Os novíssimos do homem – II

Continuando suas considerações acerca dos novíssimos do homem, Dr. Plinio ressalta os dois caminhos diante dos quais todo homem deve fazer a sua escolha: os horrores das penas imputadas aos réprobos, ou as maravilhas contempladas pelas almas eleitas.

 

No Juízo Final, quando os réprobos forem com seus corpos para o inferno, estes não estarão sujeitos à lei da gravidade. E aquelas chamas farão as pessoas rolarem, de um jeito e de outro, no meio das imprecações, das maldições e dos ódios recíprocos, porque eles se odeiam, se atracam e se maltratam entre si.

É a cidade eterna do ódio e do desespero. Não haverá remédio para nada. Nunca, nunca, nunca! E os condenados ali ficarão eternamente, eternamente, eternamente!

Isso causa terror, porém há mais.

É o próprio Deus que determina os tormentos

Eles terão no inferno — ao menos certos santos viram assim — como que vermes horríveis, corroendo-os e enchendo-os como que de doenças, as quais não os matam, não os consomem, mas os atormentam ainda mais. No meio dessa dor tremenda, os precitos sabem que Deus é o Autor de tudo isto, porque Ele é a causa primeira de todas as coisas. Se Deus é o Criador do Céu e da Terra, é também o Criador do inferno. Não houve outro ser que tenha criado o inferno. Ele é o motor primeiro de todas as coisas. Todas as coisas se movem, em última análise, pelo movimento comunicado por Deus. Portanto, Deus — talvez através dos anjos bons — está animando continuamente todos os tormentos do inferno. 

São João Bosco, narrando os célebres sonhos dele — que, no fundo, eram revelações privadas —, conta que Deus lhe deu ordem para descer e ver o inferno; ele foi e, chegando próximo do inferno, deparou-se com uma muralha. Então um anjo disse-lhe que pusesse a mão na muralha. O santo sentiu que a muralha estava quentíssima — era a muralha mais externa, portanto a mais fresca do inferno —, ficou com medo e não quis colocar sua mão.  Mas o anjo ordenou que o fizesse e ele apenas encostou a mão na muralha. Consequência: São João Bosco passou vários dias com a mão queimada e inutilizada…

Houve santos que receberam a ordem de Deus de verem o lugar que lhes estava destinado no inferno, caso não correspondessem à graça. A grande Santa Teresa de Jesus viu o local onde ela ficaria como uma prancha dobrada em dois, com pregos atravessando seu corpo; entraria numa espécie de forno, e dali somente seria tirada para padecer outros tormentos.

Como é verdadeira a expressão “Medita nos teus novíssimos e não pecarás eternamente”

Todos os sentidos do homem sofrem no inferno. Os cheiros são nauseabundos. Os espetáculos, hediondos. Os ruídos, o que pode haver de mais cacofônico. A música moderna, por mais medonha que seja, não dá senão uma ideia do que é o eterno ranger de dentes do inferno. As coisas mais pútridas enchem a boca. O tacto é desolado pelo fogo. Quantos outros horrores lá existem! E se pecarmos mortalmente, de um momento para outro, poderemos ir para o inferno.

Como é bom pensar nisso na hora da tentação!

Se todas as pessoas fizessem de manhã, logo após se levantarem, uma meditação rápida de um ponto a respeito do inferno, e durante o dia se lembrassem, de vez em quando, desse ponto, seria ótimo. Há despertadores que soam de tantas em tantas horas; quando ele tocasse, a pessoa se recordaria: inferno!

Li as revelações de Sóror Mariana de Jesus Torres — não está canonizada, mas morreu em odor de santidade —, à qual apareceu Nossa Senhora do Bom Sucesso, em Quito.

Ela aceitou ficar espiritualmente no inferno durante cinco anos, padecendo, para pagar os pecados e evitar que se perdesse uma freira, a qual havia se revoltado contra ela, que era a superiora. O que ela sofreu durante esse tempo, não há palavras que possam exprimi-lo! Nesse sentido, o inferno de vez em quando dá uma lambida e com a ponta da língua pega os que estão na Terra…

Considerem os martírios mais cruéis promovidos pelos imperadores romanos.  Por exemplo, São Lourenço que foi assado vivo e sentia, entre  outras coisas, a gordura de seus braços suspensos cair sobre seu peito em chamas. Causa horror! Ninguém aguentaria esses tormentos se não fosse uma graça especial de Deus. Isso não é nada em comparação com o inferno!

Não compensa correr o risco de esperar a misericórdia final

E a todo momento estamos a um fio disso.

Alguém poderia dizer: “Não é bem assim! Há tanta gente que peca e não vai para o inferno. Deus, na sua infinita misericórdia, leva a maior parte dos homens para o Céu. À última hora, vem uma graça e a pessoa se arrepende.”

Conta-se a história de um santo que viu um pecador cair de uma ponte, talvez tenha cometido suicídio. Presumo que era uma ponte alta, para a história ser verossímil. Então uma pessoa perguntou-lhe se o pecador tinha ido para o inferno. O santo respondeu: “Da ponte ao rio há algum tempo. Nesse tempo, é possível que a graça de Deus interviesse.” É verdade.

Mas São Luís Grignion de Montfort dá um princípio muito verdadeiro: estes são os casos excepcionais. Normalmente a alma, no estado em que vive, ela morre. E essas graças de última hora existem e são maravilhas da misericórdia de Deus; porém, são raras. Queremos correr o risco?

Se, fazendo algo, pudéssemos ficar com câncer, não quereríamos correr o risco. O inferno é muito pior do que isso!

A visão de Deus face a face

Viremos agora a página de nossas cogitações, e passemos para um campo completamente diferente: o Céu. É o contrário.

No Céu, a alma do eleito vê Deus face a face. Daqui onde estou sentado, vejo esses estandartes suspensos ao teto e um escudo com o leão rompante; conheço-os, porque estou vendo-os diretamente.  Aqui na Terra, não podemos ver a Deus, a não ser que, por um fenômeno místico reservado a quão poucos dos seus eleitos, Ele nos aparecesse — isso nunca me aconteceu.  Ele sabe a quem aparece! Não vemos Nosso Senhor Jesus Cristo, que recebemos na Eucaristia.

Ver Deus face a face é a maior alegria e o maior contentamento que um homem possa ter. Literalmente, inunda o homem de um gáudio, um gosto, de que não conseguimos fazer ideia, porque excede a tudo quanto seja possível imaginar.

Podemos usar umas comparaçõezinhas, de certa utilidade para que nossos sentidos, nossa fantasia, nos ajudem a imaginar o Céu, mas sabemos desde logo que não há nenhuma comparação possível.

Imaginemos que uma pessoa fosse colocada num astro — quem sabe se isso existe! —, o qual fosse o ponto por onde ela pudesse ver o universo com maior beleza. E ali pudesse contemplar um fulgor da pulcritude do universo, pela ordenação, pelo brilho, pela graça, força, grandeza, sabedoria que o ordena; ela ficaria pasma. Suponhamos ainda que esse astro fosse ele mesmo lindíssimo, todo feito de cristal, e de cristal transparente, através do qual passariam os raios de luz de todos os astros luminosos, de maneira que, de vez em quando, olhando para dentro dele, veria em ponto pequeno o jogo de luz que contempla em volta.

Inundados por uma felicidade que não se pode imaginar

Para recorrer a uma fantasmagoria de Platão, imaginemos que esse astro, girando, produzisse uma música inebriante. E dele desprendesse um pó com um perfume magnífico, e proporcionasse um sabor extraordinário e infatigável. Suponhamos também que a pessoa pudesse sentar-se numa elevação desse astro, com uma comodidade tal como nenhum assento na Terra lhe pudesse fornecer.

Durante algum tempo, ela ficaria encantadíssima, mas depois quereria uma criatura humana para conversar. Temos razões para estarmos fartos um do outro; porém, colocados num astro, porque nossa natureza é sociável, desejaríamos um ser inteligente a fim de mantermos conversação.

Digamos que Deus misericordioso não lhe enviasse um homem para aborrecê-la, e sim um anjo que, num agitar de asas encantador, lhe aparecesse em forma humana, magnífico. A pessoa se poria em oração diante do anjo, o qual sentando-se perto dela lhe dissesse: “Vamos conversar”.

Sabemos que a natureza angélica é tal que o menor dos anjos é mais inteligente, sábio, poderoso, majestoso, afável, íntimo e grandioso do que o mais perfeito dentre os homens.

A pessoa começa a conversar maravilhada e, de vez em quando, o anjo canta louvores a Deus para ela ouvir. Dá jornais falados do Céu, pois ele está também no Paraíso e narra o que vê: “Nesta hora a gloriosa falange dos serafins desfila diante de Nossa Senhora, aclamando-A. Está acontecendo isso, aquilo etc.” E ela percebe no anjo o gáudio de tudo isso.

Diante dessa hipótese, pensamos: “Poderíamos passar uma eternidade conversando com esse anjo, pois sempre haveria temas para se tratar com ele”.

Ilusão!

Ao cabo de mil anos, nós o teríamos conhecido e lhe perguntaríamos com muito jeito: “Não tendes um companheiro?” E com jeitinho brasileiro: “Como é vosso superior?”

Digamos que esse anjo, com muita bondade, nos obtivesse a vinda do superior dele. Depois de mais mil anos, o fato se repetiria. Quando toda a fileira dos anjos fosse esgotada, no final diríamos: “Como o Céu é enorme, entretanto eu vi tudo e ainda não me saciei!”

Mas isso não sucede com Deus, que é absoluto, perfeito, eterno. Somente Ele nos sacia inteira e perfeitamente! E quando o beneplácito d’Ele desce sobre nós e nos chama pelo nosso nome, Plinio, Pedro, Antônio, sentimos o nexo e semelhança com Ele, bem como sua glória. O Criador nos glorifica, acaricia, ama, sem um minuto de interrupção, nem de diminuição de intensidade.

Eternamente afagado por Deus

Sendo infinito e absoluto, Deus é totalmente insondável para nós. E poderíamos passar — se se pudesse dizer no plural a palavra eternidade, pois ela é uma só — uma eternidade de eternidades olhando para Ele, que sempre seria para nós inteiramente novo.

Não é só!

Deus se mostraria a nós e nos faria saber o que a Fé nos ensina: se olharmos para os outros bem-aventurados, veremos algumas coisas que Ele não nos revela. Contemplando Nosso Senhor Jesus Cristo, teremos razões de encantamento inexcedíveis; Ele é a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, hipostaticamente unida à natureza humana. Em Nossa Senhora, teremos o espelho perfeito de Deus. E depois os nove coros de anjos; cada anjo, a seu modo, nos diz mais alguma coisa de Deus; eles estão continuamente se dando os jornais falados, ou melhor, cantados, de Deus. Isso para o elemento principal de nosso ser, que é a alma.

Mas, haverá também, depois da ressurreição, maravilhas para o nosso corpo.

O auge do deleite para todos os sentidos

O grande e incomparável Cornélio ensina que, além do Céu onde se vê Deus, há um local físico no qual ficarão os corpos dos bem-aventurados unidos às suas almas. Enquanto a alma vê a Deus face a face, o corpo — o homem ressurrecto está totalmente vivo, sem doenças, sem misérias, nem sujeito à morte —, que não produz mais podridão como sucede nesta Terra, se encontra num lugar de felicidade perfeita. E para adestrar e dar alegria aos seus sentidos — uma vez que os sentidos dos condenados têm tormentos, é justo que os dos bem-aventurados tenham alegria —, neste Céu empíreo há todo um mundo material que enche o homem de encantos mil, muito superiores ao Paraíso Terrestre; é o que se chama Paraíso Celeste.

O Paraíso Terrestre é tão lindo! O Paraíso Celeste é incomparavelmente mais belo! Os sentidos do homem terão uma festa constante e perfeita, dentro da temperança mais exemplar, da satisfação mais inteira; o auge da beleza para os olhos, da harmonia para os ouvidos, da delicadeza para o tacto, o pináculo de tudo que se possa imaginar existirá inebriando o corpo, ao mesmo tempo em que o homem contempla a Deus face a face.

