A medula da vida espiritual

Quando presidente da Ação Católica de São Paulo, nos idos de 1940, Dr. Plinio procurou atender — conforme ele próprio afirmava — à primeira obrigação de um dirigente de associação religiosa, isto é, o cuidado pela santificação de seus membros. Nesse intuito, redigiu um memorando contendo judiciosas orientações de vida espiritual, das quais transcrevemos a seguir alguns excertos.

 

O  homem, criado por Deus no estado de justiça original, foi enriquecido da graça santificante e de outros valiosos dons que davam à sua natureza uma harmonia tal que ele via claramente a vontade divina e a cumpria com toda a facilidade, segundo apenas os seus pendores espontâneos.

O pecado original quebrou a harmonia interior do homem

A lei natural — inscrita por Deus na consciência de cada um, como manifestação da vontade d’Ele — era perfeitamente legível. Por isso nossos primeiros pais tinham as potências da alma em perfeita ordem, de tal forma esclarecida pela revelação, que a sensibilidade estava subordinada inteiramente à vontade, e esta à inteligência; a prática da lei, em vez de penosa era uma fonte de felicidade, pois tudo cooperava no homem para que ele atingisse plenamente o seu fim.

Entretanto, pelo pecado original foi quebrada esta harmonia tão maravilhosa. Como castigo da rebelião, retirou Deus o poder absoluto da inteligência sobre a vontade, e de ambas sobre a sensibilidade. Assim o homem se viu em luta contra a rebelião ora brutal das paixões, ora insidiosa das más inclinações, tornando‑se tantas vezes escravo de umas e de outras. Igualmente perdeu o domínio absoluto sobre a natureza criada, de que fora o rei, e os seres animados e inanimados que a compõem revoltaram‑se contra ele. Quebrou-se, desse modo, aquela harmonia resultante da subordinação do mundo, com suas forças e virtualidades, à inteligência superior do homem. A lei natural perdeu, na consciência humana, a primitiva nitidez; a inteligência ficou alterada em sua lucidez cristalina de outrora; e a vontade desviou‑se daquela retidão admirável que a inclinava sempre para o verdadeiro bem. Sobretudo, perdeu o homem a graça e a amizade de Deus, e o Céu se fechou para ele.

Com o pecado entra a contradição no mundo

O pecado original, pela contradição abominável que opunha à majestade divina, fez entrar a contradição no mundo. O tédio, o cuidado, a dor, a angústia e a morte se desdobraram sobre a Terra; e o inferno se abriu, como suprema contradição, para triturar, sem aniquilar, os prevaricadores, que se tornaram filhos da contradição do pecado.

Por outro lado, o desejo de felicidade, que é tão radical no homem que seria mais fácil destruir o ser humano do que extirpá‑lo, este desejo voltou‑se com todo o seu peso para muitas coisas que não podem dar a felicidade. E os caminhos que conduzem à bem‑aventurança, tão sequiosamente almejada pelo coração humano, tornaram‑se espinhosos e repugnantes, de tal forma que “todo o que procurar salvar a sua vida, perdê‑la‑á; e todo o que a perder, salva‑la‑á” (Lc 17, 33).

A vida espiritual, esforço para nos unir à vontade divina

Nesta situação aflitiva, valeu‑lhe a misericórdia de Deus, que não poupou o seu próprio Filho, imolando‑O na Cruz pela nossa salvação. Entretanto, a graça, que tão abundantemente defluiu do Calvário, não alterou o quadro das conseqüências do pecado original no homem, senão neste ponto: que valorizou e tornou viável o esforço humano em vista da recomposição da harmonia interior e da subordinação da sua vontade à  divina, e, por aí, reconquistarmos o Céu.

Ora, estando comprometidos, em nós, os traços anteriormente firmes, com que estava gravada a lei natural, dignou‑se Deus de manifestar novamente a sua vontade pela revelação dos Mandamentos, que se aplicam a todos os homens, indistintamente. Além disso, pelos conselhos evangélicos, revelou o que cada um deve fazer, em particular, seguindo a inspiração do Espírito Santo, para obedecer os desígnios de Deus a seu respeito. A vida espiritual consiste exatamente nesse esforço penoso para conformar nossas disposições internas e nossas ações com a vontade de Deus, o que, antes do pecado original, era uma fonte de felicidade, como já ficou dito.

O jogo das tendências no homem decaído

Há, no homem, tendências boas ou más da natureza, disposições viciosas ou virtuosas adquiridas, e atos bons ou maus, que seguem as tendências ou as disposições. É de notar que as disposições virtuosas podem ser o aproveitamento meritório de uma boa tendência, como as viciosas podem ser o agravamento culposo de tendências más. É possível, porém, que não seja assim, havendo, neste caso, maior culpa ou mérito.

As tendências más podem pertencer à vontade, como o pendor para o orgulho, por exemplo, ou à sensibilidade, como a tendência para a luxúria. Para que haja ato mau, entretanto, é necessário que a vontade ou ceda à própria inclinação defeituosa, ou pactue com os movimentos inferiores da sensibilidade desordenada, como que os assimilando a si própria. A repetição de atos maus desenvolve as tendências más da vontade, aumenta a desordem da sensibilidade, e, por fim, habitua a vontade a transigir com as sugestões perversas desta última, até surgirem os vícios, em toda a pujança escravizadora.

