Conhecendo as vias da Confiança

Entre os quatro livros que mais marcaram a alma de Dr. Plinio figura o “Livro da Confiança”. Na conferência que a seguir transcrevemos, ele conta como foi seu encontro com essa obra.

Voz de Cristo, voz misteriosa da graça que ressoais no silêncio dos corações, vós murmurais no fundo das nossas consciências palavras de doçura e de paz…

Essa frase se prende, para mim, a dias de muita aflição. Aos 25 anos, achava-me numa encruzilhada de meus caminhos, em virtude de uma determinada circunstância de minha vida em que o problema de discernir a voz de Cristo, a voz misteriosa da graça, se me punha de modo bastante agudo.

Aos 24 anos, parti para o Rio de Janeiro a fim de assumir meu lugar de deputado na Assembléia Constituinte. Viajei despreocupado com relação à minha família, pois a deixava em condições de vida inteiramente normais.

Apesar de ainda jovem, eu me dirigia tranqüilo para lá, porque, se minha eleição correspondia aos planos de Deus, eu haveria de me sair bem. A Divina Providência não traça para um homem um caminho sem dar-lhe o necessário apoio. Assim, estava convicto de que, mesmo tendo de suportar alguma amargura, tudo acabaria bem.

Aflições e desapontamentos

Entretanto, nem tudo no Rio de Janeiro saiu para mim como um jovem idealista esperava. A vida parlamentar trouxe-me enormes dissabores, os quais, somados a outras dificuldades, fizeram-me sentir um certo desapontamento, como se a Providência não fosse cumprir as perspectivas que Ela mesma tinha aberto diante de mim.

Pouco tempo depois, uma informação vinda de São Paulo veio turvar mais o meu horizonte. Com efeito, o futuro de meus pais e o de seus dois filhos estava praticamente assegurado pela vultosa herança que nos legaria um parente próximo.

Porém essa pessoa, já idosa, fez um mau negócio e perdeu todo o seu patrimônio. Em conseqüência, não iríamos herdar nada. Pior. Ficávamos reduzidos a uma grave situação financeira.

Pensei: “Como pode uma coisa dessa acontecer? Agora terei de fazer o quê? Quando terminar este mandato de deputado, que ofício vou exercer? Era melhor não ter sido eleito do que, encerrada a carreira parlamentar, ser obrigado a pegar um emprego inferior”.

Então, aquilo que à primeira vista parecia um presente da Providência, transformara-se em algo que caía sobre mim. Como se não bastasse a preocupação com esse futuro tão carrancudo, sombrio, ameaçador, começo a sentir todas as noites, por volta das três horas, uma nevralgia no rosto.

Fortíssima, como se fosse um prego cravado na face, e que me impedia de dormir. O único jeito que tinha de encontrar um certo alívio era sentar-me e ficar com a cabeça apoiada sobre dois ou três travesseiros, permanecendo assim até que me viesse algum sono. Então eu conseguia descansar mais um pouco.

Acordava e tinha de sair às pressas para a reunião dos deputados paulistas e, em seguida, para a sessão da Assembléia. À noite, sobrava-me algum tempo para rezar meu rosário, cuidar de minha vida espiritual,etc.

Quem nunca esteve às voltas com uma nevralgia não imagina o que seja ficar essas horas noturnas assim dobrado, sentindo um prego enfiado no rosto e sem conseguir dormir. No meu caso, pensando em todos os problemas que me afligiam. Quer dizer, perda da fortuna, carreira profissional comprometida, enfim, vendo minha vida muito dificultada.

Meu porvir parecia uma flor que desabrochara de manhã sob um lindo sol e que, antes do anoitecer, tivera suas pétalas arrancadas e espalhadas por uma borrasca… Sem falar de uma circunstância que só fazia aumentar essa angústia.

Tomara eu a resolução de consagrar toda a minha vida ao apostolado católico. Compreende-se que, para tanto, eu não podia dedicar muito tempo ao trabalho profissional.

Por outro lado, se não exercesse uma profissão, não teria como proporcionar a meus pais, que já caminhavam para a velhice, uma vida condizente com sua posição social.

Como achar um caminho? Que problemas, que coisas misteriosas! E assim ficava eu esfacelado diante dessas perspectivas, horas e horas, noites a fio, sem saber que saída encontrar, até o momento determinado por Nossa Senhora para se fazer uma luz nesse tão sombrio panorama.

Um livro comprado a esmo

Perto do meu hotel erguia-se a Igreja do Sagrado Coração de Jesus, onde eu ia comungar todos os dias. Acontece que, devido às nevralgias e às preocupações, era-me difícil acordar tão cedo quanto seria necessário para receber a Sagrada Eucaristia durante as missas da manhã, já rezadas quando eu chagava na igreja. Mas o pároco era extremamente amável comigo: percebendo meus horários bastante apertados, sempre se dispunha a me dar a comunhão na hora em que eu por lá aparecesse. Supérfluo dizer quanto lhe ficava agradecido por essa caridade, fazendo-o entender ao cumprimentá-lo com particular gentileza.

E era só, pois eu tinha de sair correndo para a Assembléia Constituinte, e não havia tempo para entabular uma conversa com ele. Certo dia, porém, o padre se aproximou de mim e disse: “Dr. Plinio, nós estamos organizando uma exposição de livros piedosos aqui na sacristia. Se o senhor quiser examinar essa mostra, talvez tenha alguma obra que lhe agrade ver”.

De fato ele desejava me dizer outra coisa: “Para manter a paróquia, estamos vendendo alguns livros. O senhor não quer nos ajudar, comprando alguns deles?”

Eu, devendo tantos favores, não podia nem tinha vontade de recusar. Auxiliar aquela paróquia era uma coisa muito boa, e eu queria colaborar nessa forma de bem. Assim, terminada minha ação de graças, fui correndo para a sacristia disposto a adquirir dois ou três livros, escolhidos a esmo. Peguei um de cujo tema já não me lembro, e outro
chamado O Livro da Confiança.

Retirei-me apressadamente, tomei um táxi e fui trabalhar, levando os livros na mão. À noite, de volta ao meu quarto de hotel, deixei-os sobre um móvel qualquer, sem lhes dar maior atenção.

tendia que confiar em Deus é uma atitude boa. Lembrava-me até de um canto entoado pelo coro da paróquia em que me fiz Congregado Mariano, cuja letra em latim era:
“Beatus homo qui confidet in te —Bem-aventurado o homem que confia em Vós, Senhor”. Eu gostava de ouvir aquilo, era uma canção que me dizia alguma coisa, porém não aprofundava seu significado.

Agora, naquela amargura, ao ler as palavras “voz de Cristo, voz misteriosa da graça”, tive uma sensação curiosa, como se uma atmosfera dulcíssima e cheia de afeto penetrasse em mim, afastasse todos os espantalhos e receios, e me dissesse: “Repita, meu filho: voz de Cristo, voz misteriosa da graça, vós murmurais em minha alma palavras de doçura e de paz”.

Eu sentia algo que fazia desaparecer todas as minhas angústias e me dava uma certeza de que, realmente, aqueles fantasmas de perspectivas e de preocupações futuras sumiriam. E de que Nosso Senhor e Nossa Senhora resolveriam bem os problemas que tanto me amarguravam.

Continuei a ler o livro, e a cada nova frase, a mesma sensação de tranqüilidade se produzia em mim. Eu tinha a impressão de estar entrando num bosque encantado onde davam flores maravilhosas, onde passarinhos cantavam do modo mais sonoro e agradável possível, etc.

E onde fica a razão? Contudo, habituado sempre a raciocinar muito, e não conhecendo a doutrina católica a respeito da confiança, eu tinha duas objeções contra esses  sentimentos.

Em primeiro lugar, não se me apresentava nenhuma razão plausível para confiar em que Nossa Senhora me ajudaria naquela emergência, pois não via no meu horizonte nada que me prometesse uma solução. E o homem tem de ser concreto, não pode viver de impressões interiores. Para confiar, ser-me-iam necessários motivos pão-pão, queijo-queijo, filhos da razão. Ora, onde estava a razão dentro dessa história?

Depois, havia o fato de que em certas horas do dia eu lia aquelas frases, e era para mim como se estivesse mascando serragem de madeira. Não me diziam nada. Em outras horas, pelo contrário, era como se penetrasse um pedaço do Céu dentro de meu espírito. Logo, objeção: “Que propósito tem isto?

