A vitória da confiança – I

No século XVII, a Polônia foi invadida por soldados suecos e noruegueses protestantes que avançaram como um dilúvio por todo o país. O rei fugiu, a maioria dos nobres pactuou com o inimigo, o clero nada fez. Apenas um punhado de monges, alguns nobres e um pequeno número de plebeus resistiram, comandados por um varão heroico: Frei Agostinho Kordecki.

 

Desejo comentar o cerco de Czestochowa e a resistência do Mosteiro de Jasna Gora durante a guerra entre a Suécia e a Polônia, em 1655.

Polônia: muralha separando o mare magnum de duas heresias

Há uma preliminar que devo fazer notar para compreendermos a nobreza da luta cuja história vamos considerar. Não se trata simplesmente da resistência de um mosteiro polonês contra a investida de um exército sueco e, portanto, de uma mera guerra nacional. Se assim fosse, já seria uma coisa digna para a qual valeria a pena um polonês dar a sua vida; sua pátria foi invadida, ele tem deveres para com ela, então sacrifica a sua vida, está bem.

Entretanto, para esses religiosos do Mosteiro de Jasna Gora estava em foco uma causa muito mais alta, que era a causa da Religião. Porque, de um lado, a Polônia constituiu, em todos os tempos, uma espécie de muralha separando o “mare magnum” de duas heresias na Europa: de um lado, o mundo russo, que naquele tempo já era cismático; e, de outro, o mundo protestante, isto é, a Prússia e os Países Bálticos. Constituindo uma potência no Báltico, por ter porto naquele mar e separar a Rússia da Alemanha, a Polônia é uma longa manus da Igreja Católica naquelas terras de apostasia.

Outro pressuposto a ser considerado é que o rei invasor, Carlos Gustavo da Suécia(1), foi um dos maiores generais e talvez o líder protestante mais importante da época. A Suécia e a Noruega constituíam naquele tempo um só reino. A península escandinava possuía guerreiros excelentes. Os soldados sueco-noruegueses não tinham quem os superassem em valor militar na Europa. Além de ser um grande general, Carlos Gustavo dispunha de muito boa marinha, de maneira a atravessar aquelas distâncias entre a Suécia e o continente com toda facilidade.

Este rei interveio na guerra de Religião que estava se travando no continente europeu entre católicos e protestantes, a propósito da direção do Sacro Império Romano-Alemão. Os protestantes queriam desbancar a Casa d’Áustria da direção do Sacro Império e impor um imperador protestante, de maneira a virar todo o mundo alemão para o protestantismo. Carlos Gustavo percebeu muito bem que ele não conseguiria isso se não tomasse conta da Polônia, que apoiava os príncipes católicos contra os príncipes protestantes.

A Polônia era um reino eletivo com uma constituição política excessivamente descentralizada, no sentido de que os nobres tinham um poder que transformava o rei numa espécie de figura de proa sem verdadeiro poder militar. Isso enfraquecia a nação nas investidas que ela sofria. Ademais, a Polônia tinha nesse tempo um rei fraco. Assim, os soldados suecos e noruegueses avançaram como um dilúvio pela Polônia adentro.

Sinais do castigo divino

Um dos poucos pontos que resistiram foi o mosteiro localizado na colina de Jasna Gora, em Czestochowa. Resistiu, portanto, na luta contra o invasor da pátria e o maior líder protestante daquele tempo, numa guerra eminentemente religiosa na qual o mosteiro funcionou como fortaleza onde, como veremos, Nossa Senhora fez uma série de milagres estupendos.

Czestochowa era para a Polônia o que Aparecida é para o Brasil, mas com muito mais relevo, porque tivera uma participação efetiva nas grandes lutas daquela nação, maior do que Nossa Senhora Aparecida teve aqui.

Ora, a Polônia tinha caído na tibieza, atraindo sobre si o castigo divino que se fez anunciar por alguns sinais.

Quando Deus Altíssimo decidiu castigar os poloneses, primeiro enviou, em sua bondade, vários sinais prenunciando a catástrofe que se aproximava. Assim, permitiu que, a 10 de fevereiro de 1654, a alta torre do Santuário de Czestochowa fosse atingida por um raio e se consumisse em fogo.

Então, o primeiro sinal da cólera de Deus foi um raio que caiu sobre o campanário do santuário e o destruiu. A torre é símbolo da Igreja, e esta é o símbolo do país.

Nesse mesmo ano, a 9 de julho, todos viram um milagre que ocorreu no Sol, sobre cuja superfície apareceu uma cruz que se ia transformando em coração, o qual era transpassado por uma espada. A certa altura do disco solar via-se a mão de uma pessoa segurando uma maçã que se dividia em quatro partes, transformando-se depois num açoite.

No ano seguinte, partia do Norte o açoite de Deus contra os poloneses: Carlos Gustavo, rei dos suecos.

Os suecos tomaram facilmente todo o país, quase sem resistência

Passando diretamente à narração da batalha em Czestochowa, vemos as tentativas do inimigo de vencer o mosteiro pacificamente.

Os suecos tomaram facilmente todo o país, quase sem resistência. Quase toda a nobreza, parte da qual era calvinista, aceitou Carlos Gustavo como protetor da Polônia, abandonando o Rei João Casimiro à própria sorte. Após conquistarem Cracóvia, no extremo Sul, enviaram, por ordem do rei sueco, um exército de três a quatro mil homens para tomar o Santuário-fortaleza de Czestochowa, a uns duzentos quilômetros dali.

Adiantando-se ao inimigo, o Conde Jan Wejhard Wrzesowicz, a fim de conquistar as boas graças do rei dos hereges, exigiu dos frades que entregassem a Fortaleza de Jasna Gora a ele, católico, para evitar que ela caísse por via direta em mãos suecas. Se não atendessem a sua exigência, ele ameaçava tomar à força o santuário. Os monges, tendo à frente seu prior, Frei Agostinho Kordecki, tentaram demover o conde de sua vil pretensão e recusaram sua proposta.

Esse miserável queria que os monges entregassem o mosteiro-fortaleza a ele, mas na linha da tática “ceder para não perder”, como que dizendo: “Entreguem-me o mosteiro para que eu o defenda porque, do contrário, tomo-o à força, pois é preciso que alguém o defenda eficazmente contra o Rei da Suécia.” Entretanto, era evidente que ele não queria isso. Sua intenção era entregar o mosteiro para o Rei da Suécia. Então Frei Kordecki, com muito critério, tentou dissuadi-lo de seu intento, mas recusou a proposta.

Enquanto isso, alguns nobres, fugindo do avanço sueco, buscavam refúgio em Jasna Gora. Um deles aconselhou os religiosos a não cederem aos seus inimigos e afirmou que os que ali buscavam refúgio estavam dispostos a morrer em defesa da honra do santo lugar, confiantes na proteção de Nossa Senhora.

É muito bonito isso porque, sendo um mosteiro, não possuía tropas próprias e, portanto, não tinha como se defender da exigência daquele conde traidor. É quando a Providência manda o auxílio: são os nobres que vinham fugindo de outro lugar e se internam ali, prometendo fazer a resistência.

Notem que só depois de o superior, Frei Kordecki, ter recusado a proposta do Conde Jan Wejhard vieram-lhe os reforços. Nossa Senhora quis antes que ele praticasse, sem forças, o ato de coragem para depois vir a força que lhe justificaria o ato de coragem. É bem o modo de Nossa Senhora tantas vezes nos tratar:

— Vá para a frente! – diz Ela.

Nós respondemos:

— Mas, minha Mãe, não tem chão firme aqui!

— Pise.

Nós pisamos e… “Ah, tem chão!”

“Antes morrer dignamente do que viver na impiedade”

Continuemos a leitura.

Após a primeira recusa dos monges frente ao binômio “medo-simpatia”, o Conde Jan Wejhard, contudo, não desistiu de seu plano. Enviou um “ultimatum” ao prior exigindo, sem rebuços, que Jasna Gora se rendesse ao rei sueco, jurando submissão e fidelidade ao usurpador. E que os religiosos se comprometessem a denunciar qualquer sublevação de que tivessem notícia no futuro.

Os monges responderam imediatamente, por meio de seu prior: “Antes morrer dignamente do que viver na impiedade”.

Perfeito! Vejam o que a Providência quis deles. Esse traidor acabou levando uma declaração de guerra na cara.

Frei Kordecki não deu a seguinte resposta que seria presunçosa: “Venham, que eu vou lhes provar que tenho coragem”. Mas disse o seguinte: “Você é mais forte do que eu e me ameaça. Pois bem, eu prefiro morrer. Portanto, vou resistir. Se você vier, eu o mato”. E, depois, quando ele veio, matou mesmo. É a atitude perfeita.

Como faz bem à alma ver que essa é a conduta de sacerdotes bem orientados! Eu sustento que um dos Santos mais suaves que houve em toda a História da Igreja – São Francisco de Sales –, posto nessas condições faria exatamente isso. São João Bosco, Santa Teresinha, São Francisco de Assis fariam o mesmo, porque santidade é isso. E quando não é isso, não é santidade, é tapeação.

Aliás, quando estive na cidade de Genebra, em 1950, um guia me mostrou o muro a partir do qual São Francisco de Sales tentou reconquistar aos protestantes, a mão armada, a cidade de Genebra da qual era Bispo. Era o Santo da “Filoteia”. Muito bom com os bons. Mas quando o sujeito é um ímpio, o trato é ali! Corresponde ao símbolo lindo que São Bernardo deu aos Templários: traje branco e preto. Branco é o trato com os filhos da luz, e preto, com os filhos das trevas.

Valeria a pena, se tivéssemos recursos, fazer um filme reconstituindo essa cena. Uma atmosfera muito delicada numa igreja com uma imagem de Nossa Senhora, pétalas de flores caindo, uns raios de Sol entrando obliquamente pelo vitral e incidindo de cheio sobre um frade que reza piedosamente. É o Frei Kordecki que começa a recitar a sua prece: “Minha Mãe, esmagai-os!” Levanta-se, passa perto de uma criancinha, agrada-a, dá-lhe um pouco de comida, em seguida vai enfrentar o conde traidor com um olhar de quem discerne os espíritos, e diz: “Não, senhor, não cederei!” Depois volta calmo para o claustro, rezando o Rosário. Isso deixaria a “heresia branca”(2) desnorteada.

Deus parecia ter abandonado…

Como o conde traidor não tivesse meios para conquistar Jasna Gora pelas armas, atacou algumas propriedades do convento, causando-lhes dano e apressou-se em ir ao encontro do General Miller, o qual se deslocava com tropas suecas nas imediações. Acenando-lhe com os tesouros do santuário, conseguiu convencê-lo a atacar Jasna Gora desde logo.