A perigosa deformação da mentalidade

Este procedimento imoral tem ainda um último e derradeiro fruto de iniquidade. A vontade não pode agir sem a colaboração da inteligência, pois que a ação humana não se produz sem uma razão. De fato, ninguém faz alguma coisa conscientemente sem um motivo apresentado pela razão, qualquer que seja seu valor. Portanto, o mau proceder conspurca a inteligência, pois chega a forçar esta nobre faculdade muitas vezes a apresentar como bom e conveniente o que é mau e perverso.

Ora, esta intervenção violenta, quando muitas vezes renovada, acaba por deformar a inteligência, que de si mesma é generalizadora; e por aí, ela pode obliterar‑se de tal modo que só muito penosamente chegue a compreender certas verdades e a se desvencilhar de certos erros. A pessoa que assim deforma a sua inteligência concebe idéias ou teorias falsas, ou, ainda, adquire uma mentalidade, isto é, uma atitude fundamental de ver e julgar as coisas, que falseia todos os valores. Numa mentalidade há princípios e teorias implícitos, que podem nunca vir a ser explicitados, mas que freqüentemente pesam nos juízos e nas resoluções. Por isso, nada há tão perigoso como uma mentalidade deformada, pois nisso consiste o “desregramento do espírito” de que fala o Evangelho (Mc 7, 22). É o oposto da sabedoria, e, no fundo, é o gosto das coisas do mundo, que se opõe ao gosto das coisas celestiais.

Esta mentalidade defeituosa também pode ser contraída pela complacência íntima e sistemática aos atos maus de outras pessoas, atos estes que lisonjeiam as nossas más tendências e disposições. A causa é análoga à referida quanto aos nossos próprios atos.

As más tendências da natureza, conseqüência do pecado original, são o princípio do mal em nós, e quase sempre o ponto atingido pelas tentações do demônio e do mundo. Podem ser dominadas, com relativa facilidade. A disposição viciosa, pelo contrário, já representa o domínio do mal, e a prática do bem, que se lhe opõe, exige uma grande luta. Porém, a pessoa portadora de mentalidade deformada já não luta, pratica o mal que se refere ao defeito de sua mentalidade, como se fora a mais natural e racional das coisas.

Falta de reflexão, doença do mundo moderno

Diz o Santo Padre Pio XI, em sua Encíclica sobre os Exercícios Espirituais de Santo Inácio(1): “O mal gravíssimo de que enferma a nossa época, que é a fonte e origem de todos os males de que se queixam os homens de reto juízo, é a falta de reflexão”. Para curar este mal é necessário forçar “o nosso espírito a observar atentamente os pensamentos, as palavras e as ações e a penetrar intimamente na nossa alma”.

De fato, infelizmente é imenso, hoje em dia, o número das pessoas que moldam a sua atividade exclusivamente ao sabor das circunstâncias exteriores, e não têm o hábito, e quase nem têm a faculdade de se observar, de julgar‑se a si próprias e de corrigir as suas tendências e disposições interiores desregradas.

Importa ao homem ver, julgar e agir dentro de si mesmo

Entretanto, a ninguém é possível obter uma verdadeira conformidade com a vontade divina, que, como dissemos, é o único meio do homem atingir a perfeição e a felicidade, sem o hábito de ver, julgar e agir dentro de si mesmo. Conforme se viu da Encíclica anteriormente citada, disso depende a cura de todos os males modernos. Ora, o mal não é outra coisa senão a desconformidade com os desígnios de Deus, que jamais cessa de querer o verdadeiro bem.

Além disso, as pessoas que se deixam levar exclusivamente, ou quase, pelos atos exteriores, se expõem a contaminar‑se, insidiosamente, pela corrupção do mundo, que é o principado de Satanás (Jo 16, 11), e a cair na chamada “heresia das obras”, mesmo quando querem fazer o bem. Neste sentido, acrescenta a Encíclica citada: “A frivolidade contínua e febril que se prende às coisas exteriores …. enerva e debilita nos corações os mais nobres ideais e de tal modo os envolve nas coisas terrenas e transitórias que mal os deixa pensar nas verdades eternas, nas leis divinas e no próprio Deus, que é o único princípio e fim das criaturas”.

Porém, o hábito salutar de ver, julgar e agir dentro de si mesmo, fornece um auxílio eficaz para as faculdades humanas, de modo que, neste combate insigne de espírito, a mente se acostuma a avaliar e a pesar, no seu justo valor, todas as coisas; a vontade se robustece com firmeza; os desejos insaciáveis comprimem‑se com sensatos conselhos; a ação da vida humana unida à meditação conforma‑se com uma norma reta; enfim, a alma atinge a sua nobreza e excelência, como se lê tão belamente numa comparação do livro Pastoral do pontífice São Gregório: “O espírito humano, à semelhança da água de um tanque, se represada, aumenta de volume e sobe para o céu donde veio; mas, aberta, perde‑se, espalhando‑se inutilmente sobre a terra”.

Assim sendo, nesse hábito está a medula da vida espiritual(2).

 

1) Encíclica Mens Nostra, de 20 de dezembro de 1929.

2) Outros tópicos desse importante memorando redigido por Dr. Plinio foram publicados nos números 38 e 39 desta revista (maio e junho de 2001).

Esperança dos culpados

Erraria quem fizesse o seguinte raciocínio: “Eu tenho determinada culpa, mas também possuo algo de bom, e tomando isto em consideração, Nossa Senhora terá pena de mim”.

O certo seria pensar: “Nossa Senhora é o Refúgio, a Esperança de todos os culpados, por mais miserável e mais culpado que se possa ser”.

