A perfeita felicidade

Por vezes, a primeira etapa da vida de uma pessoa parece ser a mais feliz de sua existência. Será que a vida consiste na procura inútil de uma felicidade que ficou para trás? Ora, Deus não poderia permitir que assim fosse, e nos faz ser visitados por uma felicidade provinda da alegria do esforço vitorioso, prenúncio da eterna bem-aventurança, que baixa sobre nós como uma estrela saída das maternais mãos de Maria.

 

Há um período inicial da vida do homem, ao menos para a grande maioria dos homens, que vai pouco mais ou menos do momento em que ele começa a conhecer o mundo externo até as primeiras desilusões com os seus amigos, quando estas não se dão dentro de sua própria casa. Inesquecível felicidade da primeira etapa da vida Nessa primeira etapa a vida há uma sequência contínua de felicidades, e as pessoas têm uma alegria da qual não se esquecem até o fim de sua existência.

Quando chegam à extrema velhice, depois de terem passado pelas situações de alma as mais  diferentes e, portanto, tendo alcançado às vezes os maiores triunfos, como também escorregado até o mais baixo das derrotas mais aflitivas, elas gostam de se lembrar daquela felicidade primeira, como se tivesse sido algo que, uma vez perdido, não se recupera mais. E isso era, para elas, o verdadeiro sentido da felicidade.

]Por vezes, ainda na juventude, depois de o indivíduo percorrer os primeiros quatro ou cinco passos da vida,  olha para trás e percebe que naquele período ele realmente era feliz, mas não sabia que o era. Parecia-lhe tão natural tudo correr bem, ele acomodava-se facilmente ao muito ou ao pouco que sua família possuía; oh, felicidade!

O sujeito avança um pouco na vida e percebe, de repente, que está cercado de preocupações, decepções, tem interrogações confusas, obscuras em relação ao futuro, sente carências, perplexidades e, ao mesmo tempo, uma vontade louca de viver. Mas, no meio de tudo isso, aquela felicidade sem mancha e sem nuvens do passado ficou para trás.

Para gozar bem a vida na Terra, a pergunta verdadeira seria: Como voltar àquela felicidade? Por vezes, os maiores poetas, os homens que passaram por situações as mais emocionantes e  agradáveis, quando falam do tempo de sua primeira infância se comovem.

Considerem a tragédia do homem que, pouco depois de ter dado uns passos iniciais numa grande estrada em busca de algo, percebe ter ficado para trás o que ele procurava, mas ele não pode  voltar.

Napoleão não encontrou a felicidade na carreira gloriosa…

A Córsega é uma ilha que no século XVIII tinha sido incorporada à França. Havia lá a família Bonaparte a qual, perseguida por razões políticas, por ter participado de guerrilhas naquelas  montanhas íngremes, teve que se mudar para a França, em condição pobre. Lá, o mais velho da família, Napoleão, por condescendência do rei, foi recebido como cadete na escola de oficiais.

Ele, então, começou sua carreira que comportou tudo, teve uma ascensão contínua, passou por vitórias militares inebriantes, foi coroado imperador dos franceses, casou-se com uma  arquiduquesa da casa imperial mais ilustre do mundo, a de Habsburg, presidiu congressos de imperadores, reis, príncipes, duques; aos seus pés as plateias eram de cabeças coroadas. Contava-se  este caso: Em determinado palácio onde

Napoleão se encontrava, foi dado um toque característico da entrada de um hóspede ilustre. Então um soldado perguntou para o outro: – Mas quem está chegando? – Ah! não é senão um rei… Tantos eram os imperadores que iam lá, que não sendo um imperador, era zero. Podemos imaginar quantas impressões alegres Napoleão teve na vida, com as quais ele nunca contara. Basta pensar, simplesmente, na data de sua coroação. Como aquilo havia de torná-lo radiante!

…nem na glória reconquistada, após terríveis reveses

Também as desgraças mais fulminantes o acometeram. Em 1814 ele caiu. Os russos, austríacos e prussianos invadiram a França, e ele foi deposto. Tão odiado a ponto de ter que caminhar para o Sul da França e ali tomar um pequeno navio que o conduziria a seu exílio, uma ilha pequena no Mediterrâneo, onde ele tinha o título ridículo de “Rei da Ilha de Elba”. E ele, para quem era  bondade receber um rei, começou a anunciar que Sua Majestade, o Rei da Ilha de Elba, Napoleão Bonaparte receberia todas as pessoas de passagem pela ilha que quisessem conhecê-lo. E se transformou, assim, numa espécie de atração turística, para ter gente com quem conversar.

Em certo momento, as situações políticas lhe são favoráveis, há mil circunstâncias, e ele volta para a França. Em pouco tempo está em Paris, o Rei da Casa de Bourbon foge, e Napoleão retorna ao  palácio, carregado por todos os seus fiéis, e ele é de novo o imperador dos franceses. Imaginem a ebriedade de dormir na cama que ele tinha deixado, servido novamente pelos cortesões
no palácio que ele perdera.

Pois bem, ao cabo de cem dias, exatamente, ele sofre uma derrota em Waterloo e tem que fugir, desta vez para o Norte, onde ele toma um navio inglês, e escreve ao Rei da Inglaterra uma carta na qual ele diz: “Eu vim me refugiar junto ao mais generoso e maior dos meus adversários. Espero de vossa parte uma magnânima acolhida.”

Ao que o monarca inglês responde: “Pois não, você está preso!” Ele vai para Santa Helena, uma ilha vulcânica no meio do Oceano Atlântico, num abandono, uma coisa tremenda! Abandonado  pelos maiores amigos, ele sobe numa embarcação e se dirige ao exílio acompanhado de uma cortezinha de gente que ficara fiel a ele, que o segue para se pendurar nas abas do paletó do homem ilustre.

Trinta dias de viagem, durante a qual ele passa longas horas silencioso, vendo o mar passar . Às vezes, desce para a sala de jantar onde, nas horas das refeições, tem longas conversas com pessoas de terceira ordem, que tomam nota do que ele diz para, quando ele morrer, publicarem suas confidências para ganhar dinheiro .

Desembarcam em Santa Helena e, daí a pouco, dá uma espécie de câncer no estômago dele . No fim de sua vida, ele estava tão fraco que não tinha força para levantar as pálpebras, e assim morreu.

Em determinada altura de sua vida, ainda no auge de seu triunfo, perguntaram para ele:

Qual foi o dia mais feliz de sua vida?

A resposta dele é famosa:

O dia de minha Primeira Comunhão .

Portanto, era a felicidade que ficara para trás.

Um prelúdio da felicidade futura

Mas, então, se é para caminhar cada vez mais se distanciando daquilo que nós procuramos com ebriedade, o que é a vida?

Uma vez que não posso evitar os dissabores, inquietações, desilusões, e encontro a fórmula da felicidade nas saudades dos primeiros passos de minha existência, devo compreender o seguinte: nesta vida, a felicidade é relativa.

Entretanto, Deus não seria Deus se fizesse dessa primeira felicidade originária apenas um sarcasmo: “Vive, Eu te dou uma lambiscada na taça inefável da felicidade e te solto no mar das dores. Anda”.

Não, Deus não faz isso. Ele dá ao homem uma promessa magnífica:

“Aquela felicidade que tiveste no início, meu filho, foi uma amostra da bem-aventurança  eterna  que terás no fim. Não é real que vais te afundando de infelicidade em infelicidade. Pelo contrário, a verdade é que, no fim do caminho, encontrarás a felicidade. Terás que passar pelos umbrais da morte, mas para além desta encontra-se a felicidade radiosa da qual Jesus Cristo goza no Céu. Tudo quanto foi felicidade em tua infância está para a que terás no futuro como a luz de um vaga-lume está para a de dez mil sóis reunidos. Não se pode ter ideia do que seja essa felicidade que te espera. Terás de caminhar e sofrer . Sofre com retidão e receberás esse prêmio. Caminha, afunda-te na dor, na dificuldade, com resignação e coragem, transpõe esse mar de tormentas e cai na sepultura; do outro lado será a aurora eterna! Não olha para teu passado como para a felicidade perdida. Olha para ele como a promessa da felicidade a ser adquirida.”

Gemendo sob o peso da cruz

Ao que alguém poderia responder: “Senhor, como tudo isso é grandioso, como é magnífico! Permiti-me dizer: como é misericordioso, como é terrível! Uma tão longa caminhada durante a qual não encontro um oásis, uma gota de água cristalina, uma sombra, um pouco de grama verde, um coqueiro, e tenho que caminhar, caminhar, caminhar, partir do Mar Vermelho para chegar ao outro lado do oceano . . . Senhor, sei que é um oceano de delícias, pois Vós o afirmais. E dizeis mais: a delícia para mim sereis Vós, e eu creio, meu Deus. Mas, Senhor, tende pena de mim! Quero muito chegar lá, mas não tenho forças para atravessar esse deserto. Tanto mais que não se trata apenas de transpô-lo. Muito mais do que isso, é mister atravessá–lo direito. É a lei da minha cruz, ó meu Deus: carregar a vossa.

“Carregar a cruz de não pecar, de ser virtuoso, de cumprir os vossos santos e magníficos Mandamentos . Mas estes são como a felicidade: encantam-me, começo a cumpri-los e eles me pesam. E o peso é tão grande que às vezes, por minha culpa, caio e tenho a desgraça de Vos ofender. Em minha jovem idade, quando vejo Dr Plinio com setenta e sete anos, imagino quanto tempo vou ter que andar nesse deserto!”

Um outro dirá a esse coitado:

Então peça a Deus para morrer .

Também não, – responderia o jovem – tenho medo de morrer Meu Deus, tenho medo da vida, tenho medo da morte! Oh, tempo dourado, que ficou para trás, quando eu não pensava nisso! Dr . Plinio, o senhor não percebe que eu não tinha vontade de olhar de frente o que o senhor está me mostrando? E o senhor abre, à machadinha, minha cabeça e me conta o que eu tinha medo de ouvir! Agora o fato está consumado, vi que é isso mesmo, e o senhor não leva em conta o quanto eu procurava envolver-me em nuvens para não olhar de frente. O senhor sopra em cima da minha nuvem e estou eu diante desse quadro. Oh! Dr . Plinio, por que o senhor fez isso?

O reencontro da felicidade primeira

Deus é Pai cheio de misericórdia e nos dá um meio de sentirmos, de vez em quando, ao longo do caminho, a felicidade que deixamos. Ela nos visita multiplicada por si mesma, como uma estrela que baixasse do céu para nos iluminar a via, e com a qual pudéssemos brincar.

É uma coisa que depende de  nós. De tal maneira depende tanto de nós que se diria depender só de nós e não d’Ele. Mas depende tanto d’Ele que se diria depender só d’Ele e não nós.

Quando o homem, nesta vida, tem a consciência reta, cumpre os Mandamentos pela graça que recebe do Céu e sabe estar caminhando para o Céu no meio de mil dores, há momentos em que a estrela cai do céu e visita-o. É o momento em que a pessoa se sente pura, tem alegria de consciência por estar levando a vida que devia, e correspondendo às felicidades enunciadas por Nosso Senhor no Sermão das Bem-aventuranças. E, por um lado de sua alma, aquela felicidade inicial continua até a pessoa chegar aos bordos iluminados de toda felicidade, e então morre tranquila.

Não há quem, sendo católico praticante, pela graça de Deus e rogos de Maria, não tenha sentido a alegria de confessar-se e sair deste sacramento com a impressão de que sua alma ficou limpa, a absolvição pousou sobre ele e o reconciliou com Deus, e ele deixou o confessionário satisfeito, com o corpo e a alma mais leves. Às vezes dura pouco, embora a pessoa mantenha-se por muito tempo em estado de graça. Mas que sensação, que felicidade! Não é verdade que reencontramos aquela felicidade primeira?

Um grau a mais da felicidade: a do heroísmo!

Daí a pouco  chega a tentação e começa a luta. Com a luta, tem-se a impressão de que a felicidade se afastou. E, realmente, muitas vezes a luta é terrível . Mas quando a luta passa, compreendemos que até durante a luta éramos felizes, porque tínhamos consciência de estar vencendo, sendo fiéis a Nossa Senhora, a Nosso Senhor e calcando o demônio aos pés.

Às felicidades da infância se junta uma nova que a infância não conhece: a felicidade da vitória, de  ter  feito o esforço e ter conseguido. A primeira infância não conhece isso. Tudo lhe cai na mão, sem esforço . A pessoa tinha a ilusão de ser aquilo felicidade  precisamente porque não exigia esforço. Mas quando conhece a alegria do esforço vitorioso, compreende: “Eu subi um grau na felicidade. Tornei-me herói, venci pela primeira vez e respirei o ar puro dos píncaros. Ah, quero mais píncaros, porque quero vencer!”

Vencer antes e acima de tudo o pecado. É essencialmente o inimigo que devemos derrotar. Que tranquilidade e gáudio quando um homem pode dizer: “Atravessei tal provação, porém cumpri meu dever. Tentado por toda forma de impureza, de cólera, de abatimento, de covardia, por tudo, resisti e venci!”

Alguém poderia objetar: “Pobre miserável, você não venceu nada. Você não fez carreira. O que você venceu?”