O prior, convocando o Conselho do mosteiro, comunicou aos religiosos a sua decisão de não entregar o santo lugar aos hereges, e de resistir com todos os meios disponíveis. Sua decisão foi unanimemente aprovada.

Vejam como o conde que antes quis se aproximar do convento aconselhando, como “aliado”, a que tomassem cuidado e entregassem a ele a fortaleza, quando viu que os suecos protestantes estavam próximos, não teve outro desejo senão atraí-los para caírem em cima dos tesouros do mosteiro. É a “quinta-coluna”(3) sempre fiel a si própria: dá “bons conselhos”, é amável, é blandiciosa, mas quando chega a hora do perigo atraiçoa e procura vender. Como ele não foi atendido e não pôde trair, incitou os inimigos para atacarem o convento.

Enquanto isso, o Rei João Casimiro refugiava-se no vizinho Principado de Opole, na Silésia, onde trataria de reunir os remanescentes do exército da Polônia. Mas nenhum auxílio podia prestar a Jasna Gora. Muitos nobres, por outro lado, satisfeitos com as promessas de paz e segurança feitas pelos suecos, começavam a voltar para suas propriedades. Mas Stanislau Warazycki, capelão de Cracóvia e primeiro Senador da Coroa, enviava nesse momento provisões e doze canhões, como dote seu, para auxiliar na defesa de Jasna Gora.

É o que se nota em toda parte: aquela vontade da vidinha e de uma certa paz. Quando a pessoa se acostuma a uma vida sem esforço, com facilidade também acredita nos inimigos e não quer ver, mesmo quando outros a advertem, que se trata de uma cilada. Assim, esses nobres poloneses, quando os protestantes acenaram com uma paz, desde que houvesse certa tolerância, imediatamente voltaram para suas propriedades. Quer dizer, entregaram-se totalmente nas fauces do leão.

Por outro lado, esses nobres que deveriam defender a independência da Polônia e, sobretudo, a Religião tinham a obrigação de proteger o Mosteiro de Czestochowa; porém, terminaram abandonando o mosteiro à sua sorte. Houve, entretanto, Stanislau Warazycki, capelão de Cracóvia e primeiro Senador da Coroa, que enviou um pequeno reforço para Jasna Gora. Foi o que lhes deu a Providência. E como disse o superior, os habitantes do mosteiro-fortaleza preferiram resistir até com o sacrifício da própria vida, segundo aquela famosa frase de Judas Macabeu: “É preferível morrer no combate a ver nosso povo perseguido, e profanado o nosso santuário!” (1Mac 3, 59).

Parece um trecho desolador da história, porque se faz o vazio em torno de Czestochowa: o rei foge, a maior parte dos nobres adere aos invasores, apenas um nobre de categoria envia um reforço pequeno, e está criada para Czestochowa uma situação aparentemente sem saída. A impressão principal era de que Deus os tinha abandonado. Na realidade, Ele estava preparando a grande glória da manifestação de Nossa Senhora em Czestochowa.

Precisamente, quando Deus permite que aqueles que querem lutar por Ele sintam-se inteiramente abandonados, na realidade Ele não os abandona. Pelo contrário, promete-lhes implicitamente uma aliança especial. Leva-os ao combate e dá a entender que os ajudará, mas os meios humanos são pequenos. Parece uma catástrofe geral. Entretanto, Deus quer mostrar com isso que é Ele quem salvará a situação.

A hora de solidão era o início da glória

Ao mesmo tempo, Deus prepara para seus defensores uma glória especial. Porque a grande glória de Czestochowa é esta: enquanto o rei foge, os nobres, que são a classe militar por excelência, abandonam a posição de fidelidade para com o reino, para quase todos pactuarem com o inimigo, o clero também não faz coisa alguma – o que o autor da narrativa prudentemente omite, mas se vê, pelos silêncios, o que se passou. Czestochowa, com um punhado de monges, alguns nobres e um pequeno número de plebeus, fica sozinha na resistência. A glória consistiu em ficar só. Exatamente a vitória depois ficará luminosa porque só eles resistiram. Aquela hora de solidão era o início da glória deles.

Assim também quando, por vezes, em nossa história vemos que ficamos inteiramente sós, não devemos nos apavorar. Pensemos que precisamente essa solidão vai manifestar a glória de Nossa Senhora que vencerá em nossa fraqueza. De outro lado – consideração minor, mas que para as horas de depressão pode ter o seu valor psicológico, pelo menos –, devemos lembrar que quem reage e luta a partir de quase nada, quando chega ao auge tem uma glória muito maior.

Chegam informações de que o General Miller, com um exército de três a quatro mil homens e dezenove canhões de grosso calibre, mais alguns bandos de apoio do Conde de Srzeszczwicz, de Waclaw Sadowski e do Príncipe da Saxônia, parte de Wielun em direção a Czestochowa, onde deveria chegar no dia 18. Então, não faltaram conselhos prudentes ao padre prior. Assim, o prior do convento de Wielun, considerando a desproporção das forças militares, aconselhava Frei Kordecki a não oferecer resistência, poupando assim Jasna Gora de danos materiais. Isso teve sua influência nos defensores de caráter mais fraco.

Esses que sitiam são protestantes, mas vêm com um convite de fora de um padre a outro padre, de um superior de convento a outro, incitando também a se entregar. E sempre com a mesma argumentação: “Poupem de danos materiais esse convento tão famoso, histórico, artístico! Padre prior, se esse convento for destruído, mais do que às balas protestantes, ele deverá sua destruição ao senhor. Porque se o senhor não tivesse resistido, os protestantes não o teriam destruído. Na história gloriosa dos superiores, seus antecessores, que tanto construíram, veja que papel o senhor vai fazer. O senhor vai ser, na crônica desse convento, Frei Kordecki, o destruidor. Pense, reze, medite diante de Deus antes de tomar a resolução de expor Jasna Gora, tesouro da Polônia, às bombas dos suecos.” O demônio sussurra à consciência: “É isso mesmo, é imprudência. Já falei…”, etc.

Ora, o mau conselho faz o papel de uma seta incendiada lançada dentro do convento.

Frei Kordecki não contava só com os recursos materiais. Animava a todos a oferecerem a vida em defesa da honra do santo lugar e a depositarem toda a confiança na Virgem Santíssima, que em tão extrema necessidade não lhes faltaria com o auxílio. Pede a todos que assistam à Missa que rezaria diante do altar da imagem de Nossa Senhora de Czestochowa. Ordena que se leve o Santíssimo Sacramento em procissão pelos muros e bastiões. Benze os canhões um por um, os projéteis de chumbo, os de ferro e os barris de pólvora.

O fogo da luta e do combate é inerente à virtude da fortaleza

Admito perfeitamente a possibilidade de que Frei Kordecki venha a ser canonizado. No processo de canonização, a Igreja examina todos os passos da vida do candidato à honra dos altares. Portanto, para canonizá-lo a Igreja chegaria à conclusão de que no ato acima narrado ele manifestou as virtudes teologais – fé, esperança e caridade – e cardeais – prudência, justiça, temperança e fortaleza – em grau heroico.

Pois bem, tal é a deformação produzida pela “heresia branca” na devoção ao longo da História que, hoje em dia, não haveria uma igreja construída em louvor a ele na qual se pudesse ver representada a bênção da pólvora e dos canhões, com os soldados dele armados e ele abençoando solenemente, com as tropas protestantes chegando ao longe para o combate.

Provavelmente encontrariam em sua biografia a afirmação de que, antes ou depois desse episódio do cerco de Jasna Gora, Frei Kordecki deu aulas de Catecismo. Então ficaria “Santo Agostinho Kordecki, padroeiro dos professores de Catecismo”, representado sorrindo, junto a uma criancinha.

É a deformação metódica dos Santos pela “heresia branca” que torna exatamente necessária a leitura de biografias como esta. Para mostrar bem que esse fogo da luta e do combate é inerente à virtude cardeal da fortaleza, sem a qual ninguém é canonizado; e contra a qual se uma pessoa pecar, ou vai para o Purgatório – se o pecado for leve –, ou para o Inferno, se o pecado for grave. Está acabado.

Entrementes, os suecos chegam aos pés de Jasna Gora. São duas horas da tarde. O General Miller envia, por um delegado, uma proposição de paz por escrito, propondo a capitulação pacífica de Jasna Gora para evitar um inútil derramamento de sangue. Também o adversário declarado se finge de clemente.

As tropas inimigas tomavam já posição para o assédio aos muros e estudavam a posição dos canhões da fortaleza.

“Não nos pareceu conveniente responder por escrito a essa carta. – registra Frei Kordecki. Já não era hora de escrever, mas de agir pelas armas. Respondemos-lhes pelas bocas dos canhões.”

A resposta foi tão convincente que, ao anoitecer, Miller teve que pedir uma trégua, e aproveitou para assegurar aos frades que nenhum mal pretendia fazer ao santuário.

Como as tropas suecas houvessem ocupado depósitos de trigo pertencentes ao convento e localizados fora dos muros, seus defensores bombardearam-nos à noite com projéteis incendiários a fim de que não servissem de provisão ao inimigo.

No dia seguinte, Miller ocultou sua artilharia na vizinha aldeia de Czestochowa e daí bombardeou Jasna Gora. Quando os religiosos se deram conta disso, consideraram que a destruição da aldeia nada significaria em comparação com a defesa do santuário de Nossa Senhora; e dirigindo sua artilharia nessa direção, incendiaram as casas de telhados de feno. Surpreendidos, muitos suecos saíram a campo aberto e foram alvejados pelos defensores do mosteiro.

A boca dos canhões falou, não tenho nada a dizer. O comentário está feito por si. Vemos bem a ofensiva tomada por esse homem.

O comandante dos hereges envia nova mensagem pedindo a capitulação, pois Carlos Gustavo lhe ordenara tomar a Fortaleza de Czestochowa. Era noite e como o dia seguinte era domingo e festa de Nossa Senhora marcaram-se várias cerimônias, entre as quais uma procissão com o Santíssimo Sacramento, no interior dos muros. Em vista disso, os suecos tiveram que aguardar até ao meio-dia pela resposta que, afinal, foi negativa.

É uma altaneria extraordinária! Os suecos que esperem. Nós estamos agora adorando o Santíssimo Sacramento durante uma festa de Nossa Senhora, e não vamos dar atenção a protestante. Mais tarde responderemos.         v

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 26 e 30/6/1972)

 

1) Carlos X Gustavo (*1622 – †1660), da Casa de Palatinado-Zweibrücken. Reinou de 1654 a 1660.

2) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na arte e na cultura em geral. As pessoas por ela afetadas se tornam moles, medíocres, pouco propensas à fortaleza, assim como a tudo que signifique esplendor.