A principal razão pela qual Nossa Senhora nos socorre não é haver em nós algo de bom, mas sim pela bondade que existe n’Ela. É por isso que Maria Santíssima tem pena de nós e se digna atender nossos pedidos.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 11/9/1969)
Revista Dr Plinio 154 – Janeiro de 2011

Gravidade ao sabor brasileiro

Desde pequeno agradou-me considerar o elegante prédio da Estação da Luz, próximo ao parque onde os meninos de minha família, sob o vigilante olhar de suas governantas, se distraíam aos domingos.

Simpático, atraente, encanta-nos o estilo inglês com que o edifício foi concebido: correto, distinto, garboso, cheio de si (no bom sentido da palavra), ordenado, com uma noção do dever, não sufocante, mas feito com métodos, tempo e pontualidade, de maneira a tudo sair de acordo com o planejado.

Para os padrões da São Paulo do tempo em que foi construída, a estação apresentava proporções monumentais, oferecendo aos passageiros um ótimo restaurante e toda uma ala destinada a hóspedes que ali quisessem residir por um período mais prolongado, até encontrarem outra acomodação na cidade. Tranqüilidade e segurança de outras épocas…

A torre imponente se destaca como símbolo da elevação e da gravidade do prédio, ao mesmo tempo que indica a hora certa dos embarques. Gravidade e elevação, sim, porém ornadas com um misto de bondade e de “laisser-faire” distinto, sabendo ser do feitio do nosso povo, não a coisa ultra-arranjada, mas com um toque de negligência de “grand-seigneur”. Além disso, uma nota de melancolia, uma espécie de sorriso prateado muito afim com o habitat interior comum do brasileiro.

Impossível para mim, ao contemplar a Estação da Luz, não recordar os velhos e bons sabores do meu tempo de criança, e, sobretudo, não me lembrar das graças que a Providência concedeu à minha alma de menino, a propósito do meu encanto com esse prédio que se erguia ao fundo do Jardim da Luz onde brincávamos.

Dessas graças, a mais marcante terá sido o meu “encontro” com a figura do imperador Carlos Magno, desenhada num livro de história para criança que estava à venda num quiosque dentro da estação. Antes de embarcar para uma viagem ao interior de São Paulo com minha família, pedi ao meu pai que me comprasse aquele livro.

Nunca ouvira falar de Carlos Magno, mas aquela gravura que o representava no seu trono de majestade, revestido de coroa e com o cetro imperial à mão, me tocou profundamente. À medida que folheava a publicação, crescia meu entusiasmo pela pessoa do imperador, e algo me dizia na alma: “O futuro está com esse homem!”.

Hoje posso afirmar que naquele momento me foi dado discernir o ideal de grandeza que Carlos Magno simbolizava, bem como se formou em mim a convicção de que esse ideal possui um conteúdo de universalidade pelo qual beneficia a todos os povos, sem exceção, e algum dia ele ainda ressuscitará. Essa convicção permanece intacta no meu espírito.

Portanto, não há nisso apenas uma pertinaz reminiscência de infância que insiste em se manter, mas também uma ação da graça que toca a todos que admiram Carlos Magno, e os leva a compreender que o grande imperador não é um caminho interrompido, nem uma glória do passado fixada e estagnada num monumento de pedra. Ele é uma luz que desceu do Céu para indicar aos homens uma trajetória que deve alcançar sua plena realização.

E um lampejo dessa graça refulgiu aos meus olhos ali, naquela bela Estação da Luz.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências em 20/2/1993 e 16/2/1994)

Oração para combater as afeições meramente terrenas

Minha Mãe e Senhora minha, quão grande foi o elogio que de Vós fez o Evangelho ao afirmar que — depois das inefáveis emoções da Anunciação, da Natividade, da Visita dos Reis Magos e da Apresentação no Templo — consideráveis todos estes fatos meditando-os em vosso Coração. Assim, nas emoções mais intensas que podíeis ter, Vós meditáveis.

Eram emoções indizivelmente ordenadas, e por isto em nada empanaram, antes favoreceram o exercício incomparavelmente lúcido de vossa meditação. Ordenadas, não apenas porque vossa natureza sem mancha não tinha a menor desordem, mas também porque vossas emoções resultavam da Fé e eram todas embebidas de Esperança e Caridade.

Olhai, suplico-Vos, para este filho tão diferente de Vós. Concebido com as desordens do pecado, agravado por toda espécie de infidelidades, ele nem de longe é tão sobrenatural quanto quisera, e por isso encontra-se tiranizado pelas impressões, sensações e tentações.

Fazei com que uma graça, vinda do mais íntimo de vosso Imaculado Coração, toque a alma deste vosso filho, separando-a dos aspectos terrenos, orientando-a exclusivamente para Vós e extinguindo, assim, os ardores das paixões que tanto a nublam, perturbam e tiranizam. Amém.

(Composta por Dr. Plinio em outubro de 1966)

O belo e o prático – I

A Revolução, fundamentalmente materialista, propaga a ideia de que o importante é o lado prático das coisas, pois proporciona conforto para o corpo, enquanto que o belo nem deve ser considerado. Dr. Plinio desmonta esse sofisma.

 

Diante de tantas coisas bonitas dos tempos antigos que foram sendo destroçadas, e tantas coisas hediondas instauradas nos dias de hoje em nome do prático, põe-se a pergunta: o prático não é um precursor da feiura e o belo um inimigo do prático?

Rapidez e comodidade

Para analisar esta questão, consideremos alguns meios de transporte.

Toda coisa é perfeita na medida em que atinge o seu fim. Ora, o fim de uma carruagem, por exemplo, é transportar; e se ela transporta nas condições ideais, realizou a sua perfeição.