A resposta é simples, e agora falo do meu caso concreto. Eu venci o meu pior inimigo: Plinio Corrêa de Oliveira. Porque cada um de nós tem dentro de si o seu pior inimigo, de quem se trata de desconfiar, pegá-lo pelo pescoço e derrotá-lo. E se Nossa Senhora me conceder a graça de vencer até o fim esse inimigo, afinal de contas, olhando para meu passado eu diria: Foi um caminho de dor; é uma esteira de luz!

Então, o que vem a ser a felicidade nesta perspectiva? É a lembrança fiel, de um gosto do Céu que eu, batizado, filho da Igreja, membro do Corpo Místico de Cristo, tive na origem de minha vida. E, no fundo, é essa a felicidade que eu procurei a vida inteira e me foi dada às gotas, de vez em quando, enquanto eu ia caminhando. Eram os oásis. No fim, vem o Céu .

Todo homem que sinceramente possa dizer isso de si mesmo e para quem foi mesmo assim, dele se poderá escrever na sua sepultura: “Aqui jaz anônimo. Foi feliz porque foi para o Céu”.

O mundo nos oferece conchas cheias de aflição

Considerem um ricaço que reformou sua casa dez vezes ao longo da vida e comparem com uma pessoa que possui uma casinha média e passou a vida inteira contente naquela casa. Quem é mais feliz: o que reformou a casa uma porção de vezes ou quem soube encontrar deleite numa casa que não precisou de reformas?

O mundo apresenta padrões de felicidade que são conchas cheias de aflição . Para ver, são lindas . Experimenta-se, é aquela amargura. Que desilusão, que coisa tremenda! Uma vida sem sentido, sem significado, que leva as pessoas a se perguntarem para o que estão vivendo e, por vezes, a praticarem o suicídio.

Nossa civilização tão rica, à qual se insiste em apresentar como sendo o mundo da felicidade, é a que conheceu em alto grau uma das manifestações mais impressionantes de infelicidade, algo privativo de nossa época: o suicídio de crianças.

Alegria que desce do Céu sobre aquele que cumpre o dever

Qual é, então, o mundo da felicidade?

Pensem nos cruzados partindo para a Terra Santa. Sobre uma relva bonita os corcéis começam a desfilar, como tudo é bonito! Mas, sobretudo, é bonito notar uma certa alegria daqueles cruzados que vão para onde? Para o perigo. Eles sabem que, com as embarcações frágeis daquele tempo, podem ir parar no fundo do Mediterrâneo, e o mar se torna para eles uma sepultura .

Quando o atravessam, do lado de lá encontram o calor tórrido do deserto, com o qual não estão habituados, uma natureza seca, árida, onde o perigo maometano os aguarda. Com isso, quantas e quantas vezes a morte sem médico, sem cirurgia, tremenda, no campo de batalha; horas de sede abrasadora, porque o sangue está escorrendo e o cruzado tem vontade de beber uma gota de água, mas não tem quem a dê, porque está sem socorro. Metido naquela armadura que ele vestiu por amor a Nosso Senhor Jesus Cristo, sobre a qual bate o Sol, desde a manhã até a tardinha, e ele está metido num forno .

Sabendo de tudo isso, como podem estar tão alegres na hora de partir? Há, entretanto, algo da felicidade da infância. É a alegria descida do Céu sobre o homem que está cumprindo o seu dever. Uma alegria de Anjo que não o abandona, nem sequer quando ele

estiver, como num forno, dentro de sua própria couraça, exangue, morto de sede, mas lembrando-se de que Nosso Senhor, antes de expiar disse: “Tenho sede!” E na consideração de estar sofrendo o que Cristo sofreu, o cruzado tem o ósculo da graça na sua alma e morre em paz. Ah, isso é felicidade!

A perfeita alegria

Conta-se que estando São Francisco de Assis em viagem, em pleno inverno, junto com outro frade de sua Ordem, este lhe perguntou, atormentado pelo intenso frio.

Pai, peço-te, da parte de Deus, que me digas: onde está a perfeita alegria?

Ao que o Santo respondeu:

Quando chegarmos ao Convento, inteiramente molhados pela chuva e transidos de frio, cheios de lama e aflitos de fome, e batermos à porta, e o porteiro chegar irritado e disser: “Quem são vocês?” E nós dissermos: “Somos dois dos vossos irmãos”, e ele replicar: “Estão mentindo; são dois vagabundos . Fora daqui!” E nos deixar sob a neve e a chuva, com frio e fome até à noite; se então suportarmos tal injúria e crueldade sem nos perturbarmos nem murmurarmos contra ele, nisso está a perfeita alegria.

E acrescentava São Francisco:

– E se ainda, constrangidos pela fome e pelo frio, voltarmos a bater à porta durante a noite e pedirmos, pelo amor de Deus e com muitas lágrimas, que nos abra e nos deixe entrar, e ele mais escandalizado disser: “Vagabundos importunos, pagar-lhes-ei como merecem”. E sair com um bastão, nos agarrar pelo capuz, nos atirar ao chão, nos arrastar pela neve e nos bater; e suportarmos todas essas coisas pacientemente, pensando nos sofrimentos de Cristo; ó irmão Leão, nisso está a perfeita alegria!

A meu ver São Francisco fez uma grande descoberta. Quer dizer, na hora em que renunciamos a tudo por Nossa Senhora e vamos para a frente, em certo momento baixa sobre nós a perfeita felicidade.

Como uma estrela vinda das maternais mãos de Nossa Senhora

Se do alto píncaro franciscano é lícito descer para a vida corrente de nossos dias, conto um pequeno episódio para concluir estas reflexões.

Eu tinha mais ou menos vinte anos quando passei por uma série de provações espirituais tremendas, como eu nunca pensei que sofreria em minha vida.

Passados seis meses de tormento, certa manhã, na São Paulinho de então, com o movimento ainda pequeno, os primeiros bondes, os primeiros automóveis começavam a circular, eu estava esperando um bonde que me levaria à Avenida Paulista, numa esquina de onde eu podia ver a imagem de Nossa Senhora no alto da cúpula da Igreja da Imaculada Conceição .

De repente, começo a notar uma coisa assim: “Que luz particularmente bonita hoje! Como isso aqui está cheio de passarinhos que cantam! Essa aurora quer dizer alguma coisa. Está mais bonita até do  que

o costume, não pensei que auroras fossem bonitas assim. Que bem-estar sinto em mim, não posso compreender o que é isso. Tenho até a impressão de que o meu infortúnio está passando. Estou começando a sentir uma alegria como nunca senti na minha vida, ela me enche a alma, mas não sei explicá-la”.

Isso durou algumas horas, mas logo após o infortúnio se reapresentou com garra de ferro .

Dali a alguns dias, em meio à batalha, abro um livro de leitura espiritual e começo a ler. Aquilo me inundou de felicidade novamente, mas muito mais definida do que aquela que experimentara dias antes.

A partir de certo momento iniciou-se para mim um período de uns seis meses durante os quais sentia uma felicidade indizível e contínua. Eu vivia, então, no meio da alegria, da satisfação, e me sentia, por assim dizer, no Céu. Assim, depois de ter dito a mim mesmo: “Não pensei ser possível tanto sofrimento”, passei a pensar o seguinte: “Não pensei que se pudesse ser tão feliz nesta Terra”.

Atravessemos, pois, todos os infortúnios, e vamos para a frente, e encontraremos a verdadeira felicidade dos primeiros passos da vida reapresentando-se, de vez em quando, como uma estrela que Nossa Senhora deixa cair de suas maternais mãos para as nossas, para nos dar um certo gáudio que Ela, melhor do que ninguém, gradua para cada um, pois sendo nossa Mãe, sabe o que nos é necessário. A cada felicidade dessas nós devemos oscular e dizer, como a Santíssima Virgem: “Magnificat anima mea Dominum” e pensar:  “Ó Céu, eu caminho em direção a ti!”

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 26/7/1986)

Uma ave radiante de beleza

Ainda que não consigamos expressar o que nos vai à alma quando nos deparamos com a beleza posta por Deus em suas criaturas, estas nos encantam e arrebatam.
Dr. Plinio, entretanto, além de enlevar-se com elas, era capaz de, ao analisá-las, explicitar verdadeiras maravilhas.

Quando o pavão abre sua cauda, tem-se uma primeira impressão estonteantemente rica, ordenada e atraente, que faz a pessoa ficar um pouco agredida pela beleza que ela tem.

Depois, num segundo momento, após haver absorvido o aspecto geral que há na ave, começa-se a deitar os olhos neste ou naquele pormenor, a fim de explicitar a primeira impressão.

Começa-se, evidentemente, pelas penas da cauda. Elas têm qualquer coisa de sedoso, próprio do brilho da seda ou do brilho do cristal, eu diria até, do brilho da pedra. Seu brilho fica entre a pedra e a seda. Para compreendermos bem a beleza que há na cauda do pavão, deveríamos imaginar uma pedra sedosa, ou uma seda pétrea.

Suas penas possuem uns semicírculos formados por diferentes cores; no interior há umas como que sub-cores que se acumulam e se resolvem umas nas outras, deixando pasmo quem as contemple.

Quando já estamos pasmos nessa contemplação, o pavão fecha sua cauda e vai passear noutro lugar, tranquilo, arrastando no chão aquela cauda feita de pseudo pedrarias incomparáveis. Temos vontade de apanhá-lo e dizer-lhe: “Não ande assim com essa cauda, ponha isso no alto porque estraga!” Porém, sua cauda é tão superior ao solo que nada a suja. Ela tampouco varreu o chão; apenas passou sobre o solo à semelhança de um avião que sobrevoa uma cidade, sem, entretanto, derrubar nenhum prédio, mas também sem se deixar abalar pelos edifícios!

Em seguida, quando estamos entusiasmados na contemplação de sua cauda, nosso olhar deita-se no pescoço do pavão.

Éclatant1 de beleza, com um colorido composto por uma mistura de verde com azul, ele possui tal distinção que se diria quase tratar-se de uma grande dame2. O pavão, às vezes, vira-se para trás, olha de cima, toma um recuo como quem diz: “Realidade, como te atreves a estar tão próxima de meu olhar! Afasta-te, pois eu te vejo igualmente bem de longe, e tu me vês melhor quando eu estou longe de ti. Para longe!”

No alto da cabeça do pavão há um “topetinho”, que, à primeira vista, não seria necessário de nenhum modo para a beleza dele, mas que tem o encanto do supérfluo. Ele nos dá a seguinte impressão: “A partir de agora, acrescentar algo a essa ave seria demasiado, pois sua beleza não permite mais nenhum ornato”.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 20/3/1993)

Espírito metafísico e espírito sobrenatural – I

Quando bem orientado, o espírito metafísico deve buscar sempre a perfeição absoluta, conduzindo a pessoa à ordem sobrenatural na qual a Igreja nos introduz. Esta disposição de alma, que se resume no espírito sacral, é o pressuposto da boa formação espiritual e da Civilização Cristã.

 

O espírito metafísico é aquela excelência do espírito humano pelo qual a inteligência não se contenta com as explicações imediatas das coisas, mas procura uma explicação suprema. Não se contenta com a satisfação limitada que as coisas terrenas podem dar, mas busca um deleite mais alto, transcendente. E com o mero uso da razão, portanto sem recursos sobrenaturais, procura fazer uma ideia de qual seja essa explicação de todas as explicações, esse bem de todos os bens, e constrói aquilo que nós chamaríamos os dados naturais da religião.

Marcha do espírito metafísico

Assim, a existência, a unidade, a eternidade, a perfeição de Deus. Ele enquanto sendo justo e, portanto, que castiga e premia, ama os homens, governa. Essas são verdades a respeito de Deus que o homem com espírito metafísico deduz pela razão, considerando o universo.

A marcha do espírito metafísico pode colocar-se da seguinte maneira. Eu vejo uma pessoa que pratica um ato extremamente bom, por exemplo, de valentia, de caridade ou de severidade. Olho para aquilo e digo: “É extraordinário como esse homem tem tal virtude. Mas ele a possui de modo limitado. Eu poderia imaginar esta virtude existindo em grau muito mais alto em outrem.”

Isto é sempre verdade. Ainda que nós conhecêssemos Aquela que é o sol das virtudes, Nossa Senhora, poderíamos dizer: “Ela tem esta virtude em grau de deslumbrar, de comover, de não se saber o que dizer.” Mas, analisando as coisas com toda a firmeza, nós diríamos: “Ainda que se pudesse ser mais santo do que Ela, Santo de uma santidade inatingível por nenhuma criatura, só Deus”.

Então, depois de eu ver uma pessoa muito boa, posso afirmar: deve existir uma bondade maior do que a dela. Porque toda bondade menor não existiria se não fosse a bondade infinita da qual ela participa. Logo, deve haver a bondade infinita, um Ser que é infinitamente bom; não é apenas infinitamente bom, mas a própria bondade: Deus.

De tudo do universo que eu vejo, posso fazer isso. Por exemplo, aquela flor francesa chamada “muguet” (lirio-do-vale) , que floresce em maio e dá a impressão de uns sinozinhos brancos, é a própria expressão da delicadeza.

Se tal flor tem aquela delicadeza, minha alma que gosta da delicadeza apreciaria conhecer, é apetente de uma delicadeza imensamente maior do que aquela.

Mais ainda. Minha alma, que é finita, apetece uma delicadeza infinita. E depois que eu conheci uma coisa delicada, minha alma só encontra repouso no momento em que encontre a delicadeza infinita.

