O mundo aos pés do Trono da Verdade

Já tivemos ocasião de publicar numerosos artigos nos quais Dr. Plinio manifesta seu amor ao Papado. E muitos outros ainda se seguirão, pois este era um de seus temas prediletos. Transcrevemos aqui um artigo para o “Legionário” em 1946.

 

As notícias provenientes da Cidade do Vaticano informam que o Corpo Diplomático junto à Santa Sé fez uma démarche coletiva para obter da Secretaria do Estado o privilégio de participar de Consistório em que vão ser concedidos os chapéus vermelhos aos Cardeais recentemente nomeados. A atitude dos diplomatas não terá sido tomada sem o consentimento, pelo menos tácito, dos  respectivos governos. 

Assim, pode-se considerar que quase todas as nações do mundo  quiseram expressamente estar presentes àquele ato, manifestando de modo delicado e nobre, seu agradecimento pela honra que o Papa Pio XII lhes concedeu, com a internacionalização ainda mais ampla do Sacro Colégio.

Por sua vez, este gesto vem demonstrar o alto grau de importância moral e política que todos os governos do mundo reconhecem ao Papado. 

Em toda a longa e gloriosa história do Vaticano, durante a qual tantas cerimônias brilhantes se desenrolaram sob o teto de Pedro, em nenhuma talvez, a universalidade da Igreja se tenha patenteado de modo mais evidente. Aos pés do Trono da Verdade, estarão os embaixadores de quase todas as nações do mundo. E, nos lugares reservados ao Sacro Colégio, figurarão lado a lado Cardeais europeus, americanos, asiáticos e africanos. 

Nunca se viu na História da Igreja, que a Púrpura cardinalícia cobrisse uma tão grande porção da terra. Dir-se-ia que a sombra do báculo de Pedro cresceu, que entre suas extremidades que vão de mar a mar, de monte a monte, dos Alpes ao Himalaia, fica o mundo inteiro. O quadro é de uma grandeza apocalíptica. É impossível não pensar nas lágrimas, no suor e no sangue, nas  fortificações, nas preces, na paciência e no heroísmo por meio do qual a Igreja ajudada por Deus chegou a tamanha glória. Quando se pensa nos primórdios do Catolicismo, comparado por seu Divino Fundador com o pequenino grão de mostarda, e se vê hoje que a copa da árvore é maior que os mais extensos desertos e as mais vastas nações, são todas as fibras católicas que vibram e se dilatam nos nossos
corações. 

Do esplendor desta magnifica realidade se desprende uma voz, porque os fatos falam. E esta voz, eco de outra Voz, nos diz com firmeza mais do que nunca: “non praevalebunt”! Do que adiantou a [tantos inimigos] investir contra a Igreja com uma fúria desabrida e ferina? Do que adiantou […] procurar infiltrar-se como um cupim silencioso e cheio de lepra, nas próprias fileiras dos católicos? “Non praevalebunt”. Não prevaleceram.

Está dito, porém, que as alegrias neste vale de lágrimas nunca serão completas. Uma sombra passa diante de nossos olhos. Se é tal, tão universal, tão incontrastável o prestígio da Igreja, como explicar que ela esteja à margem da Organização das Nações Unidas? Como explicar que, precisamente neste fastígio de sua universalidade, ela seja mantida à margem da universal organização dos povos? Se a circunda uma auréola de prestígio, é impossível não reconhecer que é no exílio, é fora de seu trono natural, que é a presidência das nações cristãs, é fora  de tudo isto, que nasce em torno dela este arrebol de glória. Extraordinária expressão de sua força, que brilha até mesmo no isolamento. Mas motivo não menos extraordinário para que temamos por esta humanidade que vê a Luz, mas que não se utiliza dela para “iluminar a casa inteira”, para iluminar e dirigir a sociedade universal das nações. […] 

Como de direito, o máximo de nosso filial afeto voa aos pés do Santo Padre. “Ubi Christus ibi Deus; ubi Ecclésia ibi Christus; ubi Petrus ibi Ecclésia” (Onde está Cristo, aí está Deus; onde esta a Igreja, aí está Cristo; onde está Pedro, aí está a Igreja). E só nos unimos a Deus em Nosso Senhor Jesus Cristo, verdadeiro Homem e verdadeiro Deus. Só nos unimos a Jesus Cristo na Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana que é o próprio Corpo Místico do Senhor. E só estaremos unidos a Nosso Senhor Jesus Cristo, mediante uma união sobrenaturalmente forte, união de vida e de morte, à Cátedra de São Pedro. Onde está Pedro, aí está a Igreja de Deus. Dizem as notícias telegráficas que o Santo Padre pronunciará nesta ocasião um discurso de grande importância, seguido poucos dias depois de mais outro, igualmente importante. Aguardamos sua palavra com amor e confiança. Amor e confiança que, como de costume, se traduzem num inabalável propósito de adesão e submissão. 

Não há melhor meio de testemunhar amor ao Papa, senão obedecendo- lhe. E obedecer significa fazer aquilo com que estamos de acordo, e aquilo que por nossa própria vontade faríamos; significa aceitar como verdadeiro o que ele ensina e nós vemos que é verdadeiro, e o que ele ensina e a nossos olhos mortais pareceria fraco e errôneo. 

Plinio Corrêa de Oliveira (Excertos de artigo publicado no “Legionário”, nº 706, de 17/2/1946. Título nosso.)

São Teófanes e os peculiares esplendores da Igreja no Oriente

Pertencendo a uma das mais nobres famílias do Império Bizantino, Teófanes abandonou todas as suas riquezas e dirigiu-se para um mosteiro, do qual se tornou abade. Um imperador adepto da seita dos iconoclastas lançou-o num calabouço, onde permaneceu por dois anos sofrendo horríveis privações e chicotadas. Depois foi exilado para a Samotrácia e ali entregou sua bela alma a Deus.

 

Temos para comentar uma ficha biográfica a respeito de São Teófanes, abade, que me dá a oportunidade, antes mesmo de entrar na consideração da vida deste Santo, de analisar a expressão, o valor simbólico e o efeito que o nome produz para se considerar o indivíduo.

Um nome que evoca teofania: a manifestação de Deus

Um homem comum, da vida corrente, que se chamasse Teófanes poderia nos dar a impressão, antes de conhecê-lo, de alguém pertencente ao que se costuma chamar classe média baixa, de um jeito extremamente anacrônico dentro dessa classe, vestido à conservador, com um colarinho engomado alto e amarelado, uma gravatinha pequenininha ensebada, tossindo abundantemente, com os óculos à meia distância entre a ponta e o topo do nariz, com uma vozinha roufenha, magrelinho e pretensioso. Esse poderia ser, segundo nossa imaginação, o Sr. Teófanes.

Para a sensibilidade de certas pessoas, o nome “Teófanes” tem qualquer coisa de glacialmente sentencioso, hirto. Entretanto, o sentido etimológico da palavra é lindo, porque teofania é a manifestação de Deus. Ora, um homem chamado Teófanes deveria ser uma pessoa maravilhosa, ter um jeito de Anjo celeste, herói, um São Miguel Arcanjo, algo assim. Mas os conceitos variam e os nomes acabam tomando essa conotação pejorativa.

Contudo, quando se pensa num Abade Teófanes, já a coisa muda completamente. Porque abade é um título que evoca um homem meio misterioso, isolado, colocado acima de seus monges, com pouca comunicação, em geral, com os outros homens, e correspondendo à frase que uma revista de História, a qual li outro dia, punha nos lábios de Moisés: “Senhor, fizestes de mim um homem solitário e poderoso.” É bem a ideia que faço de um abade: poderoso na ordem espiritual, mas solitário. Todo vestido com um grande traje beneditino preto, com aquelas pregas que se desdobram, um capuz que vira um pouquinho para trás, um bastão na mão e um ar cheio de ideias, de pensamentos, que fala pouco, mas domina toda uma comunidade de cenobitas, todos eles em silêncio ou entoando o cantochão, em longos corredores com arcadas regulares, e que voltando para as celas rezam de novo, fazem iluminuras e trabalhos de pesquisas inimagináveis.

O abade mantém na abadia uma atmosfera de bom gosto, de luta guerreira, de polêmica e, ao mesmo tempo, de recolhimento e de silêncio que dá todo o perfume da Idade Média e, mais ainda, do antigo monaquismo do Oriente, mosteiros gregos situados em montes de nomes fabulosos, em ilhas do Mediterrâneo onde os Apóstolos ensinaram, em colinas da Terra Santa onde Nosso Senhor fez milagres, etc. Essa é a ideia que me dá um Teófanes abade, e me incentiva a conhecer sua biografia.