Eu não entregarei minha alma a essas sensações interiores sem antes ter uma explicação de como se fundamentam na boa e ortodoxa doutrina da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.” Mas, não havia remédio, era uma experiência curiosa: eu abria o livro e penetrava em mim essa doçura. Nesse momento, as objeções desapareciam,
tornando evidente ser aquilo uma ação da graça, um favor de Deus e de Nossa Senhora.

Porém, quando fechava o livro, aquela suavidade se eclipsava, e para mim já não era tão patente tratar-se de um movimento da graça. Então, eu precisava de provas.

A solução exata, no momento exato

Estas apareceram, de modo bem inesperado. Vinha eu passar os fins de semana em São Paulo para estar com meus pais, e no domingo à noite ou segunda-feira de manhã retornava ao Rio de Janeiro.

Certa noite, numa dessas minhas passagens por São Paulo, encontrava-me no prédio da Congregação Mariana de Santa Cecília, quando um congregado amigou meu, pessoa muito viva e inteligente, aproximou-se de mim e, num tom de voz baixo, quase sussurrado, me disse: — Plinio, você gostaria que eu lhe pusesse na pista de um emprego
muito bom? Quando você deixar de ser deputado, você fica com esse trabalho… Eu caí das nuvens! “Esse homem não sabe nada a respeito de minha vida, não conhece os apuros e os problemas em que ando, como pode ele vir me oferecer algo tão capaz de me satisfazer e de me aliviar em  tantas preocupações?!”

Enfim, quando se está afogando no mar, pega-se qualquer corda que apareça, pois ela deve estar presa a algum lugar sólido. Imediatamente puxei duas cadeiras e o fiz  sentar-se ao meu lado: — Venha cá e me conte esta história direito.

Ele ficara sabendo da abertura de vagas para professores no Colégio Universitário da Faculdade de Direito de São Paulo, e verificou que eu estava talhado para uma delas.

Com algumas providências, eu conseguiria um lugar, com um ótimo ordenado. Eu hesitei um pouco, mas afinal resolvi agir conforme ele me indico. E de fato, após alguns trâmites, acabei sendo nomeado professor catedrático vitalício e com o vencimento irredutível. Era o cargo que desejava, com o ordenado de que precisava, e uma posição honrosa para um ex-deputado.

Terminou o mandato, voltei para São Paulo, e o emprego estava à minha espera.

Mais ou menos por essa época, foram-me oferecidos dois outros cargos de professor catedrático, nas duas primeiras faculdades católicas abertas em São Paulo, a Sedes Sapientiae e a São Bento.

Nesse ínterim, as nevralgias desapareceram, como se nunca tivessem existido. Alguns fardos haviam sido tirados de cima de mim, e eu fiquei entendendo a verdade desta afirmação: Voz de Cristo, voz misteriosa da graça…

As razões para se confiar

Tudo o que nos leva para a virtude será sempre uma ação que baixa do Céu até nossas almas. E se algo nos impele a procedermos conforme à Fé e à Doutrina Católica, há todas as razões para acharmos que isso vem de Deus. Máxime quando nos sentimos fracos e notamos em determinado momento uma força nos ajudando a realizar aquilo que não julgávamos ao alcance de nossa fraqueza. É Deus quem está nos levantando e nos fazendo andar. Ele nos prova, pede-nos uma tarefa árdua e pesada, porém nos sustenta para caminharmos.

“Deus qui ponit pondus, supponit manum”, diz a Escritura. Deus, que impõe o peso, coloca por baixo a mão para que o aguentemos.

Portanto, se sentirmos coragem e tivermos vôo de alma para empreender o que antes nos parecia tão difícil, poderemos verdadeiramente dizer: “A graça está me levando. Deus me chama. Eu vou!”

O que se passara comigo ao ler o Livro da Confiança era, então, obra da graça. Através de suas páginas benditas, fiquei conhecendo as vias da confiança, que deve conduzir  cada um de nós a este ponto: mesmo se houver um grande perigo de que os planos de Deus a nosso respeito não se concretizem, devemos permanecer tranquilos porque, no fim, se realizarão.

Tranquilos, é verdade, mas não indolentes. É preciso rezar e pedir para obter, seguindo o conselho de Nosso Senhor: “Pedi e recebereis; batei e ser-vos-á aberto”. E lembro que nunca fazemos um pedido verdadeiramente grato a Ele, se não for por meio de Nossa Senhora, Mãe d’Ele e nossa. Mãe de Misericórdia, nossa vida, doçura e esperança.

Então, peçamos a Ela, e por meio d’Ela a Nosso Senhor Jesus Cristo, dizendo: “Minha Mãe, vosso Divino Filho tem tais desígnios a meu respeito, mas os problemas se avolumam à frente de meu caminho. Contudo, não me deixo tomar por angústias nem inquietações, porque eu confio em Vós. Ajudai-me!”

E assim praticamos, do melhor modo possível, a virtude da confiança.

Alguns lutam por um ideal… Outros… por uma vida gostosa

Passando pela Europa no ano de 1988, Dr. Plinio teve ocasião de assistir a uma campanha feita por membros de seu Movimento no centro de Madri. Muito propenso a analisar mentalidades, Dr. Plinio fez elucidativos comentários dos diversos tipos humanos presentes nas ruas dessa cidade.

 

Para bem analisarmos a opinião pública, devemos nos despir dos preconceitos espalhados por uma espécie de mito numérico que sempre faz consistir a vitória na obtenção da maioria.

Distinção entre povo e massa

Pio XII, num discurso admirável, faz a distinção entre a massa humana e o povo. A massa é um aglomerado de indivíduos que simplesmente existem juntos e formam uma espécie de multidão, sem especiais vinculações de uns com os outros. Pelo contrário, o povo é um conjunto de pessoas em que cada uma tem com as outras determinadas relações, certos modos de se impostar, formando uma espécie de organismo vivo. Para compreendermos a diferença entre povo e massa, consideremos o seguinte:

Nestas três salas conjugadas em que estou falando, há aproximadamente cem pessoas. Imaginem meus ouvintes que não fossem membros de nosso Movimento e estivessem num grande ônibus, sem se conhecerem, não tendo, portanto, entre si relações individuais e pessoais, mas apenas as vinculações anônimas existentes entre os passageiros de um veículo coletivo.

Quer dizer, eles têm o interesse comum de que o ônibus ande, pare nos locais solicitados para o desembarque de alguns passageiros e chegue até o ponto terminal. Por isso não querem briga nem encrenca dentro do veículo; desejam boa paz e mais nada. Cada um gosta de ser um anônimo para o outro.

Se alguém pergunta de repente a um passageiro “O senhor, quem é?”, ele fica desagradado e pensa: “Para que deseja saber quem sou eu? Sou um passageiro de ônibus como ele, um anônimo. O que esse indivíduo está querendo comigo?”

O anonimato é a regra da massa, a qual vale pelo número de seus componentes: cinco, dez, cem indivíduos.

Entre os que estão aqui presentes a situação é bem diferente: não constituem massa, e sim um organismo, uma gota de povo. Quer dizer, todos se conhecem individualmente e, pelo convívio cotidiano, cada um acaba tendo uma espécie de situação criada por ele mesmo, a qual — por inabilidade ou qualquer outra razão — pode não ser a que desejaria. A vida se faz com base nessas relações pessoais; não é um mecanismo que se reduz a um número, mas algo vivo, uma interseção de várias personalidades que, dando graças a Nossa Senhora, tenho diante de mim e constituem um conjunto de filhos.

Vejo que são de várias partes da Espanha e também de outras nações, formando um conjunto vivo, orgânico, em que cada um é, não como uma gotinha de metal fundido, integrando uma máquina, mas  uma célula viva dentro de um tecido.

Se olharmos pelo microscópio um tecido celular vivo, discerniremos grande quantidade de células; cada uma atua como se fosse uma pequena personalidade: tem sua dose de vitalidade e de reatividade sobre as outras, análoga à de um indivíduo dentro de uma família ou numa organização como a nossa.

É da vida de cada pessoa encontrando-se com a das outras que se forma um tecido, daí resultando um povo.

Considerado nosso Movimento como um tecido, um organismo vivo, qual a repercussão de nossa campanha na Espanha, que é um tecido, um organismo incomparavelmente maior? A campanha está conseguindo sua finalidade?