A Igreja nos introduz numa ordem sobrenatural

Todas as coisas delicadas da Terra não me bastam, eu quero mais, sempre mais, quero o perfeito, o infinito. Esta disposição do espírito de, em matéria de bom, de belo, querer sempre o perfeito e só se contentar com o perfeito, é uma excelência da alma. Isto leva a consideração, pela via da razão, de um Deus que tenha isto, e a minha compreensão: sou um desgraçado, um miserável enquanto não conhecer este Deus. Toda a vida é pálida e inexpressiva enquanto eu não O conhecer.

É absurdo que a natureza seja mal constituída. Ora, ela seria mal constituída se não existisse a delicadeza infinita. Logo, ela existe e, portanto, há um Deus que é a delicadeza infinita. Este é o espírito metafísico.

O próprio do católico que tem a alma bem formada é possuir esses anseios sem fim, das coisas perfeitas e eternas. O característico do católico com a alma mal formada é imaginar que a vida nesta Terra pode satisfazer.

Então, há o espírito metafísico que se estende para essas coisas, e existe o espírito limitado, circunscrito, que fica apenas no físico, e não no metafísico, no além do físico – eu estou forçando um pouco os termos –, e que se contenta com esta vida. Então um dos primeiros pressupostos do amor de Deus é ser incontentável com as coisas desta vida, e só querer o infinito. 

Ademais, se Deus existe, Ele tem que ser de uma essência e de uma natureza maior do que a nossa. Daí vem a facilidade de admitirmos que Deus nos falou e nos comunicou suas verdades e sua graça, deu-nos uma Revelação e uma Igreja que nos introduz numa ordem sobrenatural, e que tudo quanto puramente na ordem natural nós tínhamos pensado é superado pelo que a Revelação nos ensina de um modo fabuloso.

Então nós temos um anseio maior do que o simplesmente metafísico, que é o anseio para o sobrenatural. Admitimos com facilidade a Revelação, não com superficialidade de espírito, por tolice, mas por uma agilidade de espírito por onde compreendemos facilmente que aquilo é verdade. Temos facilidade em amar as coisas reveladas, somos dóceis para a graça e a ordem sobrenatural.

O espírito sobrenatural e o espírito metafísico se resumem numa só palavra: espírito sacral. O espírito sacral tem um aspecto metafísico natural, e um aspecto sobrenatural que diz respeito à Revelação e à graça.

Defeito de alma que enfraquece o edifício das virtudes na mentalidade dos católicos

Então nós devemos dizer que o pressuposto de toda a Civilização Católica, de toda formação espiritual é que as almas tenham essa disposição. Pelo fato de, mesmo na Igreja, não se insistir bastante sobre isto, havia católicos “carunchados”, porque a maior parte dos meninos saía do Catecismo com a seguinte ideia: “Você morre ainda que não queira, não tem remédio, todo mundo morre. Este é o primeiro fato consumado. O segundo é que depois você vai ser julgado. Terceiro fato consumado: há uma tabela de dez pontos que você precisa obedecer, senão vai para o Inferno; queira ou não queira, você vai encontrar isto diante de si. Então trate de andar bem para não ir para o Inferno. Aliás, se você – dito mais rapidamente – não for para o Inferno, vai para o Céu, o que é muito agradável”.

A criança olha um santinho, vê um Anjo sentado numa substância azul olhando a eternidade passar. Ela pensa: “É isso o Céu? Quando eu comparo com o Inferno é uma saída. Depois me dizem que é bom. Não entendo muito aquele azul, mas enfim tem que ser bom em tese. Lá vou para o azul e está acabado”.

Isto não é despertar o senso sobrenatural, porque a criança fica com a ideia seguinte: “O gostoso seria eu viver neste mundo eternamente; sempre feliz, rico, saudável, não ter Céu nem Inferno; não quero mais nada.”

Este é o defeito de alma que torna tão fraco o edifício da virtude na mentalidade dos católicos. É um pressuposto que se deve ressaltar vivamente. Porque todo trabalho da opinião católica que não tonifique fortemente estes dois princípios resulta numa ação fraca. Vem da debilidade destes princípios o fato de que as pessoas praticam – quando praticam – os Mandamentos a duras penas, resvalando entre o bem e o mal, com concessões, e sempre aparecendo o bem como frágil e o mal como forte.

O que dá uma espécie de baixa e de desânimo. A pessoa perde a coragem na prática dos Mandamentos. E pensa: “Não sei como Deus conduz estas coisas. Ele é sempre derrotado. O partido d’Ele é sempre o mole, o fraco. A Fé, a virtude, é uma fraqueza? A força está no vício. Todas as batalhas da História têm sido ganhas pelo mal, a Igreja não faz senão recuar. Ela agora até está se liquefazendo. Eu fico desanimado.”

Ora, se a alma tivesse estes pressupostos bem nítidos e amasse a Deus como estou acabando de dizer, ela seria capaz de todas as fortalezas. Então veríamos a opinião católica caminhar para a frente. Este é o sentido profundo, o ponto fundamental de toda verdadeira formação católica nos termos que podem interessar o homem moderno.

O verdadeiro homem moderno tem que começar por ser homem, e ser moderno no sentido próprio da palavra. Não é um “Maria vai com as outras”, que acompanha o caudal, mas sim um homem à maneira de São João Batista, que era um homem moderno, quer dizer, adequado, oportuno, útil para seus dias, capaz de curar os males de sua época.

Devemos ter em mente que, antes de tudo, somos uma escola de amor de Deus. E como tal procuramos principalmente lecionar, a respeito do amor de Deus, as verdades esquecidas, mais negadas em nossa época. Nossa Senhora, que nos ajudou a caminhar bastante nesta linha, nos ajudará a ver qual é o modo de ensinar isso.

(Continua no próximo número)

 

(Extraído de conferência de 17/11/1972)

Revista Dr Plinio (Março de 2019)

Ó Igreja Católica!

Diante da Catedral de São Marcos somos objeto de uma determinada impressão a respeito do desejo de maravilhoso, de grandioso, inspirado pelo espírito de Fé, com que, em louvor de São Marcos, ela foi construída. É uma das mil cintilações deslumbrantes do espírito católico que se manifesta ali, de maneira que, ao contemplá-la, uma pessoa pode dizer: “Igreja Católica é isto. Ó Igreja Católica!”

Quando se faz uma viagem muito cheia de impressões, densa de coisas que se viu e sobre as quais se pensou – ao menos no meu espírito é assim –, nem tudo aflora imediatamente. A pessoa deixa repousar as impressões de viagem e depois elas vão se evolando de tempos em tempos, mais ou menos como as flores que demoram para exalar todo o seu perfume. Passa-se por uma flor, ela se abriu e esparge seu perfume novo. No dia seguinte ela não está recendendo a nada, mas no terceiro dia, quando se pensa que já deixou de exalar sua fragrância, há uma segunda onda de perfume que se exala da flor, e assim por diante. Deste modo são também as recordações de viagem: há várias exalações consecutivas, de vários significados e bons aromas que se vão apresentando, formulando-se à medida que o tempo passa.

Obras impregnadas pelo sobrenatural

Recentemente consegui explicitar melhor alguma coisa que me vinha à mente em minha última visita à Europa, pela comparação entre a impressão que o Velho Continente me causou nas anteriores viagens e a que tive nesta.

Para ficar bem clara a questão, parece-me melhor exemplificar em concreto com a Catedral de São Marcos. Antes, porém, dou uma pequena introdução e depois faço a aplicação.

Suponhamos que um escritor como São Bernardo redige um sermão sobre Nossa Senhora, ou um rei como São Luís IX publica suas Capitulares, isto é, uma legislação sobre um determinado corpo de assuntos. Mas tudo é feito com espírito católico e com a intenção de servir à Santa Igreja e à Civilização Cristã. Por causa da intenção que presidiu a isso, a graça pousa, por assim dizer, naquela obra. E quem a lê tem duas impressões.

Uma natural e humana que a leitura daquele texto pode causar. Por exemplo, São Bernardo é um escritor exímio, de grandes voos literários, um notável burilador da língua francesa, sob o impulso de quem esse idioma explicitou de sua genialidade original tais aspectos novos. São impressões naturais que nos vêm ao espírito, causadas pela leitura do trabalho de São Bernardo.

Mas como aquela obra foi feita por amor de Deus, com a intenção de despertar pensamentos sobrenaturais inspirados pela Fé e tendentes à glória do Criador, entra também uma graça, porque ninguém é capaz de pensar uma obra com base na Doutrina Católica, nem de querer uma coisa para o bem da Santa Igreja ou para a glória de Deus, que não seja pela graça.

Sem auxílio dela ninguém pode fazer essas operações intelectuais e da vontade, pois o homem  é inteiramente inerte e incapaz de as realizar se não tiver o auxílio da graça.

Assim, São Francisco de Sales – para tomar outro autor – escreveu a “Filoteia”, a “Introdução à Vida Devota”, e quem a lê tem a impressão de estar essa obra embebida pela graça, e é absorvido  pela graça que baixa de Deus, mas ajustada, correlata ao texto lido.

Então, ao operar natural da inteligência, da vontade e da sensibilidade, soma-se uma operação de origem sobrenatural pela qual na leitura a pessoa percebe belezas novas de caráter absolutamente superior, extraordinário. Às vezes elas reluzem aos olhos do espírito do leitor através de um fenômeno da mística. São de uma pulcritude maior do que todas as belezas naturais, pois o  sobrenatural vale mais do que o natural.

Amor de Deus, corolário das construções medievais

Isto que se diz a respeito de escritos pode-se igualmente aplicar a monumentos, catedrais, imagens, obras de arte. Por exemplo, as estalas superiormente bem esculpidas de um convento, uma  armadura medieval, um vitral, obras estas realizadas com espírito sobrenatural para o serviço de Deus, mas também com uma finalidade natural. Quem as vê é visitado por uma graça que lhe faz compreender as analogias que elas têm com realidades sobrenaturais.

De onde um muito grande apreço do homem por aquilo que ele vê. Por exemplo, a Catedral de São Marcos e a de Notre-Dame de Paris. Mas não apenas catedrais, às vezes são edifícios destinados a uma finalidade civil, como uma fortaleza, um castelo, que é a residência de uma família feudal e, ao mesmo tempo, a defesa desta família e da população, do burgo vizinho, contra possíveis agressões de maometanos, de bárbaros. Portanto, uma finalidade natural.

Mas o castelo com aquelas torres, aquele jogo de ameias e barbacãs, dá uma impressão sobrenatural, proporcionada pela graça, e que vem do fato de que o castelo simboliza extraordinariamente bem para nós a virtude da fortaleza, enquanto praticada por amor de Deus.

Assim, chegamos à conclusão de que muitos dos monumentos existentes na Europa foram construídos na plena era do amor de Deus, isto é, no apogeu da Idade Média. Outros em épocas posteriores ou anteriores. Nas anteriores, enquanto o gótico começava apenas a ser vislumbrado pelos seus primeiros artistas, o românico era o estilo usado.

Tinha ele, entretanto, charmes, encantos em que algo do sorriso todo cheio de afabilidade, de majestade e de uma discreta melancolia do gótico ia se formando, aparecendo, o que pode ser notado num edifício, numa praça, etc. Ademais, é possível que a graça dê à pessoa um especial discernimento do espírito com que, em concreto, aquilo foi construído. Então, diante da Praça do Paço Municipal de Siena, a pessoa pode ter um discernimento especial de qual era o espírito dos sienenses daquele tempo, de como entrava ali a graça, e fazer uma recomposição das famosas “contradas”, aqueles jogos entre as corporações e associações religiosas, que despertam esse ou aquele estado de espírito. Então aqui está uma ordem de ideias.

Há locais impregnados pelo sagrado…

Passo a considerar agora outra ordem de ideias. Não é mais o estilo, a aparência material, nem mesmo a mentalidade dos que planejaram, executaram ou viveram em determinado lugar, mas é a natureza dos atos que ali se passaram.

Há um princípio admitido pela piedade católica segundo o qual, quando em um ambiente se passou algo de muito sagrado, aquele lugar fica de algum modo sagrado também. Vou dar um exemplo de tal maneira supremo que, por assim dizer, estoura o assunto, mas enfim de um estourar sagrado, magnífico: o Horto das Oliveiras, onde se deu o primeiro mistério doloroso do Rosário, a  Agonia de Nosso Senhor Jesus Cristo. “Agonia”, em grego, quer dizer “luta”.

Então a luta de Nosso Senhor contra o legítimo arrepio de seus sentidos diante da perspectiva da morte que deveria vir, com tudo quanto a antecedeu. Ali, onde Ele disse: “Pai, se for possível afaste-se de Mim este cálice, mas faça-se a vossa vontade e não a minha” (Lc 22,42).

Veio então um Anjo – o qual podemos imaginar cercado, nimbado de uma luz ao mesmo tempo alvíssima e triste por causa da tarefa que ele devia executar – levando para Nosso Senhor um cálice de uma bebida que haveria de Lhe dar força sobrenatural para tudo aquilo que Ele suportou na Paixão.

Então, onde Ele esteve, sofreu e derramou o primeiro Sangue da Paixão, tudo isso torna sagrado  lugar em que essas cenas se passaram. Por essa razão, quando se está naquele lugar recebem-se graças, não raramente sensíveis, pelas quais a alma é levada ao amor de Deus, à contrição, ao arrependimento, à compunção, à piedade, à compaixão para com o Cordeiro de Deus que ali sofreu para nossa salvação.

Aquele lugar tem bênçãos especiais.