Membro de uma das mais nobres famílias do Império Bizantino

Teófanes, nascido em Constantinopla, pertencia a uma das mais nobres famílias do Império Bizantino. Perdendo seu pai aos três anos de idade, foi educado pelo próprio Imperador Constantino Coprônimo.

Casou muito jovem ainda, praticamente obrigado, com uma jovem patrícia. Mas ambos, de comum acordo, fizeram voto de continência perpétua. Seu sogro, vindo a descobrir isso mais tarde, encheu-se de furor, pois desejava herdeiros que entrassem no gozo da imensa fortuna do genro. Queixou-se assim ao imperador e este enviou Teófanes para Sísico com o título de Intendente Real dos Trabalhos Públicos no Helesponto e na Lísia. Aí o Santo encontrou um monge que o iniciou nos caminhos da contemplação e Teófanes abandonou o mundo, recolhendo-se a um mosteiro, onde veio a ser abade.

Que coisa linda: um dignatário da corte imperial de Constantinopla! Para pensar nisso é preciso imaginar aqueles basileus, aqueles imperadores de Constantinopla hirtos, com aquelas caras de ícones, todos rodeados de pérolas, com ar sentencioso, com uma mão que ensina ou com uma vara toda de marfim, com uma imagem de ouro de São Miguel em cima, e olhando para todos os séculos, imóveis sobre um fundo de ouro.

Podemos imaginar como era o palácio imperial em Constantinopla, junto às margens poéticas do Bósforo e à Basílica de Santa Sofia, onde o Imperador Coprônimo educou Teófanes.

Teófanes é um homem puro que se casa com uma moça pura; e os dois, coisa ainda mais rara, resolvem guardar a castidade perfeita.

O Imperador intervém e manda esse homem para uma espécie de exílio dourado. Ele vai com um título meramente administrativo, mas pomposo – todos os títulos bizantinos eram pomposos –, para essa região exercer suas funções. Imaginem como era uma cidade de província daquele tempo: pequena, com um pequeno palácio destinado ao representante do imperador, com um tronozinho, sendo a miniatura – mas que miniatura! – do fausto imperial, e Teófanes movendo-se dentro daquilo diante de um povo genuflexo.

Abandona tudo e vai para o deserto

Entre os que vão falar com Teófanes aparece um monge vindo de algum deserto, de onde saiu levando consigo todos os silêncios daqueles pores de sol incandescentes, daquelas montanhas torradas pelo Sol, ou batidas por um vento tremendo, daquelas contemplações caracteristicamente orientais, com aqueles olhos enormes olhando para um firmamento lindíssimo e rezando. Esse monge sai de repente de seu isolamento, vai para a cidade e encontra Teófanes.

Pode-se imaginar a conversa dos dois:

— Teófanes, o que te adianta gozar essas coisas da Terra? Vejo em ti que és um homem puro, Deus te chama para uma pureza maior. Deixaste as delícias da carne, deixa, ó Teófanes, os outros deleites, pois maiores maravilhas te aguardam.

E Teófanes pergunta:

— Pai santo, o que farei?

— Vai comigo ao deserto, onde os varões amados de Deus se separam de tudo quanto é do mundo e vivem exclusivamente na familiaridade do Senhor.

Então, Teófanes deixa tudo e vai para o deserto. Isso é ambiente, isso é vida, isso é história.

Após fazer promessas de benefícios, o Imperador o ameaça

Anos depois, quando Leão, o Armênio…

Que lindo nome para um imperador! Todas essas coisas em Constantinopla têm um outro jeito. Há uma coisa mais banal do que um homem chamado Leão? Há coisa mais comum do que um homem ser um armênio? Mas “Leão, o Armênio”, Imperador de Constantinopla, é uma coisa que se destaca de uma série de outras por vários imponderáveis. O Imperador Leão, o Armênio, que traz consigo os luxos e os mistérios da Armênia para o trono de Bizâncio, é uma coisa muito mais evocativa.

Continua a ficha:

Leão, o Armênio, renovou a perseguição às santas imagens…

Era a heresia dos iconoclastas, que quebravam as imagens nas igrejas, uma forma ancestral de protestantismo e de progressismo.

…e soube que Teófanes gozava de alta consideração entre os ortodoxos.

Ortodoxos aqui somos nós, católicos, porque não tinha ainda havido o cisma.

Querendo atraí-lo à sua causa, chamou-o à Constantinopla. Quando ele ali chegou, recebeu uma carta do soberano: “Vossas disposições pacíficas me fazem crer que aqui viestes para confirmar com vossos votos minhas opiniões sobre esse problema. Esse, aliás, é o meio certo de obter meus favores e de conseguir para vós, vossos parentes e vossos mosteiros, todas as graças que estão ao alcance do imperador conceder…”

Portanto, todas as que existem, porque o Imperador de Constantinopla era onipotente.

Se, ao contrário, vos recusardes a aquiescer comigo, incorrereis em minha indignação e dela sentireis todo o peso, vós e vossos amigos.

É bem claro, o Armênio. No meio de frases amáveis, a coisa é suborno ou tiro. 

Jogado num calabouço

Teófanes, que nunca se intimidara com promessas ou ameaças, assim respondeu:

“Idoso e enfermo como estou, tenho cuidado em não ambicionar as coisas que desprezei por Jesus Cristo, em minha juventude, quando me era fácil usufruir das coisas do mundo.”

Linda resposta. “Você me oferece o que eu desdenhei quando podia gozar? Você pensa em me comprar com essas coisas, agora que não estou em idade de gozá-las? Oh!” Vê-se o Armênio minguar…

“Quanto ao meu mosteiro e aos meus amigos, coloco sua sorte nas mãos de Deus. Quanto ao mais, se acreditais assustar-me com vossas esperanças como se assusta uma criança com as varas, vos enganais. Porque, embora não tenha forças para caminhar e esteja sujeito a numerosas outras enfermidades corporais, espero que Jesus Cristo me dará coragem de sofrer pela sua causa todos os suplícios aos quais poderíeis me condenar.”

Tudo dito, está acabado. Quer dizer: “Seus subornos não me interessam, suas ameaças não me fazem recuar. Está feito seu balanço, ó Leão, o Armênio.” É um Teófanes, a manifestação de Deus através da boca de um homem.

Encolerizado, o imperador enviou Teófanes a um calabouço, onde o Santo permaneceu por dois anos, sofrendo horríveis privações. Chegaram, um dia, a dar-lhe trezentos golpes de chicote.

Num velho enfermo, hein!

Saindo da prisão, exilaram-no na Samotrácia, onde ele morreu a 12 de março de 817.

Aqui está a história de São Teófanes. Nós podemos imaginar a Samotrácia e São Teófanes morrendo. Talvez embaixo de uma palmeira, ao ar livre, assistido apenas por um auxiliar. Mas na hora em que ele morreu, uma bola de fogo subiu ao céu, e na cidade tal viram isso e comentaram: “Morreu Teófanes, o virtuoso…” Ou algo nessa linha. Seria o desfecho legendário e simétrico dessa história. Com isso nos familiarizamos um pouco com os esplendores peculiares que a Igreja teve no Oriente.        

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/3/1971)

Revista Dr Plinio 252 (Março de 2019)

Beato Sebastião

A vida do Beato Sebastião de Aparício foi cheia de zigue-zagues, mas sua alma sempre se manteve  no sendeiro da virtude. O universo da santidade é muito mais ordenado, elevado e bonito do que todas as estrelas do céu, as belezas da natureza, as magnificências da arte. Sem santidade o mundo não teria sentido nem graça.

 

No dia 25 de fevereiro comemora-se a memória do Beato Sebastião de Aparício. Sobre ele diz Rohrbacher(1):

Apostolado do exemplo

Nasceu na Galícia, em 1502, de família humilde de simples camponeses. Viveu até rapaz como pobre empregado, entregando suas economias aos pais e santificando essa vida árdua com uma enorme piedade. Embarcou em 1532 para o México, onde enriqueceu utilizando seus conhecimentos de agricultura. Teve êxito também no comércio, mas abandonou a profissão por achá-la  perigosa para a salvação eterna, e voltou à lavoura.

Casou-se duas vezes e nos dois casamentos, com o consentimento das esposas, observou a continência. Dele disse o decreto de beatificação: A Providência não o enviou à América para lá cultivar ciências, nem tampouco literatura, a ele absolutamente estranhas, mas para instigar os novos cristãos, mediante o exemplo, à prática de uma profunda humildade e da perfeição.