O mais baixo grau onde o ente humano pode chegar

A vitória sobre a opinião pública não consiste em obter a maioria, como os plebiscitos e as eleições fazem pensar: quantos espanhóis querem tal coisa, quantos desejam tal outra. Trata-se de saber: que espécie de pessoas estamos influenciando, e, dentro do tecido vivo que é a Espanha, que possibilidades têm elas de influenciar outras?

O público que estava na praça Puerta del Sol(1) se dividia em três partes bem claras.

Havia um círculo formado em torno da nossa fanfarra e do nosso sistema de propaganda. Em sua parte externa era impreciso, pois algumas pessoas chegavam, outras saíam, mas a parte interna do círculo apresentava certa precisão de desenho.

Pouco adiante, existiam dois pequenos círculos de indivíduos, sentados em volta dos dois chafarizes, simplesmente porque as bordaduras dos mesmos, um tanto largas, forneciam-lhes um assento cômodo. Constituíam um público contrário àquele reunido em torno dos nossos. Alheios uns aos outros e dando as costas para o que na aparência os unia — os chafarizes —, eles estavam todos adormecidos. Alguns mastigavam alguma coisa, e o faziam com preguiça, não olhando para nada de fixo, não pensando em nada de determinado, mas sentindo que estão vivendo, e encontrando nisto certo prazer. É o gosto de respirar, de digerir, de mexer as pernas, de ter um corpo, e não o de possuir uma alma.

Têm essas pessoas uma vida vegetativa a mais parecida possível com a do animal. Olhando certos animais, às vezes temos impressão de que possuem bem-estar. Quer dizer, eles sentem deleite de estar vivendo, mas não têm conhecimento desse deleite.

São Tomás de Aquino, com uma linguagem muito precisa, diz que o bicho não conhece nada. Ele tem notícia das coisas, mas não o conhecimento, que é uma compreensão intelectiva. A palavra “notícia” é perfeita. Por exemplo, um pássaro vê diante dele uma folha que cai. Ele tem notícia de que caiu alguma coisa, mas nem sabe que é uma folha; e não pensa a respeito disso, porque não tem pensamento.

Aqueles indivíduos são entes humanos; entretanto têm o menor grau de pensamento possível: “Que gostoso! Eu estou aqui sentindo viver. Estou mastigando, piscando, olhando, respirando, batendo as pernas, mexendo os braços, estou vivo”.

Sob certa perspectiva — mas que atinge uma realidade muito profunda — é o mais baixo grau aonde a criatura humana pode chegar. Essa é propriamente a descrição do dormente.

Os dormentes

Para tudo quanto é fenômeno de pensamento, de ideal, de ato de vontade, de definição, de atitude, eles estão no sono.

Sucede inúmeras vezes com todo indivíduo que, acordando de manhã, diz para consigo: “Que bom sono eu dormi essa noite!” Estando dormindo e não tendo consciência de nada, como sabe ele que teve um sono bom?

Em parte é porque, quando despertou e sentou-se na cama, as últimas névoas do sono estavam se retirando.  Ele não tinha acabado de dormir inteiramente e sentiu o gostoso do sono que ainda existia. E, por memória, teve a ideia de que aquele prazer, cujo último fim estava notando, ele havia sentido a noite inteira.

Esses indivíduos têm o gostoso de estarem acordados e sentados próximo aos chafarizes. E, de modo analógico, digo que eles estão dormentes.

Como se chega a esse estado?

A graça atua no fundo das pessoas, máxime das batizadas, e proporciona movimentos de alma elevados, nobres.

A Revolução explora o desejo do gostoso

Mas, de outro lado, o corpo age no sentido de a pessoa se entregar aos meros prazeres materiais. Quando criança, ela pensa, por exemplo: “Como é gostoso correr de bicicleta, tomar vento!” E, em todas as idades: “Como é gostoso megalar(2)!” Ela comparece no colégio com um sorvete especial que comprou, dizendo que um sorveteiro perto de sua casa lho deu porque a achou muito simpática; inventa uma série de mentiras.

 Tais indivíduos querem levar uma vida gostosa e recusam os movimentos da graça que conduzem suas almas para as coisas mais elevadas. E se alguém afirma que a vida não consiste em gozar, mas é necessário o sacrifício, consideram-no como louco e não se interessam por ele.

Cada época revolucionária que sucede outra acrescenta um gostoso para a vida.

Por exemplo, a sensualidade. O pecado contra a castidade, há trinta anos atrás, tinha a intensidade X, a frequência X. Mas as modas tornaram-se cada vez mais imorais, o convívio entre as pessoas de sexo diferente foi ficando mais frequente, mais livre e menos controlado. A Revolução na mentalidade delas caminha em direção ao cada vez mais gostoso.

Nós nos opomos a isso, somos os arautos do sacrifício, os que lutam contra o mero gostoso, a favor de um ideal; assim, estragamos a festa daqueles que só procuram o gozo. E não pugnamos por um ideal qualquer, mas por um ideal de Fé. E a Fé não se refere a uma crença religiosa qualquer, mas à Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

Isso os revolucionários rejeitam e dormem porque já não têm remorsos. Estão entregues completamente às suas próprias delícias, lamentando precisar aguentar dificuldades, inconvenientes, etc. E por esse processo vai ficando cada vez mais fácil adormecer os partidários do gostoso.

E existia uma terceira categoria: os que vão e vêm, olham a campanha, e os que estão sentados, mas não prestam atenção. Esses estão dormindo também? O que se passa na alma deles?

Um deles é, digamos, um advogado que vai ao escritório de um outro para discutir uma questão, e está preparando seu raciocínio para derrotar o colega. Ele passa tão preocupado, que não presta atenção em nossa campanha ou a observa muito por alto.

O mesmo pode acontecer com um médico que se dirige à casa de um cliente, o qual ele examinou na véspera, consultou alguns livros e colegas, mas está na dúvida quanto ao diagnóstico. Às vezes, a vida de um paciente depende do diagnóstico de seu médico: opera ou não opera? Se for feita a cirurgia, provavelmente ele morrerá. O que fazer?

É possível que isso também suceda a um homem de negócios, o qual se pergunta: “Telegrafo ou não para os Estados Unidos ou Canadá a fim de fechar um negócio?”

Porém, a maior parte dos passantes está pensando nos seus próprios interesses, muito menos cogentes. Um caminha para o seu escritório, mas não tem nada de muito importante para tratar; outro é médico que vai ver um cliente atingido por um resfriado muito forte, ao qual ele quer receitar um remedinho; um terceiro é homem de negócios que, para fechar um negociozinho em algum lugar da Espanha, precisa dar um telefonema. São coisas que não preocupam.

Entretanto, são da mesma categoria daqueles que estão em torno dos chafarizes. Eles fazem andando o que os outros fazem sentados. Julgam que os trabalhos e os problemas da vida são interessantes e a eles se dedicam para ganhar dinheiro, pois este proporciona facilidades gostosas para a vida.

Alguns acionam o intelecto porque acham gostoso

Poder-se-ia perguntar: como é possível uma pessoa achar gostoso enfrentar complicações?

A resposta é simples. Em vários jornais do mundo há uma secção onde se publicam problemas de xadrez. Viajando de ônibus ou de trem, às vezes há passageiros procurando solucioná-los. Tomam as questões existentes somente no tabuleiro, não na própria vida, e gostam de resolver problemas difíceis porque pertencem a uma categoria um pouco mais elevada do que os amantes do gostoso, sentados em torno dos chafarizes.

Eles usam a inteligência, que é uma faculdade tão nobre, não para conhecer a verdade, o bem, o belo, Deus, mas porque acham gostoso acionar o intelecto. Assim, são eles semelhantes aos indivíduos dos chafarizes.

É comum verem-se nas ruas pessoas correndo a pé, usando traje o mais sumário possível, achando que estão fazendo um bonito papel junto aos outros.

Antes desse desastre de automóvel que me semi-imobilizou(3), eu andava pouco, pois não gostava de fazê-lo. E pensava o seguinte: “As minhas pernas foram feitas para me carregar e não para que eu as carregue. Um homem que anda pelo gosto de andar, vai carregando as pernas pelo caminho. Eu ando apenas se for necessário”.