…outros, habitados por uma graça

“Mutatis mutandis”, os locais onde se passaram grandes fatos históricos, eminentes atos de coragem, de virtude, de renúncia, na História da Cristandade, tornam-se lugares particularmente dignos de reverência. Às vezes até fatos sem uma relação direta com a Religião, mas nos quais reluz algo do espírito católico.

Vem à minha memória a execução do Duque d’Enghien, ordenada por Napoleão. Esse duque, último da linhagem dos Príncipes de Condé, reunia em si o aspecto heroico, a estampa afidalgada, a coragem, a ousadia, quase a temeridade de seus antepassados. Possuía qualquer coisa do espírito repentino e irresistível do Grande Condé.

Napoleão tinha intuitos de acabar com esse último descendente da Casa dos Condé, e para isso aproveitou-se do fato de que esse duque estava noivo de uma princesa francesa residente não longe da fronteira alemã, mas do lado alemão, onde a tropas de Napoleão não podiam penetrar. O Duque d’Enghien foi visitar a noiva e quando o Sol já havia se posto, Napoleão mandou um destacamento transpor o Reno, entrar nesse  lugarzinho, agarrar o Condé e levá-lo preso para a França.

Depois de um simulacro de julgamento, que ninguém toma a sério, mandou matá-lo. A calma do Duque d’Enghien nesse momento extremo, sua dignidade, presença de espírito – segurou calmamente a lanterna para que os tiros acertassem nele –, suas últimas cartas, tudo isso tem um aroma de Cavalaria. É bonito ver esse cintilar de luzes da Cavalaria, brilhando na época miserável em que o mundo estava conspurcado pela Revolução Francesa.

Estando em Vincennes, e sabendo onde o Duque foi executado, eu quereria ir visitar o local em espírito de peregrinação. Não tenho nenhum documento comprovatório de que esse homem fosse especialmente piedoso. Dói-me a hipótese de que não o tenha sido. Apesar disso, não há dúvida nenhuma de que se ele não descendesse de ancestrais católicos, não seria essa flor do heroísmo católico a desabrochar dentro da poluição imunda da Revolução Francesa. Portanto, nessas condições, eu iria em espírito de peregrinação ao lugar onde ele foi imolado com tanto garbo, tanta galhardia, e rezaria por sua alma.

Isso nos dá a impressão – notem bem, não é a realidade – de que as cenas ocorridas em determinados lugares, como que ainda estão se passando ali. É fora de dúvida que aquele passado todo revive, e para quem está ali ele tem um prolongamento, uma continuidade misteriosa que emociona especialmente o visitante. Onde existem coisas assim, houve graças extraordinárias.

E do mesmo modo como a graça desce à alma de quem lê, com trezentos anos de diferença, um livro de São Francisco de Sales, ela também age na alma de quem, duzentos anos depois, visita o lugar onde o Duque d’Enghien foi fuzilado.

Essa impressão de lugar habitado pela  graça, no qual se tem a impressão de que os fatos revivem e entramos numa misteriosa intimidade com eles, é altamente benfazeja para o espírito e enriquece o sentir, o degustar do homem que se encontra nesse local.

Desejo do maravilhoso inspirado pela Fé

Tomemos, por exemplo, a Catedral de São Marcos. Vista durante a noite, quando não há turistas e os pombos estão dormindo, a catedral apresenta-se na sua majestosa solidão, esplendidamente iluminada, deixando perceber o branco reluzente do mármore de que foi construída, bem como seus pormenores magníficos, e torna-se especialmente evidente sua linha geral.

Faço notar as três profundidades para a vista humana diante dessa catedral. Em primeiro lugar, as arcadas que têm como centro um arco maior com um magnífico mosaico e, acima, um terraço.

Constituem o primeiro corpo do edifício. Depois, uma espécie de ogiva central muito grande, onde se percebem os famosos cavalos, dois torreões, e de cada lado duas ogivas muito abertas, encimadas cada qual com uma figura. Por fim, constituindo a terceira dimensão, encontram-se as cúpulas ladeadas de umas torrezinhas.

Diante dessa catedral somos objeto de uma determinada impressão a respeito do desejo de maravilhoso, de grandioso, inspirado pelo espírito de Fé, com que, em louvor de São Marcos, ela foi construída. É uma das mil cintilações deslumbrantes do espírito católico que se manifesta ali, de maneira que, ao contemplá-la, uma pessoa pode dizer: “Igreja Católica é isto. Ó Igreja Católica!”

Entretanto, dentro dessa catedral passaram-se fatos históricos da maior importância que determinaram rotações inteiras na História da Cristandade, das nações banhadas pelo Mar Adriático, que se manifestaram na História de Veneza e da Itália, episódios ora de violência, ora de refinamento político e esperteza levada a um grau inimaginável.

Veneza era uma escola de diplomatas extraordinários. Nos arquivos dessa cidade se conservam relatórios que os embaixadores venezianos mandavam periodicamente, contando o que se passava nos países onde viviam. As narrações são tão bem feitas, tão seguras – de tal maneira eles sabem evitar boatos –, as análises tão finas e tão sutis, que essas cartas servem de fonte ótima para a História de qualquer país da Europa.

Imponderável de São Pio X em Veneza

Assim, pelo auxílio da graça, temos não apenas uma percepção do espírito de Fé que levantou tudo isso, mas também uma ideia dos mil fatos que ali se passaram. Um desses fatos se deu no começo do século XX. São Pio X, antes de ser eleito Papa, era o Patriarca de Veneza, portanto, Cardeal e Arcebispo daquela cidade. Quando morreu Leão XIII, convocaram o Conclave. São Pio X – então Cardeal Giuseppe Sarto – comprou passagem de ida e volta, pois ao que parece ele não contava com a possibilidade de ser eleito e, ademais, não tinha vontade nenhuma. Ainda nas vésperas de sua eleição, o Cardeal Sarto julgava que não seria escolhido, mas como, de repente, as coisas viraram e sua escolha tornou-se iminente, ele chorou, porque tinha pânico de ser Papa, pelo peso da responsabilidade do Papado.

Podemos imaginar a última visita desse Santo Cardeal, pouco antes de tomar a gôndola para se dirigir ao Conclave; sua longa figura esguia, com os trajes cardinalícios, cabelos já muito brancos, ele mesmo alvíssimo, acompanhado de seus secretários, monsenhores, prelados, entrando na Basílica de São Marcos para rezar. Depois, com o coração pesado de presságios que via apenas obliquamente, ele tomar a embarcação e partir para o lugar de onde o trem o conduziria até Roma.

Seria a cena de Veneza despedindo-se do mais recente dos Papas canonizados, que previu e combateu a crise do modernismo. Quem passeia por debaixo dessas colunas do átrio ou transpõe a porta, pensando em tudo isso, tem a impressão de que São Pio X encontra-se um pouco aí revivendo tudo isso. De fato, ele não se encontra, mas está presente uma graça relacionada ao que se passou e que torna especialmente sagrado esse lugar.

Passeando de gôndola pelos canais de Veneza

Em minha última viagem à Europa, tive diante de muitos monumentos a impressão triste, de cortar o coração, de que essas graças tinham se retirado, e as cenas históricas ali desenroladas haviam perdido o nexo sobrenatural com aqueles monumentos. Ou que esses restos de continuidade da graça estavam nos seus últimos lampejos e já iam desaparecendo, o que a multidão de turistas não censurava, e nem sequer sabia ser possível sentir isso, e visitava a Catedral de São Marcos, por exemplo, mais ou menos como se visita um museu.

No entanto, essa densa presença de sobrenatural e de história, que em Veneza é incomparável, ainda senti quando tomei uma gôndola para passear pelos canais da cidade. Navegando no escuro entre aqueles palácios, tem-se a impressão de estar participando da vida psicológica, temperamental, social, daqueles personagens de trajes medievais ou do tempo das monarquias absolutas, com máscaras como se usava em Veneza, o bater dos remos na água, o brado dos gondoleiros para evitar trombadas; de repente, vê-se um homem que, ao passar diante de uma casa onde não quer ser reconhecido, pega o seu manto e cobre o corpo inteiro, só se desvendando mais adiante… Esses mistérios todos de Veneza temos a impressão de que ainda vivem, e nos metemos no meio deles ao passear de gôndola à noite pela cidade.

O uso da lancha nos canais já estraga isso, porque o mistério vai embora. A lancha tem o determinismo estúpido das coisas mecânicas. O bonito é o silêncio, o mistério e o deslizar lento da gôndola, na qual os passageiros vão sentados meditando no que fizeram ou farão. Esse mistério tem seu charme.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 11/1/1989)

Duas formas de grandeza

Basílica de São Pedro e Catedral de Notre-Dame de Paris, duas igrejas completamente diferentes. Na primeira, com um esforço de piedade, a criatura tenta elevar-se até o Criador; na segunda, é  o Criador quem desce até a criatura.

 

Na minha ótica de homem do século XX, com os padrões deteriorados pelos apartamentos de São Paulo, quando entrei pela primeira vez na Basílica de São Pedro, depois de vê-la pelo lado de fora, tive uma certa surpresa, julgando-a muito menor do que eu a imaginava.

Isto se deve ao fato de que, na construção da Basílica, Michelangelo teve o cuidado de ocultar, tanto quanto possível, o tamanho do Cupolone. Naquele tempo, onde o materialismo ainda não tinha feito tantos progressos, era bonito realçar a proporção e esconder o tamanho. Porque o tamanho é matéria, e a proporção é espírito. O espírito deve dominar sobre a matéria.

Houve uma tal preocupação em disfarçar a altura dele, que eu não notei ser o “duomo” de São Pedro tão alto quanto o Martinelli, o maior edifício de São Paulo daqueles tempos.

Porém, a Basílica de São Pedro é toda influenciada pela Renascença. E, portanto, do ponto de vista artístico, ela não é senão uma reapresentação de elementos de beleza clássica, apresentados pelas gerações que vieram depois do Renascimento.

Ora, isso não tem, absolutamente, o espírito católico da Idade Média.

Nota-se, claramente, que a Basílica de São Pedro é uma igreja muito bem composta, cuja pompa está à altura do que os homens podem dispor para venerar a Sé de Pedro e ser, nesse sentido, a primeira igreja da Cristandade. Mas, de certo modo, o homem não tem ali a sensação de proximidade com Deus que há na Catedral de Notre-Dame, em Paris.

Eu traduziria essa impressão nos seguintes termos: na Basílica de São Pedro eu vejo uma tentativa do homem elevar-se até Deus, num esforço de piedade; na Catedral de Notre-Dame, é Deus quem desce até os homens. Por causa disso, a impressão de proximidade de Deus lá é muito maior do que no próprio Vaticano.

 

 

(Extraído de conferência de 18/5/1976)

A arte de cumprimentar

Devido a sua inocência e ao ambiente criado por Dona Lucilia, Dr. Plinio não cedeu à ação revolucionária exercida por muitos dos seus companheiros de colégio. Para opor-se a essa má influência, que se manifestava, entre outras coisas, pelo modo de saudação, ele elaborou uma verdadeira arte contrarrevolucionária de cumprimentar, própria às circunstâncias.

 

Poder-se-ia dizer que, dando rapidamente como introdução o histórico de como nasceu a observação da vida e da luta revolucionária e contrarrevolucionária, depois se compreende melhor como a galharia enorme da ação nasceu em doutrina, já articulada, e como esta dirige a ação. É algo que parece quase impossível de conceber; porém — como tantas coisas quase impossíveis —, tendo o segredo e efetuando as devidas voltas, a questão acaba sendo muito simples.

A inocência, o bom espírito e o ambiente criado por Dona Lucilia

Nessas reminiscências, sempre me reporto ao começo da minha ação contrarrevolucionária, portanto, no Colégio São Luís; e também em dois estabelecimentos secundários, que frequentei como intervalo do São Luís: o curso do Prof. Aquiles Raspantini e outro estabelecimento de ensino chamado, se não me engano, Colégio Paulistano. Além disso, o contato com o meu mundo de criança, e depois a sociedade nos cinco ou seis anos em que a frequentei, metido nela até o alto da cabeça. E um pouco a Faculdade de Direito, que representou um papel muito menor para isso.

Tudo isso somado constituiu o seguinte:

Eu já possuía posição tomada a respeito de uma porção de coisas, em virtude da inocência, do bom espírito, do ambiente criado por mamãe. E um pouco da atmosfera de minha casa, que eu considerava como sendo muito boa. Nessa época eu não via, no ambiente de uma família tradicional, o que pode haver de não tradicional e já desviando para as coisas modernas; então, eu dava àquilo uma adesão inteira, sem jaça — sobretudo à Igreja Católica, evidentemente —, pois apresentava um modo de ser harmônico e coerente diante de mim.

Sentindo o choque disso, daquilo, daquilo outro, eu percebia o contraste. Mas não o notava apenas entre uma coisa e outra, quer dizer, o mundo revolucionário faz determinada coisa de tal jeito, e eu faço de outro jeito; eu percebia muito claramente o espírito que presidia aquilo, o qual era o oposto do espírito que havia em mim.

Por detrás do modo de se cumprimentar havia todo um mundo

Vou dar um exemplo. Um dos primeiros choques que tive foi o modo de muitos meninos se cumprimentarem fora do meu ambiente, no colégio.

É de bom senso que os meninos, chegando à escola, não fiquem se saudando. São quatrocentos, quinhentos alunos, não podem estar desejando bom dia uns aos outros. Isto é uma coisa que entra pelos olhos.