Com a avançada idade de setenta anos, renunciou às abundâncias e riquezas  de que dispunha, distribuiu-as pelos fiéis e assim despojado de qualquer bem terreno entrou num convento de  franciscanos da estrita observância. Lá, esquecendo do que deixara no mundo, fez profissão como irmão leigo. A partir de então, persistiu na prática de maravilhosa penitência, de simplicidade de coração, de prece e de fé, de obras de misericórdia espiritual e física, até a idade de noventa e oito anos.

Colheu então o fruto de cooperação com a graça e do fiel e laborioso cumprimento dos deveres religiosos. Embora entrado na vinha na última hora do dia, recebeu o prêmio inteiro que o pai de família prometeu aos que entram nas primeiras horas.

Variedade, unidade, ordem

Costuma-se dizer, a respeito da vida dos santos, que elas são admiráveis por aquilo que têm de parecido e pelo que possuem de diferente. Pelo que têm de parecido  porque indicam a unidade da santidade e a união da obra de Deus. Por aquilo que possuem de diverso, porque a variedade é um elemento complementar da unidade e é fonte, junto com esta, de toda beleza.

Nem sempre se nota que a ordem está apenas na conjugação dos fatores unidade-variedade, mas encontra- se também na conjugação do modo pelo qual as diferenças se completam  harmonicamente, por sua vez reproduzindo a unidade. E podemos então não só nos edificar na consideração da beleza da unidade que há na vida dos santos, quanto na verificação da surpreendente diversidade e da ordem que essas diferenças mantêm entre si.

Todos os estilos e tipos de vida humana honesta e honrada acabam sendo santificados por um bem-aventurado que daquela forma chegou aos altares; e mostrando que Deus tem seus desígnios muito variados a respeito de todos. Quando o Criador quer e a alma corresponde, de fato daí nasce a santidade.

Diversas mudanças em sua longa vida

Vejam como a vida desse Beato é singular. Nasceu pobre, filho de camponeses. Entretanto, vivia com muita piedade, entregava suas economias aos pais, respeitava o domingo. Isso em 1502. Mas em 1532 houve uma mudança brusca em sua vida.

Depois de uma existência muito simples e pobre, de um camponês arraigado na tradição de sua terra, embarca, de repente, para o México que naquele tempo era um lugar de aventura, de riqueza.

Ele sai de uma vida muito ordenada e singela para o pleno tumulto de um quadro de existência completamente novo. Lá ele se enriquece como agricultor.

Nova mudança: entra no comércio, exercendo profissão profundamente diversa da agricultura, e também obtém um êxito extraordinário.

Mais outra mudança: deixa o comércio e volta à lavoura. Por quê? Pela dificuldade de enriquecer honestamente.

Todos sabem como é fácil roubar no comércio. Deixou o estado de solteiro e casou-se duas vezes; e, circunstância imprevista, guardando continência as duas vezes.

Quer dizer, castidade perfeita dentro do casamento. Uma vida toda  de aspectos singulares. O decreto de beatificação acentua o último momento de sua vida: já tinha setenta anos quando entrou
para um convento de franciscanos.

Alguém dirá: só uma pontinha de sua existência… Não, são vinte e oito anos de vida religiosa. Depois de ter dado zigue-zagues de toda ordem, caiu na grande estabilidade de uma ordem religiosa, na qual levou a vida de um religioso. Então, o antigo agricultor, o antigo comerciante, o antigo homem de aventuras, o antigo esposo passa a ser um capuchinho de barba branca tranquilo, gentil, ressumando vida espiritual e morre numa espécie de apoteose.

Perfumou o convento, o México e a América coma beleza de sua vida

Analisando esses zigue-zagues, vê-se que não foram sinuosidades de uma pessoa que andou quebrando a cabeça de todos os lados, nem a correria do gato louco, mas que tudo isto teve uma certa continuidade. Por exemplo, quando se tornou comerciante ele já era tão direito que preferiu deixar o comércio a roubar. Tendo resolvido se casar, teve razões tão elevadas que guardou a castidade perfeita no casamento, e por duas vezes.

A vida dele rolando de todos os lados, mas sua alma, no sendeiro da virtude, afinal chega ao fim. E aos setenta anos entra para o convento, onde permanece por mais vinte e oito anos, o que ninguém esperava. É uma conjunção de vidas dentro das quais ele toma toda a personalidade de um papel e depois passa para outra função; no fim se sublima no papel dos papéis: um simples irmão leigo franciscano, perfumando todo o convento e todo o México e, de algum modo, toda a América com a beleza de sua vida.

Então, compreende-se bem que Deus é admirável nos seus santos. Ele é o autor, a fonte, o modelo da santidade; e o meio para ganhá-la é Maria Santíssima, nossa Medianeira. Ele é admirável porque todos os santos têm algo de parecido e algo de diferente, e porque essas diversidades se ordenam de um modo lindíssimo.

Qualquer alma é um tesouro inapreciável

Comparemos este Beato, por exemplo, com São Simeão Estilita rezando continuamente no alto de sua coluna, anos e anos, empolgando toda uma cidade; com o Venerável Pio Bruno Lanteri lutando contra a polícia de Napoleão, ou com Santa Teresinha do Menino Jesus morrendo vítima do amor misericordioso, em Lisieux.

Essas variedades têm umas harmonias profundas, que são uma espécie de post-visão da unidade.

O universo da santidade é muito mais ordenado, elevado e bonito do que todas as estrelas do céu, as belezas da natureza, as magnificências da arte. É a santidade o centro do mundo.

Sem santidade o mundo não teria sentido nem graça, mesmo no que ele possui de mais belo.

Peçamos a Nossa Senhora, por intermédio desse Beato, que nos dê uma consideração, uma compreensão, um amor cada vez maior pela santidade.

De outro lado, nos conceda a vontade de nós mesmos sermos santos e contribuirmos com nossa alma para a beleza desse firmamento para o qual fomos criados.

Qualquer alma, a última das almas do último homem, é um tesouro inapreciável porque é uma estrela que a Providência quer que brilhe por toda a eternidade nesse firmamento de santidade que deve substituir no Céu os anjos caídos.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 24/2/1966)

A Cátedra de Pedro: coluna do mundo

Fervoroso devoto da Cátedra de Pedro, Dr. Plinio não dispensava a ocasião — como atestam suas palavras aqui transcritas — de fazer reluzir aos olhos de seus discípulos a magnitude e a santidade com as quais a instituição pontifícia paira acima de todos os valores humanos, em sua divina missão de governar a Igreja e conduzir as almas à eterna bem-aventurança.

 

Como se sabe, no primeiro período de seu pontificado, o Papa [Beato] Pio IX tomou certas atitudes conciliadoras que alguns revolucionários chegaram a elogiar. Razão pela qual o brado de “Viva Pio IX!” passou a ecoar pelas ruas entre aqueles que não aceitavam a autoridade do Sumo Pontífice.

Distinção entre a pessoa do Papa e o papado

Nessa delicada conjuntura em que a figura de um Papa era assim vinculada aos ideais dos anarquistas italianos, vivia outro grande santo, São João Bosco. Este, quando ouvia algum de seus alunos ou conhecidos repetir aclamações a Pio IX, censurava-o, dizendo: “Não brade Viva Pio IX!; grite Viva o Papa!”

Eis a solução soberanamente inteligente. Porque “Viva o Papa!” pode-se bradar sempre. “Viva Pio IX!” ou outro pontífice, saúda-se conforme as circunstâncias.

Esse episódio consta no processo de canonização de São João Bosco, e tal atitude não impediu que fossem reconhecidas suas virtudes heroicas — e, portanto, sua inteira obediência ao Vigário de Cristo — nem que sua obra fosse abençoada pela Providência de todos os modos, ao longo dos tempos.

Devemos considerar que na raiz dessa posição de Dom Bosco encontra-se a importante distinção entre o Papa e o papado. Quer dizer, entre a pessoa do sucessor de Pedro, sujeita às misérias humanas e também a erros, em toda medida que não é garantida pela infalibilidade; e, de outro lado, a instituição pontifícia, inteiramente distinta da pessoa.

A festa da ortodoxia infalível

Por causa dessa distinção, a festa da Cátedra de Pedro, celebrada em 22 de fevereiro, é extremamente oportuna, pois celebra o Papa como mestre infalível, e o papado como a rocha inabalável do alto da qual o Soberano Pontífice se dirige ao mundo inteiro revestido da infalibilidade que Deus lhe outorgou. É, portanto, a comemoração da ortodoxia inerrante, dessa infalibilidade que nunca claudica.

Consta que da cadeira de São Pedro conservou-se quase toda a estrutura, a qual é guardada na Basílica do Vaticano, em Roma. Há ali um relicário de bronze, cujo interior abriga um banco de madeira, considerado a cadeira original do primeiro Papa.