Mais ainda, Cornélio cita autores os quais dizem que os anjos se comunicarão de maneira a serem percebidos pelos sentidos do homem. Então formarão jogos de cores, de nuvens etc., que são mensagens deles, porque o olho humano não pode ver o puro espírito. E acrescenta ele que, assim como o músico comunica seu pensamento pelo som, os anjos, por essas figuras, comunicarão seu ser, seu amor, e estaremos continuamente inebriados de toda espécie de alegria possível.

Então, meus caros, não haverá mais quem nos diga aquela frase “Fugit irreparabile tempus”(1); pelo contrário, tudo cantará uma palavra maviosa: Eternidade!

Quando formos convidados para um sacrifício, um ato de virtude, devemos pensar o que eles nos vão conquistar na eternidade.

Li um livro do século XIX, que tinha “imprimatur” — não sei o que a sã Teologia diz hoje a respeito disso, e eu me conformo com a sã Teologia —, escrito pelo Abbé de Broglie, francês, que sustentava que o homem no Paraíso Celeste tem a circulação sanguínea, respiração e se alimenta de vinhos e comidas deliciosas, que o regalam sem depois se transformar em podridão, porque o corpo do bem-aventurado está na glória e não tem misérias. Podemos, assim, imaginar o auge das delícias que um homem tem no Céu empíreo.  v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/7/1983)

 

1) O tempo foge irreparavelmente. Com frequência Dr. Plinio terminava suas exposições para os mais jovens pronunciando essa frase.

 

A gota d’água no cálice de vinho

Ainda sobre o papel do nosso sofrimento (que Dr. Plinio aborda neste número com base na vida dos pastorinhos de Fátima), mais uma consideração: ele nada seria, se não se associasse à Paixão redentora de Jesus Cristo, que o vivifica e lhe confere méritos sobrenaturais abundantíssimos.

Embora os merecimentos da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo sejam superabundantes, dispôs a vontade divina que deles se aproveitassem os homens, em muitas circunstâncias, unindo seus próprios sacrifícios aos do nosso Redentor. Assim nos ensina a Santa Igreja.

Donde, para conseguir tocar e converter determinada alma, por exemplo, seriam suficientes os méritos infinitos alcançados por Jesus, sem os quais nada obteríamos. Porém, é do superior desejo de Deus que essa conversão se efetue mediante o concurso dos nossos sofrimentos, associados aos de Nosso Senhor.

E se almejamos, portanto, uma imensa transformação moral para a sociedade contemporânea, ou um “renouveau” da vida da Igreja, cumpre que soframos todo o necessário, nos consumindo nesse sofrimento como uma tocha ardente. Tais são os desígnios de nosso divino Salvador, para que, de fato, a dolorosíssima Paixão d’Ele se verificasse útil a essa alma, àquele grupo social, ou mesmo àquele ciclo de civilização.

A essa necessidade de unir nossas dores às de Jesus, costuma-se aplicar um dos muitos e lindos simbolismos da liturgia eclesiástica. Trata-se da gota d’água que o sacerdote verte no cálice com vinho, durante o Ofertório, a qual representaria o sofrimento humano depositado no oceano do sofrimento divino, para, juntos, serem imolados ao Padre Eterno.

Quiçá esse simbolismo não tenha fundamento na história litúrgica, porém exprime ele adequadamente um pensamento piedoso suscitado por esse ritual da celebração eucarística.

E sempre que observo o padre fazer essa mistura da água com o vinho, lembro-me dessa ideia muito formativa: é a gota do nosso sofrimento no mar das dores de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Por outro lado, reveste-se de extrema beleza o fato de essa gota d´água, uma vez dissolvida no vinho, ser também transubstanciada. Quer dizer, o que não era matéria para consagração, acaba se tornando uma só coisa com a espécie do vinho e se transubstancia no Sangue preciosíssimo de Cristo. Isto manifesta bem o valor descomunal  de nossos méritos, de si tão minguados quando unidos aos méritos infinitamente valiosos de Nosso Senhor.

O sofrimento humano completa o desenho da Criação

Poder-se-ia, agora, aprofundar a razão de ser desse vínculo entre o nosso sacrifício e o de Jesus. Considerando os desígnios divinos, chegaríamos à conclusão de que, tendo Deus criado seres inteligentes e dotados de vontade, intencionalmente deixou que uma parte da beleza da criação fosse completada por esses seres. Daí uma série de coisas lindas da natureza surgirem graças ao engenho humano. Por exemplo, o casulo do bicho-da-seda é uma obra saída das mãos do Onipotente, com a manifesta intenção de que o homem o utilizasse para fabricar o rico tecido com que orna mobílias, decora ambientes ou confecciona magníficas peças de vestuário.

De si feios, o verme e o casulo oferecem ao talento dos artífices a matéria para realizarem maravilhas. E assim, mil outros elementos se encontram na criação, tornando-a semelhante a esses desenhos pontilha pontilhados no seu contorno geral, feitos para  serem completados e coloridos pelas crianças.

O homem, entendendo a criação, amando-a e aperfeiçoando-a, recebe de Deus a honra incomparável de ser elevado à dignidade de continuador d’Ele no seu plano para o mundo. Ora, tendo acontecido que Deus, além de Criador, se fez Redentor, dispondo que Jesus Cristo padecesse e morresse na Cruz para nos salvar, era natural que o homem também fosse associado a essa obra-prima da criação, que é a Redenção. E que ele, portanto, tivesse um sofrimento complementar a oferecer ao Padre Eterno, unido ao sacrifício do Verbo Encarnado.

Grandeza das almas que sofrem pelas outras

Temos, então, as mais diversas e tocantes formas de padecimento do homem nesta terra de exílio. É belo o sofrimento do apóstolo, com seu caráter expiatório ou imprecatório, como um ato de amor e de holocausto desinteressado, tantas vezes misturado a lutas e dificuldades de toda ordem. É belo, quando ele precisa levar a bom termo sua faina apostólica num determinado meio, e surgem as incompreensões, as calúnias, os motejos, precipitando-se sobre o apóstolo. Ele enfrenta todos os obstáculos, parecendo abandonado por Deus. Por quê?

Porque é preciso que ele sofra, assim como é necessário que ele atue e reze. Sem esse sacrifício do apóstolo, Nosso Senhor poderia recusar a aplicação dos méritos da Paixão d’Ele para aquele ambiente, para aquele meio, para aquela alma.

Belo é, igualmente, o padecer daqueles dos quais a graça divina se serve para atuar, pela primeira vez, junto a um determinado grupo social. Esses instrumentos suscitados por Deus são como que fundadores, e devem ter um sofrimento mais intenso do que os outros. De fato, o homem que inicia uma obra possui a glória de tê-la começado. Mas essa glória traz para ele o peso tremendo de sofrer pela obra inteira. E se esta for chamada a perdurar até o fim do mundo, produzindo frutos que o tornarão ainda mais engrandecido, é natural que ele irrigue com suas dores a existência
inteira dessa fundação.

Para suprir a debilidade dos homens no oferecimento de seu sacrifício, existem na Igreja as almas que têm a vocação de sofrer pelas outras. Diante dessas pessoas desejosas e capazes de padecer pelo próximo, teria vontade de me ajoelhar e lhes dizer — “servatis servandis” — como São João Batista a Nosso Senhor: “Não sou digno de desatar as correias de seu sapato”. De tal maneira me empolga e entusiasma essa forma de apostolado, merecedora de meu respeito e profunda veneração.

Nada é mais nobre e mais bonito, nada revela maior integridade de alma e maior sinceridade em todos os propósitos, nada é mais eficiente em seu gênero próprio, do que a alma que aceita sofrer pelos outros. Barreiras enormes se abatem, preconceitos tremendos caem, dificuldades fabulosas se resolvem quando uma determinada alma decide ser conseqüente e abraçar a dor até onde o permita a vontade de Nosso Senhor.

Não tenho palavras para exprimir a gratidão emocionada, o sentimento de culpa e de vergonha que me toma diante de uma alma que realmente seja capaz de levar essa vocação até o fim. “De culpa e de vergonha”, digo, porque sempre me fica a impressão de que, na raiz do êxito admirável de nosso apostolado, existem almas que sofreram e talvez já morreram — ou ainda estejam vivas — padecendo para nos alcançar tudo o que a nós foi concedido por Nossa Senhora.

Se me fosse dada a felicidade de conhecer uma alma assim, sem dúvida me ajoelharia e lhe beijaria os pés. Porque, abaixo de Deus, eu estaria diante da causa verdadeira da  nossa grandeza, da razão primeira de nossos sucessos, da minha perseverança e do que possa haver de virtude em mim. Com efeito, se alguém não tivesse tomado a cruz às costas e subido ao alto do Calvário, imolando se por nós, não creio que eu pudesse realizar a obra que me foi confiada.

Portanto, essa alma sofredora é o sustentáculo de minha fraqueza, o remédio para as minhas lacunas, enfim, é o fator preponderante para que nossas atividades progridam e frutifiquem.

Nada se faz sem os “micro- Cristos”

Claro está que as almas mais especialmente chamadas por Nosso Senhor para se associar ao sofrimento d’Ele nos entusiasmam, pois se entregam a algo que poucos têm coragem de abraçar.

Muitos estão prontos para agir, alguns para rezar. Onde estão os dispostos a sofrer? Onde encontraremos alguém que deseje se sacrificar, com este sentimento: “Eu sofro, peço à Nossa Senhora que conforte a minha fraqueza, mas aceito e dou esse passo”?

É natural que em nossa obra a Providência suscitasse almas dispostas a sofrer e a fazer do padecimento seu  primeiro apostolado. Essas almas seriam as principais entre nós, incumbidas da missão mais difícil, mais necessária, mais urgente.

Para se compreender o mérito dessa vocação particular, devemos tomar em consideração que o sofrimento não é só se flagelar ou se martirizar. Não. Antes de tudo, é aceitar bem as diversas provações que Deus permite em nossa existência diária. Devemos recebê-las de frente e dizer: “É verdade, eu sofro. Posso até agir para eliminar essa dor. Mas, enquanto não for evitada, acolho-a de bom grado, porque é algo inapreciável para a minha alma e para a dos meus semelhantes.

É preciso que alguém se imole por eles”. Penso não existir expressão mais vil do que esta: “Vê lá se eu sou um Cristo para aguentar tal coisa!”. Embora seja de uma sordície inominável ela tem um pressuposto curioso: existem micro-Cristos, digamos, que  aqui, lá e acolá se deixam crucificar ara que as realizações humanas cheguem a bom termo. E sem esses micro-Cristos, nada se faz. Eles são a honra, a glória, a alegria, a vitória dos ambientes pelos quais sofreram. É deveras inapreciável essa condição de sofredores dentro da Igreja.

Almas que devemos amar entranhadamente, porque foram corajosas o bastante para oferecerem a Nosso Senhor sua própria imolação: “Quero unir meu sofrimento ao vosso. Se tenho de ser como uma azeitona a ser espremida para dela tirardes o óleo, ou como a uva da qual extraíreis o vinho, ou como o grão de trigo triturado para dar a hóstia, é este o meu desejo!”

Tenho a impressão de que eu diria com o Salmo: “meus ossos humilhados exultam”, se visse em nosso movimento almas chamadas por Nossa Senhora para o sofrimento e a dor.

Holocausto digno de admiração e gratidão inteiras

Em um de seus famosos escritos, Huysmans nos conta que há em Lourdes um Carmelo cujas freiras têm por missão sofrer e expiar para conseguir conversões e curas no Santuário. Porém, no momento daquelas lindas “procissões das velas”, daquelas curas miraculosas, daquelas grandes transformações morais, daquela glorificação de Nossa Senhora em meio à felicidade do povo, ninguém está se lembrando do convento das carmelitas, onde existem religiosas doentes, morrendo, sofrendo aridezes interiores e desolações tremendas, para que os outros estejam na alegria ou sendo objeto da benevolência divina. Não importa: aos olhos de Nossa Senhora, a fonte de toda essa alegria está naquele Carmelo.

O mais bonito é que as freiras assumem o compromisso de não pedir a própria cura. Pergunto: haverá na Terra algo mais digno de admiração do que essa forma de holocausto? A esse respeito, vale recordar um lindo fato da vida de Santa Teresinha do Menino Jesus. Ela desejava ardentemente ser tudo na Igreja: missionário, padre, apóstolo leigo… E essa vontade intensa chegava a constituir para ela um verdadeiro suplício. Mas, a partir do instante em que entendeu o valor do sofrimento, através do qual poderia obter graças para as almas que cumpriam essas vocações, e, desse modo, atender o seu anelo de fazer tudo em todos os lugares ao mesmo tempo — ela então encontrou ânimo para sofrer e achou paz para a sua alma.