Quais são as condições ideais do meio de transporte? Ele deve ser, entre outras coisas, rápido e cômodo. Entretanto, o conceito de cômodo é muito amplo, porque uma é a comodidade que se pode querer ter em um automóvel que transpõe a distância de alguns quarteirões; outra é a comodidade exigida desse veículo fazendo uma longa viagem. São distâncias muito diferentes em que o corpo e o próprio espírito humano pedem graus e modos de conforto diferentes.

Há outras circunstâncias que condicionam a comodidade de um veículo, como, por exemplo: um molejo adequado para transitar em superfícies irregulares; arranque suave e silencioso do motor; estabilidade pela qual o passageiro sinta-se bem e seguro, mesmo em alta velocidade, etc.

Chegamos, assim, à conclusão de que o espírito prático deve ser adaptado a várias circunstâncias.

Beleza ou conforto?

A beleza interna de um veículo é uma condição de conforto? Evidentemente sim. Porque tudo que lisonjeia os sentidos, de algum modo, é condição de conforto. É muito confortável viajar em uma carruagem e ver o sol entrando pelos cristais das janelas e incidindo sobre sedas, damascos, veludos, “brincando” naqueles tecidos de luxo. Portanto, estaria de acordo com o espírito prático — que deve procurar o conforto de um veículo — tornar bonito o interior de uma carruagem.

Mas também deve estar de acordo com o espírito prático que um automóvel tenha um compartimento com um pequeno refrigerador contendo líquidos gelados para que, no auge do calor, sem ter de diminuir a velocidade do carro, o dono possa servir-se de um refresco.

Havendo tudo isso, pode-se dizer que o espírito prático obteve uma vitória. Mas torna-se impossível fabricar uma bela carruagem com essas comodidades. Onde colocar a geladeira e as supermolas compatíveis com a supervelocidade? Onde instalar um mecanismo por onde baste apertar um botão para as janelas subirem e baixarem fazendo um ruído prestigioso? Essas coisas cabem nos produtos modernos, não nos antigos. Então, o que escolher: a beleza da carruagem ou o conforto do automóvel?

Alma do homem e pulcritude

Até pouco tempo atrás, os homens não tinham perdido a noção do belo, mesmo passando da era da bela carruagem para a do automóvel. Tomemos, por exemplo, automóveis do tipo Mercedes. Eram bonitos veículos, com cores lindas, reluzentes. O homem tinha a impressão de entrar em uma pedra preciosa, de tal maneira aquela lataria toda era ornada. Dentro havia couros de primeira ordem, espaço amplo, enfim, todos os agrados dos transportes de luxo se encontravam reunidos ali.

Isso obedecia ao seguinte princípio: há uma razão para, tanto a carruagem quanto o automóvel, serem belos.

Todos os argumentos dados até agora a favor do espírito prático valem para o corpo. Mas o homem tem só corpo? Ele é principalmente corpo? O homem não é principalmente alma? E se a alma é o elemento principal do ser humano, do que vale o belo para a alma? Neste caso, ter beleza não seria o principal componente que um transporte deveria possuir?

Lindos cavalos, belas carruagens

Analisemos o papel do belo.

Primeiramente, a pessoa que está em uma carruagem ou qualquer outro meio de transporte, ainda que seja simplesmente um cavalo, apresenta-se aos olhos do público de modo a chamar a atenção. Porque um indivíduo que atravessa uma rua dentro de um veículo ou montado em um animal, atrai muito mais a atenção do que quem vai a pé, e forma um todo psicológico e artístico aos olhos dos transeuntes.

Ademais, o homem tem interesse em ser conhecido pelo que ele é, para que se lhe dê o valor ao qual tem direito. Se ele é um verdadeiro cavaleiro, descendente, por exemplo, dos cruzados, convém que monte um lindo cavalo de raça.

E montar, não é estar sobre o animal como estaria um saco de batatas. É preciso cavalgar com elegância, altaneria e dignidade. O cavaleiro deve dar a impressão de tal domínio sobre o cavalo, que o oriente simplesmente pelo movimento das pernas. As rédeas servem mais como um elemento ornamental.

Além disso, o animal precisa estar belamente ajaezado com uma bonita sela, belos arreios. Tudo isso forma a moldura com que o homem se apresenta em público.

É de acordo com a dignidade do homem que ele queira cavalgar esplendidamente um lindo cavalo. Isso não é vaidade, mas o reto exercício do instinto de sociabilidade, não com pretensão, mas com a naturalidade com que uma pessoa quer mostrar o rosto limpo para os outros.

Tratando-se de pessoas de uma condição inteiramente excepcional, como um rei e uma rainha, que ocupam no Estado e na sociedade o primeiro lugar, é natural que, por uma necessidade da alma, se façam ver e reverenciar pelo que eles são, utilizando uma carruagem à altura de seu cargo.

Para eles, mais importante do que a grande velocidade e todas as comodidades é ter um coche, no qual se apresentem como dentro de uma linda moldura.

Por isso as altas situações são tratadas pelos artistas — no caso concreto, pelos fabricantes de coches — de maneira a serem realçadas. A arte se empenha em apresentar o rei, a rainha, os príncipes da casa real, os nobres, os titulares de altas dignidades da Igreja, do Poder Judiciário, das Forças Armadas, etc. de modo a serem naturalmente respeitados, proporcionando-lhes outra modalidade de conforto: a comodidade de governar.