Claro está, mais do que esse objeto venerável, a festa da Cátedra de São Pedro tem em vista o fato de Nosso Senhor Jesus Cristo ter confiado ao Príncipe dos Apóstolos as chaves dos Céus e da Terra, dando-lhe poder sobre tudo e sobre todos, a fim de governar a Santa Igreja Católica Apostólica Romana e conduzir as almas à eterna bem-aventurança.

Oscular em espírito os pés da imagem de Pedro

Também no interior da Basílica do Vaticano, em sua nave central, encontra-se uma imagem de São Pedro sentado numa cátedra, as chaves pontifícias na mão esquerda e a direita erguida, na atitude de quem abençoa os fiéis. O pé direito do Apóstolo se projeta à frente, e sobre ele os devotos de todas as partes do mundo vêm depositar seu ósculo de amor e veneração. Em virtude desse preito mil e mil vezes repetido, os pés da imagem se desgastaram. Talvez seja o único exemplo da História em que a delicadeza do beijo alquebrou a força do bronze…

Em determinados dias do calendário litúrgico, essa imagem é revestida com os solenes ornamentos pontificais, como se fora um Papa vivo, para indicar a magnífica e evidente continuidade da instituição do Papado, desde São Pedro até nossos dias.

Creio que uma bela forma de nos unirmos a essa importante celebração seria oscularmos em espírito os pés dessa imagem. Quer dizer, em espírito oscular o Papado, esse princípio de sabedoria ou de infalibilidade da autoridade que governa a Igreja Católica. E por meio de Nossa Senhora, agradecer a Nosso Senhor Jesus Cristo a instituição desta infalibilidade, dessa cátedra que é propriamente a coluna do mundo, porque se ela não existisse, a Igreja não sobreviveria e o mundo estaria completamente perdido.

Como também — já o frisamos acima — estaria obstruído para nós o caminho que nos leva ao Céu, pois os homens não o encontrariam sozinhos, sem o socorro de uma autoridade infalível que os governasse e para lá os dirigisse.

Fidelidade concreta ao Romano Pontífice

Dessas breves considerações um aspecto me parece deve ser ressaltado. Falamos da distinção entre a pessoa do Papa e o papado, mas devemos considerar que o catedrático é o Romano Pontífice, e os poderes da cátedra nele residem. À Cátedra de Pedro estaremos unidos até morrer, notando sempre que ela nunca estará alheia ao catedrático. Este poderá sair da cátedra; esta, porém, jamais o abandona.

Portanto, não se pode ter uma fidelidade ao papado sem que seja fidelidade concreta ao Papa atual, na medida em que ele é infalível e detém o poder de governar e reger a Esposa Mística de Cristo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 22/2/1964)

Catedra de São Pedro

Na gloriosa corrente constituída pela Santíssima Trindade, Nossa Senhora e o Papado, este último vem a ser o elo menos vigoroso: porque mais terreno, mais humano e, em certo sentido, estando envolto por aspectos que o podem menoscabar.
Costuma-se dizer que o valor de uma corrente se mede exatamente pelo seu elo mais frágil. Assim, o modo mais excelente de amarmos essa extraordinária cadeia é oscular o seu elo menos forte: o Papado. É devotar à Cátedra de Pedro, em relação à qual esmorecem tantas fidelidades, a nossa fidelidade inteira!
Plinio Corrêa de Oliveira

Catedra de São Pedro – “Ubi Petrus, ibi Ecclesia”

Em diversos números desta revista tivemos oportunidade de acompanhar as calorosas palavras com as quais Dr. Plinio reiterava suas manifestações de amor e devoção à Cátedra de Pedro. No ensejo da festa litúrgica do dia 22 de fevereiro, recordemos novamente uma dessas suas filiais expansões de entusiasmo pelo Papado, ao comentar nas páginas do “Legionário” a imposição do chapéu cardinalício a dois prelados brasileiros.

Em toda a longa e gloriosa história do Vaticano, durante a qual tantas cerimônias brilhantes se desenrolaram sob o teto de Pedro, em nenhuma, talvez, a universalidade da Igreja se patenteará de modo mais evidente [do que no próximo consistório]. Aos pés do Trono da Verdade, estarão os embaixadores de quase todas as nações do mundo. E, nos lugares reservados ao Sacro Colégio, figurarão lado a lado Cardeais europeus, americanos, asiáticos e africanos.

De mar a mar, dos Alpes ao Himalaia

Nunca se viu na História da Igreja, que a Púrpura cardinalícia cobrisse uma tão grande porção da Terra. Dir‑se‑ia que a sombra do báculo de Pedro cresceu, que entre suas extremidades que vão de mar a mar, de monte a monte, dos Alpes ao Himalaia, fica o mundo inteiro. O quadro é de uma grandeza apocalíptica. É impossível não pensar nas lágrimas, no suor e no sangue, nas mortificações, nas preces, na paciência e no heroísmo por meio do qual a Igreja, ajudada por Deus, chegou a tamanha glória. Quando se pensa nos primórdios do Catolicismo, comparado por seu Divino Fundador com o pequenino grão de mostarda, e se vê hoje que a copa da árvore é maior que os mais extensos desertos e as mais vastas nações, são todas as fibras católicas que vibram e se dilatam nos nossos corações.

Não prevaleceram!

Do esplendor desta magnífica realidade se desprende uma voz, porque os fatos falam. E esta voz, eco de outra Voz, nos diz com firmeza mais do que nunca: “non praevalebunt”. Do que adiantou a Nero, a Lutero, ao “Comité de Salut Public”, aos comunistas, investir contra a Igreja com uma fúria desabrida e ferina? Do que adiantou a Juliano o Apóstata, aos jansenistas, aos modernistas, aos nazistas, procurar infiltrar‑se como um cupim silencioso e cheio de lepra, nas próprias fileiras dos católicos? “Non praevalebunt”. Não prevaleceram. (…)

Frutuoso porvir para o Brasil católico

O Brasil se apresenta hoje, no concerto das nações, como uma força que nasce. Nossos recursos começam a pesar decisivamente na economia mundial. Nosso potencial humano já é tomado em consideração por todos que fazem estatísticas de guerra. Nossa posição geográfica começa a fazer de nós uma potência de primeira classe, neste “mare nostrum” dos povos civilizados, que é o Oceano Atlântico. Nossa vida intelectual se vai firmando, e, em todos os sentidos, começam a aparecer entre nós valores que marcam uma ascensão nas atividades do espírito. Hoje já somos alguma coisa. E, sobretudo, não há quem não veja que amanhã poderemos ser quase tudo.

Este Brasil tão rico em tudo, é sobretudo rico da maior das riquezas. É católico, profundamente católico, e o Batismo de Anchieta, que o consagrou a Deus em seus primeiros passos, até hoje não foi repudiado. Aos missionários sucederam os organizadores de nossa vida religiosa já irrevogavelmente firmada no solo agreste do novo mundo. A Hierarquia Eclesiástica se desdobrou aos poucos, e é hoje em nossa terra uma grande falange de pastores, cujos rebanhos crescem dia a dia. Cinco séculos em que Bispos, Clero, Religiosos, fiéis, trabalharam e lutaram para confirmar a graça recebida nas primeiras missões [que] frutificam nos dias de hoje. E tudo isto promete frutificar ainda mais amanhã.

É fácil imaginar com que carinho, com que predileção toda especial a Santa Sé vê hoje em dia este quinhão inapreciável de seu império espiritual. E é fácil imaginar com que atenção, com que simpatia, com que respeito todos os olhos se voltarão para os dois Prelados que o Sumo Pontífice encarregou da honra incomparável de velar pelos interesses mais delicados, pelos assuntos mais altos e mais nobres, que se referirem ao Reinado de Nosso Senhor Jesus Cristo nas terras iluminadas pelo Cruzeiro do Sul(1).

Não fosse um deles o nosso próprio Metropolita, a quem nos prendem os laços de uma filiação espiritual selada com o próprio Sangue de Cristo, e ainda assim, como católicos e como brasileiros, não poderíamos deixar de nos associar a seu júbilo, em situação tão privilegiada em que se aproximarão do Trono de São Pedro.