Mas muitas vezes se encontravam na rua, por exemplo, no que hoje é o centro velho e naquele tempo era o centro da São Paulinho. Ia-se lá para tomar sorvete, comer doces em alguma confeitaria, comprar um chapéu, enfim, para mil outras coisas, e se deparava com colegas. E a regra era, encontrando qualquer pessoa conhecida, inclusive meninos, cumprimentá-la tirando o chapéu, amavelmente. Todos os meninos usavam chapéu naquele tempo.

Ora, eu encontrava, muitas vezes, os meus colegas e, ao invés de receber um cumprimento afável, cerimonioso, a que estava habituado — não imaginava que houvesse outro cumprimento —, davam-me uma saudação despachada. E não era só comigo, mas todos eles, entre si, quase não se cumprimentavam.

Eu percebia logo que isso era uma abreviação das fórmulas de cumprimento antigas, europeias, em benefício das fórmulas hollywoodianas, pois a saudação que eu via as pessoas se darem nas fitas de cinema era essa. E notava, por uma conexão, que havia todo um mundo atrás dessa maneira de se cumprimentar. A recusa da amabilidade, do respeito, da cortesia, da confiança recíproca, e o ritmo acelerado, o modo meio bruto de fazer, o desprezo das fórmulas antigas como sendo coisas completamente inúteis, indicavam uma introdução de uma certa brutalidade na vida. Eu via isso com toda a clareza.

Se imitasse os outros meninos, inalaria seu espírito

E, observando que esse menino, aquele, aquele outro, faziam, sentiam exatamente dessa maneira, eu percebia definida uma oposição que apresentava um problema de ação: à vista de eles fazerem assim, nada mais fácil do que eu me pôr em dia, cumprimentando-os como eles se saudavam; era até mais simples do que o cumprimento afável.

Mas surgia a questão: Se eu imitar o jeito deles, inalo o seu espírito, é inevitável. Se os cumprimentar a meu modo, coloco-me em situação inferior porque estou gastando gentilezas e afabilidades com indivíduos que me respondem com um aceno das sobrancelhas, e fico fazendo papel de tonto, e isto também não posso admitir. Um homem que não é capaz de manter a sua própria nota não é homem.

Então, como agir? Tenho que arranjar um meio-termo, que faça com que eu mantenha todo o meu espírito, e o manifeste do modo mais discreto possível para evitar um entrechoque, mas é necessário que seja visível para evitar uma capitulação. De que forma, então, vou cumprimentar? Quer dizer, até que ponto este indivíduo com quem estou tratando — e outros que têm a mesma mentalidade — tolera que eu leve adiante alguma coisa parecida com o cumprimento tradicional? Até que ponto ele explode? Isso de um lado.

De outro lado, como posso tapear a situação, pondo num modo de cumprimentar “aggiornato”(1) tudo quanto eu quero?

Seriedade e afabilidade no trato com os colegas

Fica aqui enunciado um problema que se repete em série, em centenas de outros casos. É toda uma clave do estilo de vida que se põe.

Então o que devo fazer? Tirar do cumprimento a solenidade de um homem? Porque eu cumprimentava com a solenidade de um homem, e não de um menino, pelo modo com o qual fui educado. Eu percebia que não podia exigir dos outros essa solenidade assim, porém deveria pôr, no meu modo de cumprimentar um colega, algo de cerimonioso. Mas qual é o modo de um menino ser cerimonioso sem imitar os mais velhos, sem parecer, portanto, um doutorzinho?

Refleti: Isto se faz assim, assim, assim. Bem, então vou agir desse modo. Posso entrar nos pormenores, explicando como era a forma de meu cumprimento; naturalmente isso alonga muito a série de reuniões que me pediram fazer.

O primeiro ponto era a seriedade de uma pessoa capaz de qualquer resposta, e de correr qualquer risco: Não mexam comigo porque dá encrenca! E encrenca de argumentação, mas se for preciso vou mais longe e, embora eu não seja muito forte, tomo de uma vez uma atitude que manifeste muita segurança, coragem e força! E até lá minha força chegava.

Acima disso, uma afabilidade um tanto maior da que todos eles tinham uns com os outros, mas por detrás deveriam entender que estava a força.

A linguagem como instrumento contrarrevolucionário

Depois, uma linguagem que foi, durante toda a minha vida, o instrumento que procurei usar, aproveitando talvez facilidades nordestinas. Sem ser pedante nem rebuscada, precisaria ser uma linguagem com muito mais vocábulos do que a deles, e, portanto, falando coisas que eles não sabiam dizer, e pondo na conversa uma espécie de natural superioridade bem como consistência nos temas que eu invocava, e cabendo numa atmosfera de brincadeira composta, não de brincadeira decomposta. Essas coisas criavam em torno de mim uma esfera de superioridade, ajustada a menino. 

Mas tudo isso, que é uma solução para um caso concreto, se desdobra, tem subjacentes, regras a respeito de como tratar os revolucionários.

Eles se vingavam a seu modo, quer dizer, não sabendo como sair disso, boicotavam. Então, que atitude tomar diante do boicote?

Ao longo da minha vida, houve muitas outras situações as quais precisei estudar milímetro a milímetro e constituíram um acervo de experiências “regulogênicas”, que geravam regras. Entretanto não era a concepção do princípio no ar para depois aplicá-lo, mas a experiência transformada em regra. Tratava-se de uma coisa completamente diferente e, por essa razão, muito útil.

Acrescentem-se inúmeras situações históricas estudadas; tudo isso forma uma caudal de regras que, se eu quisesse escrever, poderia levar dez anos de minha vida… v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/08/1987)

 

1) Do italiano: atualizado. Aqui tem a conotação de estar de acordo com a moda.

 

Finalidade e unidade do ser humano – I

Com grande riqueza de metáforas e exemplos, Dr. Plinio explica a íntima relação existente entre o transcendental “unum” e a finalidade da pessoa humana. Na presente conferência — feita de improviso e para ouvintes, em sua maioria jovens —, transparece uma das características do pensamento filosófico de Dr. Plinio: a reversibilidade entre as considerações filosóficas e as teológicas.

 

Há pouco, eu estava vendo umas fotografias do Himalaia. Quem o contempla deve ter uma sensação de quantidade total impressionante, e que o monte, em si mesmo considerado, deixando ver o ponto onde ele, como que, emerge do chão e aquele em que o seu píncaro se perde nas nuvens — ou parece fazer fugir o céu astronômico para mais alto, a fim de não encostar nele —, dá a impressão de realidade tangível, de um ser que serve de ponto de partida para considerações que, de “proche en proche”(1), vão até Aquele que é o Ser por excelência: Deus, nosso Senhor.

Partindo de realidades elementares, chegar às mais elevadas

Nessas condições, é evidente estar na ordem da natureza que aquilo que o monte tem de tão esplêndido, ou seja, sua realidade palpável, imponente, magnífica, ele perderia de um momento para outro, não se fosse privado de seu píncaro — ficaria, então, mais baixo —, mas se algum monstruoso serrote o cortasse e o monte deixasse de ter contato com o chão. A partir do momento em que perdesse o contato com o solo, ele daria a impressão de irrealidade, de uma coisa que não pode existir. Como podemos compreender algo de fixo suspenso no ar e sem contato com o chão? É incompreensível! Nada vive suspenso no ar; tudo precisa ter seu contato com o solo. Esse monte se evanesceria. Se olhássemos o seu píncaro e depois a sua base, e víssemos que ela não tem continuidade com o solo, diríamos: todo o resto que está acima parece realidade, mas é ilusão.

Este princípio de que as realidades básicas, elementares, as que estão ao nosso alcance, servem para nos levar às mais altas realidades — como, por exemplo, o primeiro degrau do estrado existente neste auditório conduz, através dos outros degraus, ao topo do estrado —, aplica-se à ordem hierárquica que Deus pôs no universo. Nesta, ao considerarmos o primeiro degrau que tenhamos diante de nós, podemos contemplar todas as grandezas que virão sucessivamente. Por conseguinte, devemos saber contemplar o primeiro degrau de maneira a ver essas grandezas, sem confundir o primeiro degrau com as grandezas a que ele conduz.

Todo homem é criado com determinada missão

Quais são as mais altas realidades para as quais o homem está voltado? Ele nasce, cresce, atinge a maturidade, depois vai fenecendo e morre. Assim também o dia é aurora, em seguida é manhã, depois é o meio-dia em que ele aparentemente se fixa e, pelas três horas da tarde, quando se diz “há tanto tempo que o Sol está brilhando com todo o seu vigor e provavelmente não deixará mais de brilhar”, presta-se mais atenção e se afirma: “Curioso! Parece faltar um pouco de claridade! Será mesmo? Há três horas que ele brilhava sem diminuir de luminosidade e agora ela está decrescendo. Oh, deve ser um engano da vista! Vou prestar atenção em alguma outra coisa e daqui a pouco olharei novamente para o Sol”. Pelas quatro horas, percebe-se o incontestável; algo de belo, de nobre, está se dando na natureza, por onde as sombras começam a aparecer. Aquelas mesmas sombras dentro das quais, depois, gloriosamente afundará o Sol, na aparência para dormir.

Depois o movimento do astro rei se repete, dias e noites se sucedem, e os homens também se repetem: as gerações se sucedem sobre a Terra e a quantidade inumerável dos homens se multiplica, a ponto de estar tendendo, debaixo de certo ponto de vista, a encher o globo. Assim é a sucessão dos acontecimentos, numa aparente monotonia.

Há um provérbio francês que diz: “On entre, on crie: c´est la vie; on crie, on sort: c´est la mort! — Entra-se e grita-se, é a vida; grita-se e sai-se, é a morte!” Entre esses dois gritos está a vida humana.

Como isto é pouco e parece não levar a nada! Um homem repete os passos de outro e a sucessão dos homens seria como a sucessão das formigas. O que é a vida? A que grandeza tudo isso conduz?

Esse raciocínio é errado, pois não toma em conta a verdadeira realidade da vida humana e as grandezas para as quais o homem está voltado. Qual é a realidade da vida humana? É esta: nós viemos a esta Terra com uma determinada missão, cuja atração constitui o dinamismo de nosso próprio ser. Realizada essa missão na Terra, sobre a qual falaremos daqui a pouco, dir-se-ia então que perdemos a nossa razão de ser.

Na aparência é isso, pois o homem morre. Porém, na realidade, ele inicia, na outra vida, outra missão que é a projeção dentro do infinito da vida que ele teve e da missão que ele exerceu na Terra.

Cada ação humana tem uma razão de ser mais alta

De maneira que cada ação humana, considerada no que ela tem de mais imediato, acaba tendo sempre uma razão de ser mais elevada.

Por exemplo, o modo pelo qual estou acenando com a mão enquanto vos falo. Esse gesto tem uma finalidade imediata. Eu sinto, como todo homem, que a fisionomia e a voz não têm expressão suficiente para dizer tudo quanto está na alma. Que o menear da cabeça pode ajudar a essa expressão, mas não basta. E, por causa disso, devo falar também com os braços como involuntariamente falo com o tronco. O homem fala com o corpo inteiro.

De imediato, eu movo a mão sem uma razão aparente que justifique o meu movimento. Mas, se mantivesse as minhas mãos sempre imóveis, elas sofreriam na sua circulação. E, conforme a sabedoria divina, a necessidade moral que tenho de mover as mãos se alia à necessidade física que possui a minha mão de ser movida; é uma necessidade que está nela, enquanto membro do meu corpo. Mas, sendo atendida nessa necessidade de se mover para não se atrofiar, ao mesmo tempo ela serve a um destino mais alto que ela, enquanto mão, ignora. Entretanto, eu sei qual é o pensamento que quero sublinhar e qual a razão de fazer este ou aquele gesto com minha mão.

Eu quisera, por esse exemplo tão corrente, ao alcance de cada um dos presentes, que tivéssemos em consideração o entrelaçamento e a subordinação magnífica das várias finalidades de tudo quanto o homem faz, rumo a uma finalidade central da qual falarei depois.

Mas, para entenderem bem e terem em consideração a complexidade desse entrelaçamento de fins e sua beleza ordenativa, todos nós, quando falamos em público ou em privado, de vez em quando mexemos as mãos. Os que estão neste auditório, ao falarem comigo, ao ouvirem a minha exposição no momento, involuntariamente mexem as mãos, a cabeça ou qualquer parte do corpo, mas exprimem algo ao longo desta conferência que vou lhes fazendo. E de tal maneira exprimem não só no rosto, o que é instintivo e natural, mas no corpo inteiro, que se imaginasse aqui, nesse momento, que todos estivessem atrás de um parapeito e que só lhes pudesse ver as cabeças, eu teria a sensação de que não acompanharia bem como estariam acolhendo a reunião. Porque a expressão do rosto é completada pela atitude do corpo. Todos não percebem, como eu não percebo também, mas nossos corpos estão falando.

Quem diria que o homem tem busto, tem peito, também para falar? Entretanto, nós podemos imaginar um homem do qual se faça um busto, porque se conjectura o resto do corpo a partir de um busto. Mas se fôssemos imaginar apenas uma cabeça sem o busto, ficaria horrorosa! E perderia sua expressão, seria um monstro. O peito é a moldura do homem e ajuda a interpretar aquilo que ele está pensando. Mas o que o peito nos ajuda a interpretar? O que nós quereríamos dizer quando movemos a mão? Nós mesmos não sabemos.