É compreensível que, diante de uma pessoa assim, nos emocionemos até o extremo que nos seja possível. E que a veneremos, respeitemos e lhe externemos nossa gratidão, em toda a medida que nos seja dado agradecer.

 

Jansenismo e consagração a Nossa Senhora

Dirigindo-se a um grupo de jovens que acabavam de fazer a consagração solene a Nossa Senhora, segundo o método de São Luís Grignion de Montfort, Dr. Plinio lhes explicou o contexto no qual  esse santo explicitou e desenvolveu suas doutrinas.

Na França do tempo de São Luís Maria Grignion de Montfort, disseminava-se nos meios católicos uma doutrina denominada de galicanismo. Opunha-se à influência de Roma sobre a França, daí o  nome de galicanismo, alusão ao antigo nome do país: Gália. Queria, por exemplo, a independência do clero francês em relação à Santa Sé.

A esse erro somava-se outro, cujo fautor viveu no começo do século XVII: era um bispo holandês chamado Jansênio. Ele fez uma apresentação da doutrina católica que continha, disfarçadamente, muitos erros. Esses erros começaram a circular, até constituir todo um movimento religioso que atingiu a França: o jansenismo, que era uma espécie de calvinismo mitigado.

Os jansenistas queriam, por exemplo, a diminuição do culto a Nossa Senhora e ao Santíssimo Sacramento. Se tomarmos todos os pontos defendidos pelos protestantes contra os católicos ao longo do século XVI, veremos que Jansênio retomou as teses de Calvino.

Mas Jansênio apresentava essas teses de modo disfarçado. Ele não negava o culto ao Santíssimo Sacramento, mas o subestimava. Ele não negava o culto a Nossa Senhora, mas o subestimava. E  subestimar significa dar a esses cultos uma importância muito inferior ao lugar que devem ter na fidelidade católica.

São Luís Grignion de Montfort, um devoto muito especial da Santíssima Virgem, iniciou discussões com os jansenistas e tomou a resolução de desenvolver e explicitar — com especial insistência — a doutrina católica sobre Nossa Senhora, nos pontos mais característicos, que os calvinistas mais negavam.

Doutrinas e profecias de São Luís Grignion de Montfort

À sua obra de teologia marial, que é também uma obra de apologética — quer dizer, de discussão para converter os hereges —, São Luís Grignion acrescentou mais um caráter, que é a bem dizer profético: tomou a doutrina católica tal como era em seu tempo e acrescentou conclusões, tiradas logicamente dos princípios mariais então professados.

Nessa época a Imaculada Conceição ainda não era um dogma. Foi definida como tal pelo Papa Pio IX no século XIX. A infalibilidade papal, que tem ligações com o dogma da Imaculada Conceição, foi igualmente definida por Pio IX. Mas São Luís Grignion desenvolveu, já no seu tempo, quase todos esses pontos, como conseqüências deduzidas da doutrina católica. A partir dessas  concepções doutrinárias, fez uma previsão. Descreveu as condições morais de sua época, mergulhada numa grande crise, comparada por ele com a que antecedeu o dilúvio.

E descreveu as conseqüências dessa crise. Por fim, ele profetizou o “Reino de Maria” na terra.

Em resumo, sua obra é, primeiramente, de luta contra a heresia — o protestantismo disfarçado, chamado jansenismo —, e, em segundo lugar, de glorificação da Santíssima Virgem, o que constituía um aspecto dessa luta. Essa glorificação de Nossa Senhora  levou-o a tirar conseqüências de Mariologia que foram confirmadas depois pela Igreja. Em terceiro lugar, fez profecias sobre o futuro da França e da Europa, em conseqüência dos erros morais que existiam no tempo  dele, prevendo catástrofes que seriam um pouco a Revolução Francesa, um pouco também a Revolução Comunista e a situação na qual nos encontramos.

Além disso, previu o “Reino de Maria”: uma época em que a devoção à Santíssima Virgem seria levada a seu apogeu. Época também em que a santidade entre os católicos seria levada muito longe, deveria crescer muito. Dizia, por exemplo, que os santos das épocas anteriores seriam, em relação aos do “Reino de Maria”, como gramas comparadas a carvalhos.

O “Tratado”

Esse conjunto de doutrinas e profecias é o “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem”. São Luís acrescenta a tudo isso uma forma de devoção especial: a escravidão de amor à  Santíssima Virgem.

Do ponto de vista marial, ele faz a defesa dos privilégios da Santíssima Virgem, citando autores antigos, etc. Do ponto de vista apologético, não ataca diretamente Calvino. Mas quem lê as obras de Calvino e as de São Luís Grignion, vê que o “Tratado” é a contraposição de Calvino e, portanto, de Jansênio, um calvinista disfarçado.

Como Jansênio não se declarava inimigo da Igreja a não ser nas entrelinhas, São Luís Maria Grignion de Montfort deu a resposta nas entrelinhas também, algo inteiramente explicável do ponto de vista tático.

Garantia de ortodoxia Uma pergunta cabe aqui: qual é a ortodoxia de tudo isso? Qual a garantia de que essas doutrinas e profecias estão de acordo com a doutrina católica?

A resposta é esta: São Luís Grignion de Montfort foi canonizado. E antes disso, todos os seus escritos foram analisados por teólogos especialistas e depois passaram por um exame do Papa. Na qualidade de Chefe da Igreja, de sucessor dos Apóstolos, de pessoa que possui o carisma da infalibilidade, o Papa declarou que ele foi santo. Assim são feitas as canonizações.

Logo, todas as obras de São Luís Grignion são em princípio ortodoxas.  Quer dizer que nelas não deve ter sido encontrado nenhum erro teológico ou moral; são inteiramente conformes à doutrina da Igreja.

Isto não significa que tudo o que se encontra nas obras dele seja dogmático, mas simplesmente que nada foi encontrado aí que seja contrário à doutrina católica, tal qual ela é definida nesse momento. Mas é possível que algumas definições posteriores a ele não contenham algo que ele disse.

Sobretudo suas profecias sobre o futuro não têm a garantia da Igreja, porque esta nunca autentica revelações particulares. E São Luís Grignion não apresenta suas profecias como uma revelação, mas como conseqüências lógicas da doutrina por ele sustentada, e como conseqüências históricas  previsíveis do quadro geral da França do seu tempo.

E a Igreja apenas certifica que os escritos e as palavras dele são inteiramente conformes ao que Ela já ensinou. Mas isso é totalmente tranquilizador. Devemos, pois, usar nosso raciocínio para verificar a probabilidade de suas previsões. Eis o que se pode dizer a respeito da ortodoxia.

(Continua)

Entusiasmo e lógica

Segundo a escola de pensamento de Dr. Plinio, deve haver  junção entre teoria e exemplos. Nesta conferência, ele trata de um tema doutrinário, mas o explana apresentando diversos exemplos, que tornam a exposição leve, clara e atraente. O entusiasmo e a lógica convivem harmoniosamente na alma em ordem,  o que se obtém pela graça de Deus, sem a qual o homem  não consegue perseverar na prática do bem.

O que é propriamente entusiasmo? É o gosto por uma pessoa, um lugar, uma coisa, uma situação, uma atividade, levado a um tal grau que enche o homem a ponto de deixá-lo transbordante.

A cerveja que transborda numa caneca de porcelana

Eis uma imagem que pode dar a ideia do que é entusiasmo: numa confeitaria ou restaurante, um garçom serve numa caneca de porcelana — própria para chope — uma cerveja espumosa. E depois de posta a cerveja até o bordo da caneca, a espuma transborda de um modo suave, digno e forma um como que tecido bonito em volta; e é agradável tomar a cerveja quando ela está nesta situação.

Assim é o entusiasmo da alma humana quando conhece algo; não é logo no primeiro momento, mas depois aquilo vai produzindo em nós um certo transbordamento. E ficamos tão encantados que precisamos falar com os outros: “Olha isto, aquilo, que bonito, que agradável, etc.!” Isto é o entusiasmo na nossa alma.

Há vários modos de ser do entusiasmo: do afeto, da admiração, o provocado por uma pessoa e também o causado por uma situação: ver, por exemplo, num vitral dois cavaleiros combatendo, armados inteiramente dos pés à cabeça.

O mar, uma carga de cavalaria, aviões de combate

O mar me entusiasma sistematicamente. Qualquer trecho de mar que eu vejo, dos menos poéticos e menos capazes de provocar entusiasmo, a mim me interessa profundamente; olho o mar com entusiasmo, e é um entusiasmo fixo de minha vida. Quase não tenho tempo de ir ao mar, mas às vezes eu descanso só em lembrar-me dele. Dizendo essas rápidas palavras sobre o mar, em cuja descrição não posso me aprofundar porque a reunião iria até não sei que horas, tenho a impressão de que o auditório gostaria que eu fizesse tal descrição. Todos veem que transborda em mim o gosto por assim dizer maior do que eu, o qual pede para se expandir como a espuma da cerveja, que se espalha num bonito filão sobre a taça de porcelana.

O entusiasmo é, portanto, algo mais do que uma plenitude, não é uma taça cheia, mas uma taça que transborda; é o transbordamento do nosso gosto por uma determinada coisa.

Esse entusiasmo pode também ser épico, que decorre das grandes lutas e das grandes ações. E há feitios de espírito que se entusiasmam extraordinariamente por todas as formas de luta, por exemplo, uma carga de cavalaria, uma onda sucessiva de aviões que avançam; todas essas coisas são bonitas e dão gosto. Outra coisa bonita é o paraquedas: o indivíduo se joga de um avião, vestido com aquela roupa camuflada, maquiagem para, ao entrar no mato, não ser visto, e com uma missão a realizar. Tudo isso entusiasma.

O paraquedista e o homem que faz um trabalho raciocinado

Dir-se-ia que o entusiasmo é contrário à lógica, pois um homem entusiasmado não tem vontade de parar para refletir. Imaginem, por exemplo, um indivíduo que saltou de paraquedas a dois mil metros de altitude; ele desceu mil e começa a ver que está se aproximando da terra. Por outro lado, está com medo de que alguma coisa no seu paraquedas funcione mal. Agita os pés e estes lhe dão uma notícia inquietante: não tem chão em baixo. O vento sopra e está levando-o para um lugar onde não quer descer; ele não sabe nadar e pode cair em alto mar, se o vento soprar errado. E, ao mesmo tempo, está entusiasmado: o ar, o vento, a natureza toda a seus pés, ele distante de todos os homens e posto numa solidão, onde ele só é racional e, portanto, rei. Que situação bonita! É um herói, e em breve vai conseguir fazer um grande feito, pois está levando uma mensagem para um Estado Maior, e quando a tiver entregue vão felicitá-lo e ele vai ser promovido.

Se nesse momento se apresentar ao paraquedista a pergunta: “Você já pensou o que significa metafisicamente estar descendo de paraquedas nessa situação?”, não seria a indagação que os presentes neste auditório gostariam de receber em tal ocasião; seria até o contrário do que apreciariam.

Então, pareceria que o raciocínio, o qual leva a aprofundar as coisas pela aplicação da inteligência, é o contrário do entusiasmo. Porque este leva a pessoa a sentir intensamente a situação, deleitar-se com a sensação, e isto parece o oposto do raciocínio.

De outro lado, um homem que precisa fazer um trabalho primorosamente raciocinado, não pode gostar que estejam perto dele coisas entusiasmantes. Ele está sentado junto à sua escrivaninha, com a cabeça entre as mãos, esforçando-se para tornar seu raciocínio convincente: Tal formulação convence ou não? Tal coisa vai bem ou não? E de repente alguém toca para ele uma linda música militar… O homem, então, diz: “Para com isso, eu quero pensar, não posso me entusiasmar, preciso ter a cabeça fria para raciocinar!”