Onde está Pedro, está a Igreja de Deus

Como de direito, porém, o máximo de nosso filial afeto voa aos pés do Santo Padre. “Ubi Christus ibi Deus; ubi Ecclesia ibi Christus; ubi Petrus ibi Ecclesia”. Só nos unimos a Deus em Nosso Senhor Jesus Cristo, verdadeiro Homem e verdadeiro Deus. Só nos unimos a Jesus Cristo na Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana que é o próprio Corpo Místico do Senhor. E só estaremos unidos a Nosso Senhor Jesus Cristo, mediante uma união sobrenaturalmente forte, união de vida e de morte, à Cátedra de São Pedro. Onde está Pedro, ai está a Igreja de Deus. (…)

Não há melhor meio de testemunhar amor ao Papa, senão obedecendo‑lhe. E obedecer significa fazer aquilo com que estamos de acordo, e aquilo que por nossa própria vontade faríamos. Significa aceitar como verdadeiro o que ele ensina e nós vemos que é verdadeiro.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído do “Legionário”, de 17/2/1946)

 

1) Os dois prelados eram Dom Jaime de Barros Câmara e Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Mota, este último, então Arcebispo de São Paulo.

Incondicional amor à Cátedra de Pedro

Ao comentar um filme documentário sobre a vida no Vaticano na época de Pio XII, Dr. Plinio manifestava, uma vez mais, sua fidelidade à Igreja na pessoa do Papa.

 

Acima de qualquer poder temporal, o Papado é o mais alto poder existente na Terra. É o mais alto, pois tudo quanto diz respeito ao sobrenatural vale mais do que aquilo que se refere ao natural, e o espírito vale mais do que a matéria. Ademais, o Papa tem um poder universal sobre todos os povos, em todos os lugares, enquanto as outras soberanias existentes no mundo são limitadas.

Alguém pode ser rei de um país ou presidente de outro; não há rei do mundo, nem presidente do mundo. Ora, o Papa é o Pastor do mundo inteiro, ele tem uma jurisdição sobre as almas de todo o orbe. O resultado é que, mesmo sob esse terceiro título — o menos importante de todos, mas que é tão importante — ninguém pode se comparar ao Papa.

Então, a ideia é a seguinte: sendo o Papa o representante de Deus na Terra e, portanto, do mais sobrenatural dos poderes, toda a ordem da graça está na mão dele, a ele compete exercer em sumo grau as faculdades de ensinar, de guiar e de santificar, próprias à Igreja Católica. Por exercer esse ministério de uma ordem tão transcendente, ele é o maior hierarca de toda a Igreja e, por isso, também deve estar cercado das maiores manifestações de respeito que a um homem possam ser tributadas.

Respeito, amor e força na monarquia papal

Por causa disso, toda a vida ao redor do Papa há de ser organizada de maneira a torná-lo objeto desse respeito e desse amor. O governo papal sobre a Igreja é uma monarquia que corresponde a três ideias: a ideia do respeito, a ideia do amor e a ideia da força.

A ideia do respeito, em primeiro lugar. O Papa deve ser venerado, como eu já disse.

Em segundo lugar, a ideia do amor. Se o Papa é o representante de Cristo na Terra, todo o amor que os homens tributam a Nosso Senhor Jesus Cristo deve ter como seu ponto de aplicação imediata o Papa, que representa Cristo na Terra.

Depois, a ideia de força. O Papa é um pastor. Os senhores não podem conceber um pastor que não tenha um papel de força a desenvolver, porque o pastor precisa defender as ovelhas contra o lobo. E, portanto, ele deve aplicar a força contra o lobo. O poder de governar as ovelhas tem como elemento intrínseco o de combater o lobo pelas armas espirituais.

Então os senhores veem em torno do Pontífice uma pompa que é religiosa, ao mesmo tempo paterna, mas também é uma pompa de força. E a nota força precisa ser um pouco salientada. Os senhores veem ali as guardas pontifícias: a Guarda Suíça, a Guarda Palatina, a Guarda Nobre — composta exatamente de elementos da nobreza romana —, que serviam ao Papa gratuitamente e se revezavam no serviço papal. Essas três milícias guarneciam os palácios do Papa. É claro que com uma primeira preocupação imediata de garantir a integridade pessoal do Pontífice, a ordem naquele enorme movimento de pessoas e a incolumidade dos colossais tesouros de arte que ali se encontram.

Uma visita que valia por um verdadeiro exercício espiritual

Assim, tudo era organizado de modo a que, em torno do Papa, esses sentimentos pudessem se exprimir. De maneira a ser dada a todos os que fossem ver o Papa a oportunidade de ter os seus sentimentos de devoção, de respeito, de amor, de temor diante da força, levados ao mais alto grau. Portanto, toda a organização ali visava a incutir nos fiéis os sentimentos que eles deveriam possuir.

Por esta razão, uma visita à Basílica de São Pedro e ao Palácio do Vaticano valia por um verdadeiro exercício espiritual do qual o fiel saía com sua alma mais aderente, mais unida ao Papa do que anteriormente.

Quando apareceu o cinema, a possibilidade de realizar filmes como esse e de passá-los ao mundo inteiro levou para os que não podiam ir até lá o espetáculo magnífico e cotidiano dentro do qual a vida de um Papa se desenvolvia.

É natural que, sendo o Papa a cabeça visível da Igreja, pessoas do mundo inteiro procurem ir a Roma para vê-lo. E o número dos que viajavam para ver o Sumo Pontífice — desde São Pedro, primeiro Papa, até nossos dias — foi se multiplicando à medida que os meios de locomoção se tornavam mais fáceis. De maneira a Roma passar a ser, sobretudo nos últimos cem anos, um ponto de atração dos estrangeiros, católicos de todas as partes do mundo chegando continuamente lá.

Os senhores viram, no filme, feridos de guerra, freiras que querem falar com o Papa. Havia de tudo. É um resumo do mundo que quer falar com o Papa. É preciso falar com o Papa!

Os senhores prestem atenção nas fisionomias das pessoas quando falam com o Papa, sobretudo depois de sua passagem. É quase a fisionomia de quem acaba de comungar. Recebeu do Pontífice uma palavrinha só, mas que palavrinha! É guardada na alma para a vida inteira: o timbre de voz, o sorriso, a temperatura da mão, como a mão apertou, como não apertou, os eflúvios, os imponderáveis que o Papa traz em torno de si, tudo isso a pessoa guarda para a vida inteira, e até para a hora da morte, porque é para a hora da morte que guarda.

Estar unido à Cátedra de Pedro até na hora da morte

Eu tive a experiência disso. Eu levei vários objetos para serem abençoados por Pio XII, entre eles algumas velas. As velas que se levavam para o Papa benzer eram velas lindas, que se vendiam na Via de la Conciliazione, todas trabalhadas, com relevos, com figuras, etc. Ele abençoou. Eu guardei de novo na minha pasta, com muitos outros objetos.

Quando cheguei ao hotel, pensei o seguinte — eu tinha a intenção de pôr uma vela dessas na sede do nosso Movimento e dar outra a minha mãe — eu pensei com meus botões: “O que é que eu vou fazer com essas velas? Uma dessas velas deve ser guardada para quando eu morrer. O agonizante católico morre com a vela na mão, e eu quero que a vela com a qual eu morra seja a vela abençoada pelo Vigário de Cristo. Assim estarei unido à Cátedra de Roma até quando eu estiver sem sentidos, até quando me encontrar entre a vida e a morte, e o meu intelecto não articular mais nenhum pensamento. Por minha recomendação, minha mão vai ser agarrada a esta vela que representa tudo aquilo que eu amo na Terra: o Papa, com o qual tudo quanto há na Terra é digno de amor e sem o qual nada é digno de amor, apenas de desprezo, porque está marcado pelo pecado original e pelo domínio do demônio.” É o movimento natural da minha alma.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/1/1976)

Santa Isabel de França Junto ao trono, a glória da santidade

A dois passos do trono de um rei santo vive uma princesa, sua irmã, igualmente ornada das mais altas virtudes. A santidade levada na existência da corte e no claustro, orvalhada pelo perfume do ambiente medieval, é a moldura da vida desta princesa francesa do século XIII, naqueles idos da “doce primavera da fé”. Aos olhos de Dr. Plinio, trata-se de um lindo exemplo de como Deus glorifica seus eleitos.

 

Eis um fato pouco conhecido: São Luís, Rei de França, teve uma irmã igualmente santa, canonizada, cuja memória é celebrada em 22 de fevereiro.

No palácio, uma existência monacal

Em sua Vida dos Santos, o Pe. Rohrbacher nos fornece alguns dados biográficos a respeito dela:

Filha de Luís VIII e Branca de Castela, Isabel de França nasceu em 1225. Com menos de 2 anos de idade perdeu o pai, mas a mãe deu-lhe uma educação completa, auxiliada pela senhora de Buisemont, mulher culta e virtuosa.

Desde criança, Isabel mostrou aversão por tudo quanto pudesse afastá-la de Deus, decidindo mais tarde consagrar-se a seu serviço. Assim, quando Luís IX e Branca de Castela insistiram para que se casasse com Conrado, filho de Frederico II [imperador germânico], pois essa união era vantajosa para a França, Isabel recusou-se terminantemente. Uma carta de Inocêncio IV, então no trono pontifício, veio pôr fim a qualquer dúvida sobre o problema: felicitou a jovem por sua resolução e aconselhou-a a perseverar.