3) Termo surgido durante a guerra civil espanhola (1936-1939) para se referir aos habitantes de Madri simpatizantes do General Franco, os quais, dentro da cidade, trabalhavam a favor do exército inimigo. Por extensão, a expressão é utilizada para designar quem exerce ação subversiva ou traiçoeira dentro de um grupo, fazendo-se de amigo para favorecer o adversário.

 

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 262 (Janeiro de 2020)

Ano de lutas

Em diversas ocasiões, ao longo de minha vida, tenho assistido à passagem do ano. Assim, em épocas comuns e tranquilas da História foi-me dado notar a banalidade desse acontecimento. Lembro-me bem das festas de Ano-Novo do período entre “deux guerres”, isto é, entre a Guerra Mundial terminada em 1918 e a que começou em 1939: banais, cheias de chanchada, brincadeira e otimismo idiota.

O modo pelo qual o mundo de hoje transpõe os umbrais que o separam de um novo ano é muito diferente desses remotos festejos a que assisti. Retrocedendo no tempo e singrando o caminho que ficou para trás, encontramos que cada abertura de um ano, na aparência festiva, é acompanhada de uma perspectiva mais trágica. Qual a perspectiva para a qual caminhamos nesta passagem do ano?

Poderíamos dizer que é a passagem da crise para a catástrofe. Em geral, quando se fala de crises de povos e civilizações, trata-se de um processo lento e complexo que se vai acumulando, mas ainda não é a catástrofe. Esta vem quando a crise chega ao seu pleno desenvolvimento e vai derrubar todas as coisas que ela vinha minando.

Há uma diferença, portanto, entre a crise e a catástrofe, como entre a doença muito grave e a morte. As crises podem ter graus de gravidade diversos. Quando a gravidade é suprema, porque conduz a uma meta gravíssima e está a um passo de atingi-la, então estamos nos bordos da catástrofe.

Ao transpormos o limiar deste novo ano, temos a sensação de passar da plena agitação para a catástrofe trágica. Que espécie de catástrofe? É o total evanescer, ou o quase completo apagar-se de tudo aquilo que ainda constitui algo de vivo na Civilização Cristã do Ocidente, devido à crise profunda que mina a Santa Igreja Católica Apostólica Romana, e à que lavra na sociedade temporal.

Por outro lado, nossa Obra está em pleno florescimento e vai se estendendo por toda a Terra de um modo inesperado. Ninguém podia imaginar que tantos lírios nascessem do lodo, durante a noite e sob a tempestade! O que deixa os observadores pasmos é o fato de este lodo parecer propício ao florescimento de lírios tão alvos.

Com efeito, todos os que promoveram o lodo para que nele apenas vivessem os porcos ficam absolutamente desconcertados vendo nascerem nele os lírios, perto dos quais os porcos se sentem mal. Lírios dos quais se poderia imaginar, no alto, a figura heráldica de um leão que deita as garras e ameaça.

É possível que este novo ano seja de combates. Nossa Senhora o sabe. Os estrondos publicitários, nós os evitamos, mas não fugimos diante deles. É o que todo país, cônscio de seus direitos, faz em face do injusto agressor: procura evitar a agressão pelos meios adequados, mas se é impossível sustar a ofensiva, os injustamente agredidos se defendem na estacada de suas fronteiras.

Peçamos, por meio de Nossa Senhora e São José, ao Divino Menino Jesus – que no massacre dos inocentes viu o primeiro sangue dos mártires fazer luzir o purpúreo de sua cor para a glória do Redentor que viera ao mundo – que nos prepare para toda espécie de embates neste novo ano. Lutas, sobretudo, contra nossos próprios defeitos e contra a Revolução, combates terríveis que nos esperam e nos quais devemos ter todo o espírito de fé, toda a fortaleza necessária para continuarmos a progredir, a avançar e a desconcertar o adversário.

Um conselho contém todos os outros: cada vez mais devoção a Nossa Senhora. Espero d’Ela que eu seja infatigável nisso. E que se eu morrer inteiramente lúcido, as minhas últimas palavras ainda sejam de recomendação aos meus filhos espirituais para que sejam sempre mais devotos da Santíssima Virgem. Quem pede e obtém isto cresce em todos os sentidos, vence todas as batalhas.*

 

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 262 (Janeiro de 2020)

*-  Cf. Mensagem de Natal, 21/12/1983.

Feerias de sol, belezas de Deus

Depois de Zurbaran e do Beato Fra Angélico, o pintor cujas obras mais me impressionaram foi Claude Lorrain. Artista do século XVII, seu estilo é diáfano, encantador, que revela uma habilidade única de reproduzir em suas telas aquilo sem o que – no dizer de um poeta francês – as coisas não seriam senão o que elas são: a luz do sol.

Lorrain é o pintor do sol. Seus quadros são fantasias em torno do astro diurno, que ele se compraz em representar na sua beleza plena, esplendorosa e régia, projetando a feeria dessa luz sobre naturezas e cenários os quais, sob a ação dela, parecem se transformar em imensas e suntuosas cortes.

Em geral, os temas de suas pinturas são frutos de uma privilegiada imaginação, misturando-se neles elementos antagônicos e quase se diria contraditórios. Por exemplo, um porto em que as águas do mar penetram por um lado da cidade e formam uma espécie de enorme laguna, cercada de magníficos palácios, que ombreiam com ruínas de construções  romanas. As ondas banham prestigiosas escadarias de mármores policromados,  ou investem contra uma torre medieval que está posta naquele panorama como a proa de um navio apontada para o amplo oceano.

Nesse porto estão ancoradas várias embarcações, grandes e pequenas, a bordo das quais se vêem camponeses tocando e dançando uma tarantela. São pessoas do fundo do país, de regiões onde não há mar, e que ele coloca ali, em tombadilhos enfeitados, junto a marinheiros e estivadores que desembarcam mercadorias.

Tudo isso é irreal, imaginário, e chega a ser inconciliável: escadas de mármore banhadas pela água do mar (que corrói essa pedra facilmente), ruínas romanas ao lado de torres medievais,  próximas a palácios clássicos, camponeses fazendo festas a bordo de navios, personagens bíblicos ao lado de homens do século XVII… Ele toma esses elementos díspares e pinta quadros de realidades que nunca existiram.

Pergunta-se, então, qual o mérito dessa concepção artística. A resposta, a meu ver, é que tudo isto convém ao pintor para iluminar por um certo tipo de luz de sol, também ela mirífica e transcendente da realidade.

Ele cria coisas em ordem a um sol igualmente criado pelo seu talento. Ao término de uma fabulosa tela, Claude Lorrain terá composto uma situação natural que ele gostaria muito fosse verdade, e cuja existência encheria a sua alma. Não se trata, pois, de uma pura fantasia, mas de uma criação. Ele gerou tudo aquilo para formar um mundo dourado e irreal, que atrai profundamente o senso artístico de incontáveis pessoas apreciadoras da arte pictórica.

Algum espírito menos afeito a idealizações poderia objetar contra o valor e a admira ação que se tributam aos quadros de Lorrain, porque  não se deve gostar do que é imaginário. E nas pinturas dele tudo — incluindo a própria luz do sol, “sans lequel les choses ne seraient que ce qu’elles sont” — é imaginário e, por conseguinte, anorgânico.

Esta é uma objeção perfeitamente estúpida, porque faz parte da organicidade do homem ter uma certa saudade do Paraíso, perdido após o pecado de nossos primeiros pais. E ter, portanto, uma necessidade equilibrada, sem descabelamentos, de imaginar coisas que ele sabe não existirem nesta terra de exílio, mas que podiam ter existido no Éden, e que poderão existir no Paraíso Celeste.

Assim, longe de merecerem nosso desprezo, os quadros de Claude Lorrain são quase uma pré-visão do Céu Empíreo.

* * *

Há, todavia, nas telas de Lorrain uma simbologia de algo ainda mais elevado. Quando consideramos o conjunto de sua obra, podemos perceber que sua especialidade é pintar muros velhos, leprosos, escalavrados, que perderam pedaços de reboco e os tijolos se tornaram aparentes, sobre os quais, porém, bate um sol magnífico. E o muro, feíssimo, fica agradável de ver e contemplar.

Aqueles fabulosos raios solares, ao conferir à parede derruída algo do esplendor e da vida deles, fazem com que ela se torne linda, realçam-lhe o valor, o significado e o ideal.

Quer dizer, o muro alquebrado, que enfrentou tempestades, suportou vilipêndios, aguentou terremotos e continua sempre de pé, sob a ação de um luz feérica, adquire um ar de velho granadeiro da guarda que lutou em todas as batalhas, e agora serve como sentinela do lado de fora do palácio real, e cuja beleza consiste em ter sido surrado pelos acontecimentos e ter resistido. É o herói de todas as intempéries e de todos os combates. Tornou-se um homem feio, enrugado, o bigode branco manchado de tabaco, a face e o corpo marcados de cicatrizes. É rude e pouco educado. Porém, ao vê-lo… prestamos-lhe continência.

Reverenciamos o sol de seu passado, de suas dores e de seus sofrimentos, que incide sobre ele, leva-nos a interpretá-lo, e arranca de nossos lábios a exclamação: Que maravilha!

Do fundo do muro emerge então, pelo toque do sol de Lorrain, o que já não aparecia, mas nele estava, e que é o “arqui ele”. Ora, assim é também a ação da graça divina. Ela é, digamos, a tinta celestial que Nosso Senhor utiliza, como se fosse um infinito Claude Lorrain da criação. O genial talento do pintor francês não foi senão pálida e pequena representação das perfeições  incomensuráveis de Deus no que diz respeito a esta forma de talento.

Visto à luz da graça concedida por Deus, tudo o que é árido e difícil se torna belo. A perda desse modo de ver as coisas pode ocorrer por culpa nossa, porque cedemos aos nossos egoísmos, caprichos e manias.

Ou por decisão de Deus que, nos seus insondáveis desígnios, deseja nos provar: depois de nos cumular com seus dons, de nos favorecer com maravilhosas situações à la pintura de Claude Lorrain, permite que tudo se apague de repente.

Agindo assim, Nosso Senhor como que nos pergunta: “Meu filho, considerando a formosura da graça, tu, por assim dizer, me viste e compreendeste o que é a maravilha das coisas. Agora Eu vou te provar. Sabes me ser fiel nas horas em que Eu não te visito pela graça sensível?”

Nas horas em que anoitece, tu continuas a crer no sol? Ou és daqueles que pensam ter-se tornado cegos porque escureceu? Ou seja, porque há aridez, tu pensas que as consolações não voltarão jamais? “Quero conhecer tuas disposições, para saber se tu me és grato. Se o fores, dir-me-ás: Nas sombras da morte, Senhor, acreditarei em Vós como se estivesse na plenitude da vida, porque sei que é verdade tudo o que vi antes da escuridão”.