Quando eu era menino me diziam:

— Para você ser um homem forte é preciso fazer esporte.

Eu cogitava: “Não acredito nessa balela. Sinto em mim mesmo que serei um homem razoavelmente forte e não vou fazer esforço físico, pois não tenho obrigação de tornar-me um touro. Preciso pensar, ler, lutar, tenho um ideal para servir”.

Os que somente pensam em jogar xadrez são esportistas da cabeça: não procuram um livro para resolver um alto problema, nem indagam sobre as elevadas questões da inteligência e da vida, porque não lhes interessa. A seu modo, são vegetativos; vegetam com o espírito.

Compreendo que uma pessoa jogue xadrez para descansar o espírito. É legítimo, como beber água.

Qual a diferença entre a mentalidade dessas pessoas e os membros de nosso Movimento?

A parábola do fermento

Considerem uma paróquia. Antigamente a Espanha era uma nação com muitas vocações sacerdotais. Mas deve estar havendo uma infeliz diminuição dessas vocações.

A Igreja espera e nós esperamos que, se em cada paróquia com quatro ou cinco mil fiéis houvesse dois ou três padres completamente da Santa Igreja Católica, e contrarrevolucionários, uma cidade mudaria.

Células de uma alta vitalidade, com uma missão divina — o sacerdócio —, e por isso favorecidos especialmente pelas bênçãos de Deus, eles poderiam levar quatro ou cinco mil pessoas. É a realidade evidente.

Nosso Senhor estigmatizou essa adoração das maiorias numéricas quando empregou aquela parábola tão bonita da massa e do fermento, dizendo aos Apóstolos: “Vós sois o fermento. A massa são os outros. Vós deveis fermentar a massa”.

A cena que presenciei hoje na “Puerta del Sol” era o fermento agindo…

Pouco importa que grande número de pessoas recuse. Não se trata de transformar tudo em fermento, mas de fermentar a massa. Assim se reconquista o país.

O participante da campanha deve se perguntar: “Como está minha alma quando vou para a rua? Qual é o meu grau de fervor e de amor à nossa Causa? Enquanto estou abordando as pessoas, etc., lembro-me de que a Providência está seguindo a cada um de nós e se servindo de minhas palavras para falar-lhes?” De fato, alguma delas pode logo depois ser chamada por Deus, como aconteceu com o nosso Lúcio(4), cujo nono mês de morte se celebra hoje. Tendo agora um bom movimento, um ato de amor, poderá receber os últimos sacramentos e salvar sua alma.

Se cada um de nós durante a campanha se lembrasse disso sumariamente…

São João Batista Vianey, Cura d’Ars, na França, viveu no século XIX e praticava milagres. Foi um grande Santo.

Dom Chautard, em seu livro magnífico “A Alma de Todo Apostolado”, o qual lhes recomendo muito, conta este fato:

Um advogado de Paris viajou até Ars para conhecer o Santo. Tendo regressado, um amigo perguntou-lhe:

— O que você foi ver em Ars?

— Fui ver Deus num homem.

Devemos ser mais modestos. Não suponhamos que se vai ver Deus em nós; nossa dimensão não é essa, pelo menos por enquanto. Mas se pode ver em nós nosso Anjo da Guarda, no qual se pode ver a Deus.

Em termos mais concretos: pode-se perceber algum reluzimento da graça também em nós. E esse é o ponto essencial da campanha.

Atrair os maravilháveis

Aquelas pessoas que estavam em torno dos nossos, após lhes ser explicada a campanha, entendiam melhor e ficavam maravilhadas.

A campanha realiza o fundamental de sua tarefa: atrai os maravilháveis, o que da Espanha é espanhol. Através desse aspecto da alma espanhola, Dom Pelayo(5) começou sua epopeia. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/10/1988)

 

1) Situada no centro de Madri.

2) Palavra criada por Dr. Plinio para indicar a mania de imaginar-se possuidor de qualidades que não tem, ou exagerar as que possui.

3) Em 3 de fevereiro de 1975, Dr. Plinio sofreu grave acidente automobilístico, na estrada Jundiaí-Amparo, Estado de São Paulo

4) Lúcio Chao. Membro do Movimento fundado por Dr. Plinio, o qual morreu em Madri, vítima de atropelamento.

5) Dom Pelayo (+ 737), chefe dos visigodos e Rei das Astúrias; em 718 obteve a vitória de Covadonga, considerada como o início da Reconquista espanhola.

 

Lição das flores

A rosa, a orquídea, a tulipa, três belas flores criadas por Deus. Que ensinamentos elas nos dão? Acompanhemos Dr. Plinio na consideração destas maravilhas.

 

Há três flores que especialmente me agradam: a tulipa, a rosa e a orquídea.

A rosa

Para meu gosto pessoal, a rosa ocupa o primeiro lugar entre as flores. Ela é inteiramente bonita, perfeita e acabada, é uma glória, uma beleza, uma maravilha.

A rosa é eminentemente ordenada. Nela, todas as pétalas estão postas em ordem e todas as suas formas de beleza obedecem a um raciocínio. Eu estaria longe de afirmar que a rosa é planejada, mas dir-se-ia que, como que, um poeta a planejou. Sim, Deus Nosso Senhor a planejou, a destinou.

Ela tem o perfume próprio à sua forma de beleza. A rosa tem a beleza da ordem prevista, racional e explícita, ela é uma soberba explicitação do conceito da beleza.

A orquídea

Depois da rosa, na escala das flores, está uma que é abundante no Brasil e na Colômbia: a orquídea.

Se a rosa traz consigo o esplendor da ordem, a orquídea é bem o contrário! Ela é singular, prega surpresas. Suas pétalas se “movem” semelhantemente a um “ballet”. Parece dançar um “ballet” vegetal para direções que ninguém imagina.

Sua parte central possui uma beleza magnífica, mas imprevista. Algumas destas flores têm, por exemplo, uma coloração branco-avermelhada na orla de suas pétalas que vai se intensificando e assumindo uma profunda cor vermelha à medida em que se aproxima da parte central, de modo que quanto mais se aproxima do interior da flor, mais misteriosa fica. Tem-se a impressão de que há um vermelhíssimo sublime que não se mostra, por uma espécie de recato.

Assim, as orquídeas possuem uma beleza fantasiosa, inesperada, de uma alta distinção, mas de uma distinção que parece dizer a quem a vê: “Confessa que tu não me imaginavas e que eu sou superior a tudo quanto pensavas”.

Há um “não me toque” na orquídea, que faz parte de outra família de beleza. Não é a beleza da desordem — porque a desordem não tem nenhuma forma de beleza —, mas é uma forma superior da ordem, que o raciocínio não constrói e que só a fantasia sabe compor.

Dir-se-ia que a orquídea é semelhante ao espírito de duas nações latino-americanas psicologicamente muito parecidas: Brasil e Colômbia.

O capricho, o inesperado, o entusiasmo; às vezes, o ressentimento, a vingança; conforme a ocasião, a violência, mas sempre seguida de uma reconciliação afetuosa; todo este “vai-e-vem temperamental” muito comum no brasileiro e no colombiano, estão marcados de alguma maneira na orquídea.

A tulipa

A tulipa, por sua vez, é uma flor tão bonita que, quando a vemos, nos perguntamos se algo pode ser mais belo do que ela. É grande sua variedade de cores, mas entre as mais belas está a bordeaux. Ao contrário das cores da orquídea, a tulipa tem uma coloração leal, estável, definida.

Enquanto a orquídea é, como que, uma parasita, o todo da tulipa fala de autossuficiência, de independência. Ela se levanta altaneira, e carrega, bem na ponta, uma espécie de equilíbrio. É um equilíbrio um pouco altivo, as próprias folhas cercam a haste e se desprendem para deixar passar a haste, a qual vence todos os obstáculos, se afirma quase como uma lança.

Alguém poderia perguntar: em síntese, qual é então a beleza da tulipa? Eu diria que é beleza da harmonia. Há uma proporção entre a altura, o diâmetro, o tamanho de cada pétala, que faz dela uma obra-prima de coerência. E quando se admira isto, sente-se alegria de ser um ente racional, sente-se a beleza da razão. É uma ordem de belezas no estilo da maravilhosa Europa: equilibrada, racional!