Precisaríamos prestar atenção, e apenas os muito dotados em explicitar, servidos para isto de uma faculdade de atenção muito pormenorizada e de um vocabulário vasto, poderiam acabar explicando o que alguns dos seus movimentos quiseram dizer e, entretanto, dizem. E até no modo de andar longamente — dez quilômetros, por exemplo —, cada passo que o homem dá tem sua expressão. De maneira que, terminados os dez quilômetros, está concluído um discurso.

Prefácio de um livro intitulado ”Eternidade”

Vemos assim como tudo se entrelaça no homem e como, além das finalidades imediatas de todas as coisas que ele faz, por exemplo, andar, respirar, há outras finalidades. Tal é a linda complexidade da vida humana e do ser humano! Como é nobre pensar! Tudo quanto o homem possui no corpo existe para expressão de algo que ele tem na ideia, no pensamento, e todo o seu corpo não serve senão para expressão de sua alma espiritual, impalpável, que jamais morrerá e terá uma finalidade, mesmo quando ela não estiver unida ao corpo. E quanto é pouco o corpo, quando compreendemos que um dia a alma se desprenderá dele, deixando-o para se pôr na presença de Deus.

O corpo se desfaz, mas virá o momento em que esse pó esparso pela terra será recolhido pelos Anjos com um empenho enormemente maior do que o do pescador de pérolas, que as apanha no mais escuro do mar; mais do que qualquer pesquisador de brilhantes no seio da terra e nas galerias mais profundas. Assim, a ação dos Anjos se estenderá sobre toda a Terra e recolherá o pó de cada um, para que renasça sob a forma da ressurreição dos mortos e se apresente de novo gloriosamente. Quanta queda! Quanto desfazimento! Quanta nulidade! Que glória magnífica, e que eternidade!

Portanto, o homem viveu nesta Terra, levou sabe-se lá que existência — são tão variadas as vidas!  Em certo momento, morre. Mas não acabou tudo; o melhor ou o pior está para começar. É o prefácio que acabou; o livro vem depois. É o grande livro da eternidade.

Este é o primeiro passo que damos na consideração dos grandes horizontes e das grandes perspectivas. Contudo, não é senão um primeiro passo. Como se pode prosseguir numa meditação desse gênero?

A unidade na variedade

Dada a mutabilidade do homem — quanto o homem varia ao longo de um dia, de uma hora, às vezes de alguns minutos! —, ele não seria a criatura excelente que é, se não tivesse um “unum”. Não há nessa variedade uma unidade?

Quando não se sente esta unidade no homem, ele parece um livro desencadernado cujas folhas o vento da loucura leva para onde entende. O que caracteriza o homem que não é louco? É exatamente a concatenação de tudo quanto ele cogita e faz, dando um certo rumo ao seu pensamento e à sua ação na vida. Ora, essa concatenação e esse rumo só podem provir de uma unidade interna. O homem é fundamentalmente uno, dentro de toda sua variedade. E o fazer sentir esta unidade na variedade é uma das maiores atrações que o convívio humano pode proporcionar. Quando tratamos com uma pessoa monótona, não sentimos a variedade. É cacete! E se conversamos com uma pessoa que é por demais variada, temos um enfaramento daquilo que é agitado, atormentado e desconexo. Vendo um indivíduo que possui variedades as quais se sucedem, imprevistas, mas ordenadas e que vão desembocando umas nas outras, aprazível ou magnificamente, então se tem uma noção exata do que é o panorama da psicologia de um homem.

Se o homem tem uma unidade, devemos nos perguntar que comparação fazer entre a unidade de um homem e a de outro. Se esse “unum” difere de uma pessoa para outra, no que consiste esta diferença? O que faz a unidade e a variedade?

Certa vez, li o seguinte comentário de um escritor católico das primeiras décadas deste século, do Rio de Janeiro. Ele estava assistindo ao desembarque de passageiros de uma daquelas enormes barcas que, antigamente, transportavam pessoas entre o Rio de Janeiro e Niterói. Um mundo de gente passava diante desse autor, o qual teve esta reflexão singular que não saiu mais de meu espírito: Como Deus conseguiu, com tão poucos elementos — olhos, nariz, boca, orelhas — que compõem o rosto, fazer uma quantidade incontável de fisionomias que nunca se repetem?

O ”unum” de cada pessoa face ao Juízo Final

O mesmo se deve dizer do nosso “unum”. Cada um de nós tem um “unum” que abarca a pessoa toda, e determina o nexo com ela e uma finalidade na vida.

A humanidade constitui uma coleção. E o vale de Josafá, onde se acredita que se dará o Juízo Final, vai ser como um estojo onde vão estar guardados todos os espécimes dessa coleção, desde Adão até o último homem. E, vistas em conjunto, compreenderemos melhor a relação entre todas essas peças da coleção, como quando diante de um mosaico, se bem ordenadas as peças, entendemos o desenho que forma. Se as peças estão jogadas ao léu, não se compreende o desenho tão bem. Não será possível conceber, ou compreender toda a grandeza, toda a beleza do gênero humano ao qual nós pertencemos, senão quando estivermos no vale de Josafá, tendo toda a humanidade debaixo de nossos olhos.

Está escrito no Gênesis que Deus criou todos os seres e, contemplando-os, considerou que, se cada um era bom, o conjunto era melhor(2). Deus criou e vai criando os homens até o fim do mundo. Mas o conjunto de todos os homens é mais belo do que cada homem individualmente. Olhando esse conjunto, diremos: “Que coisa magnífica é ser homem!”

No conjunto de todos os homens que habitam, habitaram ou habitarão a Terra, tenho uma tarefa especial, como uma pessoa dentro de um mosaico. E aqui está meu “unum”. É uma nota central constitutiva de todas as aptidões e tendências ordenadas e boas de meu corpo, que, por sua vez, obedece a um impulso ordenado e bom de minha alma, o qual me leva a fazer na Terra determinadas coisas que Deus quer que eu faça. Essas coisas fazem-me compreender que tenho uma missão. O meu “unum” proporciona à minha vida um fim, o qual é maior do que cada uma dessas ações imediatas. Esse fim é um todo só, para o qual eu, como o meu “unum”, devo tender. E o belo da vida de alguém é observar sua existência inteira que vai andando, passo a passo, na mesma linha até realizar o “unum” final. v

 

(Continua no próximo número)

 

(Extraído de conferência de 10/1/1981)

 

1) Do francês: de próximo em próximo.

2) Cf. Gn 1, 31.

Candura, vigilância e holocausto

Tendo por discípulos dois meninos privilegiados diariamente por uma singular visita, São Bernardo de Morlat foi agraciado com um especial convite: participar de um banquete no Céu…

 

Comentarei um fato muito bonito, narrado na “Vie des Saints, da Bonne Presse de Paris”(1), mas não sei qual é o grau de sua veracidade histórica.

Muitas vezes, intencionalmente e a bom título, essas coletâneas de vidas de santos contêm, a par de fatos indiscutíveis, alguns que são discutíveis, quer dizer, não se sabe bem se ocorreram ou não. Mas o ponto que nos interessa é o seguinte: se o fato narrado é conforme à Doutrina Católica. Então, ainda que o fato não seja exato, Deus poderia ter agido assim.

A narração que passarei a comentar dá uma noção a respeito da santidade infinita de Deus e é ilustrativa para o fiel. É a esse título que me parece muito bonito o fato.

Trajes infantis antes da Revolução Francesa

São Bernardo de Morlat, da Ordem dos Dominicanos, era sacristão no convento de Santarém, em Portugal. Tomara ele, como discípulos, a dois meninos, filhos de um cavaleiro de Santarém, os quais receberam logo o hábito e a tonsura monásticas e daí por diante passavam os dias no convento, ajudando as Missas e estudando com o Padre Bernardo.

A pedagogia antiga preceituava que as crianças, desde pequenas, se vestissem como adultos. E daí o fato de vermos, nas pinturas de até pouco antes da Revolução Francesa, as meninas vestidas de saia balão, os meninos com trajes de homem que sai à rua para tratar de negócios, ou que vai à Corte.

Os trajes propriamente infantis foram introduzidos pelo Marquês de Girardin(2), no Jardim de Luxemburgo, em Paris, pouco antes da Revolução Francesa. Eram trajes inspirados na moda inglesa e que visavam apresentar a criança não mais com a compostura e a gravidade de um adulto, mas como um ente que pula e não se quebra. Então, uma roupa qualquer do tipo que nós conhecemos. Isso foi também um dos incêndios prévios à Revolução Francesa. Uma vez que o Marquês de Girardin apresentou seus filhos assim, a moda pegou e, em poucos meses, na França inteira os hábitos antigos estavam abolidos, e as crianças “sans-culotte” já começavam a brincar pelos jardins da França, antes do “sanculotismo” estar implantado.

Mas a Igreja, sempre mais conservadora do que a sociedade temporal, ainda conservou esse hábito. E não posso deixar de me lembrar de que, quando era moço — tinha entre vinte e cinco e trinta anos —, fui visitar o então austero, magnífico, Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, para falar não me recordo com que padre; eu estava andando pelo convento e de repente vi dois menininhos, talvez com dez, onze anos, vestidinhos completamente como monges e caminhando graves no meio do claustro.

Eles passaram, conversando tão direitos e sérios, que eu tive a vaga impressão de que se tratasse de uma aparição. Quando o padre chegou, perguntei-lhe: “Mas padre, que menininhos são esses?” Ele disse: “É um velho costume beneditino. Nós recebemos vocações da mais tenríssima idade e, para os meninos se adaptarem à vida religiosa, já são vestidos como monges em pequeno.”

Nas minhas elucubrações a respeito de “geração nova”(3), ocorre-me a ideia de que o “geração-novismo” começou quando o Marquês de Girardin adotou os trajes que não davam à criança a sede da maturidade, mas o gosto de serem como eram, sem o desejo de crescer, de maturar, retardando, portanto, a normal expansão da criança.

Traje, gesto, estilo de conversar e de pensar

Alguém poderia perguntar: “Mas traje, Dr. Plinio, que diferença faz?”

Eu digo: “Meu caro, traje supõe gesto. Gesto supõe estilo de conversar. Estilo de conversar supõe estilo de pensar.”

Então podemos imaginar aqueles dois menininhos da Idade Média, vestidos como fradinhos e recebidos na Ordem Dominicana. O hábito da Ordem Dominicana, aliás, é muito bonito.

Um dos predicados da Igreja é que Ela sabe, como nenhuma instituição, com as coisas muito simples produzir efeitos estéticos extraordinários. Por exemplo, os hábitos das Ordens religiosas geralmente são bonitos. O hábito dominicano consiste numa túnica branca, com uma grande capa preta e um capuz branco; grandes mangas, que dão ao orador, quando ergue ao alto seus braços para exprimir um mais alto pensamento, atitude de grande categoria, porque as grandes mangas que pendem dão solenidade ao gesto. É a simplicidade extrema da Igreja, o magnífico senso da beleza que Ela possui em tudo quanto faz.

Então os menininhos ajudavam as Missas todos os dias e estudavam com o Padre Bernardo, que ia formando o espírito deles.

O Divino Infante participa do desjejum com dois meninos

Todos os dias os dois meninos saíam bem cedo da casa de seus pais para se dirigirem ao convento, levando consigo a provisão diária.

Não espanta que eles morassem em casa e usassem esse hábito. Porque na Idade Média o hábito religioso era muito mais frequente e normal do que se tornou depois.

Um dia de manhã, com uma familiaridade toda infantil, sentaram-se aos pés de uma imagem de Nossa Senhora, que trazia no colo o Menino Jesus…

Podemos figurar uma imagem bonita, como a de Nossa Senhora de Coromoto, com o Menino Jesus nos braços. Suponhamos toda a cena realizada diante dessa imagem, para compreendermos como fica apropriada.

…diante da qual sempre rezavam o Rosário, para em seguida tomarem o seu desjejum.

Eram, portanto, crianças piedosas. Toda criança amanhece com fome; e criança lusa não desmente a regra. Pois bem, elas rezam o Rosário para depois quebrarem o jejum.

 Enquanto comiam, um deles voltou-se para o Menino Jesus nos braços da Virgem e disse-Lhe: “Ó belo Menino, se Vos agradar, vinde comer conosco.”

O Divino Infante não Se fez de rogado, desprendeu-Se dos braços da Mãe, e de bom grado tomou lugar entre os que O haviam convidado.

Podemos imaginar, na imagem de Nossa Senhora de Coromoto, o Menino que se move e diz com voz de criança: “Pois não!” E, de coroa na cabeça, desce do colo de Nossa Senhora, toma um pouco de comida, a introduz na boca e começa a mastigar.

Os dois repartiram então com Jesus a frugal refeição. Tendo terminado, o Menino Deus agradeceu-lhes com um sorriso, subiu ao altar e voltou aos braços de Maria.

Vemos que tudo isso é de uma candura… O importante é o seguinte: eu não me interesso, como católico, senão muito pouco, em saber se isso foi ou não foi assim. O que me interessa é que podia ter sido, porque Nosso Senhor Jesus Cristo é assim; está n’Ele realizar essas coisas. Se Ele fez ou não fez, não é tão importante.

No dia seguinte, os coroinhas voltaram renovando o pedido.