Saibamos ter esse reconhecimento para com o Sol da Justiça, cujos raios são graças sob cuja ação o que é feio e velho torna-se belo e admirável.

Compreendamos que, assim como nos quadros de Claude Lorrain não é ilusão o aspecto fabuloso que o muro derruído assume sob a luz de um sol magnífico que lhe penetra na superfície e faz reviver a grandeza dos primeiros dias, assim também nesta nossa vida mortal não são ilusões as coisas sobre as quais incidem as cintilações da graça divina, que nos faz ver tudo o que elas têm de ensolarável, de maravilhoso e de arqui-verdadeiro.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 22 – Janeiro de 2000

Intimidade cerimoniosa

Uma bela gravura do século XVIII(1) retrata uma cena quotidiana na Praça Santa Maria Novella, em Veneza. Local de pequenas dimensões, no qual se leva, sem dúvida alguma, uma existência de intimidade. Entre os personagens ali presentes, entre as próprias casas, nota-se uma espécie de fraternidade. Essas moradias parecem irmãs, aconchegadas umas nas outras, assim como as pessoas, envoltas numa certa suavidade, uma certa familiaridade.

Porém, cumpre observar, trata-se de uma intimidade cerimoniosa.  Nessa praça não há ambiente, por exemplo, para se sair de pijama. Há, sim, uma calma feita de tradição, uma forma de bom gosto difuso em todos os seus aspectos. Cada coisa manifesta seu estilo: duas ou três fachadas, discretas e bonitas; um palacete ao mesmo tempo exíguo e pomposo, ornado de uma coroa de conde e com seu átrio imponente. É um valioso detalhe no cenário.

Observando-se a movimentação dos personagens, tem-se a impressão de que houve, ou haverá uma representação teatral sobre um palco armado num dos lados da praça. Ao fundo ergue-se a fachada da igreja paroquial, de graciosos contornos e, sobretudo, a torre do campanário, elegante, de linhas harmônicas e distintas; a parte inferior forte e vigorosa, como que suportando a leveza do segmento superior e contrastando de modo bonito com o ligeiro do resto.

Na fachada de uma das casas, mais bela que as outras, embora de tamanho comum, apenas com um jogo de distância e proximidade de janelas obteve-se um efeito de muita categoria. Compõe-se de duas partes: uma, feita de aberturas estreitas, cujo exíguo é compensado pela grandeza das portas embaixo e pela base robusta. A outra parte constitui quase uma fachada diversa, e essas duas frentes juntas dão ideia de largueza agradável, movimentada, interessante.

Talvez fosse exagero qualificá-la de uma obra-prima, mas é preciso reconhecer que a escola segundo a qual isto foi construído é uma grande escola. Não se trata de investir mais ou menos dinheiro na edificação. É questão do bom gosto, do critério acertado, do espírito, da alma bem orientada que deu forma a isto e o situou de maneira esplêndida neste local.

Outras fachadas também nos chamam a atenção pela simetria e o estilo bem trabalhado. Algumas compensam a simplicidade pelo jogo de janelas, pelas portas grandes e ricas, e por quaisquer imponderáveis, presentes aqui e ali, conferindo singular beleza a tudo.

Vale notar como essa praça ficaria falha se não houvesse o poço no centro dela. Na verdade, faltar-lhe-ia alguma coisa, e ela pareceria imensa, desproporcional. Donde o papel extraordinário do poço, que constitui o que poderíamos chamar de centro psicológico superior.

Também nos fazem sorrir alguns aspectos que indicam a presença do povo. Este constitui o elemento calorífico das coisas. Onde há povo, há calor humano. Sem ele, o ambiente se transforma numa espécie de cristaleira… Então se vê, por exemplo, uma chaminé, verdadeira maravilha no seu gênero, e uma escada apoiada nela. Logo imaginamos o italiano que a limpa, coberto de fuligem, cantarolando sua ária preferida. Dali a pouco ele encosta os esfregões e desce para almoçar. Enquanto ele se distancia, sopra um vento forte, toca na escada e a derruba: ela vai caindo sobre uma menina que passa brincando, mas a matrona na casa em frente invoca Santo Antônio e a escada desvia. É um momento da vida na Praça Santa Maria Novella!

Todos esses pormenores me parecem assaz pitorescos. Como é pitoresco o gradeado que serve para se bater os tapetes das casas: chega até ele a “mamma”, braços roliços acostumados a amassar o macarrão, estende o tapete, a cortina, a colcha, etc., e começa a espaná-los vigorosamente. Claro, trocando animados comentários com a vizinha, enquanto a poeira sobe e se confunde nos ares da praça. Noutro canto, vê-se um instrumento para servir a alguma arte manual, ele também maravilhosamente encaixado neste panorama urbano.

Analisada assim essa gravura, poder-se-ia dizer que fizemos uma forma de contemplação. Pois a consideramos com espírito contemplativo, procurando discernir naquele ambiente do século XVIII o que ele possuía de afim com o espírito católico, buscando perceber e apreciar a alma humana que o engendrou, uma alma naturalmente virtuosa, que seja a imagem de Deus e para Ele se oriente.

Se nos acostumássemos a observar as coisas desse modo, imitaríamos o sábio que faz reflexões sobre a vida, que a conhece e a entende, inspirado pelo senso comum dos valores da existência que elevam seu espírito ao mais alto, até a Sabedoria infinita.  v

 

1) Essa gravura decorava a sala de trabalhos e atendimentos de Dr. Plinio, na sede principal de seu movimento, em São Paulo.

 

A escada das escadas

Encerrando com fecho de ouro seus comentários a diversas escadas, Dr. Plinio se refere com enlevo àquela por ele considerada arquetípica: a “Scala Santa” de Roma. Erguida no antigo pretório de Pilatos, em Jerusalém, Nosso Senhor a subiu e desceu na Sexta-Feira Santa, e do alto dela, chagado e coroado de espinhos, foi apresentado ao povo sob o anúncio de “Ecce Homo!” .

 

Analisamos nas exposições anteriores como a construção de uma escada deve se orientar no sentido de fazer desta um ornato para a ação de subir e descer, seja do homem, seja da mulher, impondo-lhes a arte de realizá-la. É uma forma de dignificar a natureza humana, inclusive nos seus atos mais corriqueiros.

O mais esplendoroso subir de escada

Passemos, agora, ao ponto pinacular dessas cogitações.

Qual foi o personagem que com mais nobreza e esplendor subiu a rampa, a escada, a montanha mais majestosa da História?

Trata-se de um perseguido, humilhado, desprezado, fustigado, coberto de feridas do alto da cabeça à planta dos pés, condenado à morte, diante de cujo nome todo joelho deve dobrar-se: Nosso Senhor Jesus Cristo.

Tudo o que Ele fazia era infinitamente nobre, mesmo nas situações mais próprias a significar opróbrio, repúdio e humilhação. Em sua natureza humana aliava uma simplicidade e uma magnificência insondáveis. Jamais houve alguém que se comparasse a Ele em humildade e nobreza.

Podemos imaginá-Lo em diversas ascensões. Por exemplo, escalando com os três Apóstolos o Monte Tabor, em cujo cimo haveria de se transfigurar. A cada passo Ele se tornava misteriosamente mais glorioso, e irradiava seu esplendor para os discípulos os quais, atônitos, encantados, mudos de admiração, acompanhavam seu Mestre.

Podemos vê-Lo galgando a escada do Pretório de Pilatos. O Redentor, digno, afirmativo, seguro de si, fitando o ímpio governador com a tristeza de um pai, mas ao mesmo tempo com a majestade de um Deus.

Para o alto, rumo ao supremo sacrifício

Ou ainda O contemplarmos — que sublimidade! — vencendo as encostas do Calvário com a cruz às costas. Desfigurado, triturado como um verme, sem se deixar abater pelas três quedas, subia, subia, subia rumo ao sacrifício supremo para redimir os homens.

Quem O acompanhava?

Simão de Cirene, por certo sumido em adorações que ateavam fogo em sua alma. Provavelmente, sentia ele receber do Céu uma disposição particular para servir de socorro ao Cordeiro de Deus naquele momento. E percebia então que, enquanto prestava auxílio a Jesus, o próprio Nosso Senhor o ajudava a carregar o peso do madeiro.

Seguiam-No também as santas mulheres, as quais, devido à dilaceração da dor, não se sabe até que ponto percebiam a majestade da cena. Porém, entre elas se achava uma, incomparavelmente superior às demais, que compreendia e admirava não só o sacrifício, mas igualmente a glória e o esplendor daquela subida. Era Nossa Senhora. Conhecia a majestade do próprio Filho e O adorava. Ela, a mãe do Rei, via-O caminhar para algo de infinitamente mais alto que o trono…

Como é nobre um monarca galgar os três ou quatro degraus que o conduzem a seu régio assento. Contudo, como é mais glorioso, a perder de vista, o Homem-Deus subir o Calvário, levando a cruz na qual deveria morrer por nós! Não é capaz de ter ideia da verdadeira nobreza, nem a noção global da Paixão, quem não compreender a majestade de Nosso Senhor subindo o Gólgota.

A “Scala Santa”: simples e inigualável

Por essa razão, a escada mais nobre que conheci, a qual não galguei de pé, mas de joelhos, foi a “Scala Santa”, em Roma. Transportada de Jerusalém, onde Nosso Senhor a subiu durante a sua Paixão, é uma escada construída em mármore comum, sem maiores requintes. Os cuidados por sua preservação determinaram que fosse recoberta de madeira, evitando-se assim que a ascensão dos incontáveis peregrinos a desgastasse.

Em cada local onde caíram gotas do preciosíssimo sangue de Jesus, há um óculo com revestimento transparente: o fiel pode osculá-los, recitar suas orações e depois continuar, de joelhos, o caminho que os pés divinos, chagados, feridos, machucados — e em seguida perfurados na crucifixão — subiram por amor a nós.

Embora seja simples, sem ornatos, é a escada das escadas. Comparada com ela, as outras nada são. Falam-nos de beleza, de nobreza, de dignidade humana, sim. Porém, a existência nesta Terra não consiste apenas nisso. Ela é, sobretudo, a participação na vida, paixão e morte de Nosso Senhor.

É, antes de qualquer coisa, a luta pelo reino de Cristo.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

 

A tentação e nossa confiança em Deus

A propósito de um edificante ensinamento de São Francisco Xavier, Dr. Plinio responde a essa nevrálgica pergunta que muitos se fazem: a tentação é castigo, sinal de desagrado de Deus, ou  favorece superiores desígnios d’Ele em relação ao homem?

 

Entre os preciosos escritos que nos deixou, ditados pela profunda sabedoria e senso apostólico que o distinguia, São Francisco Xavier assim se refere à luta contra as tentações, pela qual todos passamos em nossa vida espiritual: “O meio mais seguro para triunfar do inimigo é ter uma grande coragem, desconfiando de si mesmo e se apoiando em Deus, de sorte que, após ter colocado toda vossa esperança n’Ele, e só n’Ele, nada mais temereis e nem duvidareis da vitória.