Desde então, no próprio palácio, Isabel passou a levar uma vida em tudo semelhante à do claustro, dedicando-se principalmente aos pobres e doentes. Deus enviou à sua serva muitas provas: enfermidades longas e graves; a morte da rainha-mãe, que muito a abalou; o insucesso do irmão na Terra Santa. Quando este voltou, liberto, Isabel deixou o castelo real e fundou em Longchamp uma casa para jovens, da Ordem de São Francisco, depois Convento da humildade de Nossa Senhora, do qual mais tarde foi superiora.

Como abadessa, sempre doente, foi favorecida por graças e êxtases, chegando, antes de falecer, a saber a hora e o dia exatos em que deixaria o mundo.

Santa Isabel de França faleceu em 1270. Revestida com o hábito de Santa Clara, foi sepultada no mesmo convento que fundou, conforme seu desejo. Dizem que seus funerais foram muito solenes. Depois de nove dias seu corpo foi exumado, e não apresentava sinal algum de decomposição.

A 3 de janeiro de 1521, o Papa Leão X permitiu que a Abadia de Longchamp celebrasse sua festa com um ofício próprio.

Em vez de prazeres e orgulhos, oração e cuidado dos pobres

Cumpre assinalar, antes de tudo, que esses dados constituem mais um exemplo para desmentir a lenda contrária às cortes, apresentando-as sempre como lugar de prazeres desregrados, sensualidade, exaltação do orgulho, onde a virtude não floresce.

Vemos aqui dois santos: um deles sentado no trono, e sua irmã nos degraus do sólio régio, ambos tributando a Deus toda a glória de que eram capazes. E não distante deles, brilhava a pessoa de Branca de Castela que, embora não fosse santa, era entretanto insigne por sua austeridade e por vários predicados morais.

Quanto à vida de Santa Isabel, percebe-se que o modo pelo qual a Providência trata seus santos é bem diversos do “happy end”(1). Conforme esse estado de espírito, as pessoas consagradas levam existência aprazível, sem dificuldades e provações.

Ora, trata-se aqui de uma princesa que abandona tudo para se dedicar à oração e a servir os pobres. Nota-se, de forma mais ou menos clara, que Isabel carrega uma parte do fardo de São Luís: ela sofre, geme, reza pelo êxito do Rei Cristianíssimo no governo, em sua cruzada e outros empreendimentos. Padece agudamente com o insucesso da expedição militar comandada por ele para libertar Jerusalém e pelo fato de São Luís ter sido preso.

Doente, santificou-se de modo mais rápido

Ela reside no castelo real, onde leva vida de monja. E quando o rei volta, deixa o local e funda um convento. Sua formação religiosa está completa.

Durante esse período, porém, é atormentada por graves doenças que constituem, evidentemente, contratempos às suas obras de caridade e até à suas práticas piedosas. Muitas vezes ela terá tido dificuldade em rezar por causa das enfermidades. Foi doente a vida inteira. Entretanto, ao longo de seus anos adquiriu abundantes méritos e se santificou.

Quis a Providência que Isabel enfrentasse um grande obstáculo o qual, na realidade, foi um meio para atingir a perfeição. Tornando-se doente, ela se santificou mais rapidamente e melhor do que se tivesse desfrutado de boa saúde. Esse é o fato concreto.

Convento da humildade de Nossa Senhora

Assim, verifica-se quão errado é pensar que todas as obras de apostolado devem correr de forma fácil, atingindo sempre bom resultado, sem encontrar dificuldades internas nem externas. Tal pensamento é equivocado e denota espírito naturalista, dado à mania do “happy end” exaltado pelo cinema.

Isso nos serve de lição. Às vezes, alguns de nossos empreendimentos apostólicos não logram o êxito que desejávamos, ou até fracassam. Devemos compreender que essas vicissitudes fazem parte de nossa existência neste mundo, são o “pão nosso de cada dia”; diria mesmo que é o modo normal com que a Providência age em relação aos que A servem. Desconfiemos: quando uma obra segue seu caminho sem topar com nenhum contratempo, não é obra de Deus.

Chamo a atenção para o lindo nome do mosteiro que Santa Isabel fundou e escolheu para lugar de seu recolhimento: Convento da humildade de Nossa Senhora.

Esse título nos dá a impressão de que naqueles corredores, nos claustros, nas celas e, sobretudo, na capela, pairava como que um manto da humildade de Nossa Senhora, agasalhando as religiosas na aniquilação de todas suas vaidades, de todo seu orgulho. E, ao mesmo tempo, protegendo-as, propiciando-lhes as alegrias que são um antegozo do Céu.

A notícia da morte, um prêmio recebido de Deus

Por outro lado, é belo considerar como Deus sempre glorifica seus santos. Nesse sentido, há uma impressionante oração de Nosso Senhor, na qual Jesus pede a Deus Pai que O glorifique, porque Ele já dera glória ao Pai Celeste(2).

Todos os santos são glorificados pelo Altíssimo, ainda que isto suceda no último minuto de sua existência. Santa Isabel soube exatamente em que ano e hora haveria de morrer, e permanecia serena. Atitude bem diversa de certas pessoas que se tomariam de medo se alguém lhes informasse a data de sua morte. Se não o medo, o cálculo otimista: “Que bom se me disser que morrerei com 93 anos de idade. E quando o dia chegar, ficarei um tanto aborrecido, pois saberei que morrerei mesmo, e não atingirei os 100… Ao menos passarei 90 anos sossegados; nos últimos três anos começarei a me preocupar. Mesmo assim, vale a pena!”

Mas, se lhe declaram que vai morrer dentro de 15 dias? Como se arranja?

Infelizmente, a maioria das pessoas demonstram medo em saber quando irão falecer. Não era esta, porém, a atitude de Santa Isabel de França. Ela considerava a morte uma libertação. Soube da data de seu passamento como se fosse um prêmio de Deus, e preparou-se para ir ao Céu como uma esposa se atavia a fim de encontrar-se com seu esposo. Percebe-se, assim, a extrema beleza de que se reveste essa maneira de morrer.

Diz a Escritura que a morte dos justos é preciosa aos olhos de Deus (Cf. Sl 115, 15). Realmente, nota-se que Santa Isabel teve uma morte tranquila, serena, porque sabia quando Deus iria chegar.
Imaginemos o que se passa no quarto de um moribundo, no exato momento em que exala o último suspiro. Ele é julgado por Deus e naquele dia mesmo pode estar contemplando o Senhor face a face, libertado de tanta miséria e tristeza, tanto infortúnio e risco de salvação eterna!

Assim deve ter sido a morte de Santa Isabel de França. Que ela interceda por nós, peregrinos neste vale de lágrimas, a fim de que alcancemos, nós também, um fim sereno e a eterna bem-aventurança.

 

1 ) Mentalidade incutida pelos filmes de Hollywood — espalhados no mundo inteiro, após a II Guerra Mundial — segundo a qual a vida não deve ser encarada com seriedade, pois tudo tem um “final feliz”.
2) Cf. Jo 17, 1-5.

Unido à Cátedra de Pedro até a morte

Quando de sua primeira visita a Paris na idade adulta, logo após se instalar no hotel, Dr. Plinio se dirigiu a Notre Dame. Era noite, a cidade luz cintilava. Aproximando-se pela “rive gauche”, encantou-se com a vista da face lateral da catedral junto ao Sena, e mandou parar o automóvel para ficar um tempo contemplando aquela maravilha. Desejava glorificar a Deus refletido tão belamente no célebre edifício sagrado visto desse ângulo.

Essa atitude de admiração enlevada era manifestação de um amor pela Igreja que quase tocava nos limites da adoração, conforme declarou ele certa feita. Se São Francisco desposou a Dama Pobreza, aspirava Dr. Plinio com todo o coração fazer um desposório místico com a Santa Igreja Católica, Apostólica e Romana enquanto instituição.

E, como de direito, o máximo de seu afeto filial se dirigia ao Santo Padre, o Doce Cristo na terra. “Ubi Christus ibi Deus; ubi Ecclesia ibi Christus; ubi Petrus ibi Ecclesia”. “Só estaremos unidos a Nosso Senhor Jesus Cristo, mediante uma união sobrenaturalmente forte, união de vida e de morte, à Cátedra de São Pedro. Onde está Pedro, aí está a Igreja de Deus”, escreveu ele no Legionário (17/2/1946).