Certa vez, ao saber que existiam tulipas negras, tive certa perplexidade e me perguntei: “Para que servirá uma flor preta? Será para cruzes de Missas de defunto? Eu não compreendo. Mas haverá uma razão qualquer para que Deus tenha criado a tulipa negra”.

Qual não foi minha surpresa quando, passando de automóvel por uma rua de Paris, vi um jarro com tulipas de várias cores, entre as quais havia também uma negra, posto junto à vitrine de uma loja.

O automóvel passou rápido — com a rapidez dos velhos táxis da França —, e eu arregalei os olhos com aquilo, mas, sobretudo, regalei minha inteligência, compreendendo a razão de ser daquela maravilha de Deus.

Ao analisar o jarro e ver como a tulipa negra realçava a beleza de todas as outras cores, eu compreendi por que Deus criou as tulipas pretas. Era tal o contraste produzido por ela junto às demais cores, que se alguém quisesse tirá-la de lá eu diria: não tire, porque é uma das notas mais bonitas do jarro.

Era uma forma de fantasia racional, à maneira francesa. Era um teorema a respeito de cores.

Escala de valores

A análise destas flores nos dá uma interessante lição:
Para muitos homens, só tem verdadeiro valor aquilo que for de primeira ordem; o que for de segunda não serve para nada, é lixo. Isto não é verdade, há uma gradação entre as coisas, a qual nos incita a amar a beleza própria a cada grau.

Bela como a rosa, para meu gosto, a tulipa não é. Entretanto, ela não é de “segunda classe”, no sentido pejorativo da expressão.

A escala hierárquica não impõe um achatamento do inferior, mas sim um “resplandecimento” do superior.

Até entre as flores há uma hierarquia de valores. Aplicando o princípio de hierarquia à análise feita, podemos dizer que a rosa e a tulipa são as flores do anti-igualitarismo. Uma é bela no grau supremo; a outra, não sendo a primeira, dá a Deus glória, mostrando a beleza que há também nos graus intermediários.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 6/3/1971)

Erguei-Vos, Senhor!

Já fizemos ver que nossos dias  se inserem no longo processo histórico iniciado com o humanismo, a renascença e o protestantismo, acentuado fundamente com o enciclopedismo e a Revolução Francesa, e por fim com a transformação dos povos cristãos em massas largamente trabalhadas pelos fermentos da imoralidade, do igualitarismo, do indiferentismo religioso ou do ceticismo total.

A descristianização é o signo sob o qual estão colocados todos os fatos dominantes ocorridos no Ocidente, do século XV a nossos dias. Cessada aquela por um movimento inverso, teremos passado de um conjunto de séculos para outro.

Era precisamente um fato desta amplitude, um corte no processo descristianizante e um surto da religião sem precedentes, que São Luís Maria Grignion de Montfort — autor do “Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem” — implorava, esperava e, disto estamos certo, obteve.

O meio para se chegar a este triunfo será uma congregação toda consagrada, unida e vivificada por Maria Santíssima. O que seja propriamente essa congregação, na mente do Santo, não se pode afirmar com certeza absoluta.

Em certo sentido, parece uma família religiosa. Mas há também aspectos por onde se poderia pensar diversamente. De qualquer forma, essa congregação será o instrumento humano para implantar o Reino de Maria.

Essa misteriosa congregação, que será uma “assembléia, seleção, escolha de predestinados feita no mundo e do mundo; rebanho de pacíficos cordeiros a serem reunidos entre lobos; companhia de castas pombas e águias reais entre tantos corvos; batalhão de leões destemidos entre tantas lebres tímidas” [palavras de São Luís Grignion no “Tratado…”], essa congregação só pode ser  constituída por uma ação fecunda da graça nas almas dos que devem compô-la. Mas para Deus nada é impossível: “Ó grande Deus, que podeis fazer das pedras brutas outros tantos filhos de Abraão, dizei uma só palavra como Deus, e virão logo bons obreiros para a vossa seara, bons missionários para a vossa Igreja. Lembrai- Vos de dar a vossa Mãe uma nova Companhia, a fim de por Ela renovar todas as coisas, e terminar por Maria Santíssima os anos da graça, assim como por Ela os começastes”. Como se sabe, companhia significava, no tempo de São Luís, regimento ou batalhão.

Foi neste espírito que Santo Inácio chamou Companhia de Jesus seu Instituto. São Luís Maria concebia a sua Companhia como essencialmente militante. Ela será como que um prolongamento de Nossa Senhora, em luta permanente e gigantesca com o Demônio e seus sequazes: “É verdade que há de haver grandes inimizades entre essa bendita posteridade de Maria Santíssima e a raça maldita de Satanás; mas é essa uma inimizade toda divina, a única de que sejais autor. Porém esses combates e perseguições dos filhos da raça de Belial contra a nação de vossa Mãe Santíssima só servirão para melhor fazer resplandecer o poder de vossa graça, a coragem da virtude de vossos servos e a autoridade de vossa Mãe, pois que Lhe destes desde o começo do mundo a missão de esmagar esse soberbo, pela humildade de seu Coração”.

Este tópico é dos mais importantes, de vez que mostra a modernidade da Companhia, de seu apostolado militante, de seu espírito profundamente — quase diríamos sumamente — marial.

Esses apóstolos, “por seu abandono à Providência e pela devoção a Maria Santíssima terão as asas prateadas da pomba, isto é, a pureza da doutrina e dos costumes; e douradas as costas, isto é, uma perfeita caridade para com o próximo, para suportar-lhe os defeitos; e um grande amor a Jesus Cristo, para levar sua cruz”.

Mas essa devoção marial e essa caridade se realizarão numa pugnacidade extrema, decorrência da própria devoção marial. Com efeito, serão eles “verdadeiros servos da Santíssima Virgem, que, como outros tantos São Domingos, vão por toda parte com o facho lúcido e ardente do Santo Evangelho na boca, e na mão o Santo Rosário, a ladrar como cães fiéis contra os lobos que só buscam estraçalhar o rebanho de Jesus Cristo; que vão ardendo como fogos e iluminando como sóis as trevas do mundo”. E por isto São Luís Maria multiplica as metáforas e adjetivos alusivos à  combatividade dos membros da congregação: “águias reais”, “batalhão de leões destemidos”, terão “a coragem do leão por sua santa cólera e seu ardente e prudente zelo contra os demônios e filhos de Babilônia”.

E é essa falange de leões que ele pede a Deus no tópico final de sua oração: “Erguei-Vos, Senhor: por que pareceis dormir? Erguei-Vos em todo o vosso poder, em toda a vossa misericórdia e  justiça, para formar-Vos uma companhia seleta de guardas que velem a vossa casa, defendam vossa glória e salvem tantas almas que custam todo o vosso sangue, para que só haja um aprisco e um  Pastor, e que todos Vos rendam glória em vosso santo templo!”

Plinio Corrêa de Oliveira (Publicado na “Última Hora”, Rio de Janeiro, 10/9/84)

Divina visita

Qual não seria nossa alegria ao saber que à porta de nossa residência está um personagem ilustre, o qual veio nos visitar? Como o receberíamos?

Imaginemos que, de repente, parasse diante de nossa casa um magnífico Rolls-Royce, e dele descesse um ajudante de campo, esplendidamente fardado, tocasse a campainha e anunciasse a chegada da Rainha da Inglaterra, dizendo:
— Aqui mora fulano de tal?

A criada que o atendesse diria surpresa:
— Sim, é aqui que ele mora.
— Então abra as portas porque Sua Graciosa Majestade, a Rainha Elisabeth II, veio fazer-lhe uma visita a fim de demonstrar toda a estima que tem por ele, e aqui permanecerá por dez minutos. Imediatamente se abririam as portas, e nós não saberíamos o que fazer para agradecer à rainha que estaria honrando nossa casa com sua presença.

Mais ainda do que honrar a casa, ela nos estaria beneficiando com o seu convívio: quando se trata de um visitante tão especial, algo de sua nobreza, de sua excelência, de seu talento é transmitido ao visitado.

***

Pois bem, haveria algum propósito, ao cabo de dez minutos, nós dizermos à rainha: “Majestade, me desculpe, mas esta conversa está demasiado cansativa. Precisaríamos encerrá-la”?

Pelo contrário, ficasse a rainha o tempo que quisesse, multiplicaríamos nossos esforços para conseguir que ela permanecesse onze minutos em vez de dez; e, caso conseguíssemos, pensaríamos: “Está vendo? Ela iria ficar aqui por dez minutos, mas porque eu sou simpático ficou onze.”