Então, é uma vantagem do Estado que haja lindas carruagens. Quanta revolta é evitada, quanta guerra interna é poupada a um país porque o povo se habituou a respeitar quem o governa!

O Bucentauro e a ponte sobre o Tâmisa

A República de Veneza tinha um presidente do Conselho dos Nobres intitulado Doge, palavra derivada do vocábulo latino “dux”, chefe.

Para navegar pelas águas fabulosas da Laguna de Veneza, o Doge dispunha de uma embarcação, toda esculpida, folheada a ouro, lindíssima, que por uma reminiscência mitológica chamava-se “O Bucentauro”.

Na ocasião máxima do Estado Veneziano, o Doge partia no Bucentauro acompanhado de centenas de barcos, gôndolas com aquelas proas lindas, gente tocando instrumentos, cantando, etc., laguna adentro, até o Mar Adriático. E, quando estavam no alto mar, o Bucentauro parava e o Doge jogava nas águas um anel precioso: era o casamento de Veneza com o mar.

Veneza era uma grande república comercial e dominava os mares naquele tempo, sendo, por isso riquíssima. O casamento da República de Veneza com o mar representava uma espécie de união entre o Estado veneziano e seu destino histórico.

Evidentemente era útil para o Estado veneziano ter um barco assim.

Portanto, nem sempre a beleza tem essa incompatibilidade com o prático que apresentávamos no início desta exposição. Para a vida da alma, para o intercâmbio de relações entre as almas, para a formação da política e da cultura de um povo, o belo tem uma importância maior do que o prático. E quando há incompatibilidade, quase sempre o belo prevalece sobre o prático.

Dou um exemplo de nossos dias: o Rio Tâmisa, em Londres, com aquela ponte levadiça. Aquilo é lindo, mas já não necessário, porque com os meios modernos poder-se-ia construir uma ponte alta que substituísse aquela. Por que se mantém a ponte atual? Porque é bela!

Há, portanto, um prático de categoria inferior que encontramos ao olhar automóveis bem equipados. Mas há um prático mais elevado que toma em consideração que o homem é mais espírito do que matéria, e que as coisas do espírito têm muito mais importância do que as da matéria. Por isso, deve-se dar mais valor ao belo do que ao prático. v

 

(Continua no próximo número)

(Extraído de conferência de 4/10/1986)

 

A beleza ungida pela graça

Nas belas obras de arte produzidas na Idade Média, observa Dr. Plinio, deve-se considerar, acima da excelência do talento medieval, a riqueza da graça de Deus que inspirou os autores dessas maravilhas. A mesma graça que, para o espírito de um observador atento, parece ecoar ainda hoje nos ambientes outrora iluminados por sua presença.

 

Quando fazemos uma viagem durante a qual nosso espírito recolhe uma série de impressões, é normal que as reflexões e os pensamentos a propósito de tudo que se viu não aflorem imediatamente. Deixa-se repousar as impressões e as análises e, mais tarde, as conclusões se evolam de tempos em tempos, mais ou menos como as flores que demoram a exalar todo o seu perfume. Assim se dá com as recordações de viagem: há várias exalações consecutivas de diversos significados, de bons aromas que se apresentam e se formulam à medida que o tempo passa.

Daí vem o fato de que, somente alguns meses depois de minha última visita à Europa, eu tenha conseguido explicitar o pensamento que procurarei explanar aqui, oriundo da comparação entre esta e as anteriores viagens que fiz ao Velho Continente.

A ação da graça favorece uma obra católica

Imaginemos, por exemplo, um escritor como São Bernardo de Claraval. Ele redige seus sermões sobre Nossa Senhora e, por se tratar de uma obra feita com espírito católico e com a intenção de servir a Santa Igreja e a Civilização Cristã, supõe-se que a graça incide sobre esse ato, favorecendo-o de modo especial. Por isso, quando lemos um sermão de São Bernardo, temos duas impressões.

Uma, natural e humana: o autor é um escritor exímio, de grandes vôos literários.

 Mas, como tudo foi escrito com amor de Deus e movido pela intenção de despertar pensamentos sobrenaturais, inspirados pela Fé e tendentes à glória divina, têm-se a segunda impressão: a graça presidindo àquela obra, pois ninguém, nem São Bernardo, é capaz de pensar algo com base na Doutrina Católica, nem de querer um benefício para a Igreja ou para a glória de Deus, sem ser inspirado e auxiliado pela graça. Sem o socorro desta, o homem é incapaz de proceder a essas operações intelectuais e volitivas.

Há, portanto, uma operação de origem sobrenatural que se soma à operação natural da inteligência, vontade e sensibilidade, pela qual ao lermos aquele sermão, percebemos belezas novas, de caráter absolutamente superior e extraordinário.

Valores sobrenaturais simbolizados nos monumentos europeus

Ora, isto que se pode dizer de um texto, aplica-se também a monumentos, edifícios, catedrais, imagens, obras de arte. Por exemplo, pode-se dizê-lo das estalas superiormente bem esculpidas de um convento, de um vitral, de peças elaboradas com espírito sobrenatural, para o serviço de Deus, e também para uma finalidade natural. Quem vê aquilo é visitado por uma graça que lhe faz compreender as analogias que o objeto tem com valores sobrenaturais. Donde o grande apreço que o homem nutre por aquilo que ele contempla.