“E como o demônio não tem poder senão sobre aqueles que Deus lhe permite, quanto mais seus assaltos são terríveis, mais é preciso redobrar de confiança na Divina Providência, porque Ela permite ao inimigo assaltar e atormentar só os seres fracos que n’Ela não confiam, que desdenham de se amparar n’Ela e colocam em outros as suas esperanças. É esta fraqueza que gangrena os corpos e faz com que tantas pessoas que começam a servir a Deus terminem por levar uma vida cheia de tristezas e angústias.”

Coexistência de fatores naturais e preternaturais

Para bem aproveitarmos esse pensamento de São Francisco Xavier, devemos antes de tudo considerar que a tentação pode ter causa natural ou preternatural (isto é, proveniente do demônio). Por exemplo, o impulso de se irritar contra alguém será talvez motivado por uma disposição natural, explicável se aquele faz algo que nos desagrada; inexplicável, se se tratar de uma mera  suscetibilidade de nossa parte. Porém, esse ímpeto para se agastar pode ter uma causa preternatural se, de repente, somos tomados por um acesso de irritação, injustificável e insensato, em relação a uma pessoa que em nada nos incomodou.

Entretanto, cumpre notar que, nas tentações, os dois fatores habitualmente coexistem. Assim, ao sermos assaltados por um mau desejo de cunho natural, haverá um concurso do demônio, secundando-o. Por outro lado, quando nos assedia com sua ação maléfica, este último em geral cria ou explora uma circunstância natural, para então entrar com sua influência preternatural.

Duas categorias de tentações

Isso posto, as tentações podem ser classificadas pelo menos em duas categorias. Umas são tentações-castigos; outras serão apenas provações e até estímulos para progredirmos na vida espiritual. Esse ponto merece insistência, pois não é raro ouvirmos queixas como estas: “Ando tão mal que me sinto tentado a querer tal coisa péssima”. Ou: “A tentação é um castigo para os que não se comportam bem, e Deus me puniu com uma. Se estou tentado, é porque fiz alguma coisa errada”.

Importa compreender que esse raciocínio não se aplica a todos os casos de tentação.

Certo, quando alguém se deixa levar por determinada atitude espiritual ruim, abre o flanco para a investida do demônio. O próprio São Francisco Xavier nos cita exemplos dessas perigosas  disposições de alma. Ele adverte as pessoas que não se dedicam nos serviços a elas confiados e que arrastam a obrigação preguiçosamente. Essa preguiça já constitui uma meia guarda  desamparada para que o inimigo se apresente e as incite a abandonar o dever. Risco análogo corre o religioso que cumpre uma obediência cheio de cismas e de ressalvas interiores, mais ou menos  arbitrárias. É óbvio que, de um momento para outro, será tentado pelo demônio a não seguir as ordens de seu superior. Em ambos os casos, a tentação pode ser vista como um castigo pela má  predisposição de espírito dessas pessoas.

Contudo, muitas vezes é outra a razão de sermos tentados. Vamos muito bem na vida espiritual, e por isso mesmo Deus permite travarmos um combate com o adversário d’Ele, para que vençamos  e alcancemos um incremento de glórias na nossa piedade.

Motivo para confiar em Deus

Em outras ocasiões, verificar-se-á o fato de não estarmos num bom momento espiritual, e Deus então dispõe que sejamos tentados para que a luta nos estimule a melhorar. Assim, muitas  tentações são permitidas por Ele, pois constituem um verdadeiro tônico para os necessitados de incentivo.

Mais ainda. Na vida espiritual, o perigo consiste, não tanto em ser tentado, mas em não sofrer os ataques do demônio. Com efeito, não é sinal favorável que uma pessoa passe anos sem tentações,  pois provavelmente será do número daquelas almas às quais o demônio logrou paralisar no caminho da perfeição. Elas se deixaram cair na modorra, na indolência e mediocridade, embora  conservem um resto de consciência de seu estado lamentável: se forem tentadas, começam a se erguer e a reagir.

Por isso o demônio não as provoca, para que continuem  a se decompor de modo imperceptível ao longo dos tempos. Por tudo quanto foi dito, vê-se que este raciocínio: “Estou tentado; logo, vou  mal espiritualmente e estou  sendo castigado”— é uma imensa simplificação, e mutila  o panorama da nossa vida de piedade. Até mesmo para alguém que sofre tentações porque abriu o flanco ao demônio, a reação contra elas pode colocá-lo numa posição melhor do que antes das investidas diabólicas, humilhando e rechaçando o seu inimigo.

A tentação não nos deve, pois, levar ao desânimo ou ao semi-pânico, mas, como diz São Francisco Xavier, a um aumento de nossa confiança em Deus. Ainda que tenhamos sido culpados e,  portanto, tentados por castigo, Deus continua sendo nosso Pai, e Maria Santíssima, nossa Mãe. Ela é o Refúgio dos Pecadores: qualquer um que tenha cometido uma falta e se refugie junto a Ela,  recebe sua materna proteção, seu infalível auxílio e incansável assistência.

A oração da confiança

Nesse sentido, devemos ponderar muito as palavras magníficas do “Lembrai-Vos”, essa tocante oração atribuída a São Bernardo de Claraval, o Doutor Melífluo. Diz ela: “Lembrai-Vos ó Piíssima Virgem Maria, que nunca se ouviu dizer que algum daqueles que têm recorrido à vossa proteção, implorado vossa assistência e reclamado o vosso socorro fosse por Vós desamparado”.

Como se vê, nessa prece se fala de proteção, assistência e socorro. Proteção para evitar que cedamos às tentações; assistência, ou seja, auxílio em nossas dificuldades; socorro, quando estivermos  periclitando e afundando.

Pois bem, nunca alguém que tenha pedido a Ela socorro, assistência e proteção, foi desamparado. Cumpre salientar que a palavra “nunca” é muito categórica: não houve um só caso de alguém que  recorreu a Nossa Senhora e não foi atendido.

“Animado eu, pois, com igual confiança, a Vós, ó Virgem entre todas singular, como a Mãe recorro, de Vós me valho.” Quer dizer, “se Vós jamais deixastes de proteger alguém, aqui estou eu, homem batizado na Igreja Católica e filho vosso, que venho Vos pedir auxílio. Estou tentado, tive culpa na causa da tentação e, lamentavelmente, até cedi a ela. Mas, eu existo e vossa clemência me mantém nesta vida. Estando vivo, tenho o direito e o dever de Vos dirigir essa oração. Por isso me apresento diante de Vós, cheio de confiança”.

“E gemendo sob o peso dos meus pecados me prostro a vossos pés”. Note-se como essa expressão é animadora. Não está dito: “Eu, o inocente, o puro, o límpido, o homem sem mancha me dirijo a  Vós e peço socorro. A minha inocência me dá garantias de vosso auxílio”. Não. Afirma-se o contrário: “Gemendo sob o peso dos meus pecados…”

Ou seja, tantas são as faltas cometidas que até me prostraram no chão. Acho-me deitado sob o peso delas. E, no  solo, eles me oprimem de tal forma que me arrancam gemidos. Pois bem,  amargando a dor dos meus pecados, eu venho para junto de Vós e me arrojo aos vossos pés”.

“Não desprezeis as minhas súplicas, ó Mãe do Verbo de Deus humanado, mas dignai-Vos de as ouvir propícia e de me alcançar o que Vos rogo. Assim seja”. O pensamento não podia ser mais belo.  O pecador pede à Santíssima Virgem que o ouça com benignidade, com bondade, pois espera da parte d’Ela um sorriso, e que lhe alcance a graça implorada.

É a oração da confiança. Qualquer alma, em qualquer estado ou situação em que se encontre, sobretudo nas tentações e na tibieza, deve se voltar para Nossa Senhora e dizer: “Rogo-Vos a vossa  assistência; tende pena de mim e auxiliai-me”.

E o raciocínio que justifica essa confiança é simplíssimo: “Vós nunca abandonastes alguém. Ora, eu sou alguém. Logo, Vós não me abandonareis”. Não podia ser mais lógico, mais concludente,  mais convincente, mais singelo na sua esquematização e mais irresistível.

Um raciocínio expresso numa linguagem de fogo e muito bela, como é a de São Bernardo, mas encerrando um verdadeiro conteúdo teológico: “Nossa Senhora é Mãe de cada homem; portanto, não  e abandonará”.

Voltamos, então, ao ensinamento de  São Francisco Xavier. Ele nos deixa claro que a alma tentada deve, mais do que tudo, confiar, rezar e não ter medo. E não só nas horas das tentações, mas em todas as dificuldades, grandes ou pequenas, da vida espiritual ou da nossa existência quotidiana, devemos sempre cultivar essa firme confiança no auxílio de Maria Santíssima, nossa Mãe e  onipotente intercessora junto ao Sagrado Coração de Jesus.

Plinio Corrêa de Oliveira

“Stella Clarissima”

A aparente desordem dos corpos celestes constitui, na realidade, uma ordem dirigida pela sabedoria divina. Entretanto, Deus presta mais atenção a uma Ave-Maria que rezamos, do que ao movimento de todos os astros.

  Ao contemplarmos um céu estrelado temos, ao mesmo tempo, uma impressão de beleza e de uma pontinha de desordem. As estrelas estão, aparentemente, meio jogadas de cá e de acolá. Dir-se-ia que elas foram atiradas no azul profundo da noite por uma mão distraída…

Todos os seres têm seu papel

Então impressionam pelas distâncias, pela beleza de cada uma delas, pela grandeza do conjunto, mas não notamos certa ordenação a qual gostaríamos que existisse. Parece-me haver nisso um sentido mais bonito e profundo do que nos seria proporcionado por uma ordenação evidente. Talvez Deus queira nos dar a entender que Ele não faria essas maravilhas em meio a uma espécie de desordem; e que, quando conhecermos bem como se compõem as constelações, perceberemos realidades que ainda não vemos, as quais indicarão uma ordem magnífica dentro disso. Nos corpos celestes acontece de tudo: vulcões que entram em erupção dentro de alguns deles, estrelas cadentes, outras explodem de repente… Havendo, então, uma catástrofe qualquer numa estrela, nós pensamos: “Deus nem toma conhecimento, porque não tem tempo de prestar atenção nisso. Essas estrelas são como um farelo luminoso que, numa hora de generosidade, Ele jogou por aí e depois nem olhou mais; deixou isso completamente de lado, não Se preocupa”. Essa impressão não é verdadeira, e corresponde a uma ideia absolutamente deformada da grandeza do Criador. Tais são a ciência e o poder divinos que, para Ele, tanto faz tomar conhecimento do que acontece em todas as estrelas ao mesmo tempo, como o ocorrido em uma estrela só. Deus sabe de cada estrela como se somente esta estivesse diante d’Ele. Ademais, não há estrelas inúteis nem repetidas. Deus não gagueja, ou seja, não faz criaturas supérfluas como um gago pronunciaria determinadas sílabas. Na Criação, todos os seres têm seu papel para a realização dos planos divinos, e estaria fora da sabedoria e abaixo do poder d’Ele criar entes inúteis. Portanto, todos os acontecimentos — mesmo as explosões, estrelas cadentes, etc. — têm sua razão de ser e obedecem a um plano por Ele traçado. E aquilo que para nós é um desastre, como o desaparecimento de uma estrela, Deus assim o quis e calculou para fazer parte da ordem universal instituída por Ele.