E todas as vezes o Hóspede Divino dignou-se aceitá-lo, até que qualquer convite ficara supérfluo. Apenas os meninos entravam na capela e abriam o embrulho de alimentos, o Menino Jesus lá estava entre eles.

É tão delicioso, que dispensa comentários.

Isso se tornou tão familiar que não só comiam juntos, mas também conversavam, e Jesus os ajudava nas dificuldades que tinham no estudo.

Que encanto imaginá-los perguntando e Nosso Senhor respondendo, na intimidade de uma pequena capela do interior de Portugal!

O guizo da serpente

Veremos agora aparecer, ao lado de tanta candura, o drama, que tantas vezes surge nas relações entre a criatura e o Criador: a miséria humana vai se mostrar, do modo mais incoerente e mais inesperado, nesses meninos magníficos.

Uma coisa somente surpreendia os dois inocentes: é que o Menino Jesus nunca trazia sua quota de comida, enquanto eles eram obrigados a conseguir mais alimentos, embora seus pais fossem muito pobres.

 “Não haverá muitas coisas boas no Paraíso?”, perguntavam. A surpresa dos dois degenerou em murmúrios.

Coisa incrível, mas é assim a criatura humana: no conto mais encantador, ouvimos de repente o guizo da serpente, como no mais belo do Paraíso veio, também de repente, a tentação.

E resolveram confiar ao Padre Bernardo suas angústias. Este, tendo examinado bem o relato, ficou tocado por tão grande prodígio. Rogou a Deus que o iluminasse e o fizesse conhecer os seus desígnios sobre os meninos. Um dia, dirigindo-se aos pequenos discípulos, ele sugeriu: “Se o Menino Jesus continua não trazendo nenhuma provisão, não vos agradaria que Ele vos convidasse, ao menos uma vez, à casa de seu Pai?”

Não pedir alimento, mas a graça de ver o Céu

A saída do padre foi muito inteligente: não pedir ao Menino Jesus que trouxesse comida, mas que vissem o Céu.

“Oh! sim, gostaríamos muito, responderam. Mas Ele nunca nos falou sobre isso”. Disse o padre: “É preciso que Lhe peçais. Se Ele atender vosso pedido, não tereis perdido nada, pois de um só convite d’Ele recebereis mil vezes mais do que destes”.

Vemos que o padre sentiu necessidade de pôr o argumento em termos um pouquinho comerciais, para conseguir mover aquelas almas, entretanto tão cândidas e puras.

Não nos façamos ilusão! Essa é a criatura humana e é assim que devemos olhar a nós mesmos! Quer dizer, ou há muita vigilância, ou saem coisas dessas.

E continuando a falar-lhes, o Padre Bernardo fez entrever simbolicamente o palácio do Pai Celeste, com suas magnificências e delícias, e concluiu: ‘Quando o Menino da capela vier novamente comer convosco, não vos esqueçais de pedir que vos convide, por sua vez. Mas dizei a Ele que quero também ser convidado. Não vos permito que vades sozinhos à festa. Eu vos acompanharei, ou tereis que recusar o convite, porque desejo muito ter parte nesse festim”.

No dia 21 de maio de 1277, segunda-feira das Rogações…

Há uma procissão que se faz nessa ocasião, para pedir a Deus graças; a Providência se manifesta particularmente exorável nessas ocasiões.

…o Menino Jesus desceu de novo para tomar o desjejum com os dois meninos. Terminada a refeição, antes que o Divino Infante pusesse o pé sobre o pedestal de pedra para subir aos braços de Nossa Senhora, os dois pequenos expressaram timidamente o seu desejo: “Não nos convidais também uma vez?” Jesus fez um sinal de afirmação, enquanto os pequenos acrescentavam: “Nosso mestre gostaria de também participar da festa”.

Jesus então lhes disse: “Dentro de três dias será festa da Ascensão. Haverá grande alegria na casa de meu Pai. Dizei ao Padre Bernardo que Eu o convido convosco à minha mesa, onde estareis com os Anjos e os Santos”.

Contentíssimos, os dois correram para comunicar ao seu mestre a boa notícia. Ao chegarem a suas casas, avisaram aos pais que dentro de três dias iriam participar de um banquete no Céu. O Padre Bernardo comunicou o mesmo ao seu diretor espiritual.

Durante os três dias, mestre e discípulos permaneceram em oração, ajoelhados ao pé do altar do Rosário. O padre explicou aos meninos o sentido do convite de Jesus e eles, abrasados de amor, não queriam outra coisa senão deixar este mundo e entrar sem tardança na verdadeira Pátria.

Notamos que começa a haver um movimento de desinteresse, e os meninos melhoram.

Padre Bernardo e os dois meninos são levados ao Céu

Chegou o dia da Ascensão. Todas as Missas já haviam sido celebradas — isto na aldeia de Santarém. Enquanto os frades estavam no refeitório, Padre Bernardo dirigiu-se ao altar do Rosário, acompanhado por seus dois acólitos, e começou o Santo Sacrifício. Os dois discípulos receberam com grandíssima devoção, pela primeira vez, o Pão Eucarístico. Chegou a hora da ação de graças. Os três ajoelharam nos degraus do altar, aguardando com confiança o momento de partida para a morada celeste.

Mais tarde, quando a comunidade chegou à igreja para a recitação das orações após a refeição, encontraram o padre e os dois acólitos imóveis, as mãos levantadas ao céu e os olhos fixos no Menino Jesus. Aproximaram-se deles e, — oh, morte preciosa e mil vezes digna de inveja! — constataram que haviam trocado a vida terrestre pela bem-aventurança eterna. Os seus corpos foram enterrados ao pé do altar.

Não poderiam ser enterrados em outro lugar.

Em 1577, quando foi aberto o túmulo para a transladação das relíquias, os ossos sagrados exalavam um delicioso perfume. A imagem da Virgem com o Menino Jesus conserva-se até hoje num rico tabernáculo.

Candura, vigilância e holocausto

Vemos aqui a candura em seus dois contrafortes: a vigilância e o holocausto. Sem esses dois complementos, a candura jamais é candura. Para ter verdadeira candura, a pessoa precisa vigiar constantemente sobre si mesma, noite e dia, para evitar ceder aos inúmeros impulsos maus que enxameiam, formigam, no interior de cada alma; primeiro ponto.

Segundo: quando é verdadeiramente cândida, ela é convidada para o holocausto. Quer dizer, há um determinado momento em que a Providência lhe pede que se imole. Esses meninos tiveram seu mau momento, foram perdoados e depois convidados ao holocausto.

Com certeza, antes de morrer, eles souberam que iam deixar esta Terra. Foram consultados sobre se queriam a morte, e aceitaram-na; suas almas foram levadas para o Céu, docemente, suavemente.

E ficou aqui consignada, muito menos a imagem dos meninos e do padre, do que a figura do Menino Jesus, tão bondoso, tão misericordioso, tão capaz de condescender a todos os desejos dos homens e entrar com eles nessa familiaridade. A respeito de Nosso Senhor, diz a Escritura: “Minhas delícias são estar com os filhos dos homens” (Pr. 8, 31). Ao mesmo tempo, entretanto, pedindo um preço. É o preço que Ele mesmo pagou: o holocausto. Em certo momento, Ele pede o sacrifício e é preciso dá-lo. Assim, a vida deles terminou maravilhosamente bem.

Candura, vigilância e holocausto formam uma tríade, que merece ser lembrada por nós na noite de hoje.  v

 

(Extraído de conferência de 12/11/1976)

 

1) Não possuímos a ficha utilizada por Dr. Plinio nessa ocasião.

2) René Louis de Girardin (1735-1808).

3) Sendo já homem maduro, Dr. Plinio foi notando entre os jovens com que fazia apostolado uma mudança de modos de pensar, querer e agir. Enquanto as pessoas de igual ou maior idade que ele demonstravam certas qualidades de espírito, esses mais novos apresentavam debilidades, tais como falta de perfeita lógica, de segurança, de direção, de perseverança, etc. Aos primeiros, Dr. Plinio chamava de “geração velha”; e aos últimos, de “geração nova”

A Civilização Cristã: fruto da graça

Qual o papel da graça divina na educação, na distinção e nas boas maneiras de um povo? Conquistada para nós pelo Sangue de Cristo, a graça penetra nos homens  produzindo inúmeras  maravilhas.  Entre elas está a Civilização Cristã.

 

Folheando uma coleção de fotografias de pessoas de várias nações, entre as quais havia alguns marajás e um sultão do Afeganistão, eu notava a diferença existente entre a atitude, o porte e a posição dos monarcas, ou dos pretendentes a tronos, ocidentais, e os do Oriente.

No Oriente as pedras preciosas são muito maiores, mais bonitas, de melhor quilate; o subsolo é muito mais rico desse gênero de esplendores. Também as pérolas que se colhem em alguns lugares do Oriente são de uma beleza incomparável. De maneira que as figuras de destaque orientais podem constituir para si ornatos muito mais ricos do que os príncipes do Ocidente.

De outro lado, acontece que os orientais dispõem de tecelões que trabalham com tecidos feitos à mão, os quais são de uma qualidade muito superior do que os fabricados por meios industriais, como sucede em geral no Ocidente. Dessa forma, sob o ponto de vista da indumentária, os orientais se apresentam muito melhor do que os do Ocidente. Tanto mais quanto aqueles têm certa fantasia. E também não são inibidos por preconceitos revolucionários, não receando parecer por demais maravilhosos.

Uniformes de militares e diplomatas ocidentais do século XIX

Um homem no Ocidente tem medo de parecer por demais maravilhoso. Examinem, por exemplo, os uniformes oficiais dos diplomatas e dos militares de alto grau, generais, marechais, do século XIX e os do século XX. É uma degringolada medonha. No século XIX uns e outros usavam bicórneos — chapéus de dois bicos, com abas que se reuniam em cima, e tinham “aigrettes” brancas; as roupas eram bordadas com alamares e outras coisas muito bonitas; os veludos eram extraordinários. Esses fardões custavam tão caro, que ao encerrar a sua carreira o diplomata dava de presente o seu fardão a um colega da sua predileção, porque o uniforme representava uma fraçãozinha não negligenciável do patrimônio de um embaixador.

Mas atualmente um homem tem vergonha de se apresentar com esses trajes, porque o espírito de Revolução achatou todas as tendências para o belo.

Pelo contrário, no Oriente isso não foi assim. Marajás, rajás, xás, quedivas, sultões, ulemás, aparecem com essas roupas bonitas. Entretanto, se formos examinar os homens, veremos que eles são muito inferiores, como porte, aos do Ocidente. Porque durante séculos, desde que a Igreja Católica penetrou no Ocidente, neles começou a germinar a Moral católica. E quando nós consideramos uma pessoa que observa em todos os seus pormenores a Moral católica, notamos que essa pessoa, ou seu filho ou seu neto, acaba sendo de uma educação e de um porte perfeitos.

A Moral católica gera educação, distinção e correção perfeitas

Por quê? Tomem uma pessoa que pratica a Moral católica perfeitamente. É instintivo nela, ainda que não tenha recebido uma educação de salão, praticar, por exemplo, atos como este: a pessoa está se servindo à mesa com um convidado por ela; por ser convidado, este merece uma especial honra e atenção; ela então serve o convidado antes de se servir a si própria.

Essas coisas, ensinadas como regras de educação — “Você na sua casa, tendo convidados, seja o último a se servir”; “quando está na presença de mais velhos, faça que estes se sirvam antes”; “em presença de pessoas mais graduadas do que você, reconheça de boa vontade essa maior graduação, preste-lhes honras” —, são aplicações de princípios de Moral a questões de bom procedimento.

E se, numa primeira geração de católicos muito bons, não foi possível modelar todos esses costumes de acordo com os princípios morais, ao cabo de algum tempo esses princípios filtram e nascem deles uma atitude, uma distinção, uma amabilidade, uma cortesia, que no fundo fazem parte da Moral católica. A Moral perfeita tem que gerar necessariamente a educação, a distinção e a correção perfeitas.

Quem tem boas maneiras glorifica a Deus

Às vezes acontece que uma pessoa pode ser de uma Moral perfeita e não ter uma educação perfeita. Porque não houve tempo de filtrar essa Moral no ambiente em que ela foi educada, começar a prestar atenção em pequenas questões de maneira a praticá-las. Questões que, evidentemente, estão num plano secundário; não constituem a essência da Moral.

Pelo contrário, pode suceder que uma pessoa não tenha boa Moral, mas possua uma educação perfeita. Mas ainda aí é um resto de Religião Católica. Ela, sem perceber, pratica regras da Religião Católica, porque percebe que são bonitas na prática, na atitude concreta. Infelizmente ela com isso não tem intenção de dar glória a Deus, mas imita os que dão glória ao Criador; assim, ela involuntariamente glorifica a Deus.

Guilherme II e a Imperatriz Sissi

Nas memórias do Kaiser Guilherme II, último Imperador da Alemanha, ele conta um fato cuja descrição me impressionou muito. Ele estava no jardim do palácio do avô dele, que era então o Imperador da Alemanha. Como a Imperatriz havia morrido, a mãe dele, casada com o Príncipe Herdeiro, estava fazendo as honras da casa para uma visitante muito ilustre, que era a Imperatriz da Áustria, a famosa Sissi, uma princesa bávara casada com Francisco José, Imperador da Áustria. Era de uma beleza famosa e, além disso, de uma distinção de maneiras, de uma linha, de uma categoria extraordinárias.