A alma em ordem se entusiasma pelas coisas retas

Então, dir-se-ia que, falando-lhes a respeito de lógica, preguei o anti entusiasmo, e tratando do assunto entusiasmo eu exaltaria o ilogismo. E seriam convidados à seguinte escolha: O que é melhor, um homem de entusiasmo, que pega fogo e faz alguma coisa, ou um indivíduo frio, calculista, mas que tem três boas razões iguais à evidência para a conclusão a que chegou, e, portanto, ninguém lhe tira aquela convicção?

E se eu lhes pedisse para escolherem, não se sentiriam à vontade porque diriam que a escolha incomoda, e me perguntariam se não é possível colar uma coisa na outra. Portanto, ser um homem ao mesmo tempo de raciocínio e de entusiasmo. Por que razão o entusiasmo deve ser oposto ao raciocínio? Não há um jeito de pôr tudo na mesma linha?

Afirmo que quando uma alma está em ordem — aqui está toda a questão —, ela se entusiasma pelas coisas retas, e por causa disso, refletindo depois sobre o seu entusiasmo, o raciocínio chancela: “Mereceu mesmo entusiasmar-me!” E quando ela tem o raciocínio em ordem, ela compreende o valor do entusiasmo, quando este é reto; e a alma, ao sentir-se entusiasmada, a lógica lhe diz: “Muito bem, o entusiasmo é o meu irmão!”

Árvores secas

Então vamos analisar o tema detidamente, para compreendermos como esses dois elementos aparentemente opostos, o entusiasmo e o raciocínio, podem conviver numa mesma alma.

Começo por um exemplo que está ao alcance de todos os presentes neste auditório. A Rua Alagoas, onde moro, desce até o Pacaembu, e no ponto onde ela termina há uma espécie de canteiro, no qual estão plantadas algumas árvores.

Habitualmente vejo ali uma árvore morta, completamente seca. Sua seiva extinguiu-se e ela está sem nenhuma folha; é um cadáver de árvore. Entretanto, quando passo em frente sinto um certo agrado de olhar para aquela árvore.

Como se pode compreender que eu tenha tanto comprazimento em ver uma árvore seca e morta? Não parece ilógico? Pois o que é seco e morto deve logicamente determinar repulsa, horror.

Lembro-me de ter visto nos Champs Elysées, em Paris — numa época ruim do ano, em que todas as árvores ficam secas e caem suas folhas —, ter gostado enormemente daquela galharia, e pensado: “Debaixo de certo ponto de vista, gosto mais disto do que quando estão com as folhas”. Não é uma coisa irracional apreciar mais árvores secas do que as com folhagem? Então eu deveria me corrigir a mim mesmo, porque não poderia consentir neste gosto que é ilógico.

Mas percebo que é um gosto ordenado, e que há uma razão para gostar disso. E se eu descobrir esta razão, fico com o direito de apreciar árvores secas, porque é lógico; e gostar mais ainda delas do que antes. Vou dar a razão.

Proporção entre galharia e tronco

Toda árvore tem uma arquitetura, uma estrutura geral, constituída de dois elementos: o tronco e os galhos. Mas para que ela não seja monstruosa, o tronco frequentemente deve ser menos alto do que a galharia; em grande número de árvores, quando o tronco está pouco acima da terra já começa a deitar os galhos que sobem. Entretanto deve haver uma certa proporção entre a grossura do tronco e os galhos, de maneira a não dar a impressão de que a árvore está carregando os seus galhos quase como castigo, estertorando, como num purgatório; ela deve causar a impressão de que o tronco é poderoso, e carrega os galhos com facilidade e elegância. E que, por assim dizer, é uma delícia para o tronco o fato de se desprenderem dele aqueles galhos e formem, assim, um fabuloso candelabro vegetal.

Então, a proporção entre a galharia e o tronco é um elemento fundamental da beleza da árvore.

Depois de ter percebido isso, eu analiso aquela arvorezinha morta do Pacaembu e, vendo nela só o esqueleto, admiro a esplêndida proporção entre o tronco e os galhos. O que dá à árvore um vulto elegante, leve e com uma certa força. E é disto que eu, sem perceber, gostava na árvore.

O meu gosto por essa árvore seca era racional, ordenado. Eu a apreciava por causa de um elemento de ordem nela existente, e que corresponde à natureza de cada ser humano o qual, quando procura ser virtuoso e católico, é ordenado, gosta do que está em ordem. De maneira que me atrevo a dizer que é o meu senso católico que, em mim, gostava dessa árvore.

”Meu entusiasmo é filho da lógica”

O resultado é que, estando a boa ordenação da árvore de acordo com a boa ordenação do meu ser, a lógica manda que eu goste e tenha um entusiasmo, o qual também é filho da lógica. Não é filho único da lógica, pois os sentidos entram em algo; eu precisei ver, tomar conhecimento. Mas conhecendo percebi a ordem e o bem. Percebendo a ordem e o bem, eu me entusiasmei; o meu entusiasmo é filho da lógica.

Então não é verdade que qualquer entusiasmo seja inimigo da lógica. Há uma hora de sentir, e outra hora de raciocinar. Em certos campos, primeiro se sente e depois se raciocina. É o caso da árvore; vê-se a árvore diversas vezes, depois se pergunta: “Por que gostei? O que aquilo tem de apreciável?” Então vem o raciocínio e a resposta: “Entre mim e a árvore há um nexo ordenado, e a minha lógica jubila ao mesmo tempo em que os sentidos se alegram, vendo a árvore.”

Isso que com uma arvorezinha seca num jardim é um mero comprazimento, pode ser uma deleitação muito viva, quando se tratar de algo superior.

Tomei o tema “árvores” inteiramente de improviso, para exemplificar. Não julguem, portanto, que eu penso tanto em árvores. Apenas tenho uma série de recordações de árvores que estou tirando do “baú” da memória e utilizando aqui, um pouco a esmo.

Palmeiras imperiais do Jardim Botânico do Rio de Janeiro

Mas há uma espécie de árvore inteiramente diferente daquela do Pacaembu: palmeiras imperiais, das quais existe um renque magnífico no Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Aquelas duas filas de palmeiras muito altas, tendo só em cima a galharia, parecem soldados apresentando armas a um rei de sonho que deve passar entre elas, e em cuja expectativa estão alinhadas para continência.

Esse renque de palmeiras é muito bonito e determina em mim movimentos orientados para o entusiasmo, muito mais do que aquela arvorezinha seca do Pacaembu com a qual tenho uma simples complacência, um simples gosto; enquanto que o renque de palmeiras é grandioso e me entusiasma.

Por que me entusiasma? Vou examinar — a pergunta já está mais precisa: se o meu entusiasmo é bom, aquilo deve agradar elementos de ordem que existem em mim.

Aquelas palmeiras altas têm algo que se aprecia muito em colunas, e que vegetalmente possuem a beleza das coisas feitas diretamente por Deus. Uma coluna não é tão bonita quando ela é um cilindro, igual desde o chão até o teto. Por exemplo, as colunas deste auditório; não vejo nelas beleza nenhuma. Porque no chão e na parte de cima são iguais, nem têm capitel; estão encostadas no teto, aguentando um fardo; cada uma é como um carregador sem poesia, que leva um peso cansativo e feio.

O tronco, a folhagem, as cores de uma palmeira

Uma coluna é bonita quando há uma proporção entre o círculo embaixo e o círculo em cima; ela vai afinando até chegar ao cume, mas sem nenhum salto, como um taco de bilhar. E aquela coluna do tronco da palmeira, como não tem folhagem, mas apenas casca, percebe-se que ela sobe com uma espécie de facilidade, de graça. E chega, digamos, a tocar as nuvens com uma naturalidade, com uma lógica que o meu senso da ordem se encanta de ver.

Uma palmeira que em cima não tem folhas é uma coisa medonha. Porque dá a impressão de um palito espetando, não tem graça. Então, depois de uma grande ascensão, muito lógica, existe a folhagem entregue à fantasia dos ventos. E é uma folhagem muito nobre, com folhas largas, e que parecem feitas para esvoaçar de todo lado, e que atestam a firmeza da árvore, porque ela não cede, e não há vento que a faça hesitar; aquele espanador de folhas se move devido aos ventos e, no meio daquela mobilidade, a palmeira é imóvel.

Percebendo esse contraste, instintivamente, intuitivamente, eu gosto porque vejo que aquilo está ordenado. E a minha natureza se alegra em observá-lo. Mas, também há diferença de cores: aquele seco, estorricado, marrom muito escuro, tendente ao preto, da coluna da palmeira, chega em cima e dá numa parte verde, atestando que a árvore não está morta; sem percebermos, do chão ao longo de sua casca escura, numa ascensão espantosa, a seiva sobe e, chegando ao alto, irriga aquela parte mais delicada que brilha ao sol. É uma coisa bonita!

A sensação de ordem existente na palmeira causa entusiasmo

Então, percebemos que a palmeira por vários lados satisfaz o nosso senso da ordem. Há uma bonita proporção de cor entre aquele verde claro, da parte palmito da palmeira, e a madeira escura; existe uma bonita sensação de ordem.

Esta sensação de ordem encanta-me vendo a palmeira, e me dá entusiasmo. Mas há uma coisa mais sutil: a palmeira, pela sua posição, só se explica inteiramente num panorama que ela domina, ou em função do qual está numa atitude de serviço.

É muito bonito ver uma palmeira no alto de um montezinho, isolada; ela cresceu meio oblíqua em relação ao solo e se agita inteira. É uma palmeira frágil que dá graça a um panorama. Mas, a palmeira durona, espetada no alto de um morro, causa susto. E posta no terreno plano ela representa alguém que está em atitude de serviço diante de outrem. Lembra um soldado em atitude de sentido, à espera do seu general, a ideia de homenagem, de disciplina, de hierarquia, de guerra; os elementos ordenados da palmeira têm qualquer coisa de militar.

Analisando a palmeira e seus reflexos em mim, percebo a ordem dela. Assim, vejo que o meu entusiasmo pela palmeira é lógico; então eu digo: “Viva o meu entusiasmo, a lógica o apoia! Viva a lógica porque o meu entusiasmo se ilumina!” Assim é feita a alma do católico.

Quando o católico é muito ordenado, logo nos primeiros movimentos ele se entusiasma muito. E não tem razão para temer, porque sente no fundo de si que nele é a ordem que se entusiasma sempre, e nunca a desordem. É um filho da luz. Nós todos somos ou precisamos querer ser filhos da luz, e só devemos nos entusiasmar com as coisas que nos provocam essa impressão da ordem.

Fazer ”pushing ball” com a ”baixa”

Mas acontece que muitas pessoas têm um temperamento cheio de calombos, cujos nervos não são perfeitamente ideais; então às vezes amanhecem na “baixa”(1). E se formos lhes descrever uma coisa bonita, elas não gostam e, pelo contrário, estão irritadiças e se entusiasmam com brigas, e querem brigar com todo o mundo. Essas pessoas têm um entusiasmo ordenado segundo a lógica? Não. Elas precisam aprender a retificar-se.

Quando um indivíduo, por exemplo, amanhece na “baixa” devo perguntar-lhe se essa “baixa” é razoável. E se ele responder:
— É. O meu médico disse que eu sofro — nem sei se isso faz sentido ou se é uma palavra no ar — de “esquisitona”, e tem uma coisa qualquer que me aperta o estômago e me causa esse mal-estar.
Eu lhe digo:
— Então você é escravo do seu estômago, não da sua cabeça? E pretende ser um filho da luz? Oh! Se você acordou na “baixa”, trate de retificá-la. Procure ver coisas que lhe deem alegria, satisfação. Passe o dia inteiro, ainda que não esteja com vontade — não sei se os que estão neste auditório conhecem, mas havia uma espécie de jogo chamado “pushing ball”, que consistia em esmurrar uma bola, que logo retribuía com um golpe na pessoa —, fazendo esse esforço.

Devemos fazer um “pushing ball” com a “baixa”, não ceder, e durante todo o tempo em que ela nos esmurra nós damos murros nela. À força de esmurrar, acaba acontecendo que a “baixa” vem menos e depois deixa de vir. Fora disso, o entusiasmo que a “baixa” poderia proporcionar é depressivo, a pessoa se irrita, fica furiosa, e briga por qualquer coisinha.