Devotadíssimo filho da Santa Sé, em outro artigo para o Legionário, fazia Dr. Plinio esta eloquente apologia de seu filial e entusiasmado amor pelo Papado: “De tal maneira a Igreja Católica está vincada à Cátedra de São Pedro que onde não há a aprovação do Papa não há Catolicismo. O verdadeiro fiel sabe que o Papa resume e compendia em si toda a Igreja Católica […]. Porque tudo quanto há na Igreja de santidade, de autoridade, de virtude sobrenatural, tudo isto, mas absolutamente tudo sem exceção, nem condição, nem restrição está subordinado, condicionado, dependente da união à Cátedra de São Pedro. As instituições mais sagradas, as obras mais veneráveis, as tradições mais santas, as pessoas mais conspícuas, tudo enfim que mais genuína e altamente possa exprimir o Catolicismo e ornar a Igreja de Deus, tudo isto se torna nulo, maldito, estéril, digno do fogo eterno, e da ira de Deus, se separado do Romano Pontífice. […] para nós, entre o Papa e Jesus Cristo não há diferença. Tudo que diga respeito ao Papa diz respeito direta, íntima, indissoluvelmente, a Jesus Cristo”(16/4/1944).

Fiel até o fim ao carisma recebido, desejou Dr. Plinio morrer tendo nas mãos o crucifixo e uma vela benta pelo Papa, como derradeira e suprema manifestação desse incondicional afeto e devotamento à Cátedra de São Pedro de que sua alma transbordava.

Foi Dr. Plinio, sem dúvida, em toda integridade um autêntico “vir catholicus, totus apostolicus, plene romanus”!

Os pastorinhos de Fátima e o Segredo de Maria

Que maravilhas da graça se operaram nos corações dos Pastorinhos de Fátima por ocasião de seus encontros com a Santíssima Virgem? Que virtudes a ação da celeste Senhora fez desabrochar naquelas humildes crianças? No presente artigo Dr. Plinio nos dá a resposta desvendando algo do Segredo de Maria ao constatar a vitória do Imaculado Coração de Maria nas almas dos dois videntes de Fátima.

Há uma ficha para nós comentarmos aqui: “Última aparição de Nossa Senhora em Fátima”, do Pe. João M. de Marchi, IMC, no livro: “Era uma Senhora mais brilhante que o sol”(1). A verdadeira diretora espiritual das crianças foi, todavia, essencialmente Nossa Senhora. Falo das crianças: Jacinta, Francisco e Lúcia (os Pastorinhos de Fátima).

A bondosa Senhora da Cova da Iria tomou à sua conta a realização desta obra-prima. E como não podia deixar de ser, levou a cabo com pleno êxito. Das suas mãos prodigiosas saíram três anjos revestidos de carne, mas que ao mesmo tempo eram três autênticos heróis. A matéria-prima era de uma plasticidade admirável. E da Artista, que mais dizer?

Na sua escola, os três serranitos deram, em breve tempo, passadas de gigante no caminho da perfeição. Neles se verificou, à letra, as palavras de um grande devoto de Maria, o Beato Grignion de Montfort: “Na escola da Virgem a alma progride mais numa semana do que em um ano fora dela”. A pedagogia da Mãe de Deus não sofre confrontos. Em dois anos, a Virgem Santíssima conseguiu erguer os dois irmãozitos, Francisco e Jacinta, até os cumes mais elevados da santidade cristã.

O retrato que a mão segura de Lúcia nos traça sobre Jacinta é revelador: “A Jacinta tinha um porte sempre sério, modesto e amável que parecia traduzir a presença de Deus em todos os seus atos. Próprio das pessoas já avançadas em idade e de grande virtude. Não lhe vi nunca aquela demasiada leviandade e o entusiasmo próprio das crianças pelos enfeites e brincadeiras isto depois das aparições). Não posso dizer, que as outras crianças corressem para junto dela, como faziam para junto de mim. E isto talvez porque ela não sabia tanta cantiga e historieta para lhes ensinar e as entreter, ou então porque a seriedade de seu porte era demasiado superior à sua idade. Se na sua presença alguma criança, ou mesmo pessoas grandes, diziam alguma coisa ou faziam qualquer ação menos conveniente, repreendia-as dizendo: “Não façam isso, que ofendem a Deus Nosso Senhor. E Ele já está tão ofendido!” (…)

Francisco sentia-se atraído por uma vida de asceta e de contemplativo. Frequentemente desaparecia da vista das duas meninas, mantendo-se em lugares ermos e ficava a pensar.

— Que estavas aqui a fazer há tanto tempo? Perguntou-lhe Lúcia.

— Estava a pensar em Deus que está tão triste por causa dos muitos pecados! Se eu pudesse O consolar! Jesus está tão triste e eu quero confortá-lo com oração e penitência.

Em outra ocasião dizia: “Gosto muito de Deus. Mas Ele está tão triste por causa de tantos pecados. Nós não devemos fazer nem o mais pequeno pecado!”

Um dia em que a Lúcia cedeu às instâncias das amiguinhas para tomar parte em divertimentos próprios da idade, Francisco chamou-a de lado e disse-lhe muito sério:
— Então tu voltas a essas brincadeiras depois de Nossa Senhora nos ter aparecido?
— Então, pediram-me tanto!… — escusava-se a Lúcia.

Mas o Francisco lógico e severo lhe retorquia:
— Toda a gente sabe que Nossa Senhora te apareceu, então não devem estranhar que tu já não queiras bailar!…

Trata-se aqui daquele bailado português em que as pessoas se tocam com as mãos. São aquelas figuras de bailado camponês.

As crianças aproveitavam as entradas e as saídas das escolas para irem visitar Nosso Senhor, passando longas horas ao pé do Tabernáculo.

A Jacinta e o Francisco, sobretudo, que tinham a promessa da Virgem de os vir buscar, em breve, para o Céu e que, portanto, se julgavam dispensados das lições, recolhiam-se mais vezes na igreja a falar a sós com “o Jesus escondido”.

Jesus escondido é o nome com o que chamavam a Eucaristia.

Jacinta dizia a Lúcia:
— Já fizestes hoje muitos sacrifícios? Eu fiz muitos. Rezei também muitas jaculatórias. Gosto tanto de Nosso Senhor e de Nossa Senhora que nunca me canso de Lhes dizer que Os amo. Quando eu Lhes o digo muitas vezes, parece que tenho lume no peito, mas não me queima.

Outras vezes:
— Olha Lúcia, Nossa Senhora veio nos ver esses dias. E veio dizer que vem buscar o Francisco muito breve para o Céu. E a mim, perguntou-me se ainda queria converter mais pecadores. Disse-lhe que sim. Ela disse-me então que quer que eu vá para dois hospitais, mas não é para me curar. É para sofrer mais por amor de Deus, pela conversão dos pecadores, em desagravo das ofensas cometidas contra o Coração Imaculado de Maria. Disse-me que tu não irias, que iria lá minha mãe levar-me e que depois ficaria sozinha.

Tempos depois, Francisco para Lúcia:
— Estou muito mal, falta-me pouco para ir para o Céu.

Lúcia:
— Então vê lá, não te esqueças de lá pedir muito pelos pecadores, pelo Santo Padre, por mim, e pela Jacinta.

Francisco:
— Sim, eu peço. Mas que essas coisas peças antes à Jacinta, que eu tenho medo de me esquecer, quando vir a Nosso Senhor. E depois, antes O quero consolar.

Na obra de Nossa Senhora com os videntes de Fátima, um começo do triunfo do Imaculado Coração de Maria nas almas

Esta ficha tem uma graça marcante, porque ela nos indica uma porção de aspectos grandes e pequenos da obra de Nossa Senhora com estas três crianças.

Mas nós devemos, antes de tudo, considerar o valor simbólico da obra de Nossa Senhora nas crianças. Enganam-se aqueles que imaginam ser apenas uma obra sobre três crianças. É uma obra que transformou suavemente essas crianças de um momento para outro, pelo simples fato das reiteradas aparições de Nossa Senhora.

Com uma dessas crianças até, Nossa Senhora disse estar aborrecida. E esta criança era o Francisco, que não ouviu Nossa Senhora por causa disso. E, portanto, pode ser considerado um convertido. As três mudaram extraordinariamente em consequência das revelações.

Nós temos aqui algo de parecido com o Segredo de Maria. Quer dizer, uma dessas ações profundas da graça na alma, ações que se desenvolvem sem a pessoa dar-se conta. Ela vai sentindo-se cada vez mais livre, cada vez mais desembaraçada para praticar o bem, e os defeitos que a tolhem e a prendem no mal vão se dissolvendo. E a pessoa cresce em amor de Deus, cresce em vontade de se dedicar, cresce em oposição ao pecado, mas tudo isso se dá maravilhosamente dentro da alma.