***

Ora, quando na Sagrada Eucaristia, Jesus penetra em nós, dá-se um convívio infinitamente mais intenso do que aquele da visita feita pela Rainha da Inglaterra.

Na Sagrada Comunhão, Nosso Senhor Jesus Cristo visita nossa alma intimamente; não se trata de algo externo ao nosso ser — como visitar nossa casa —, mas sim, de algo interno: Ele entra em nós.

Poderíamos, após esta visita de Nosso Senhor, estar contando os minutos para encerrar nossa ação de graças?

Pelo contrário, devemos fazer uma compenetrada ação de graças após a Comunhão; e para isso é indispensável que para ela nos preparemos bem, adequadamente, tendo bem presente o ato maravilhoso e grandioso que vai se dar.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 19/2/1971 e 16/7/1977)

Eucaristia – Mane nobiscum Domine

A Sagrada Eucaristia constituiu um dos principais pilares da espiritualidade de Dr. Plinio. Inaugurando a seção “Ardoroso devoto da Eucaristia”, procuraremos dar a lume o amor que transbordava de sua alma: “A boca fala do que transborda o coração!” No presente artigo, Dr. Plinio nos ensina a bem nos prepararmos para a Sagrada Comunhão.

Para compreender a variedade de métodos e modos que há para realizar a ação de graças e a preparação para a Comunhão, é necessário compreender o modo pelo qual a graça trabalha as almas. O Apóstolo São Paulo afirma que “stella differt stella”(1) — uma estrela é diferente da outra. Desta forma, não existem dois santos iguais, pois cada qual tem sua vida espiritual própria, com características inconfundíveis. E, como não pode deixar de ser, a graça guia cada alma no caminho da virtude de acordo com seus desígnios, proporcionando atrativos, ou também aversões, que modelam o espírito e indicam o itinerário que a alma deve seguir.

Portanto, não se pode dizer que um método de preparação para a Comunhão é igualmente válido a todas as almas.

Entretanto, São Luís Maria Grignion de Montfort possui um ponto de vista marial para a Comunhão, onde ele coloca Nossa Senhora como mediadora entre Deus e quem recebe a Eucaristia. Isto sim é valido para todos os católicos, em todos os tempos e lugares. Sendo a variedade de métodos imensa, descreverei, então, um que possa ser benéfico a todos.

Ação de graças por meio de Maria

Sendo Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, Maria Santíssima é perfeita. Ele A criou com tudo quanto Ela deveria possuir para ser sua Mãe. Concebida sem pecado original desde o primeiro instante de seu ser; Virgem antes, durante e depois do parto, de tal forma perfeita, que em todos os instantes de sua vida nunca deixou de corresponder inteiramente à graça de Deus, estava numa altura inimaginável de virtude quando chegou o momento bendito em que Deus resolveu colhê-La da Terra para o Céu!

Nossa Senhora é também Mãe de todos nós, e a Mãe tem sempre pena do filho mais esfarrapado, mais torto e mais desarranjado. Quanto pior o filho, mais Ela se compadece.

Devemos, pois, ao receber a Eucaristia, nos colocar na presença d’Ela como filhos necessitados, implorando que Ela tenha pena de nós. Naturalmente, Ela sempre se compadecerá em relação aos seus filhos. E quando o Divino Filho d’Ela vier a nós na Comunhão, será por sua intercessão.

Contudo, o pedido feito por Maria a seu Divino Filho, é que Ele entre na “cabana” que é a alma de cada um de nós. Mas essa “cabana” pode ser ordenada e enfeitada por Nossa Senhora, para que esteja agradável a Ele. E, como a intercessora é a própria Mãe d’Ele, Nosso Senhor se sentirá comprazido.

Por isso devemos pedir que Nossa Senhora esteja espiritualmente presente em nossa comunhão a fim de que preencha, de algum modo, o infinito espaço que nos separa de seu Divino Filho, o qual nos acolherá satisfeito por havermos recorrido à sua Mãe. Ele então nos dirá: “Tu és um filho de Maria, minha Mãe; pede-me o que queres”. Ao que devemos responder: “Senhor, antes de pedir, eu Vos agradeço! Quanta bondade, quanta misericórdia! Mas, como agradecer-Vos suficientemente? Suplico, pois, à Vossa Mãe — que também é minha — que agradeça por mim”.

Servir-se das moções espirituais na preparação para a Comunhão

Ao nos prepararmos para a Sagrada Comunhão, devemos também rememorar alguns momentos do dia que tivemos, como também as perspectivas do dia que ainda teremos diante de nós. Não me refiro aos problemas corriqueiros, mas sim, aos de nossa vida espiritual.

Supondo que se faça uma Comunhão vespertina, devo me perguntar como foi meu dia em matéria de vida espiritual: o que necessito, o que desejo, o que mais profundamente tocou minha alma e o que a atraiu mais durante o dia. Isto mais facilmente nos estimulará a um ato de amor, de louvor e de reparação mais perfeitos.

Caso haja um pensamento que considere ser mais fecundo para minha alma, é louvável concentrar nele minha atenção. Muitas vezes esses pensamentos correspondem a um atrativo especial da graça à alma.

Podemos também apanhar uma invocação de alguma ladainha que tenha tocado mais especialmente, por exemplo, a do Sagrado Coração de Jesus, e meditar sobre ela. Este é um modo muito vivo — e para muitas etapas da vida espiritual, excelente — de nos preparar bem.

Uma das invocações muito bonitas nesse sentido é: “Coração Eucarístico de Jesus”. Meditando nesta jaculatória, adoramos Nosso Senhor enquanto tendo o desejo de instituir a Eucaristia, movido por aquele amor especial que Ele demonstrou na última ceia: “Desejei ardentemente comer convosco esta ceia”.

O Coração Eucarístico de Jesus, transbordante de misericórdia, vem a nós na Comunhão; peçamos então que o Imaculado Coração de Maria nos prepare para bem recebê-Lo, a fim de que na Sagrada Eucaristia recebamos especialmente as graças que dizem respeito ao cumprimento de nosso chamado individual.

Este é um modo bonito e lícito de variar as ações de graças e as preparações para a Comunhão, quase ao infinito, de acordo com a inclinação e as aspirações da alma.

Aridez e consolação: benefícios distintos, porém, eficazes!

Haverá também ocasiões onde nossas Comunhões — segundo a linguagem muito adequada da piedade católica — serão áridas. Assim como a terra árida não produz fruto, temos, muitas vezes, a impressão da aridez em nossa alma: comungamos e não sentimos nada.

Reza-se e pede-se, mas tem-se a sensação de que nossas súplicas foram meros termos piedosos sem nenhuma profundidade. Nessa situação, qual o valor de aproximar-se do sacramento da Eucaristia? A pergunta que parece ser tão razoável, quando bem analisada mostra-se infantil.

Seria como a pergunta de uma pessoa que toma um remédio cientificamente certo de produzir um bem incalculável. Após a ingestão, e nos dez minutos que se seguem, não se sente melhora alguma. Neste caso, diríamos que tal medicina é ineficaz? Claro que não: seus efeitos se prolongarão no decurso dos dias, e até dos anos. Só então sentir-se-á a melhora desejada.

Algo parecido dá-se, sem dúvida, com a Sagrada Comunhão. Muitas vezes comungamos, mas a ação de graças é árida; abrimos um livro de piedade, mas o livro não nos inspira nada; temos impressão de que não adiantou rezar.

Ora, Deus visitou minha alma, mas a presença d’Ele foi inútil? Aquele que é Todo-Poderoso, Criador do Céu e da Terra, de todas as maravilhas, esteve presente em mim, e não me fez um bem sequer?

Devemos ter presente que, não raras vezes, a Comunhão inteiramente árida traz, em si, mais vantagens para a alma do que aquela que nos dá consolações inúmeras. Isto porque Nossa Senhora e Nosso Senhor querem, como homenagem, que peçamos ainda quando não percebemos como nossa oração Lhes é grata.

Ou seja, Ele não desejou que este contato fosse sensível, para que minha Fé crescesse. Pois muitas vezes Ele nos prova a fim de verificar se somos daquela espécie de almas que só creem quando sentem: “Tomé, tu creste porque viste; bem-aventurados os que não viram, mas creram!”