Por exemplo, um castelo com suas torres, ameias e barbacãs, pode nos transmitir uma impressão sobrenatural, proporcionada pela graça, resultante do fato de que sua arquitetura simboliza a virtude da fortaleza enquanto praticada por amor a Deus. Nisto se encerra a beleza superior do castelo, como de outros monumentos europeus, muitos deles construídos na plena era do amor de Deus, isto é, no apogeu da Idade Média, ou em épocas posteriores ou mesmo anteriores, quando o estilo românico já continha algo do sorriso cheio de afabilidade, de majestade e de uma discreta melancolia do gótico.

Mais ainda: a graça pode, inclusive, conceder ao observador um especial discernimento do espírito com que determinado monumento foi construído. Por exemplo, diante da praça do Paço Municipal de Siena, pode-se compreender o espírito dos senenses daquele tempo, e como a graça atuava em suas almas para engendrarem aquelas belezas.

O passado revive em locais visitados pela graça

Essas considerações me levam a crer que os lugares onde se passaram os grandes acontecimentos, os grandes atos de coragem, de virtude, de renúncia, de amplitude de horizonte sobrenatural, da história da Cristandade, tornam-se locais particularmente dignos de reverência. Tem-se a impressão de que as cenas neles ocorridas, como que ainda estão se passando ali. Portanto, aquele passado todo revive, e para quem visita aquele lugar, sente um prolongamento, uma continuidade misteriosa que o emociona.

Naturalmente, digo que é uma impressão, pois não corresponde à realidade do momento. Trata-se de outra realidade: onde fatos dessa magnitude se deram, foram acompanhados de graças também insignes. E assim como a graça visita a alma de quem lê, com oitocentos anos de diferença, um livro de São Bernardo de Claraval, ela visita a alma de quem, com cinco séculos de diferença, contempla um lugar de grande importância histórica.

Tem-se, pois, uma degustação da graça atinente àquela atmosfera do local que ela ungiu primeiro, e nos permite, hoje, como que entrar numa misteriosa intimidade com os fatos ali passados. Essa impressão me parece ser altamente benfazeja para o espírito, e enriquece o sentir, o saborear do homem que contempla esse ou aquele monumento.

A Catedral de São Marcos

Tomemos, por exemplo, a Catedral de São Marcos, em Veneza. Diante dela, discernimos o desejo de maravilhoso, de grandioso, inspirado pelo espírito de Fé com que, em louvor de São Marcos, ela foi construída. É uma das mil cintilações deslumbrantes do espírito católico que se manifesta ali, de maneira que, ao contemplar a catedral, alguém poderia exclamar: “Igreja Católica é isto. Ó Igreja Católica!”

Agora, dentro dessa catedral se passaram fatos históricos da maior importância, que determinaram rotações na história das nações ribeirinhas do Mar Adriático, na história de Veneza, da Itália e na história da Cristandade. Então, pelo auxílio da graça, ao analisarmos a Catedral de São Marcos, não temos apenas uma percepção do espírito de Fé que a edificou, mas temos também uma idéia dos mil episódios que ali ocorreram.

A última visita do Patriarca Sarto à sua Catedral

Um desses fatos, por exemplo, deu-se no começo deste século [XX].

O futuro Papa São Pio X era Cardeal e Patriarca de Veneza, quando faleceu o Pontífice Leão XIII e, como de costume, foi convocado o Conclave para eleger seu sucessor. Conta-se que o Patriarca Sarto comprou passagem de trem, de ida e volta para Roma, pois não considerava a hipótese de que pudesse ser o escolhido.

Seja como for, podemos imaginar a última visita do Patriarca à Catedral de São Marcos, pouco antes de tomar a gôndola que o levaria à estação ferroviária, de onde partiria para o conclave. Com sua figura esguia, revestido de trajes vermelhos de Cardeal, o cabelo já branco, e ele alvíssimo — uma pincelada branca no meio das púrpuras que o rodeavam —, seguido e acompanhado de seus secretários, de monsenhores, de prelados, atravessando o corredor e indo se ajoelhar no presbitério, para rezar.

Essa seria a cena de Veneza despedindo-se do mais recente dos Papas canonizados. Quem passeia sob as colunas do átrio de São Marcos, ou transpõe suas portas, pensando nesse acontecimento histórico, não tem a impressão de que São Pio X está ali, rezando junto ao altar? Não revive um pouco daquele episódio?

De fato ele não está. O que ainda se acha presente, como acima dissemos, é um eco daquela graça que iluminou e ungiu com sua ação o acontecimento histórico, e que torna especialmente sagrado, especialmente belo e digno de reverência, o lugar onde ele se passou. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 11/1/89)

 

Circuncisão

Sobre a Circuncisão há uma coisa que maravilha todos os teólogos e que nos deixa ver um pouco os hábitos de Deus, ou o que se poderia chamar a psicologia de Deus: o Sangue vertido na Circuncisão teria sido suficiente para resgatar todo o gênero humano.

Uma simples gota do Sangue preciosíssimo de Jesus Cristo tem valor infinito. Ora, Deus, por um desígnio misterioso e a respeito do qual os teólogos não chegam a ver o fundo, Ele não quis que a Redenção se desse nesse momento; Ele quis que o mérito desse Sangue como que ficasse suspenso, e que a Redenção só se operasse efetivamente depois do “dilúvio” de sangue vertido por Nosso Senhor Jesus Cristo no alto da Cruz.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 1/1/1966)

Mares do Brasil

Através da contemplação de um dos elementos mais belos da natureza, o mar, Dr. Plinio nos convida a saber analisar o que se passa interiormente em algo muito mais vasto que os panoramas marítimos.

 

Como há mar e mar! Não há nada mais parecido com o mar do que outro mar. Não há nada mais diferente de um mar do que outro mar.