Necessidade de controlar os nervos e jugular o mau humor

Por exemplo, um indivíduo é corretor e precisa ter bons amigos para fazer proveitosos negócios. Ele tem um muito bom amigo que, sem querer, pisou no pé dele no local onde havia um calo, causando-lhe dor; por isso ele fica o dia inteiro com birra desse homem e perde o amigo, bem como uma série de negócios. O corretor é um tolo, e poderíamos dizer-lhe: “Domine-se, tenha entusiasmo pelo ato interno por onde você domina os seus nervos e jugula o seu mau humor!”

Ele dirá:
— É duro.

Respondo-lhe:
— Se um homem foge diante de uma coisa porque é dura, ele não merece o nome de homem.
— Ah! mas sofro muito.
— Mas você não é capaz de sofrer? E já pensou que Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na Cruz para que você seja capaz de se dominar, e você não se domina?

Mas alguém afirmará: “Dr. Plinio, o senhor diz todas essas coisas, que me convencem, mas não me vencem; na hora dura do sacrifício, sei que não vou ter coragem, e, depois de ouvir o senhor, saio daqui mais desanimado.”

Frequência aos Sacramentos, confiança em Nossa Senhora e oração

Explico-lhe: “Se você é ateu, há uma certa lógica dentro do seu péssimo ateísmo. Mas se é católico apostólico romano, deve saber que o católico recebe uma ajuda sobrenatural de Deus, que dá ao homem de vontade fraca força para se vencer.”

Rogando a graça por meio de Nossa Senhora, sempre obtemos tudo o que pedimos de bom, conseguimos realmente a graça necessária para nos vencermos. É preciso ter essa convicção inteiramente, apaixonadamente, entusiasmadamente. Eu sou fraco, e se contar com as minhas meras forças não consigo nada. Esta é a doutrina católica. Se um homem de minha idade passasse a vida inteira no cumprimento perfeito dos Mandamentos porque a graça divina o apoiou, de repente afirmasse que fez isso pelas suas forças e não precisa da graça de Deus, ele pecaria no dia seguinte, se é que não fosse daqui a cinco minutos.

A fonte da perseverança do homem no bem não reside principalmente na sua vontade. Esta é indispensável, mas ele só tem força quando sobre essa vontade pousa a graça de Deus; pela graça divina o homem é capaz, tem meios, forças para fazer toda espécie de sacrifícios.

Então, essa coesão entre a lógica, de um lado, e o entusiasmo, do outro lado, se obtém, sobretudo, pela graça de Deus que penetra em nós e nos torna retos. Quando os nossos sentidos, nossos impulsos são bons, e queremos aquilo que é reto, pedindo a Nossa Senhora obtém-se essa retidão. E no homem reto o entusiasmo e a lógica são irmãos.

Tudo isso conflui para a frequência aos Sacramentos, a oração intensa, o desejo ardente de que Nossa Senhora nos ajude. E para uma confiança muito grande n’Ela. Rezamos para a Santíssima Virgem, mas abusamos da graça que Ela nos consegue e pecamos. Sabemos que, pedindo perdão, a Mãe de Deus perdoa sempre, e atende o nosso pedido de outras graças. Assim Ela vai sempre nos atendendo, até um certo dia em que as graças são tantas que nós nos levantamos e declaramos com alegria: “Eu agora sinto que não vou mais pecar”.

Nenhum homem tem o direito de ser ilógico para cultivar o entusiasmo, nem estrangular o entusiasmo para ser lógico. O homem deve encontrar esse fio de ouro, que faz o nexo entre o entusiasmo ordenado e a lógica. Dessa forma, quanto mais entusiasmado será mais lógico, quanto mais lógico, mais entusiasmado.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 24/10/1987)

1) “Baixa”: depressão, desânimo.

Admiração: substância da vida interior

Mais do que analisar esses ou aqueles monumentos que são “luzes da Civilização Cristã”, Dr. Plinio nos descortina um panorama grandioso da Criação do mundo visível e invisível, penetrando inclusive no sobrenatural, fazendo sapienciais comentários a respeito da admiração.

 

Quando estudamos a História da Idade Média, consideramos com muita frequência os grandes personagens que nos parecem os mais característicos daquela época histórica, e temos toda a razão nisso.

Então, estuda-se Carlos Magno, São Luís IX, São Fernando de Castela, São Tomás de Aquino, São Gregório VII, de modo eminente. Mas, de fato, esses grandes personagens não esgotavam toda a Idade Média.

Tendência contínua para o mais perfeito, mais santo, mais elevado

Havia naquela época um espírito de Fé em toda a massa da população, que fazia com que qualquer pessoa, um homem da rua, tivesse uma mentalidade construída fundamentalmente de modo diverso da mentalidade do homem contemporâneo, e que se refletia em todo o teor de vida, no modo de pensar e de viver do medievo.

No que estava essa diferença de mentalidade? O homem medieval, ainda que inculto, muitas vezes analfabeto, tinha o espírito formado de tal maneira que, a propósito de qualquer coisa que encontrasse diante de si, ele procurava o mais elevado.

Imaginemos um homem modesto, um copista, um calígrafo, que tivesse sobre uma mesa pergaminho, material geral para sua arte, canivetes afiados para cortar pergaminho, e uma sineta para chamar o empregado, a mulher, os filhos. O normal da alma dele era ser feito de tal maneira que ele gostasse que todos esses objetos o levassem a considerações de um caráter mais alto.

E então, se olhando espontaneamente para a sineta ele notasse que era feia, seu espírito tinha uma forma de elevação que, quando desse acordo de si, estava com um canivete esculpindo o cabo de madeira da sineta para ficar bonitinha. Se visse um canivete para cortar pergaminho, ele normalmente se comprazia em fazer com que fosse afiado de maneira que a beleza do metal aparecesse inteiramente; e que o cabo do canivete não fosse apenas prático, mas bonito, no qual estivesse esculpida a figura de um Santo. E no alto da sineta houvesse uma cruz.

Quando ele fosse escrever uma coisa caligrafada, não se limitava a fazer letras para aquilo ser lido, mas pensava em desenhar uma iluminura: a letra inicial maiúscula bonita, com um pássaro voando, ou um Santo dentro com halo de santidade, rezando, ou com o Rosário entrelaçado nas letras “O” ou “A”.

Quer dizer, mesmo os mais humildes homens do povo em tudo manifestavam uma tendência para o mais perfeito, mais santo, mais belo, continuamente. Uma espécie de insaciabilidade não intemperante, mas uma pressão saudável e contínua da alma para o melhor, o mais perfeito, debaixo de todos os pontos de vista. Isso indicava um movimento da alma de nunca se contentar com aquilo que tem, mas sempre, a propósito do que vê, procurar algo mais elevado.

Dois movimentos ascensionais

Uma tendência, portanto, para a elevação em dois sentidos: pegar um objeto e adorná-lo mais ou arranjar um objeto melhor; tomar a linguagem que está falando e torná-la aos poucos mais nobre, mais elevada. Daí o progresso da língua corrente na Idade Média, que deu origem aos grandes idiomas europeus contemporâneos: o francês, o inglês, o espanhol, o alemão, o português, o italiano. Todas essas línguas nasceram na Idade Média, de um contínuo aperfeiçoamento para uma forma mais bela, para uma expressão mais rica.

Porém, mais do que isso: uma tendência para o sobrenatural. A ideia de, por esse mesmo movimento de espírito, procurar cada vez mais o verdadeiro, o virtuoso; a noção de que acima dos seres visíveis, uns mais belos do que os outros, havia seres invisíveis, mais nobres e belos do que os visíveis. E que no alto da pirâmide dos seres invisíveis ou espirituais estava Deus Nosso Senhor, a suma Perfeição.

Então, dois movimentos ascensionais: um para melhorar as coisas terrenas na procura da perfeição delas; e outro a fim de, através das coisas terrenas, caminhar rumo a Deus. O que significava, na alma do homem medieval, uma tendência fundamental para o elevado e uma necessidade profunda da alma de admirar, de procurar e conhecer continuamente coisas que lhe provocassem admiração.

Daí surgiram as canções de gesta, que são  a glorificação dos grandes heróis da Cristandade. E também as narrações, que às vezes eram apenas lendas, a respeito da vida de Santos, mas que era a glorificação deles. A “Légende Dorée”, por exemplo, de Jacques de Voragine, tem magnificências nesse sentido. Daí, sobretudo, a admiração dos Santos com suas vidas autênticas, a hagiografia verdadeira como era ensinada e decretada pela Igreja, a arte sacra e tudo o mais. Era uma tendência para cima a fim de admirar, venerar e alcançar com o olhar, afinal, a culminância suprema de toda ordem do ser que é Deus Nosso Senhor.

Essa tendência corresponde ao estímulo contínuo que o Criador comunicou à Criação. Não julguemos que esse estado de alma é pura e simplesmente um movimento que os medievais tiveram, mas que é lícito a outros não terem. Não é verdade. Esta é a orientação de alma que, em virtude do Primeiro Mandamento, Deus quer e exige de todos os fiéis.

O ponto terminal de qualquer estudo ou arte é a admiração

Vemos bem isso ao considerarmos a ordem natural e a ordem sobrenatural. Na ordem natural, temos o universo. Por mais que o examinemos, não encontramos um ponto que não seja suscetível de um aprofundamento. E no fundo desse aprofundamento, não achamos nada que não dê numa espécie de maravilhamento. O universo foi todo construído por Deus para que o conhecimento dele conduza a atos de admiração.

Tomem a coisa mais terra a terra, por exemplo, a pata de uma rã. A rã é um bicho prosaico e sua pata é uma coisa feia. Mas se um cientista for estudá-la encontra ali uma ordenação, uma estrutura, enfim, diversas razões pelas quais um verdadeiro especialista acabaria concluindo o que um artista nunca concluiria: é admirável a pata de uma rã. O artista afirmaria que é hedionda, mas o cientista dirá: “Nesse hediondo, que maravilha!”

Assim, na pata de uma rã, na ponta de uma grama, na estrutura de uma formiga, no céu material, nos astros, por toda parte encontramos, no fim de tudo, algo de admirável. O maravilhar-se, o admirar é a postura de alma que é o ponto terminal da peregrinação do homem em toda espécie de estudos ou elucubrações, em qualquer campo: artístico, científico, cultural.

Bem no centro desse universo, que é um convite contínuo à admiração, encontramos a ordem sobrenatural, a Igreja Católica Apostólica Romana. E nela o mesmo se dá. Na menor coisa da Igreja Católica que vamos procurar, vemos uma verdadeira maravilha.

Eu tomo o mais corrente dos exemplos, o meio que a Igreja inventou para chamar os fiéis à oração: o sino. Tão prático! Colocado no alto de uma torre, ele toca…  Mas a torre da igreja, quanta maravilha, os sinos na torre, quantas maravilhas! A Ave-Maria, que é tocada na aurora ou na hora do pôr do sol, que maravilha! O sino que repica alegre para anunciar a Missa, que maravilha! O sino que dobra finados quando o cadáver é levado para a igreja a fim de receber a bênção, que maravilha!

“Coisinhas” da vida da Igreja que são sóis

Eu estava um dia comentando com um companheiro as coisas feitas pela Igreja, as quais são tão naturais que ninguém se lembra de achá-las bonitas. Por exemplo, o modo pelo qual a Igreja trata o pecado e o pecador. Entra na igreja um cadáver carregado por pessoas. Antigamente isso era muito comum: vem um caixão, a família o leva para dentro da igreja, abre o féretro, vem o padre, dá a absolvição, etc., e segue para o enterro. Todo mundo com aquele respeito: “Coitado, faleceu, mas dizem que morreu bem, está com bom aspecto; antes de falecer abençoou os filhos, recebeu os sacramentos, despediu-se da esposa!” De repente o coro canta: “Requiem æternam dona ei, Domine, et lux perpetua luceat ei”. 

É a dúvida da Igreja: “Ele deve ter pecados para pagar, pelo menos pecados veniais, e o normal é que passe por um Purgatório bem ardente. Meu Deus, dai-lhe o descanso, e que a luz perpétua brilhe para ele!” E ainda depois o coro canta: “Requiescat in pace; e embaixo todos entoam: Amen”.