São Francisco de Sales, exímio nas comparações encantadoras, tem um magnífico exemplo:

Dois cantores apresentam-se sucessivamente ao rei.

Um deles é normalmente constituído em sua natureza física, e, enquanto canta, vê a fisionomia de encantamento do rei ao ouvi-lo. Ele ouve sua própria voz, nota como ela é bela, compreende como o rei se deleita com seu cântico, e, enfim, contenta-se em ver o rei comprazido. Este homem possui duas alegrias: de ver o encanto do rei, e de ouvir a sua própria voz.

O outro cantor, por sua vez, é cego e surdo! Ele não vê o rei, contudo sabe que o rei está lá; não ouve sua própria voz, mas diz ao rei: “Senhor, eu estou aqui por obediência. Na minha ‘noite’, eu não vejo onde estais; na minha surdez, não ouço minha voz; mas para fazer a vossa vontade eu cantarei, encantado de saber que minha voz também vos agradou!”

Qual dos dois músicos dá maior prova de amor ao rei?

Pois bem, muitas de nossas Comunhões são as do “cego e do surdo”. Não vemos, nem sequer sentimos a presença de Nosso Senhor em nós. Não percebemos como é bela a nossa súplica, nem como Ele se encanta com ela. Mas, pela Fé, cremos que estamos em estado de graça, e que Ele se alegra de estar em nós, ao ponto de dizer: “Minhas delícias consistem em estar com os filhos dos homens”.

Ele estará realmente presente em mim, embora na aridez. Nestas horas, será de grande benefício lembrarmo-nos disso.

Aproveitando as perspectivas angustiosas…

Quando o meu dia não tenha contribuído para a sensibilidade eucarística, mas, pelo contrário, tenha sido um dia de luta, o qual deixa prever que o dia seguinte será angustioso, é louvável fazer que minha Comunhão centre-se nessa dificuldade, dizendo: “Senhor, em vossa agonia no Horto, quando suastes sangue, Vós fizestes a seguinte oração: ‘Pai, se for possível, afaste-se de mim esse cálice, mas faça-se a vossa vontade e não a minha’; Senhor, eu temo o que vai me suceder, e estremeço de terror diante de uma hipótese que me gela até os ossos. Peço-Vos, através de vossa Mãe Santíssima, que afasteis de mim essa provação, mas, se essa não for a vossa vontade, faça-se a vossa e não a minha. E Vos peço que isso concorra para o bem de minha alma”.

Podemos rezar repetidas vezes nesse sentido, no momento em que se recebe a Eucaristia: “Senhor, Vós estais presente em minha alma, com inteira intimidade. E não pode haver intimidade maior que a vossa, quando, através da Sagrada Comunhão, Vos fazeis presente numa alma. Neste momento de dificuldade, Vos peço que ouçais o brado de angústia vindo de minha alma. Quantos Salmos inspirados por Vós foram também brados de angústia! Aqui está também o meu: Tende pena de mim, e atendei-me”.

Desenvolver a ação de graças em função das necessidades diárias

Muitas vezes, para bem nos prepararmos para o divino encontro com Jesus na Eucaristia, bastará nos lembrarmos de algo que lemos em algum livro de piedade, que nos marcou profundamente, ou então de alguma graça que recebemos no decorrer do dia.

Às vezes, algum aspecto novo de Nossa Senhora nos impressiona. Neste caso, nossa preparação poderá ser: “Nossa Senhora é Mãe de Nosso Senhor; Ele concedeu a Ela tal privilégio que eu não conhecia. Vou pedir a Ela que me obtenha na Sagrada Eucaristia tal favor que necessito”.

A propósito de qualquer movimento de piedade durante o dia, pode-se articular a Comunhão e depois a ação de graças. Caso tenhamos um dia de grande alegria, e essa alegria tenha sido um sinal manifesto da bondade de Nossa Senhora e de Deus Nosso Senhor para conosco, podemos fazer a ação de graças tomando em consideração esta graça recebida.

Quem recebe uma manifestação da bondade de Deus, deve contemplá-Lo como Ele se mostra: sorridente, afável, manifestando afeto e desejo de proteger-me. Neste caso, quando recebê-Lo, devo adorar n’Ele a bondade, o amor especial que Ele me tem, o encorajamento que Ele quis me dar em meu apostolado ou em minha vida interior.

Ubi Spiritus, ibi libertas, onde está o Espírito Santo, aí sopra a liberdade. Enfim, há uma tal variedade de movimentações das almas, que é impossível descrever todos os métodos que cabem para alguém fazer a Sagrada Comunhão. Aqui ficam, entretanto, algumas sugestões.

Plinio Corrêa de Oliveira

 

(Extraído de conferências de 28/3/1967 e 4/2/1984)

1) I Cor 15, 41.

Palácio do Vaticano

Pervadido de admiração, Dr. Plinio descreve o panorama descortinado ao subir a rampa que conduz ao Pátio de São Dâmaso, as cenas presenciadas nesse local e as salas, com suas grandiosas ornamentações, do Palácio onde vive o Sumo Pontífice. Indica também os significados da “Sedia Gestatoria”, dos “flabelli” e dos dosséis existentes na Sala do Conclave, mostrando como tudo ali é prático e sublime.

Como era a vida de um Papa?

Ela transcorria em um Palácio ou na Basílica de São Pedro, a maior igreja da Terra, magnífica pela sua riqueza, pelo seu valor artístico, pelo fato de estar construída sobre a sepultura de São Pedro, Príncipe dos Apóstolos, pelo grande número de relíquias de toda ordem ali reunidas, pelos acontecimentos históricos que ali se passaram. E, ao lado da Basílica, o Palácio do Vaticano, residência para onde o Papa se recolheu depois que os Estados Pontifícios, que constituíam dentro da Itália um verdadeiro reino, foram tomados por Garibaldi.

Do Portão Santa Marta até o Pátio São Dâmaso

Em virtude do Tratado de Latrão(1), a própria Itália reconheceu que a Basílica de São Pedro, o Palácio do Vaticano, jardins anexos e alguns outros edifícios do Vaticano existentes em Roma constituíam um reino próprio, distinto do governo da Itália, com todos os poderes de uma soberania temporal, perfeita e acabada, inclusive com sua alfândega e seus correios e telégrafos. Dentro do Vaticano havia uma estação de estrada de ferro. E o Papa era o rei deste Estado, o monarca da Igreja que ali vivia cercado de todo o protocolo de uma corte; protocolo voltado a estimular sentimentos de veneração e de amor para com o Soberano Pontífice, e a organizar convenientemente sua vida.

Lembro-me da impressão que eu tive — numa das vezes em que fui ao Vaticano — quando subi pelo Portão Santa Marta, situado à esquerda de quem entra na Basílica de São Pedro. Caminha-se por uma rampa muito bonita, onde se passa perto de um pequeno palácio no qual morou o Cardeal Merry del Val(2), de um pequeno cemitério — chamado dei Tedeschi, porque ali alguns alemães estão sepultados; depois se passa pelo governatorato de Roma. Roça-se no fundo, na abside da Basílica de São Pedro e se chega ao pátio mais alto, o cume de uma verdadeira montanha, chamado Pátio de São Dâmaso, que é o pátio interno do Palácio do Vaticano, donde partem os elevadores que levam os visitantes para os vários andares, nos quais estão Monsenhores, Cardeais e finalmente o Papa.

Chegada de uma princesa dos antigos tempos e do embaixador dos Estados Unidos

Quando chego ao alto da rampa, vejo uma cena bonita: de um automóvel saem dois camareiros, vestidos com damasco roxo e meias compridas, com jeito de nobres, e ajudam uma princesa dos antigos tempos, trajada como se vestia para visitar o Papa — toda de preto, com véu, tule, uma coroazinha etc. —, a qual foi caminhando em passo cadenciado, com um pequeno séquito, no meio do pátio; mas ninguém prestava atenção especial porque passava de tudo por lá.

Em seguida, ouço uma buzina prestigiosa, que toca com delicadeza para afastar um pouco as pessoas, e vejo um automóvel enorme e reluzente que chega. Era o representante do presidente dos Estados Unidos junto ao Papa, que entrava para ser recebido pelo Sumo Pontífice.