O Kaiser conta então que ele estava no jardim do palácio, vendo a mãe, de costas para ele, que recebia a visita da Imperatriz da Áustria. Mas ele não se aproximou enquanto não o chamaram. Pela narração, parece que ele não tinha muita curiosidade em conhecer a Imperatriz da Áustria. Em certo momento, a Imperatriz deu sinais de que queria partir, e a mãe dele se voltou para trás para ver quem estava ali para carregar a cauda da Imperatriz. E, não vendo ninguém além do seu filho, o futuro Guilherme II, ela disse-lhe: “Meu filho, venha aqui carregar a cauda de Sua Majestade a Imperatriz da Áustria”.

Quando ele se aproximou, a famosa Sissi, Imperatriz Elisabeth, estava apenas se levantando. E ele descreve a impressão que ela lhe causou. Ela se erguia muito devagarzinho, com as maneiras e o protocolo da antiga corte. Todo o jeito dela causou-lhe tal impressão, que ele nunca mais se esqueceu de que aquele protocolo dava à Imperatriz uma elegância, uma distinção, realçava de tal modo a sua beleza, que se nota ter o Kaiser ficado deslumbrado. Se formos examinar todas as regras que ela seguia — porque a corte austríaca era muito conservadora —, verificaremos que tais regras de perto ou de longe se relacionam com a formação católica, com o ideal de perfeição moral que a Religião Católica ensina.

Sentar-se sem encostar-se ao espaldar da cadeira

Coisas insignificantes. Estou falando neste auditório, onde todos estão sentados, mesmo os mais moços, e com as costas apoiadas no dorso da cadeira. Mas houve tempo em que isto era contrário às regras da boa educação. As cadeiras tinham espaldar alto, para o caso de a pessoa precisar. Mas normalmente não se deveria encostar ao espaldar. Porque era a imagem da ascese católica: a pessoa sentada, sem encostar-se ao espaldar, dominando a si mesma.

Considerem essas cadeiras de couro — pior ainda, de matéria plástica! —, com brações, que há hoje. Ao sentar-se nelas, o indivíduo afunda e fica mergulhado naquilo, quase como numa banheira. A atitude de não se encostar ao espaldar se torna impossível.

O Ocidente tem menos pedras preciosas que o Oriente, mas possui a finura católica

Isso faz com que no Ocidente ocorra o seguinte: o engenheiro ou arquiteto católico que vai planejar a decoração externa e interna de um palácio para um rei católico morar, palácio no qual o rei vai exercer o poder catolicamente sobre um povo católico, a própria respiração de sua alma católica executa a ornamentação de maneira a fazer prevalecer as coisas do espírito, que têm categoria, finura, em que a alma humana aparece na sua excelência. Pelo contrário, o homem que não tem essa assistência da graça, essa inspiração da Fé, não é capaz disso.

Considerem esses marajás e figuras semelhantes; eles estão refestelados; um sultão chupa o narguilé indefinidamente. Por quê? Porque eles não aprenderam da Religião Católica os modos de se portar. Isso também se retrata evidentemente nos prédios, no urbanismo de uma cidade, enfim, em mil outras coisas.

É isto que faz a superioridade do Ocidente. O Ocidente tem menos rubis, pérolas, esmeraldas, safiras, brilhantes; não possui rajás nem marajás, mas tem a finura católica, contrarrevolucionária, que domina todo o resto. 

Encontro do Xá da Pérsia com a Sissi

Lembro-me de outro fato ocorrido com a própria Sissi, a Imperatriz da Áustria, e um Xá da Pérsia.

Esses potentados do Oriente nunca vinham à Europa, porque eram viagens muito longas e às vezes sujeitas a risco. Mas quando surgiu, com os meios de comunicação modernos, a possibilidade de viagens seguras e com relativo conforto ­­— os primeiros transatlânticos do século XIX, os primeiros trens —, os potentados do Oriente começaram a vir ao Ocidente. E vinham com todo o luxo do Oriente.

O Imperador da China, o Xá da Pérsia, marajás e rajás em quantidade indefinida, sultões, estiveram na Europa. E quando eram recebidos, as cortes europeias seguiam todo o protocolo com que se recebia um Chefe de Estado estrangeiro. Portanto, coisa muito bonita, muito esplendorosa, rica, mas não extraordinariamente rica. Os orientais vinham com riquezas fabulosas e iam às festas com traje oriental.

Então o Xá da Pérsia — Imperador da Pérsia — foi às principais capitais da Europa e também a Viena. Nesta cidade, em certo momento da festa, chega a Imperatriz da Áustria. Então homenagens, e o apresentam a ela. Ele faz uns salamaleques à moda oriental e ela responde com distinção, com graça, um pouco sorrindo, como diante de um Conto de Mil e Uma Noites, de uma fábula.

O Xá começou a olhar para a Sissi e ficou tão deslumbrado que, terminados os salamaleques, deu uma volta por detrás dela. Queria ver se ela era inteira assim, ou se na nuca, nas costas, ela não era tão bem feita como de frente. Quando retornou à frente dela, disse: “A Sissi é realmente bonita como me disseram e até mais do que me disseram”. E fez outro salamaleque. Provavelmente, ele tinha joias muito mais bonitas do que ela, que era uma dama. Mas ela era uma joia! Tudo isso são frutos da Civilização Cristã.

Papel da graça divina

Mas o que é Civilização Cristã? É uma civilização na qual os homens, tendo pela graça a virtude da Fé, e, nascidas dela, as demais virtudes teologais e cardeais — sendo a Fé a primeira das virtudes teologais —, acabam possuindo toda essa grandeza pessoal, que é o resplandecer da graça.

E quem nos obteve a graça foi Nosso Senhor Jesus Cristo, no momento de morrer na Cruz, e já no Horto das Oliveiras, quando Ele começou a sentir tédio e pavor do que lhe aconteceria durante a Paixão. A graça, conquistada para nós pelo Sangue de Cristo, penetra nos homens e depois produz todo o resto.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/1/1989)

A Jesus, por Maria

Para comungarmos bem, devemos pedir a Nossa Senhora que venha espiritualmente à nossa alma, e preste a Nosso Senhor atos de culto. Dessa forma, nossa Comunhão será inteiramente marial, conforme ensina São Luís Maria Grignion de Montfort.

Acho conveniente deter hoje nossa atenção na invocação de Nossa Senhora do Santíssimo Sacramento, quer dizer, a Virgem Maria considerada especialmente em suas relações com a Divina Eucaristia.

Procurarei ser esquemático ao indicar alguns pontos para meditarmos, a fim de que caiba a maior quantidade possível de matéria dentro de pouco tempo.

Nossa Senhora obteve o Santíssimo Sacramento para o gênero humano

Consideremos o seguinte: uma das maiores graças que o gênero humano recebeu foi a instituição da Sagrada Eucaristia, ou seja, da presença real de Nosso Senhor Jesus Cristo em todos os sacrários da Terra, até o fim do mundo, e a renovação incruenta do Sacrifício da Cruz.

Para medirmos a importância dessa graça, basta considerarmos como julgaríamos magnífico se, de repente, tivéssemos o Redentor visível aqui entre nós. Com toda razão, julgaríamos que uma eternidade não bastaria para agradecer esse favor.

Ora, Nosso Senhor, embora de modo não visível, está realmente presente no Santíssimo Sacramento.

Se recebemos todas essas graças é porque nos vieram a rogos de Maria, por meio d’Ela. De maneira que devemos esses favores insondáveis a Nossa Senhora. Ela obteve o Santíssimo Sacramento para o gênero humano. Mais ainda: todas as graças que Nosso Senhor distribui no Santíssimo Sacramento, Ele o faz pelos pedidos da Virgem Maria. Se Ela não pedisse, não as obteríamos.

Além disso, a única criatura humana que presta ao Santíssimo Sacramento um culto inteiramente digno e perfeito é Nossa Senhora. As outras criaturas humanas sempre têm algum defeito, que macula o alcance desse culto.

Nossa Senhora conhece todos os lugares da Terra onde há o Santíssimo Sacramento, e Ela, do alto do Céu, está adorando continuamente as Sagradas Espécies por toda parte.

Onde as Sagradas Espécies são adequadamente cultuadas, Maria Santíssima presta um culto jubiloso. Quando são tratadas com indiferença ou até com blasfêmia ou sacrilégio, Ela presta um culto reparador.

A devoção ao Santíssimo Sacramento é uma graça; logo, é obtida por Nossa Senhora.

Modo de um escravo de Maria comungar

Cada um desses pontos de meditação nos deve ajudar a comungar como São Luís Maria Grignion quer. Todas as nossas Comunhões são atos de culto a Nosso Senhor Jesus Cristo, mas com Maria, por Maria, em Maria.

Então, dadas todas essas relações que Nossa Senhora tem com o Santíssimo Sacramento, devemos preparar-nos para a Comunhão com o auxílio d’Ela. O que quer dizer isso?

Precisamos pedir a Maria Santíssima que venha à nossa alma, e diga por nós a Nosso Senhor tudo quanto Ela diria se estivesse comungando.

Devemos receber a Eucaristia junto com Nossa Senhora, ou seja, pedir que Ela esteja como que à entrada de nossa alma para acolher a Nosso Senhor e preste os atos de culto a Ele. Como todos sabem, os atos de culto são quatro: adoração, ação de graças, reparação e petição dos dons divinos que precisamos.

No momento de nossa Comunhão, digamos a Nosso Senhor o seguinte: “Meu Deus, Vós encontráveis vosso Paraíso estando em Maria durante vossa Encarnação e durante as comunhões d’Ela. Como é inferior a acolhida que eu Vos dou! Tende, entretanto, em consideração que em espírito vossa Mãe está presente em mim, dispensando-Vos uma acolhida incomparável. Recebei, assim, com benignidade, meus pobres atos de culto, enriquecidos por passarem através d’Ela a fim de chegar a Vós”.

Assim, nossa piedade eucarística se torna inteiramente marial, embebida do espírito de São Luís Maria Grignion de Montfort. Esse é o modo de comungar de um escravo de Maria.

Receber a Eucaristia com a alma plenamente confiante e jubilosa

Dessa forma, se evita que, ao comungar, caiamos em dois erros.

Um é a ideia da inacessibilidade de Deus.

Nosso Senhor Jesus Cristo é tão infinitamente Santo, que não há nenhuma proporção possível entre nós e Ele, debaixo de nenhum ponto de vista.

Então, tendo isso em vista, corre-se o risco de comungar acanhado, quase deprimido.

Mas se se considera que Nossa Senhora está em nós espiritualmente — não realmente como está Ele — comunga-se alegre, porque, apesar de sermos o que somos, Ela se encontra em nossa alma.

Dou um exemplo: imaginem um mendigo que vai receber a visita do maior rei da Terra. Ele não tem nada para oferecer ao monarca, mas consegue que a rainha-mãe lá esteja para acolher o rei. O mendigo está tranquilo; não lhe falta nada. Ao chegar o soberano, a rainha-mãe está na entrada do tugúrio e lhe diz: “Meu filho, eu quis honrar esta casa com a minha presença. Ela é minha, entre!” O dono da casa não tem outra coisa a fazer senão sorrir, regozijar-se, transbordar de alegria porque a recepção está à altura do rei.

Então, devemos comungar com a alma plenamente confiante, jubilosa.

Se cada um de nós for pensar em seus defeitos, ficará acanhado, encafifado. Mas em sua alma está Nossa Senhora! Que tranquilidade, alegria, paz de alma, esperança para tudo!

Conjunção da adoração com a maior das ternuras

Assim, evita-se também a falta de respeito, que teria, por exemplo, um mendigo a quem o rei vai visitar todos os dias. Nunca o mendigo tem algo para oferecer ao monarca. Certo dia, ele diz para o rei: “Sentai-vos ali e conversai comigo. Se vós quiserdes vir em minha casa, só possuo isto para vos oferecer: meu café velho e minha caneca rachada. Não tenho outra coisa; não posso me virar pelo avesso”.

Então, a devoção a Nossa Senhora equilibra isso. Tira o acanhamento, o encafifamento, e também a rotina, o desrespeito.

Há, portanto, uma espécie de equilíbrio da piedade eucarística simplesmente magnífico, pela conjunção da maior das venerações, que se chama adoração, de um lado, com a maior das ternuras. Assim, eu posso tomar com Nosso Senhor as liberdades mais afetuosas, porque fui trazido pela Mãe d’Ele.

Eu quisera que todo membro de nosso Movimento, habitualmente, comungasse nesse espírito, tomando cada dia um desses pontos para considerar.

Por exemplo: “Minha Mãe, eu Vos devo a instituição da Sagrada Eucaristia. Todo o gênero humano Vos deve essa instituição. Ajudai-me a agradecê-la a vosso Divino Filho, vinde à minha alma.” Ao receber a Comunhão, agradecer a Ele. Está feita uma Comunhão excelente.

Acho que este seria um método ideal para a Comunhão, evitando assim a falta de respeito e também a rotina: as Comunhões nas quais as pessoas têm a impressão de que não sabem o que dizer a Deus, como dois velhos amigos que se encontram todos os dias e já não têm mais o que falar um para o outro.

Para Nosso Senhor, nós sempre temos coisas novas para dizer, aprofundando esses horizontes. Cada um desses pontos encheria o tempo da ação de graças de uma Comunhão. Que Nossa Senhora do Santíssimo Sacramento nos conceda a graça tão preciosa de uma piedade eucarística em união com Ela.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/5/1969)