Tudo está calculado para a glória de Deus

É como um músico que, ao executar uma peça num piano ou num órgão, interrompe uma nota que vinha sendo tocada. Isso não é um desastre, mas está calculado para dar continuidade à harmonia. Também na ordem do universo tudo está calculado para a glória de Deus. E faz parte dessa glória que contemplemos as estrelas para melhor entendermos a Ele. E se o Altíssimo está de tal maneira atento ao que se passa com as estrelas, quanto mais prestará atenção em nós, que somos uma razão para Ele as ter criado! De maneira que tudo quanto acabo de dizer a respeito das estrelas é particularmente verdadeiro em relação aos homens. Deus tem a alma de cada um de nós mais em vista e, por assim dizer, presta mais atenção numa oração — uma Ave-Maria ou, a “fortiori”, uma Comunhão — que façamos, do que na rotação geral de todo o universo. Por exemplo, a Santíssima Trindade está contemplando esta reunião e a disposição das almas de todos nós. Compreendemos bem, dessa maneira, quanto Deus é atento às orações, quanto Ele se inclina para ouvir aquilo que temos a Lhe dizer, e como podemos, portanto, ter a confiança de que não nos perdemos no vácuo nem no caos.

O herói da Fé que morre no campo de batalha

A humanidade não é um vácuo. Será talvez um caos por culpa dos homens. Mas quanto Deus ama aqueles que são as “estrelas” fiéis que continuam a brilhar! E quanto a bondade d’Ele está pronta a amparar as “estrelas” não fiéis que começam a cair, e solícito a tirar do fundo dos abismos as que caíram para repô-las em seu devido lugar e continuarem, assim, a executar as ordens d’Ele! Consideremos, por exemplo, que quando Deus criou as estrelas, pensou em cada um dos homens que haveria de criar. E ao fazê-las cintilar nos espaços vazios, uma das intenções d’Ele era que elas iluminassem a morte dos que morressem com heroísmo, por amor a Ele; e, na hora de criar as estrelas, Deus — que conhece o presente, o passado e o futuro perfeitamente, até nos seus últimos pormenores — viu essas estrelas brilharem e pensou nos heróis da Fé que haveriam de, um dia, morrer debaixo da cintilação delas, aceitando voluntariamente aqueles padecimentos e dizendo: “Vim aqui e estou morrendo assim porque eu quis. Deus, quando olhou para sua Criação, viu-me no campo de batalha. E, como todos os que morrem combatendo por amor à Fé, cintilei aos olhos d’Ele como essas estrelas do céu.”

A mais brilhante de todas as criaturas

Há um hino a Nossa Senhora que A invoca como “Stella Clarissima”: Estrela Luminosíssima. Esse título vem muito a propósito porque no firmamento há muitos astros, mas Ela é o mais luminoso dentre todos eles, ou seja, a mais brilhante das criaturas. Por que se fala de estrela? Porque a estrela brilha na escuridão noturna, e é uma consolação para quem, de noite, está olhando para o céu. Esta vida é para o católico uma noite, um vale de lágrimas, uma época de provação, de perigo, de apreensão. Na eternidade vamos ter o dia; esta vida terrena é noite para nós, mas temos uma Estrela que nos guia, e constitui nossa consolação em meio às trevas. Sem dúvida, existem algumas relações entre a estrela que guia um navegante no mar ou um viandante pelo deserto, e o destino para onde se dirigem. Uma delas está em que a rota da estrela é indicativa da chegada. Outra relação muito bonita é o modo pelo qual a estrela já faz prever como será o destino. Está no senso popular da Fé que a estrela de Belém seja representada de tal modo, que ela dê uma ideia da coruscação incomparável que os Reis Magos vão contemplar, ao encontrarem a Sagrada Família. De maneira que a estrela indicava o caminho, mas também simbolizava, de algum modo, Aquele que seria encontrado. Por essa razão, analogamente, Nossa Senhora é aclamada pela Igreja como a Estrela da Manhã. A estrela d’alva se manifesta quando, em plena noite, de repente o céu começa a ficar um pouco pálido. Então ela brilha. Maria Santíssima é, pois, em meio às trevas deste mundo, o sinal de que o Sol de Justiça está por nascer(1). v   Plinio Corrêa de Oliveira. 1) Cf. conferências de 24/8/1965, 16/1/1978, 28/4/1981, 25/1/1982, 21/12/1988, 1/12/1991 e 15/4/1994.  

Serenidade, doçura e força

Em viagem pela Europa, no ano de 1988, Dr. Plinio visitou a Catedral de Aachen, a cidade onde o Imperador Carlos Magno instalou sua capital, e na qual morreu. Voltando ao Brasil, comentou com seus jovens discípulos os diversos aspectos dessa igreja que o marcou profundamente.

 

Há na Catedral de Aachen uma fusão de estilos com diversos elementos arquitetônicos: o domo propriamente dito — que é a cúpula central grande, encimada por outra pequena, tendo no alto uma cruz — é românico; as torres, as ogivas e as rosáceas de cristal são de estilo gótico.

Do lado de fora da catedral, há figuras muito bonitas, nas quais se nota — como é patente nas incontáveis esculturas existentes no interior e exterior das igrejas medievais — uma paz, uma serenidade extraordinárias: são homens grandes, fortes, muito másculos, com certo ar de quem tem um avô ou bisavô bárbaro.

Uma nota componente da Idade Média é a serenidade, da qual o mundo de hoje perdeu a fórmula: ligação harmoniosa entre a força e a doçura. Os varões aí representados são fortíssimos — herança da natureza pujante dos povos germânicos — e, ao mesmo tempo, dulcíssimos. E esse ambiente de serenidade provinha de um passado cheio de lutas e também de oração, de piedade e de obras de misericórdia.

Podemos imaginar o que seria uma igreja repleta daqueles homens dulcíssimos e fortíssimos, todos entoando canções religiosas ou aguardando, num silêncio muito meditativo, a hora da Consagração. E o grande Carlos assistindo, resplandecendo de piedade e de glória.

Observando tudo isto paralisado na pedra e nas recordações históricas, percebe-se ser uma planta que produziu depois um esplêndido ramo de flores douradas. Dir-se-ia que a glória da posteridade reluz nesses heróis esculpidos na pedra.

Apesar dos recursos que havia naquele tempo, a cúpula, vista do lado de dentro da catedral, é riquíssima. O lustre fica muito bem dentro dessa cúpula e nessa atmosfera.

Há altas arcadas, com dois andares de colunas, e por detrás se vêem os vitrais que eram lindos, famosos, e que foram destruídos durante a última guerra mundial. Foram eles substituídos por outros muito inferiores, mas bonitos vitrais, perfeitamente dignos, permitindo avaliar qual é o efeito ótico desejado por aqueles que os fabricaram. Essas arcadas lembram vagamente o estilo da Basílica de São Marcos, em Veneza. O estilo da Catedral de Aachen é clássico-românico, e o da Basílica de Veneza, bizantino.

A cúpula internamente é constituída por mosaicos dourados, muito bonitos, com cenas sacras.

Numa capela lateral, há uma bela imagem de Nossa Senhora com flores e um bom número de velas acesas, colocadas num móvel a fim de permanecerem de pé.

Para o meu gosto, o relicário que contém os restos mortais de Carlos Magno é uma das mais bonitas peças de ourivesaria que existem. Quando examinado de perto, verifica-se cada uma de suas facetas, e depois aprecia-se o conjunto. A harmonia é perfeita!

Compreende-se, assim, como as populações nascidas do esforço de Carlos Magno, que eram descendentes dos antigos bárbaros e dos romanos decadentes, foram se civilizando, se aperfeiçoando, trabalhadas pelas mãos — que eu chamaria divinas — da Igreja Católica.

Há também, próximo deste, outro relicário, o qual, como objeto de arte, é um encanto. Pergunta-se qual a autenticidade das relíquias que ele contém(1). Quer dizer, são realmente das santas e sagradas personalidades referidas? Como chegaram a Carlos Magno?

Se dependesse de mim, eu mandaria fotografar todos esses documentos para ver se apareciam neles sinais à maneira — pelo menos nos que são de pano — do Santo Sudário de Turim. E realizar testes a fim de averiguar de que época são eles, para se obter alguma probabilidade a respeito de sua autenticidade.

Encontra-se na catedral o trono de Carlos Magno.

Há uma espécie de vão abaixo do local onde está o trono. Em dias de peregrinação, pode-se passar por esse vão, tendo-se, assim, contato especial com essa gloriosa reminiscência do Império.

Do ponto de vista estritamente artístico, esse trono é muito inferior ao relicário. Entretanto, nota-se a preocupação de fazer uma coisa bela e nobre, pela quantidade de mármores que não havia no território do Império de Carlos Magno. Era necessário importá-los de outros lugares e transportá-los, com proteção de grupos armados, em dorso de mula, por estradas difíceis, enfrentando perigos como cair em abismos. Os grampos de ferro que existem no trono e o enfeiam, parecem-me ter sido postos muito tempo depois, para assegurar a coesão de suas várias partes.

Há também um busto de Carlos Magno, no qual vemos que em seu traje figuram uma série de águias e, na orla inferior, flores de lis, que são símbolos do Sacro Império Romano Alemão e da França, respectivamente. O artista que elaborou esse busto procurou colocar-se na perspectiva daquela época, e o fez de modo acertado.

Dificilmente se poderiam sintetizar duas nações tão gloriosas quanto a Alemanha e a França, e Carlos Magno conseguiu realizá-lo. v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/12/1988)

1) O relicário contém: o manto de Nossa Senhora; as faixas de Jesus, usadas no presépio; o tecido que envolveu a cabeça de São João Batista, depois de sua decapitação; e o pano que cobriu Nosso Senhor na Cruz.

Seriedade, charme e grandeza

Respondendo a uma pergunta sobre a formação do Reino de Maria e as qualidades de alma necessárias para dele se fazer parte, Dr. Plinio apresenta algumas reflexões a respeito da complementaridade existente entre paternidade e primogenitura, seu papel na constituição das eras históricas, e as relações entre seriedade, charme e grandeza.