Quer dizer, o modo pelo qual a Igreja convida a humanidade a reconhecer a realidade do pecado, no homem que ela está honrando assim. É um equilíbrio fantástico. Mais. Isto é feito até nas exéquias dos dignatários da Igreja, dos Bispos, Arcebispos, Cardeais, do Papa. E lá sai o “requiem æternam dona ei, Domine…”

Antigamente, quando um Papa era entronizado, levavam-no em triunfo pela Basílica de São Pedro até ser coroado, e depois ele voltava na sedia gestatoria. Um homem ao lado dele, um dignatário eclesiástico, de vez em quando acendia uma estopa e dizia: “Sanctissime pater, sicut transit gloriam mundi”; depois de alguns passos acendia outra estopa e repetia essa frase “Santíssimo padre, assim passa a glória do mundo!” Como quem diz: “Vós sois Papa, é uma grande coisa, mas o demônio da vaidade pode tomar conta de vós; Santíssimo padre, olhai como passa a glória do mundo!”

Essas “coisinhas” dentro da vida da Igreja são sóis! Esses sóis indicam que a Igreja também nos convida continuamente a uma impostação de admiração, e que esta avidez de admirar está em tudo quanto Deus fez, coroa tudo, envolve tudo, quer na ordem natural, quer na sobrenatural.

Devemos considerar, pois, que na Idade Média o fiel, isto é, qualquer um que passasse pela rua, tendo apenas a grande glória – e como é grande essa glória! – de ser batizado, dotado, portanto, de espírito católico, possuía essa tendência a procurar e a realizar, em tudo, coisas admiráveis. Ele não era invejoso; encontrando alguém admirável, se alegrava e dava graças a Deus por ter encontrado, elogiava, aplaudia e procurava torná-lo conhecido. Não era igualitário, não procurava colocar-se no nível dos outros, mas desejava que quem fosse superior a ele recebesse mais e fosse mais glorificado.

A tendência de espírito dessa época tem como corolário que, por causa da admiração, os que eram menos aprendiam dos que eram mais. Por causa disso, exercia-se uma influência das classes mais cultas e aprimoradas sobre as mais modestas. A moda descia, e era um contínuo imitar dos mais perfeitos pelos menos perfeitos. Era essa a orientação desses séculos. Quem estava embaixo procurava imitar o que havia de mais alto. E assim se constituía o governo de Deus, supremo, sobre toda a humanidade.

A base de todas as virtudes é o espírito admirativo

Estas considerações nos ajudam a fazer a crítica exata do mundo que nos rodeia. Ou o círculo social ao qual pertencemos é todo voltado para o admirável, tem o espírito admirativo, gosta de comentar e considerar sempre o mais alto, o mais perfeito, e por aí tende para Deus, ou é um espírito ateu, porque faz abstração do Criador completamente, e das coisas intermediárias que nos conduzem a Ele.

São João tem aquela frase famosa: “Quem não ama o próximo a quem vê, não poderá amar a Deus a Quem não vê” (cf. 1 Jo 4, 20). Então, também é verdade que essa posição de admiração pelas coisas terrenas retas é uma condição para admirarmos a Deus, porque o mesmo princípio pode-se aplicar: “Se vós não admirais as coisas que vedes, como podereis admirar a Deus que não vedes?” Portanto, essa tendência para a admiração, essa prontidão de espírito para respeitar, se alegrar com o que é elevado, superior, nobre, deve ser de todas as classes sociais, desde a mais modesta até a mais alta. É segundo essa tendência que devemos julgar o valor religioso de um ambiente que frequentamos.

Quando o espírito é assim, ficam criadas as condições para praticar a virtude; ama a pureza e tem horror à impureza, facilmente será honesto, etc. Se um espírito não é assim, ele pensa só nisto: “Pecar contra a castidade é muito gostoso, mas Deus proibiu e, portanto, não posso fazer”. Então ele se mantém na castidade com uma espécie de tristeza de ter que ser casto, porque não compreende a beleza da virtude que pratica. E não compreende porque não foi educado para admirar coisa alguma. Resultado, a própria santidade católica ele não admira também. Se não admira, aquilo para ele torna-se um fardo que, a qualquer hora, joga à beira do caminho.

Nós só perseveramos na virtude quando a admiramos; e só admiramos a virtude quando temos essa base de todas as virtudes que é o espírito admirativo, o qual nos leva até Deus Nosso Senhor.

Uma civilização que perdeu a beleza e a admiração torna-se ateia

Se analisarmos as construções do mundo contemporâneo, não encontramos a menor vontade de alguma coisa mais elevada. Não é por falta de dinheiro, mas por um estado de espírito. Porque na Idade Média até mesmo as habitações mais pobres eram ornadas.

Mas é tal esse estado de espírito que, se formos ascendendo na escala social, veremos que a mentalidade é a mesma. Se é verdade que há cada vez mais conforto, entretanto existe cada vez menos beleza. O “pulchrum” vai desertando do interior dos lares ricos. E essa fuga do belo e do elevado vai se generalizando cada vez mais, sobretudo nas camadas superiores da sociedade, a ponto de estarmos numa inversão: os modos de ser da classe mais baixa são imitados pelas mais altas. Castigo de quem perdeu o espírito de admiração, não compreendeu que deve respeitar-se, admirar-se e fazer-se admirar, para o bem dos outros, mas que apenas procura o gozo da vida.

Temos, então, uma civilização sem admiração, sem beleza que, porque perdeu a beleza e a admiração, é uma civilização ateia.

Isso deve ser levado muito a sério, pois para sermos autênticos contrarrevolucionários, ou fazemos a crítica das almas e dos ambientes sem admiração, ou a Revolução acaba nos devorando também. É preciso, portanto, um verdadeiro exame de consciência contínuo para mantermos em nós esse espírito de admiração.

Alguém poderia objetar:

– Dr. Plinio, não é uma coisa inventada pelo senhor? Não vejo isso ser dito em nenhum manual católico.

Eu respondo:

– Todos dizem, desde que sejam bem lidos e entendidos.

Quando a Sagrada Escritura afirma que os céus e a Terra narram a glória de Deus (cf. Sl 18), o que quer dizer isso? A glória é um objeto de admiração. Portanto, os céus e a Terra narram o que em Deus há de admirável, de glorioso. O céu e a Terra não foram feitos para conhecermos a Deus? Se narram a glória d’Ele, então devemos ter um espírito ávido de admirar a glória em tudo. É claro, evidente!

Consideremos as catedrais feitas pela Igreja, admiráveis todas elas. Por quê? Porque a Igreja quer modelar pela admiração os seus filhos. Então os vitrais, os órgãos, a Liturgia, a música sacra, tudo tende para a admiração. A alma verdadeiramente católica deve procurar o admirável em tudo, ainda que seja uma pessoa de uma cultura e de uma inteligência muito comuns, sua alma deve voltar-se para isso.

Estamos numa ilha porque em torno de nós só há abismos

Por vezes, noto nas pessoas com quem convivo que algo disso há no espírito, mas coexistindo com certos hábitos mentais por onde elas gostam do vulgar, banal, da chanchada, do desordenado, e acham que isso é o normal porque em todas as épocas do mundo os homens foram assim. E que ser diferente é vivermos num píncaro quase inumano, de tão alto. É o contrário. O mundo atual está no fundo de um abismo, de um precipício de vulgaridade, de feiura, de imoralidade e de erro; e nós estamos numa ilha que é um monumento porque em torno de nós só há abismos. Não é que essa nossa posição seja extraordinariamente alta; mas porque o mundo desceu muito e Nossa Senhora nos concedeu a graça de não descermos tanto, parecemos muito alto. Mas esse é o rés do chão para o Reino de Maria.

Não devemos, portanto, ter a ideia de que a graça nos pede uma elevação de espírito quase impossível, e que somos mais ou menos como um macaco que consegue ficar de pé sobre duas patas durante algum tempo, mas depois já vai voltando para o chão e andando como quadrúpede. Não é essa a nossa alma. O normal é estarmos eretos na posição de admiração e voltados para o Céu, procurando admirar tudo quanto é admirável e execrar tudo quanto é execrável. Eis a posição verdadeira, normal de nossa alma. Isso não é extraordinário. Houve séculos e séculos em que a normalidade dos homens foi essa.

O estado de espírito oposto começou a se infiltrar no fim da Idade Média; na Revolução Francesa começou a dominar; no Comunismo atingiu o seu paroxismo.

O que acabo de afirmar é um exercício de transcendência que deve ser comum, corrente na vida do homem, e corresponde à prática da presença de Deus de que fala Dom Chautard. Ver Deus presente em tudo é isto. Esta é a substância da vida interior, de acordo com a Doutrina Católica.

Deixo aqui este apelo para que levantemos nossas almas e corações, e mudemos o nosso modo de ser.

Uma senhora que se encantava vendo as sombras de uma árvore

Conheci o caso de uma senhora que morava numa casa em São Paulo, perto da qual crescia uma árvore comum, mas frondosa e cuja copa coincidia com a janela dessa residência. À noite, por causa dos lampadários da iluminação pública, penetrava a luz de fora em um dos cômodos e o enchia com mil sombras daquela folhagem. Numa ocasião, foi necessário serrar essa árvore e derrubá-la, por razões de segurança. Quando a senhora entrou e viu que a árvore estava serrada, perguntou:

– Mas como, o que aconteceu com a árvore?

– Foi preciso serrar – responderam.

Para não a assustar, não se mencionou o problema de segurança. E ela disse:

– Vocês tiveram a crueldade de acabar com as sombras lindíssimas que enchiam esta sala durante a noite?!

Via-se que era um verdadeiro golpe para ela que, com sua cultura e sua inteligência comuns de uma boa dona de casa, ficava cheia de admiração por aquilo, reportando a Deus Nosso Senhor.

Coisa tão comum: uma árvore, um revérbero de iluminação elétrica e uma sala apagada. Só não era comum a alma que tão intensamente sentia isso.

Isso é um dos mil exemplos que se poderia contar, tirados da vida normal das pessoas da Civilização Cristã, e que indicam bem qual é a mentalidade católica tendente a ver o maravilhoso em tudo, porque ele existe por toda parte, é só querer encontrá-lo.       v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/2/1977)

OBRA-PRIMA DA PIEDADE CATÓLICA

No vasto e rico universo da arte católica, dois modos existem de representar a boa pintura religiosa, aquela em que os mestres dos pincéis se superam ao imprimir nas telas as luzes e as cores de seu talento. Uns procuram representar seus temas o mais possível de acordo com os aspectos comuns da vida, abstraindo daquilo que se nota muitas vezes no cotidiano católico, que é a  transparência da graça nas pessoas ou nos ambientes.

Cumpre dizer: tais pintores são primorosos no retratar o que é comum. Outros, porém, procuram envolver suas pinturas com essa espécie de imponderável místico que permite perceber na cena
a presença da graça. Exemplo paradigmático dessa categoria de artistas foi o Beato Angélico, o “magnata” da pintura da graça, cujos belíssimos afrescos constituem um dos maiores tesouros da iconografia da Santa Igreja.

Não menos admirável, porém, é o talento de outro pintor italiano, que viveu entre o fim da Idade Média e o início da Renascença, o célebre Giotto. Como o extraordinário frade-artista de Florença, também ele deixou-nos quadros e afrescos impregnados — a meu ver, intensamente impregnados — de  sobrenatural. Fra Angélico escolheu como “telas” as paredes do Convento de São Marcos, na urbe florentina; Giotto, as da chamada Capella degli Scrovegni, em Pádua.

Trata-se de uma famosa capela, edificada anexa ao palácio da influente família dos Scrovegni, hoje completa ofícios, reservadas numa espécie de gradim de mármore também muito bonito e bem trabalhado. Ao fundo, o pequeno altar de linhas singelas, sob uma abóbada de arcarias ogivais, emoldurado por estalas de madeira envelhecida, gasta, e por colunas ricas em lavores e coloridos do mesmo tipo de pedra que adorna toda a capela.

Nas paredes, harmônicas com o teto abaulado, vê-se a maior beleza, a principal atração desse exíguo e inestimável recinto católico: as cenas da vida de Nosso Senhor e de Nossa Senhora, pintadas por Giotto. Caracterizadas, de um lado, por uma inocência ainda toda medieval; e, de outro, pela transparência daquela atmosfera sobrenatural magnífica.