Viajando, simplesmente, pelo litoral brasileiro, nota-se como os mares são diferentes. Por exemplo, o mar de Cabo Frio é diferente do mar de Santos; e o mar do Rio é diferente do mar de Guarujá. Mas como todos esses são diferentes do mar da Bahia ou do mar de Fortaleza! Todos são diferentes, e que efeitos diferentes causam!

José Menino e Guarujá

Para mim, é sempre um privilégio contemplar um panorama marítimo.

As minhas circunstâncias de vida não me dão tempo de olhar o mar, mas eu o contemplei muito e o carrego dentro da alma.

Penso nele e o tenho em mente. Analisei detidamente, em várias situações e em vários aspectos, o mar da minha — quase diria — nativa praia do José Menino, em Santos.

Quem foi esse José Menino? Não sei. No recôncavo, as ondas entram ordenadas e fazem dentro do seu curso, em ponto pequeno, uma “bataille rangée”, e também um pouco de “bataille mêllée”(1) sobre si mesmas para se divertirem. Elas espumam um pouco, vão para frente, para trás, quando chegam à praia ficam enormes e se estendem sobre a areia; depois começa o refluxo e elas voltam para recomeçar; tudo feito numa serenidade, numa dignidade encantadora.

Na praia de Guarujá, em que o mar é mais claro, tem-se a impressão de que a luz do Sol é mais reluzente também; a água é glauca, entre azul e verde, e aquilo já é dado para mar alto. As ondas sobem e espumam! São eloquentes, fazem oratórias! Agitam cabeças, meneiam braços, assinalam distâncias por rumores. A onda quebra longe, provoca aquele rumor, o qual vai se aproximando.

Copacabana, Cabo Frio e Fortaleza

E a sensação magnífica de quem está em alto mar em Copacabana, no Rio de Janeiro! Colosso! Vastidão de mar, em que cada gota é uma pedra preciosa, formam-se espumas com as ondas que se quebram. E nunca raivoso nem indignado! Sempre com aquele bom humor, próprio ao Rio de Janeiro. Mas dentro desse bom humor amável há uma variedade, uma força que dá um encanto próprio a cada movimento das águas.

Não posso me esquecer das águas de Fortaleza, no Ceará, muito parecidas com as de Cabo Frio, no Estado do Rio de Janeiro. Não sei se no litoral brasileiro há águas mais bonitas. São propriamente águas-marinhas colossais que se movem sem forma definida. Olhando o mar, vê-se o fundo. Claro! Magnífico! Tem-se a impressão de que é uma água-marinha em lente de aumento. Estupenda!

O mar interno de nossa alma e o mar externo

Quando vemos esses vários movimentos da natureza marítima, nós nos regalamos e entretemos. Mas uma coisa é o entusiasmo; outra é a mania, que pode dar em qualquer desequilíbrio, pequeno ou grande. Na posição adequada do espírito, a pessoa vê, gosta e em certo momento, como que empurrando as sensações com a mão, diz: “Sensações, calai-vos! Eu quero que vós não entreis. As que entraram não sairão, as que estão fora não entrarão. Sensações que entrastes, desfilai! Essa, aquela, aquela outra, como é cada uma? Que relações elas têm entre si?” E faz a grande pergunta: “O que significam? O que em mim vibra vendo aquilo? Qual é a verdade, a retidão, a virtude que consona com aquilo? Qual é, por outro lado, o defeito que tende a aborrecer-se com aquilo? Pelo desígnio de Deus, aquilo significa o que há de reto, de bom, de semelhante a Ele. Plinio, analisa-te! Em função de outro mar, que é o vai-e-vem de tua alma, tu conferirás mar com mar, julgarás o teu mar interno à vista do mar externo, e julgarás o mar externo à vista do teu mar interno.”  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/11/1980 e 2/2/1983)

 

1) Bataille rangée, batalha em fileiras; bataille mêllée, batalha sem qualquer ordenação.

Oração: “Mandai-me um raio de vossa luz”

Agradeço-Vos, ó Coração Sapiencial e Imaculado de Maria, por terdes me chamado para a excelsa condição de escravo vosso.

Entretanto, movido pelo desejo de levar até a sua mais alta plenitude essa condição, sinto os obstáculos que as infidelidades anteriores à minha vocação deixaram nesta minha alma tão misericordiosamente amada por Vós.

Entre esses está, sobretudo, o mau hábito de me voltar continuamente para assuntos banais e triviais, neles perdendo a atenção e o tempo concedidos por Vós para me enlevar com o que é nobre, digno e sublime, conforme a Vós, ó minha Mãe, que sois mais elevada do que os céus e mais sublime do que todos os coros de Anjos e Santos.

Sempre que suceder sentir-me atraído para as coisas banais e triviais, mandai-me um raio de vossa luz que reacenda em mim o desejo das coisas elevadas e celestes.

Ó Coração Sapiencial e Imaculado de Maria, fazei-me humilde, submisso, forte, nobre e  invencível, para que eu seja um perfeito escravo vosso, um enlevado e imbatível Apóstolo dos Últimos Tempos. Assim seja.

Plinio Corrêa de Oliveira (Oração composta em 1967)

MODELOS DE HONRA, SÍMBOLOS DA FÉ

Entre as diversas e esplêndidas características da arte medieval, que nunca me sacio de elogiar, há uma espécie de deformação que se reveste de uma seriedade, uma catadura, uma força e uma  presença heráldica verdadeiramente magníficas.

Ora, algo parecido podemos encontrar nos profetas do Aleijadinho.