 

Quando chegar minha vez de ler o Cornélio(1), espero encontrar em sua obra o comentário a dois verbetes que são complementares: paternidade e primogenitura.

Até a Revolução Francesa ainda se encontravam restos do patriarcado

O que há na paternidade para que a primogenitura, que é apenas a primeira flor da paternidade, tenha tal valor que, por exemplo, quando Deus castigou os egípcios com aquelas dez pragas, a última e a maior delas foi a morte de todos os primogênitos, até mesmo dos animais?(2)

Do ângulo que estou considerando, quase me impressiona mais a morte dos primogênitos dos animais do que dos homens.

Os antigos tinham o senso da família muito bem constituído e desenvolvido patriarcalmente, isto é, com algumas tradições e qualidades peculiares ao período do patriarcado. E as águas do patriarcado fluíram longe dentro do leito do rio da História. Até à Revolução Francesa e a generalização dela no mundo, encontramos restos do patriarcado nesta e naquela instituição.

Compreende-se, portanto, que seja particularmente duro para o patriarca perder aquele que é o seu primogênito. É algo como que fulminando o resto todo que veio, porque quebra o elo natural entre o patriarca e o restante de sua progênie. Por causa disso a morte do primogênito causa uma dor para o patriarca, para o chefe de família patriarcal especialmente.

Em nossos dias, o senso da primogenitura parece muito apagado, quase reduzido a zero. Mas para Deus, não. Porque o requinte do castigo não consistiu em matar um filho qualquer, mas o primogênito. E para se compreender a ligação do castigo com a primogenitura, quer dizer, o que vale o primogênito não como pessoa, mas enquanto primogênito, vem então o castigo até sobre os primogênitos dos animais.

Mistérios da paternidade

Eu precisava ver no Cornélio, mas parece que isto dá a entender o seguinte: que uma estirpe animal, com a morte dos seus primogênitos, fica degradada e que há um dom de perpetuação no primogênito que os outros não têm; por onde o primogênito do primogênito do primogênito possui uma representatividade de toda a estirpe que os outros não têm. Para isso atingir assim os animais, tem algum suporte na própria biologia. É misterioso, mas me parece enormemente sensato e explicável que seja assim.

Essas considerações nos introduzem no conhecimento dos mistérios da paternidade, no que ela tem de biológico. É uma coisa tão ampla que Deus quis que houvesse homem e mulher, para que essa ideia da autoria — um ser que gera outro — se exprimisse pela severidade e grandeza do homem e pela doçura da mulher, a fim de dar um complemento, como se um ser humano só não fosse suficiente para abarcar em si toda a causalidade de outro ser, tão grande é a paternidade, tão grande é a causalidade, tantos mistérios há dentro disso.

Então se compreende o papel da paternidade. Estou falando aqui da paternidade no sentido literal da palavra, mas também de outra forma de paternidade, que é a constituição das famílias de alma.

Famílias de alma

Geralmente os reinos, os países, as nações vivem tendo como arcabouço as famílias de alma. E quando as famílias de alma desse reino decaem, o reino decai irremediavelmente.

Essas famílias de alma, em geral, são fundadas por um indivíduo, segundo o qual as outras almas são suscitadas; ele é uma espécie de molde, conforme o qual Deus modela todas as outras vocações.

Em geral, vemos na História que na raiz de toda grande época das nações católicas existem algumas grandes almas que suscitam ou ressuscitam uma grande família religiosa, e depois, como uma espécie de exalação perfumada disso, nascem os grandes líderes temporais para servir a Igreja.

Então, por exemplo, Santa Teresa, Santo Inácio, São Francisco de Borja, São Francisco Xavier, São João da Cruz, etc. Pode-se imaginar um tecido de almas, um conjunto de focos luminosos de cujo encontro nasce um Filipe II que, para a Espanha, foi um patriarca menor do que o próprio mito, mas que fez uma grande coisa: deixar um mito no qual a posteridade creu, de maneira que o bem que ele não realizou, o mito fez depois dele.

Então eu me ponho a perguntar: “Com o Grand Retour(3) para nós aqui na Terra, o que haverá no Reino de Maria? Com que graças especiais, com que reluzimentos especiais o Divino Espírito Santo se fará sentir, quando chegar a hora de Ele insuflar a graça decisiva do Reino de Maria?” Isso nos deve modelar.

Todos nós conhecemos o fenômeno do heliotropismo: a tendência das plantas a se voltarem para o Sol. O “sol”, no caso, é o Divino Espírito Santo. E é necessário que Ele nos encontre ávidos d’Ele. De maneira tal que o Espírito Santo se manifestando, nós nos voltemos e nos abramos imediatamente.

Noção de seriedade

Contribuiria para isso passarmos a analisar agora outra noção: a de seriedade.

No seu primeiro aspecto, na sua definição mais elementar, a seriedade é a disposição de alma pela qual se quer ver a realidade absolutamente como ela é, e tirando-se todas as consequências que logicamente se devem tirar.

A seriedade comporta dois elementos: a observação inteiramente objetiva do objeto visto, e a legítima extração de conhecimentos de dentro daquilo que foi visto.

Então, a seriedade é a perfeição na objetividade e a plena fecundidade no suscitar consequências, a plena abundância das conclusões, tanto quanto àquela alma foi dado ter. É sério quem vê tudo como deve ser visto e conclui até onde ele pode concluir.

O homem que tem apetência de seriedade não faz, portanto, do ver ou do julgar, algo para se deleitar a si mesmo. Ele quer ver a verdade ainda que não o deleite, quer julgar ainda que não lhe seja grato julgar daquele modo. Ele quer julgar com justiça.

Portanto, ele está numa atitude de combate habitual contra si mesmo. Porque nós todos temos uma tendência à falta de seriedade, quer dizer, a ver as coisas como não são e a julgá-las como nos convém. Assim como, por exemplo, nenhum homem escapa à tentação contra a pureza, nenhum homem escapa da tentação contra a seriedade.

A seriedade plena visa constantemente os cumes

Mas a seriedade tem mais.

Aquilo que o homem sério vê, não basta que ele veja numa superfície plana. Por exemplo, um indivíduo que fosse voar muito alto e fotografasse um sistema montanhoso muito de cima. Aquelas montanhas pareceriam meio achatadas na fotografia, e quem a visse não teria a impressão de toda a altura das montanhas, porque o ponto de vista de onde foram fotografadas foi muito alto.

O homem não pode ter uma visão achatada da realidade, porque a realidade não é chata. A realidade é hierárquica, toda feita, portanto, de ascensões, de serranias. A realidade é uma imensa serrania, e é preciso vê-la assim, saber situar-se no lugar que dentro dela nos compete, e não onde nossa fantasia quereria nos colocar.

É tão fácil pecar contra esse dever! O homem tem uma tendência quase contínua para faltar contra essa obrigação, quase como a tendência para respirar.

E a seriedade plena, porque é altamente hierárquica, visa constantemente os cumes, aquilo que constitua um píncaro de tudo.

Por exemplo, se um homem sério considerar uma pedra, como a água-marinha, regala-se com o luminoso dela, fazendo uma comparação, mais ou menos subconsciente, com pedras que ele viu. Há, portanto, uma comparação com as outras coisas já consideradas por ele. E no fundo de sua cabeça, talvez sem que ele se dê conta, há uma espécie de desejo da pedra ideal que não existe na Terra, de pedra do Paraíso Terrestre, do Céu Empíreo, que possa regalar plenamente o ser humano na sua inteligência, na sua vontade, nos seus sentidos.

Desejo contínuo de perfeição

O homem sério volta-se continuamente para essas matrizes primeiras, tratando de explicitá-las. E quando analisamos sua vida, notamos ter sido uma longa peregrinação à procura da perfeição de todas as coisas.

Mas ele não tarda em perceber que nada é perfeito, a não ser Aquele que é a Perfeição, e o seu desejo de perfeição, em última análise, se volta para Deus. E que sem Deus Nosso Senhor tudo se pulveriza, perde o sentido, só Ele é absoluto. Sem o Absoluto, tudo afunda no relativo, no nada.

A pessoa séria compreende que esse seu desejo contínuo de perfeição, que é por assim dizer o bater de coração de sua seriedade, a alma de sua intransigência, o impulso de sua combatividade, a fonte inspiradora de seu carinho, de seu afeto, é o amor de Deus, pois só Deus é perfeito. Isso deve animar continuamente o homem sério.

Charme deslumbrante

Pelo exposto até aqui, vemos como o conceito de charme e de grandeza instalam-se com naturalidade nesse panorama.

Segundo um conceito corrente de charme, este se opõe à seriedade, pois é aplicado a seres que, em geral, nos fazem sorrir. São mais miúdos, engraçadinhos e têm uma forma pequena de perfeição que desperta um pouco de compaixão, de ternura, de vontade de proteger e, de outro lado, embevece.

Tomando a palavra charme nesse sentido, Deus é charmant(4)?

O charme é uma qualidade. Logo, em Deus deve haver charme, porém não com essa conotação que sugere limitação.

Como podemos imaginar que o Criador faça sorrir? Deus até deseja que o homem sorria. Quando criou, por exemplo, o colibri, os miosótis, Ele quis que o homem sorrisse. Desejou assim mostrar algo que é uma forma de perfeição “charmante”, que n’Ele existe de um modo grandioso, majestoso, produzindo de modo deslumbrante aquele efeito. O que poderíamos chamar, sem violentar a palavra, de charme deslumbrante, que sai da categoria do pequeno e voa para uma alta categoria.

Um charme deslumbrante seria o charme por excelência, do qual esses pequenos charmes da Terra são apenas reflexos.

Deus é infinito. Portanto, algo à maneira daquilo que, nas criaturas, chamamos charme, n’Ele existe infinitamente.

Menino Jesus: charme e grandeza

O Altíssimo é eterno, não muda nunca. Mas como somos seres limitados, gostamos de certas mudanças, Deus vai nos fazendo ver aspectos sucessivamente diversos d’Ele que mudam para nós, não n’Ele. Como Ele é infinito, podemos passar milhões e milhões de anos sem nunca esgotar esses diversos aspectos. E, na sucessão desses vários “quadros”, vários “painéis” de Deus — toda linguagem se torna vacilante para falar de uma coisa tão alta —, pode haver mudanças que expliquem ao homem o que ele sente quando vê, por exemplo, o furta-cor de uma borboleta, a agilidade ou o colorido das asas de um colibri.

E tudo quanto na natureza é irisado, opalescente, nacarado não será algo que diz respeito à sucessão com que em Deus vão se manifestando os charmes grandiosos e as grandezas que, de algum modo, são “charmantes”? Não será essa abóbada entre o charme e a grandeza que constituirá um encanto no Céu? Pode-se pensar isso.

