a alegria de ser bom, de fazer o bem começou a fulgir entre os homens.

“Pertransivit benefaciendo” — passou pela vida fazendo o bem. O tempo inteiro, desde o começo até o fim, Nosso Senhor fez o bem. E com o transbordamento, com a abundância que conhecemos: por mais que os discípulos tivessem dormido no Horto das Oliveiras, quando Ele foi preso deu ordem aos carrascos: “A estes, deixai‑os ir em paz”.

Para termos a verdadeira alegria na alma, para termos a luz de Nosso Senhor Jesus Cristo diante dos olhos, saibamos nos sacrificar pelos outros sem esperar retribuição. Quando nos dermos conta, o aroma do convívio entre nós estará embalsamado, perfumado e agradável. É Cristo Nosso Senhor que estará presente.

 

Plinio Corrêa de Oliveira  (Extraído de conferência de 1/6/1985)