Em geral, homens feios. Porém, nada existe de mais belo, no Brasil, do que as célebres esculturas desse artista mineiro. São a sua obra-prima, considerada por todos os críticos modernos como filhas de inspiração medieval, embora a Idade Média há tempos já tivesse passado. São peças góticas, estupendas, que poderiam figurar sem demérito ao lado das imagens seculares que ornam as galerias e os nichos das maravilhosas catedrais europeias.

Nesses personagens talhados em pedra-sabão, o Aleijadinho soube exprimir de maneira esplêndida o que deve ser um profeta. E a deformidade deles, como nas melhores produções medievais, não faz senão acentuar a expressão simbólica que o gênio artístico desejou imprimir na sua obra.

Caixas toráxicas largas, pescoços taurinos, pernas um tanto curtas, musculosas e atarracadas, os braços compridos. As cabeças grandes em relação ao corpo, as orelhas avantajadas. Os olhos, igualmente exagerados para o contorno das faces, denotam a magnitude da alma. Porque tê-los desproporcionais para o rosto, assim como a cabeça o é para o corpo, significa possuir tudo quanto é cognoscitivo maior do que o funcional.

Detalhe que ressalta ainda mais a eloquente representatividade das imagens. Por sua vez, o desenho das barbas joga um papel peculiar na composição dessas figuras bíblicas: algumas volumosas, cheias, felpudas; outras, artisticamente talhadas, emoldurando os queixos proeminentes e vigorosos. Estas e aquelas simbolizando de modo extraordinário a força moral desses homens que atravessaram toda sorte de tormentas, de sofrimentos.

E todos aparentam uma saúde de ferro, física e, sobretudo, espiritual. Uma sanidade psíquica absoluta, objetividade completa, pensamento pão, pão, queijo, queijo; rudes e francos, paladinos da verdade sem simplificações nem relativismos. Homens dispostos a dizerem tudo a que foram destinados, ainda que o cumprimento de sua missão implique na luta e no holocausto da própria vida.

Guerreiros dotados de extrema coragem, imbuídos do espírito profético no que este tem de mais elevado. Gestos altamente expressivos, porque tocados por um vento também profético. Na verdade, nunca percebi vento animar tanto a pedra como nos profetas do Aleijadinho. É algo único e fantástico.

Se os olhos são grandes, fitam entretanto um ponto indefinido no horizonte, como o homem que traz a cabeça povoada de subidas cogitações. Contemplativos, acham-se na atitude de quem tirará  dessas reflexões uma invectiva.

Descansam da descompostura que acabaram de passar, e se preparam para a próxima. Instrumentos das recriminações divinas, polêmicos, determinados, movidos por uma superior certeza, nobres, sérios, sublimes. Não há um deles que não seja, também, modelo de honra. Cada qual, a seu tempo, foi um enviado de Deus, com visões místicas, com “flashes” próprios, com todo o direito de transmitir às gentes as mensagens recebidas do Senhor dos senhores. Falavam, proclamavam, e suas vozes reboavam como o som de bronzes tangidos gravemente. Nada neles procura se desviar para outra coisa que não seja a missão de divulgar a palavra divina. Nenhuma de suas virtudes é fingida, nenhuma dissipação em nenhum sentido. Vivem somente para o que foram criados. A honra do profeta é essa retidão integral, essa dignidade excelente, reconhecida pelos povos. Ele incute respeito.

Numa palavra, não conheço na iconografia católica figuras que exprimam tanta fé como esses profetas de Aleijadinho, que rugem um rugido eterno de pedra, hieráticos, imóveis, impassíveis. Figuras postas contra o firmamento, como se raspassem o Céu e tocassem quase em Deus, símbolos de um poder descido do alto.

Daí que não se poderia imaginar lugar mais propício para estarem. Encontram-se ali com uma tal ênfase, constituindo uma espécie de carrilhão em que cada um toca seu sino peculiar, e fazendo ouvir um conjunto que é só deles e de mais ninguém na História, que não se os concebe instalados em outro local.

Eles não ficariam bem dentro de uma igreja, de um templo, por mais colossal que fossem. Não. Dir-se-ia que a abóbada celeste é o único templo proporcional a eles, e tudo atrai para vê-los numa perspectiva do céu, para serem admirados em função das nuvens. Existem para o ar livre, para aquele descampado, ombreando as elegantes palmeiras imperiais que lhes servem de moldura.

Sem dúvida, uma obra-prima de encher a alma! Resta a pergunta: como, na Minas do século XVIII, quando a arte gótica estava mais no seu fundo e na sua desconsideração no mundo civilizado, surge um gênio como o Aleijadinho, apoiado por uma certa equipe de homens de considerável senso artístico, e revive uma Idade Média que, a meu ver, foi a época áurea da arte?

Como explicar que naquele Brasil das colônias se deu essa restauração, antecipando o próprio “renouveau” da Idade Média que aconteceria na Europa do século XIX? Aquela corrente artística então submersa, nas solidões brasílicas recobra vida, pelo indiscutível talento de um aleijado.

E nos fundos do sertão mineiro, as maravilhas medievais renascem, alcançando uma expansão e um florescimento com raro esplendor. Como?

Penso que só há uma resposta possível: foi por uma ação da graça, uma disposição misteriosa da Providência, desejosa, talvez, de fazer luzir em outros panoramas outras tantas belezas artísticas inspiradas pela Igreja — filhas daquelas que levaram a Civilização Cristã aos seus mais rutilantes dias de glória.

 

Plinio Corrêa de Oliveira