Se isso é assim, tem que ser salientíssimo em Nossa Senhora, mais do que em toda a Criação reunida. Podemos compreender, por aí, como será nossa contemplação da Mãe de Deus, no Céu.

Maria Santíssima teve alguma coisa assim na Terra? Teve. Ela reuniu de um modo terreno o charme e a grandeza quando contemplou o Menino Jesus. Porque ali realmente é o pequeno, com todo o encanto da fragilidade, mas com a majestade de Deus.

Como terá sido realmente o Menino Jesus? Quem é capaz de excogitar isso? Menino Jesus diante do qual os reis magos se aproximaram reverentes, trazendo o que tinham de melhor, e que, entretanto, era uma criancinha que se amamentava do leite puríssimo de Nossa Senhora, que dependia d’Ela até para espantar um mosquito…

Podemos imaginar Maria Santíssima olhando para o Menino Jesus e, por exemplo, vendo que a natureza humana d’Ele queria ser mimada, mimando o Menino Jesus e pensando: “Deus quer ser mimado por Mim!”

É de não se saber o que dizer!

São temas nos quais eu gostaria de me aprofundar antes de morrer, para me apresentar diante de Deus com isso estudado, e com meu espírito formado para isso e por isso. v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/8/1983)

 

1) Jesuíta e exegeta flamengo (* 1567 – † 1637).

2) Ex 11.

3) Do francês: Grande retorno. No início da década de 1940, houve na França extraordinário incremento do espírito religioso, quando das peregrinações de quatro imagens de Nossa Senhora de Boulogne. Tal movimento espiritual foi denominado de “grand retour”, para indicar o imenso retorno daquele país a seu antigo e autêntico fervor, então esmaecido. Ao tomar conhecimento desses fatos, Dr. Plinio começou a empregar a expressão “grand retour” no sentido não só de “grande retorno”, mas de uma torrente avassaladora de graças que, através da Virgem Santíssima, Deus concederá ao mundo para a implantação do Reino de Maria.

4) Do francês: charmoso.

 

O olhar sereno e penetrante de Jesus

Há certas descrições que superam a própria fotografia. Um exemplo característico é a conferência na qual Dr. Plinio, entre outras coisas, descreve o quadro de Giotto representando o beijo de Judas. E interpreta a repercussão na alma do traidor da pergunta de Nosso Senhor: “Judas, com um ósculo trais o Filho do homem?”

O perfeito convívio entre o líder e os liderados supõe algo que seja o mais possível parecido com a autoridade entre o pai e os filhos. Mas de um pai que conheça perfeitamente o seu “métier” de pai — sua função, sua missão —, e compreende que faz parte dessa missão algo que é insubstituível: o querer bem. Não se reduz a isto, mas é uma coisa indispensável.

Censura e perdão

Ora, para querer bem é preciso ter entendido aquele a quem se quer. Os homens são desta maneira: para conseguir querer bem depois de ter entendido, é preciso uma forma de perdão, de suavidade, de mansidão que faça com que se consiga querer bem.

Quem é objeto desse sentimento, se for uma pessoa reta, não pode deixar de se sentir profundamente tocada. Essa é a escola que se aprende no Sagrado Coração de Jesus, no Coração Imaculado de Maria.

Por exemplo, na frase de Nosso Senhor a Santa Margarida Maria Alacoque: “Este é o Coração que tanto amou os homens e por eles foi tão pouco amado”, percebe-se pela redação que há um reproche, uma censura, mas há ao mesmo tempo um perdão.

Nela está contido o pensamento de que — apesar de quererem pouco a Nosso Senhor e Ele fazer uma censura, mostrando aos homens que essa atitude não está bem — isso é feito com tal amor pelo lado bom deles, e com tanta esperança de que se deixem tocar, que há qualquer coisa no homem que o seu lado duro, rebarbativo, pode, pela ação da graça, amolecer de repente e a pessoa ficar outra: agradecida, compreendendo que a montanha das suas imperfeições não levantou contra si um inimigo na Pessoa d’Aquele contra Quem as imperfeições foram levantadas.

A ovelha rebarbativa no meio do carrascal

Existe, portanto, um perdão suave, largo, enorme, infatigável e que, antes mesmo de a falta ser cometida, como que já foi esquecida. E o ofendido age como o bom pastor com a ovelha rebarbativa que se meteu pelo carrascal: é preciso ir pelo meio dos espinhos para pegá-la com jeito, porque a ovelha, que deveria ser jeitosa, não balir à toa e compreender o esforço daquele que já está metido no carrascal por causa dela, e não aumentar seu trabalho, pelo contrário, é caprichosa, cheia de gemidos, não suporta nada. Então, qualquer coisa que se faça ela esperneia, bale de um modo dolorido como quem diz: “Está doendo, está doendo! Você está querendo me tirar daqui? Tire mesmo, mas não deixe doer. Onde é que já se viu infligir-me essa dor?” Reclamando assim contra aquele que a está salvando.

Nós todos somos homens e sabemos que reações como essas podem nos vir ao espírito, e quanto nos toca — tendo feito coisas dessas em tal quantidade, que ficamos cegos e perdemos a noção de quanto fizemos — percebermos, em determinado momento, que nem aquele montão de ingratidões foi capaz de vencer aquela misericórdia. E que há a mesma doçura, a mesma bondade, o mesmo perdão, o mesmo desejo de ajudar absolutamente imutável.

Quando a alma sente isto e é tocada por uma graça especial, chegou a hora da vitória do Sagrado Coração de Jesus ou do Imaculado Coração de Maria.

Nosso Senhor Jesus Cristo é supremo em todos os sentidos da palavra e, abaixo d’Ele, Nossa Senhora é suprema. Sendo Eles exemplos supremos, devemos imitá-Los nas ocasiões da vida particular — nas coisas pequenas, médias e grandes — em que recebemos ingratidões brutais, às vezes estúpidas, subestimas bárbaras, e não nos incomodarmos.

Alguém dirá: “Mas Dr. Plinio, e a hora da punição não chega?”

Eu respondo: “Chega até para o Sagrado Coração de Jesus!”

Há certos graus de recalcitrância tão tremendos, que não se compreende como a maldade do homem chega a esse ponto.

Ósculo da traição

Sempre me causou repulsa máxima e furiosa a indiferença de Judas, naquele episódio em que ele trai Nosso Senhor. Os algozes não sabiam quem era Jesus e, portanto, a quem deveriam prender. Judas então diz: “Aquele a quem eu oscular, a este prendei!”

Quer dizer, a infâmia chega a esse ponto de ele, para indicar a sua vítima, a oscula, sabendo que recebe um ósculo de volta e, portanto, fazendo da troca dessa bondade, dessa amizade, o preço da traição!

Aí, naturalmente, há os limites que tudo tem, e se prepara a descarga da vindita de Deus no que ela tem de mais terrível. Nosso Senhor ainda é suave com ele, mas de uma suavidade com qualquer coisa da doçura de um acento materno e do estrépito de um trovão, quando ele diz: “Judas, com um ósculo trais o Filho do homem?”(1)

O famoso Giotto pintou um quadro figurando o ósculo de Judas a Nosso Senhor. Judas é apresentado mais baixo do que Jesus e beijando-O de baixo para cima, com uma beiçorra que parece estalar de carnes, um beiço sujo e molhado que ele cola com a sua saliva imunda no rosto divino do Redentor. Testa pequena, cabelo que desce até bem embaixo e já saindo desgrenhado da raiz da pele, e um jeito subserviente diante de Nosso Senhor, ou seja, traindo e ao mesmo tempo bajulando.

E Jesus com um olhar sereno, como quem penetra no fundo daquele lodaçal de infâmia, ainda para ser bom porque Ele é justo. Quer dizer, Ele quer fazer com que Judas tenha medo, pelo menos, já que não foi tocável pela bondade. Se a contrição não o tocou, que ele se salve ao menos pela atrição. Então vem aquela pergunta: “Judas, com um ósculo trais o Filho do homem?” Mas nesse “Judas” tem uma pergunta, como quem diz: “Meu íntimo, meu filho, aquele que está sempre comigo… Logo você?!”

Se Judas procurasse Nossa Senhora, obteria o perdão

Judas não dá resposta, mas vê a reação de Nosso Senhor e percebe-se que ele sai levando impresso na alma o castigo do pecado cometido. Ele não consegue mais desamarrar-se daquela pergunta, e aquilo repercute nele ainda que não queira: “Com um ósculo… com um ósculo… com um ósculo…! Judas! Judas! Judas! Tu trais… tu trais…” Trais quem? “O Filho do homem!”

Todas as perfeições de Nosso Senhor vêm ao espírito de Judas, e ele, imundo, levando a sua sacola de dinheiro, raciocina: “Traí por causa disso…”

E pela primeira vez aquela alma adoradora do dinheiro vê quanto este é pouco, ainda quando seja muito dinheiro. É tal o horror diante do que fez, que ele vai ao Templo e joga aquelas moedas no chão. Pensa libertar-se daquela figura, daquela pergunta, e do afeto envolvente daquela censura. Mas ele nem quer libertar-se da censura, nem deixar-se envolver pelo afeto. Se ele se deixasse envolver pelo afeto, iria procurar Nossa Senhora, prostrar-se-ia diante d’Ela e diria:

“Senhora, eu sou tão infame que pela primeira vez Vos chamarei de Mãe, apelando para esse extremo de bondade, porque Vos pedirei um perdão que só uma mãe concede ao seu filho, e mais ninguém. Minha Mãe, Mãe virginal e imaculada, que apesar disso também sois Mãe deste asqueroso, nojento, traidor, ganancioso, desleal, imundo que sou eu, aqui estou, pior do que qualquer leproso. Mas para Vós continua verdade que sou filho, e vos peço: curai-me!”

Todos os caminhos estariam abertos para ele. Mas ele não queria que o afeto o envolvesse, não queria voltar e pedir perdão.

Mas ele também não podia viver sem pedir perdão, porque o remorso era tremendo. Então, não podendo viver com, não podendo viver sem, a “solução” por ele encontrada foi de não viver. Resolveu se matar. Foi a uma figueira, pendurou-se ali e morreu.

Pode-se imaginar aquele corpo asqueroso pendente, malcheiroso, os urubus já esvoaçando em torno dele, as garras do Inferno já o segurando e dando risada, e pelos dedos do vento balançando em várias direções, quebrando de encontro à árvore, e ele se deixando fazer. Até o momento em que ele, por assim dizer, fechou as portas do Céu. Até o último instante ele não pediu perdão. Vemos, então, as vias de Deus infinitas, perfeitas, modelo da conduta de todo aquele que exerce uma autoridade espiritual ou temporal.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 28/1/1993)
Revista Dr Plinio 201 – Dezembro de 2016