*

Sou particularmente sensível à harmonia das cores. Em vista da predominância dos recursos cromáticos utilizados por Giotto, sinto especial agrado por alguns desses afrescos. Por exemplo, a cena do Casamento de Nossa Senhora com São José, em que aparece uma espécie de radicalidade nos tons claros e a mesma radicalidade nos tons carregados, resultando num contraste muito interessante. Há matizes de verde, azul e lilás delicados, postos em realce pela combinação de vermelhos, carmins e laranjas bem profundos. A força destes tons escuros confere uma nota de seriedade ao claro, e constrói um equilíbrio de cores superiormente belo.

O quadro tem como fundo um pequeno edifício que, segundo a imaginação de Giotto, seria uma parte do Templo de Jerusalém. O sacerdote está revestido de uma capa vermelha, e de uma túnica que vai até o chão. É um velho de cabelos já brancos, abundantemente barbado, numa atitude digna, cheio de piedade e de recolhimento. São José traz na mão esquerda o bastão florido, que indicava ser ele o esposo escolhido pela Providência para se casar com Maria Santíssima. Na mão direita, segura a aliança que simboliza essa maravilhosa união. De acordo com uma velha tradição, Giotto representa São José muito mais velho que Nossa Senhora. Ela, ainda mocinha, tem o recato e a compostura de uma pessoa toda virginal. Como traje, leva uma túnica de cor muito clara, que fala de pureza, de delicadeza de sentimentos levada ao mais alto grau. O seu porte é ereto, imaculado.

Outro afresco muito bonito é o que retrata a Apresentação do Menino Jesus no Templo. De um lado, Nossa Senhora e São José; de outro, o Profeta Simeão e a Profetisa Ana. Embora a parte central seja concebida em termos medievais, a ideia é mais uma vez a de que a cena se passa numa dependência do Templo de Jerusalém. Nessa pintura, o fato de maior interesse é a atitude dos santos esposos. Nossa Senhora apresentou o Menino ao Profeta, e aparece com as mãos no gesto de quem acabou de O entregar, ou de quem O receberá de volta. São José, modestamente recolhido a segundo plano, acompanha a cena. É notável a atmosfera de santidade e de pureza que domina o quadro inteiro, de maneira que o próprio templozinho possui algo de esguio e de virginal. Tudo é posto por Giotto sobre um fundo meio azulado, com folhagens e vegetações hoje apagadas, confundindo-se com um céu também de azul profundo. O colorido mais escuro confere particular relevo à parte central do tema: o Divino Infante — sob uma espécie de foco de luz —, o Profeta Simeão e Nossa Senhora (sob luminosidade menor), São José e a Profetisa Ana.

Na Fuga para o Egito, Nossa Senhora vai montada num simples burrico, e toda a Sagrada Família denota os sinais exteriores da pobreza. Mas a dignidade d’Ela é de uma princesa! Um porte retilíneo, as costas sem arcadura nem inflexão, a fronte alta, e a resolução com que enfrenta a viagem, os riscos, denotam a majestade da Mãe do Rei do Universo. São José caminha na frente, atentíssimo para o que possa acontecer com a Mãe e o Menino.

Ela confia em Deus e no esposo. Portanto, vai recolhida em oração, abraçando o Filho em seu colo. Giotto exprime de modo extraordinário a celestial intimidade dos dois. Certamente Ela reza a Jesus, pedindo por aqueles que estão contemplando o quadro…

*

Noutro ciclo de afrescos surge o Domingo de Ramos, em cuja composição muito transparece aquela inocência de que atrás falamos. Nosso Senhor entra montado num burrinho, e abençoa o povo à sua frente.

Mas sua fisionomia é de tristeza, o rosto varonil, uma abundância extraordinária de barba, e uma atitude de Prelado de altíssimo poder, ou de Chefe da religião verdadeira. Muito mais do que isso, de Messias. No meio da multidão que o acompanhava, percebe-se uma ou outra pessoa com a auréola da santidade. O próprio Jesus está coroado por um aro muito definido. É, em grau infinito, o primeiro e o maior de todos os Santos, fonte e causa de todas as santificações.

Mais adiante, depois de lindíssimas pinturas como a Ressurreição de Lázaro, vem a Crucifixão e Morte de Nosso Senhor, o quinto mistério doloroso do Rosário. Jesus, pregado ao madeiro, está lívido, tendo exalado seu último suspiro. Santa Maria Madalena, identificada pelos longos cabelos soltos, oscula-Lhe os pés. A um canto vê-se Nossa Senhora, amparada por São João Evangelista e por uma das santas mulheres. No lado oposto aparece uma parte da multidão que deseja assistir ao acontecimento. O céu está povoado de Anjos cantando a glória do Divino Redentor. E enquanto os outros presentes sentem apenas dor e vergonha, Maria Santíssima, embora abalada, permanece de pé, com força e determinação. Imaculada, cheia de graça e de amor a Deus, era capaz de refrear em alguma medida sua própria dor, de maneira a servir de consolo e sustentação para os que, neste momento sumamente trágico, claudicassem na fé e na certeza da Ressurreição.

São alguns episódios da Paixão segundo Giotto, uma das obras-primas da piedade católica.

Para mim, esse face-a-face entre Nosso Senhor e Judas é das coisas mais espantosas que um pincel humano tenha pintado. Nosso Senhor está sério e olhando Judas até o fundo da alma. E este procura mentir. É a verdade eterna e subsistente, encarnada, que olha para um homem falso. E Judas, que procura tornar a mentira dele aceitável, abraça Nosso Senhor e O olha com ares de quem pretende ser um grande amigo. Nosso Senhor o fita e lhe diz: “Judas, é com um ósculo que trais o Filho do Homem?” Nosso Senhor recebe com paciência esse beijo imundo, acompanhado  provavelmente de um mau odor asqueroso, cheiro do inferno. Judas nada responde à pungente pergunta do Mestre. Ele trai o Filho de Deus. Depois disso, se porá a delirar e a correr de um lado para outro, até cometer o suicídio.

Nesta cena, Giotto quis representar em Nosso Senhor Jesus Cristo o sumo de todos os predicados intelectuais e morais. E em Judas, o sumo de todas as abjeções. Daí os recursos de que ele se serviu. Primeiro, a diferença entre as duas cabeças. A de Nosso Senhor é provida com certa largueza de cabelo, digna, composta, sem espalhafato. A de Judas, pelo contrário, está coberta com uma grenha suja, abundante, que ele procurou pentear bem antes de cometer seu crime infame, a fim de que nada atrapalhasse o “bom negócio” que ia fazer. Era preciso que tudo se passasse com ares de cordialidade.

Então, ele se enfeitou. Mas é patente a desordem capilar dele em contraste com a proporção e a ordenação adequada dos cabelos de Nosso Senhor. A barba do Divino Mestre é de boas dimensões, dispondo-se belamente em cima da pele, com muita mesura e harmonia. O mesmo deve-se dizer do bigode. Já a barba de Judas é feita de uns fios raros, formando arquipélagos peludos em certos lugares do rosto, confundindo-se com a própria carnatura, e mais nada. Além disso, a parte que vai do alto da maçã do rosto até o queixo é enormemente desenvolvida em comparação com a de Nosso Senhor, em quem tudo é proporcionado.

Judas dá a impressão de uma gulodice sórdida e horrorosa. Nosso Senhor, a de uma austeridade delicada e verdadeiramente divina.

 

Arte gótica, a expressão de desejo do Céu

A Igreja, nascida do costado de Cristo, produziu belezas feéricas. Entre elas estão as catedrais góticas, tão características da Idade Média. Ao analisar tais edifícios, Dr. Plinio, grande admirador da Cristandade, faz uma bela consideração: o gótico terá representado por inteiro o espírito católico?

Quando se observa o gótico em suas últimas manifestações, antes da Renascença, tem-se a impressão singular de ter ele chegado ao fim do caminho e atingido tal perfeição, que não se pode imaginar algo mais perfeito nessa linha. Uma nova linha estava para aparecer, não contrária à anterior, mas que seria um salto para cima.

Isso corresponde à história da humanidade. O espírito dos homens havia chegado a um ponto tal que estava para surgir algum dado inteiramente novo, o qual daria um impulso dentro da linha do antigo. É o que se chama tradição. Entretanto, apareceu o Renascimento.

Não é excessivo conjeturar que se a humanidade tivesse sido fiel às graças da Idade Média, teria começado a nascer algo que iria rumo ao Reino de Maria. Porém, com alguma coisa de novo que não se sabe o que é.

Analisemos o gótico e depois vejamos o que dele poderia florescer, a título de conjetura.

A meu ver, esse estilo, mesmo em sua fase inicial, refletia caracteristicamente os seguintes traços do espírito católico europeu da Idade Média: força tendente à perenidade, seriedade e recolhimento.

O gótico é forte e, por essa razão, tende ao perene. Aquelas construções exprimem um possante desejo de durar sempre e de nunca serem substituídas.

Ele tem, por outro lado, uma seriedade, a qual faz com que o interior dos edifícios góticos tenha um recolhimento e uma compostura próprios a quem é muito sério. A luz que neles entra é tamisada por um colorido muito bonito.

Por exemplo, a luz que penetra através dos vitrais da Catedral de Bourges (França) não é a comum, mas de um dia ideal, causando a impressão de um sonho.

É um sonho? Não. A alma, à força de desejar o Céu, conjetura, tanto quanto pode, a respeito de como ele seria. E penetrando numa igreja toda feita de vitrais da Idade Média, tem-se a impressão de que se entra no Paraíso.

Ao mesmo tempo, o gótico é delicado. Considerem aquelas colunas formidáveis das catedrais. Os medievais arranjaram um jeito de trabalhá-las, de maneira a atenuar o que nelas poderia haver de impressão de força quase brutal: esculpiram um feixe de coluninhas que se amarravam umas às outras em torno de uma só coluna. Esta sustenta o teto com muita firmeza, mas dá a sensação de leveza devido às pseudo coluninhas em que se decompõe.

A coluna gótica do lado interior de um castelo, e mesmo de uma catedral, causa a impressão de combate. Trabalhada de maneira a dar ilusão de um feixe de coluninhas, a coluna gótica de grande estilo tem qualquer coisa de tranquilo, sem agitação, e nem a tensão da luta. Ela representa muito mais o guerreiro no seu repouso e na sua oração, do que batalhando.

E a guerra medieval, quando justa, sempre visava a paz, uma solução, uma concórdia equilibrada. E a ogiva exprime isso muito bem. São as duas partes, que podemos imaginar opostas, as quais se resolvem numa posição de equilíbrio, ou seja, numa reconciliação entre elas. Por isso não é raro que no ponto onde as ogivas se encontram haja florões ou adornos, como que festejando a paz.

Também está presente no gótico uma alta noção do dever. Certas colunatas simbolizam um caminho estreito, sério, reto e, sobretudo, elevado, que conduz a uma grande solução: o Céu.

O caminho do Céu não é largo, folgado, espaçoso, agradável, mas apertado, difícil, e está sempre à beira de precipícios, de problemas e outras dificuldades. É grandioso, metódico, do qual, porém, não se pode afastar um passo, porque se perde de vista a meta e se transvia. Isto corresponde à ideia que temos da nossa própria existência, enquanto vivida à luz dos Mandamentos.

Quer dizer, se nos sentirmos opressos pela proximidade de colunas de um lado e doutro, encontraremos os grandes espaços olhando para o alto. Quando a vida estiver apertada, olhemos para o Céu. Assim deve ser a alma do católico.

As almas que fizeram o gótico, tão entusiasmadas e enlevadas com a força, tinham em si muitos outros tesouros.

Depois de terem explicitado em pedra seu desejo e sua afirmação de fortaleza, o mesmo espírito que as animava começou a sorrir e manifestar a sua própria doçura, como quem continua a fazer, no granito, a descrição de suas almas.

Surgem, então, adornos que, sem atraiçoar a austeridade da coluna, transformam a catedral quase num sonho. Abole-se o granito e transforma-se tudo em cristal.

Encontramos esse sonho expresso na Sainte Chapelle, que utiliza a pedra apenas o necessário para suportar o teto e servir de encaixe aos vitrais. Mas o espírito que concebeu a Sainte Chapelle, se pudesse fazer um edifício todo de cristal, sentir-se-ia realizado.

Não devemos ver nisto uma mudança do espírito gótico, porque é algo que estava na alma do homem medieval, desde o início. Assim como uma pessoa que tem uma arca com uma série de tesouros e os vai tirando um por um para mostrá-los, os medievais eram profundamente católicos, e em suas almas havia muitas riquezas em diversas direções.