De maneira que a alma não trava as grandes e metódicas batalhas da ascensão admirável ao Céu, à virtude, à santidade, daqueles que lutam de acordo com o sistema clássico da vida espiritual; mas Nossa Senhora as transforma de um momento para o outro. E se a obra de Nossa Senhora em Fátima — especialmente com essas duas crianças chamadas para o Céu — foi assim, nós podemos bem nos perguntar se isto não tem um valor simbólico, e se não indica qual vai ser a ação de Nossa Senhora sobre toda a Humanidade quando Ela cumprir as promessas feitas em Fátima, e se não é lícito prever o cumprimento das promessas de Fátima executado à maneira do ocorrido com Jacinta e Francisco, mais notadamente, como cogita esta nossa ficha.

E, portanto, se nós não devemos ver aí um começo, podemos ver um dos múltiplos começos — porque as coisas enormes têm muitos começos — do Reino de Maria, enquanto sendo o triunfo do Imaculado Coração sobre duas almas pregoeiras da grande revelação de Nossa Senhora; as quais, pelos seus sacrifícios e orações na Terra e, depois, as orações no Céu, ajudaram e ainda ajudam enormemente as almas a aceitarem a mensagem de Fátima.

Quer dizer, nós devemos ver nessa transformação, creio eu, ao menos de um modo muito provável, um símbolo dessas transformações profundas que marcarão o Reino de Maria.

Os Pastorinhos de Fátima: intercessores apropriados para obter de Nossa Senhora o início de seu Reino em nossos corações

Esta primeira observação me parece conduzir diretamente ao seguinte: se isto é assim, então os pastorinhos de Fátima são os intercessores naturais para se pedir e obter de Nossa Senhora que comece o Reino de Maria em nós desde logo, por essa transformação misteriosa que é o Segredo de Maria.

E, então, nós devemos suplicar instantemente, tanto à menina quanto a ele, que comecem a nos transformar, comecem a nos dar os dons que eles receberam. E que eles velem especialmente sobre aqueles cuja missão é a de pregar a mensagem de Fátima, viver da mensagem de Fátima, como acontece conosco.

Isto é uma razão a mais para nós termos uma marcante devoção a eles.

Efeitos da ação de Maria sobre os videntes

É interessante notar, também, o efeito do Segredo de Maria sobre essas crianças. Elas mudaram, está bem. Mas quais os sintomas externos dessa mudança? Quais foram as manifestações externas dessa transformação? São apontadas aqui três coisas: grande seriedade, espírito de oração e espírito de sacrifício. Por cima de tudo isso, uma convicção muito grande da missão deles e o desejo de viver para essa missão, de onde vinham essas três consequências.

Espírito de seriedade

Espírito de seriedade. Os senhores viram o Francisco censurar a Lúcia por esta não ser bastante séria e aceitar de bailar, ou seja, fazer aquela dançazinha portuguesa com crianças. E a razão dada por Francisco para repreender a Lúcia foi essa:
— Você, que viu Nossa Senhora aparecer, não deveria participar desses brinquedos.

A Lúcia respondeu:
— Mas, afinal de contas, pediram tanto!

Disse o Francisco:
— Mas como eles sabem que a você Nossa Senhora apareceu, a você eles não deviam pedir.

Como quem diz: “Eles compreenderão a sua recusa ou, ao menos, têm todos os dados para compreender. Se eles não compreendessem, seria por culpa deles, mas você deveria ter recusado”.

É a ideia de que para agradar Nossa Senhora precisa ser muito sério. Não se agrada Nossa Senhora sem ser muito sério.

E de Francisco, a ficha diz que ele era lógico, raciocinava muito, com muita firmeza no tocante a seus deveres. O autor emprega até uma palavra muitas vezes utilizada hoje em sentido pejorativo: que ele era “severo”. Ele possuía uma lógica completa e deduzia de sua missão que era preciso ser daquele jeito: sério, não dizer nada inconveniente, agir corretamente. Por isso ele não perdia ocasião de dar o exemplo e de proceder segundo a lógica.

Mais ainda, esta seriedade, nas condições insignificantes de crianças, levava-as à combatividade. A Jacinta não via uma pessoa dizer ou fazer algo errado, sem que ela a repreendesse: “Isto aqui não está bom!” E dava a razão religiosa: “Deus não deve ser ofendido! Já está tão ofendido em nossa época, você ainda quer ofendê-lo mais? Quer acrescentar algo a esta montanha de pecados que se cometem?”

Então, os senhores percebem como a seriedade e a lógica são o fruto do Segredo de Maria. E se nós quisermos corresponder às graças de Nossa Senhora, devemos agir de maneira a sermos sérios e lógicos. E, pelo menos, quando virmos pessoas sérias e lógicas, tratarmos de admirá-las, de nos acercarmos delas, conversar com elas, e nos deixarmos penetrar pelo espírito delas.

Espírito de sacrifício

De outro lado, o espírito de sacrifício. As duas crianças recebem de Nossa Senhora a notícia de que morrerão dentro de um breve prazo. E a Francisco a notícia podia apavorar porque estava dito que ele morreria logo. Ora, a morte é um castigo imposto ao homem, e sua proximidade, em geral, apavora. Quando a pessoa não tem uma graça especial, diante da proximidade da morte fica aterrorizada. Francisco viu, alegre, a morte aproximar-se. Ele ia fazer o sacrifício pedido por Nossa Senhora. Não tinha saudades de nenhum dos bens deste mundo. Queria ir para o Céu e deixar esta Terra com a imolação de sua vida para a vitória da causa católica.

De Jacinta Nossa Senhora pediu algo que, por um aspecto, apavorava menos. Pediu que ela vivesse por mais algum tempo. É o espectro colocado um pouco mais longe. Entretanto, disse-lhe que viveria mais para sofrer. Quem não tem medo de uma vida de sofrimentos? E revelou-lhe um dos sofrimentos que mais apavoram as crianças: ficar doente e longe dos pais. Nossa Senhora disse: “Tu serás levada a Lisboa e tua mãe vai deixar-te”. Portanto, “tu adoecerás e morrerás sem a assistência dos teus”. E ela morreu, de fato, sem o socorro materno. Ela aceitou também. Eu creio ser o mais pesado sacrifício que se pode pedir a uma criança. O Segredo de Maria levou-a a esse sacrifício.

Espírito de oração

Depois, espírito de oração. Rezavam continuamente. E para que rezavam? Pela causa católica. Porque rezavam para Deus não ser ofendido, Deus ser glorificado, o que é a própria essência da causa católica. Tudo, em última análise, consiste nisso: que Deus seja glorificado e não seja ofendido. E isto eles tinham em mente sempre e rezavam muito.

Mas qual era a fonte que ininterruptamente estava dando-lhes este alimento espiritual? Era a crença na própria missão. A crença em que se cumpriria sobre eles a palavra de Nossa Senhora.

Virtudes a serem pedidas a Nossa Senhora por intercessão dos Pastorinhos de Fátima

Nós podemos fazer dessas considerações uma aplicação para nós? Eu creio que facilmente. Porque essas são as virtudes às quais nossa vocação nos convida. A nossa vocação contém uma espécie de raiz do Segredo de Maria. Sem dúvida, quem entra para nosso Movimento com as disposições normais experimenta desde logo várias melhoras em sua alma. E depois tem de passar pelo embate das provas que todos nós, infelizmente, conhecemos. Mas, de si, há algo de parecido — parecido não quer dizer idêntico — com o Segredo de Maria. E todo novato tem um grande impulso para a frente que consiste numa certa transformação. Essa transformação opera com o caráter rápido, célere, fácil, atraente com que age a graça do Segredo de Maria. Além disso, nossa vocação é ordenada aos fatos anunciados por Nossa Senhora em Fátima. Isto estabelece mais uma relação entre nossa vocação e a deles.

E eu creio que quem peça a Nossa Senhora de Fátima, por intercessão deles, auxílio para sermos fiéis a essa nossa vocação, fará a Ela uma oração especialmente grata. E poderá receber favores enormes para ser fiel à vocação, mesmo em circunstâncias dificílimas, graças precisamente ao Segredo de Maria.

E nossa vocação necessita das quatro virtudes que eles praticaram: a virtude básica, crermos em nossa vocação como eles creram na deles; e, em consequência: seriedade, espírito de sacrifício e espírito de oração.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/10/1971)

1) Cf. DE MARCHI, I. M. C., Pe. João. Era uma Senhora mais brilhante do que o Sol… Fátima: Edições Consolata. Na 7a edição (1978) o trecho resumido para Dr. Plinio encontra-se nas páginas 251-267.