Eles foram lentamente exibindo, manifestando essas riquezas de maneira que, quando se chega ao pináculo do gótico, parece que nada mais faltava. Dir-se-ia que foi feita a descrição completa de uma alma profunda e verdadeiramente católica.

Entretanto, posso fazer a esse respeito conjeturas, sem o caráter de certeza, tendo apenas o alcance de uma probabilidade. E é nessa perspectiva que considero o assunto.

Que é o espírito gótico?

No fundo, é o espírito da Igreja, inesgotável, imenso, fabuloso. É o próprio Divino Espírito Santo que se manifesta. O espírito da Igreja nunca será inteiramente expresso, pois sempre tem riquezas novas. E nós somente o conheceremos no total quando estivermos no Céu, onde a Igreja militante desemboca na Igreja gloriosa. Podemos afirmar que no gótico havia muitas outras coisas a manifestar, porque ainda não era o espírito católico integral, mas apenas alguns de seus traços.

Por mais que o gótico tenha sido integralmente católico, o espírito católico integral não estava inteiramente representado no gótico.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 28/7/1989)

Quando o sol e o vitral se tornam um

Sempre me comprouve pensar que a Santa Igreja, e com ela a palavra “católico”, é como um vitral sobre o qual incide a luz da História e esta vai fazendo o percurso do astro soberano. O vitral se reveste de um aspecto na madrugada, na iminência da aurora. Em seguida, adquire outra aparência na manhã, outra ao meio-dia, e assim por diante, nas várias fases do dia até o entardecer. E ainda manifesta extrema beleza quando é tocado pelas derradeiras fulgurações do sol, e vemos suas cores brilharem discretamente, como quem nos diz: “Meu filho, até amanhã. Eu voltarei a reluzir…”

Assim, cada época histórica tem o seu modo de contemplar a Igreja, de senti-la, sem contradizer nem se opor à visualização da época anterior. Como, por exemplo, no vitral o aspecto do meio-dia não contradiz o matutino nem o vespertino, mas é um desdobrar de sucessivas facetas que se completam. Para a Esposa Mística de Cristo, essa sucessão caminhará rumo à plenitude, alcançada no fim dos tempos, quando as Igrejas militante e penitente se unirão à gloriosa no Céu. Será o maior, perene e esplendoroso reluzimento do vitral, o momento em que o sol nele se encostou e se tornaram um só!

Essa consideração suscita a pergunta: como terão as várias épocas do passado admirado a Igreja? Em especial, como foi ela vista pela Idade Média?

Ressalvando que essa análise não pretende estabelecer que as almas piedosas de outras eras históricas compreendiam menos bem a Igreja do que as medievais, creio haverem estas ter dado início a uma forma de conceber a Santa Igreja pela qual passou a ser considerada não só como espelho da luz eterna na ordem espiritual, mas também no campo temporal. Quer dizer, tomava-se consciência dessa prerrogativa que Ela sempre possuiu, e desse modo uma certa relação entre as duas ordens ia nascendo de maneira a formar uma civilização inteiramente filha da Igreja, por esta batizada e adornada.

Porém, uma coisa é a joia que uma senhora recebe de presente e usa. Outra, a joia que ela encomenda de acordo com os seus sonhos.

As civilizações grega, romana e outras em que transcorreu a existência da Igreja, não foram as que Ela desenhou para si. Foram civilizações constituídas pela História as quais a Igreja bondosa e maternalmente adotou, abençoou e utilizou como mãe para regalo e benefício desses povos.

Não assim com a sociedade medieval. Quando se deu a decadência e o esfacelamento do Império Romano do Ocidente, a Igreja recomeçou a construir o mundo europeu, aproveitando alguns brilhantes da joia antiga para uma montagem nova onde Ela, por assim dizer, encomendou ao Pai Celeste outro tesouro de brilhantes, incrustando-os aqui, lá e acolá, fazendo florescer a civilização especificamente cristã da Idade Média.

Assim, a Igreja e a cristandade constituíam entre si mais ou menos como dois espelhos paralelos tendo no centro o mesmo foco de luz: multiplicavam, portanto, essa luz, um no outro de maneira indefinida. Espelho imensamente maior, a Igreja; o menor, a ordem temporal, mas as duas ordens se iluminando e irradiando uma na outra, dando origem a tantas maravilhas na arte, na cultura, na política, etc., admiradas até os dias de hoje.

Nesse sentido, poder-se-ia avolumar os exemplos que ilustram tal paralelismo entre as ordens espiritual e temporal na Idade Média. Limito-me, entretanto, a evocar aqui apenas um: as torres.

Pensemos na torre de uma igreja e na de um castelo. Como são congêneres, como é fácil transformar uma torre de castelo em torre de igreja! De outro lado, como a torre da igreja prepara a vista para compreender e amar a torre do castelo! Numa palavra, como o castelo e a igreja são irmãos!

De fato, no fundo todo castelo é um escrínio que contém uma capela, e nesta, a parte mais sagrada é o tabernáculo. Nesse sacrário, o objeto mais valioso é o cibório no qual se encerram as espécies eucarísticas, ou seja, o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo realmente presente em corpo, sangue, alma e divindade.

É uma das mais belas conjugações de temporal e espiritual, de sol e vitral que se osculam, se irmanam e se tornam um só.

Plinio Corrêa de Oliveira

O ideal expresso em beleza

A alma alemã, quando não influenciada por certas tendências contrárias ao espírito católico, é meditativa, idealista, voltada para a constante procura de uma realidade superior, invisível e metafísica. Esse apelo de alma germânico encontra-se, bastante deteriorado, nas composições de um Wagner, por exemplo. E se acha, em todo o seu esplendor, em toda a sua ousadia de voo, na Catedral de Colônia.

À primeira vista, dir-se-ia apenas duas torres, ligadas por um pequeno corpo central de edifício, espremido, quase como um belo hífen que as une.

As torres se lançam vertiginosamente para o alto, concebidas na ideia de levar o espírito para cima e, nessa vigorosa ascensão parecem emular entre si, imergindo cada qual num dos olhos do observador, atraindo-os a extraordinárias alturas. Tanto são leves, esguias, sem abandonar a característica robustez alemã.

Sozinhas, essas torres perderiam algo de sua formosura, ficariam desproporcionadas, claudicantes. Pelo contrário, juntas, harmonizam-se, apóiam-se para subir. A elevação extrema a que chegam é compensada pela base, e por um ponto invisível de equilíbrio — mais uma vez: metafísico — que paira nos ares, elo de junção insuspeitado das duas torres, que o espírito idealiza e o olhar não percebe. Este é o ponto de união no mais alto dos altos das duas torres da Catedral de Colônia.

À medida que se erguem, elas se afilam, se adelgaçam, acentuando a extensão da altura, como se se perdessem nas nuvens. O próprio rendilhado de pedras em que terminam as torres reforçam essa idéia de irreal: já meio céu, meio terra, meio obra do homem, meio obra de Deus, dentro da ilusão de ótica de quem as contempla do solo. As últimas pontas de alvenaria, não conseguindo ir mais longe, morrem sobre si mesmas com elegância e distinção. Tudo é feito para se afinar, afinar, afinar, subir…

Suas ogivas também crescem para o firmamento, e tendem a disputar com as torres a primazia nas alturas.

Ao contrário da fantasia oriental, patente nos minaretes das mesquitas, tão frágeis e delgados, a Catedral de Colônia é a expressão da fantasia ocidental: um mundo de pedras, sólida, com sua base forte, possante, cravada no chão, maravilhosamente compacta até o momento em que as duas torres se separam e começam seu voo.

É a manifestação do gênio da Idade Média que se mostra nessas belezas, lavorado de forma idealista, em busca dos esplendores indizivelmente magníficos que nos aguardam no Paraíso.

OBEDIÊNCIA A CRISTO REI

Há séculos os católicos mantêm o belíssimo culto a Nosso Senhor Jesus Cristo enquanto Rei de todas as criaturas. Mas, além das orações e da veneração aos símbolos, é preciso fazer algo mais para honrar essa divina realeza. O quê? Dr. Plinio o diz neste artigo.

A doutrina da realeza de Jesus Cristo está intimamente ligada à antiga e belíssima prática da entronização do Sagrado Coração de Jesus nos lares. Se alguém entroniza a imagem do Sagrado Coração de Jesus no lugar mais rico e mais nobre do lar, é exatamente porque reconhece que Ele é rei. Entretanto — triste constatação! —essa piedosíssima prática acha-se em nossos dias quase completamente abandonada.

Nessas condições, talvez não seja supérfluo recordar aqui a doutrina tradicional da Igreja sobre a realeza de Cristo.

Na sua infinita misericórdia, Deus dignou-se comparar o amor infinito com que nos ama, ao amor que nos têm nossos pais. Evidentemente, não quer isto dizer que Ele tenha reduzido na comparação as insondáveis dimensões de seu amor, para as amesquinhar até as proporções exíguas dos afetos de que os homens são capazes. Se Ele se serviu dessa comparação do amor paterno, foi apenas para nos dar a entender, de longe, o quanto Ele nos ama.

Se dermos à palavra “pai” o sentido  que ela tem na ordem natural, Deus não é apenas nosso Pai, mas, muito mais do que isto, por ser nosso Criador. Porém, como a função de pai, na natureza, não é senão a de coadjuvar Deus na obra da criação, se alguém merece na realidade o nome de Pai, é Deus. E nosso pai segundo a natureza outra coisa não é senão o depositário de uma parcela da paternidade que Deus tem sobre nós.

O mesmo se dá com a realeza de Jesus Cristo. Para nos fazer compreender a autoridade absoluta que, como Deus, Ele tem sobre nós, Jesus Cristo dignou-se comparar-se com um rei. Entretanto, como é por Ele que reinam os reis, e a autoridade dos reis só é autêntica por provir d’Ele, na realidade o único Rei, Rei por excelência, é Ele. E os reis ou chefes de Estado não são senão seus  humildes acólitos, dos quais Ele se digna servir-se na obra da direção do mundo. Cristo é Rei por ser Deus. Chamando-O de Rei, queremos simplesmente afirmar a onipotência divina, e nossa obrigação de obedecer-Lhe.

Obediência! Eis aí um dos conceitos contidos essencialmente no conceito da realeza de Nosso Senhor. Cristo é Rei, e a um rei deve-se obediência. Festejar a realeza de Nosso Senhor Jesus Cristo é festejar seu poder sobre nós. E, implicitamente, nossa obediência em relação a Ele. Como é que se obedece a um rei?

A resposta é simples: conhecendo-lhe as vontades e cumprindo-as com amorosa e pormenorizada exatidão. Assim, pois, o único modo de obedecermos a Cristo Rei é conhecer sua vontade, e segui-la.

Dessa noção tão clara, tão simples, tão luminosa, segue-se um programa de vida, também ele claro, luminoso e simples.

Para conhecer a vontade de Cristo Rei, devemos conhecer o Catecismo. Porque é ali, através do estudo dos Mandamentos, estudo este que só será completo com o estudo de toda a doutrina católica, que conhecemos a vontade de Deus. E para seguir essa vontade, devemos pedir a graça de Deus pela oração, pela prática dos Sacramentos e por nossas boas obras. Finalmente, pela vida interior, isto é, pela devoção a Nossa Senhora — tesouro doutrinário e espiritual constituído pela Igreja ao longo dos séculos —, seguiremos a vontade de Deus.

Disse Nosso Senhor que o Reino de Deus está dentro de nós mesmos. Ora, este pequeno reino — pequeno como extensão mas infinito como valor, porque custou o Sangue de Cristo — cada um de nós deve conquistar para Nosso Senhor, destruindo tudo aquilo que, dentro de nós, se oponha ao cumprimento de sua Lei.

Finalmente, as leis de Cristo se aplicam, não apenas a um indivíduo em particular, mas aos povos e nações.

Que os povos conheçam e pratiquem na sua organização doméstica, social e política, os ensinamentos tradicionais da Igreja, que são a expressão da própria vontade de Deus, e Jesus Cristo será Rei.

Plinio Corrêa de Oliveira (Transcrito da “Última Hora”, de 8/1/1982. Título nosso.)