Então essa conjunção da princesa dos antigos tempos, já sem poder temporal, com pouco dinheiro, hospedada com certeza num hotelzinho médio de Roma, que descia de um automovelzinho “tremblotant”(3), como se diz em francês — em que os paralamas e todas as outras partes do veículo pareciam ter uma espécie de dificuldade de se manter unidos —, mas ela descia no esplendor de sua tradição, da verdadeira tradição que não morre nunca e que não se incomoda nem sequer com sua própria pobreza, recebida por dois guardas de honra também tradicionais, e caminhando com a serenidade e o alheamento a todas as coisas. E, ao lado, o embaixador do país rico, magnífico, pomposo, a maior potência temporal da Terra, que também vai ouvir uma palavra do mesmo sucessor de São Pedro. Mais acima passa um Cardeal armênio, com sua barba; é toda a velha História da Igreja nos países do Oriente próximo. E tudo isso afluindo para cumprimentar o Papa.

Os Papas não recebiam só as pessoas grandiosas, mas todas as pessoas, porque ele é pai de todo mundo, e é preciso que todos sintam que têm acesso junto ao Soberano Pontífice. E era preciso organizar essa vida de maneira que toda essa gente visse o Papa.

Ornatos grandiosos fazem com que o homem se sinta pequenino

A residência papal precisa ter vários salões sucessivos. Nenhum salão repleto, nem abarrotado ou cheio de gente como num cinema moderno. Fileiras de duas ou três pessoas ao longo dos muros, um longo espaço vazio entre elas, objetos ornamentais magníficos, quadros, afrescos esplêndidos, tapetes, tetos esculturais.

O Papa entra vestido de branco, diferente de todo mundo, solidéu branco, discreto. Ele se aproxima de cada um no recolhimento da sala. Uma palavrinha com esse, aquele e aquele outro, e vai para outra sala. Como as pessoas que estão numa sala sabem que há várias outras depois, cada um entende que o Sumo Pontífice diga uma palavrinha e passe.

Poderíamos examinar como as menores coisas convivem com isso. Os ornatos das salas são grandiosos! Nada de pinturazinhas, com figurinhas, florezinhas. São cenas enormes, em geral de tamanho maior do que o homem. Por quê? Isso faz com que o homem se sinta pequenino e compreenda o respeito que deve ter. Depois, todos sabem que são afrescos de pintores famosos; cada uma daquelas salas valeria uma fábula, não têm preço aquelas pinturas que ornam a mais alta autoridade da Terra. Tudo isso incute respeito.

Há também a sala preparada para o Conclave que elege o Papa, onde se notam as cadeiras colocadas uma ao lado da outra, e em cima de cada cadeira um dossel. Quando o Soberano Pontífice é eleito, funcionários baixam os dosséis, e o único dossel que fica elevado sobre a cadeira é o do trono do novo Papa.

O que quer dizer isso? Quando o Sumo Pontífice morre, o governo da Igreja passa a pertencer ao Sacro Colégio, o qual exerce temporariamente uma parte da soberania do Papa. Como o que caracterizava o soberano antigamente era sentar-se sob um dossel, há dosséis para todos os Cardeais que constituem no seu conjunto o Sacro Colégio. Quando o Papa é eleito, o Sacro Colégio que o aclamou ou escolheu deixa de ser soberano. Assim, os Cardeais, ato contínuo, vão fazer seu ato de obediência ao novo Papa. Baixam-se os outros dosséis, pois a soberania pertence apenas ao Papa. É uma coisa bonita!

A ”Sedia Gestatoria” e os ”flabelli”

A “Sedia Gestatoria” é um trono ambulante.

Quanto eu saiba, esta é a única monarquia de velhos. A Igreja verdadeira nunca teve a fobia da velhice; pelo contrário, teve a admiração e a veneração por ela.

Reporto-me à teoria da soma das idades. À medida que a pessoa envelhece, ela vai somando a vantagem de todas as idades; e, se é católica, vai se tornando mais plena de tudo aquilo que a velhice pode dar. A velhice não é considerada uma catástrofe, mas um êxito.

Lembro-me de uma anedota: dois franceses velhos encontraram-se e ficaram conversando numa ponte sobre o Sena. Um deles disse: “Como é desagradável envelhecer!”, e o outro respondeu: “Eu não acho, é o único jeito de viver muito.”

É tão evidente…

Todos os Papas, com raras exceções, eram mais do que sexagenários. Para percorrer aquelas distâncias enormes no interior do palácio deles, deviam usar um veículo de transporte à mão, porque muitas vezes eram septuagenários ou octogenários. Daí então essa espécie de liteira descoberta, que era a “Sedia Gestatoria”, carregada por portadores que se revezavam ao longo do trajeto, todos com trajes tradicionais. E o Sumo Pontífice ia sentado ali com aqueles leques em forma de semicírculos, com plumas, chamados “flabelli”, que eram na aparência para afugentar as moscas. É possível que a velha Roma pontifícia tenha tido muito mosquito, e que os “flabelli” foram feitos com essa intenção. Mas com o tempo os famosos pântanos romanos foram sendo secos, e os mosquitos desaparecendo de Roma. Mas os “flabelli” ficaram. Porque aquele objeto, destinado primeiramente a espantar mosquitos, foi de tal maneira modelado pela arte que se transformou numa obra-prima, colocada sempre perto do Papa e movendo-se discretamente; passou a ser um símbolo da suavidade, da graça e da glória, adornando a fronte venerável do ancião que é o Vigário de Cristo na Terra. Então os “flabelli”, movendo-se lentamente em torno do Papa, passaram a ser o complemento cênico — e digo cênico com o maior respeito à palavra — necessário do Romano Pontífice levado na sua “Sedia Gestatoria”.

Então, tudo está preparado ali. É só o novo Papa ser eleito que se desencadeia um mundo de tradições que o cercam e o vão levando dentro da linha dos seus antecessores. Isso tudo é tão prático, corre depressa, porém sem correria; não como a pressa moderna, filha da aflição e da torcida, mas uma pressa filha da reflexão, do recolhimento, da meditação, e por causa disso particularmente eficiente. Tudo se passava sem corre-corre, com um mínimo de dispêndio de tempo possível. Sublime e prático ao mesmo tempo. Coisas que o espírito moderno não compreende bem que estejam unidas.

Para concluir, desejo que lhes seja dado o seguinte: a alegria, a graça e a glória de presenciarem o começo do Reino de Maria. E que possam assistir a toda a pompa vaticana como ela deve ser.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/1/1976)

 

1) Tratado assinado em 11 de fevereiro de 1929 e ratificado a 7 de julho do mesmo ano. Por ele, o Vaticano ficava reconhecido oficialmente como Estado soberano, neutro e inviolável, sob a autoridade do Papa, incluindo o palácio de Castelgandolfo e as basílicas de São João de Latrão, Santa Maria Maior e São Paulo Extramuros. Por sua vez, a Santa Sé renunciava aos territórios que lhe pertenciam desde a Idade Média e reconhecia Roma como capital da Itália.
2) Secretário de Estado de São Pio X.
3) Trêmulo.

Oh, maravilha!

A formosura posta pelo Criador em suas criaturas constitui um meio através do qual podemos chegar até Deus, Espírito puro e infinitamente perfeito. Desta maneira, as regras da estética são para nós elementos de consideração para compreendermos a verdadeira beleza da santidade.

Há um conjunto de regras de estética que nos podem facilitar o conhecimento da beleza que Deus pôs no universo, como ponto de partida para subirmos à consideração de sua beleza incriada. A mais fundamental dessas regras é a coexistência harmônica da unidade e da variedade. Em vez de nos atermos, entretanto, a uma enumeração e uma definição fria desses princípios, seria mais interessante que os considerássemos enquanto realizados em alguns dos seres que mais facilmente nos caem debaixo dos olhos. Comecemos pelo mar.

A imensidão do mar…

Um dos primeiros elementos de sua grandeza é precisamente a unidade. Todos os mares da Terra comunicam-se entre si e constituem uma imensa massa de água que cinge o globo terrestre.

Assim, postos em qualquer ponto do mundo, uma das considerações mais agradáveis que nos é dado fazer é lembrar que a imensa massa líquida que se estende diante de nós, até as fímbrias do horizonte, não se encerra ali, mas tem atrás de si imensidades sucessivas formando a grande e única imensidade do mar que se move, que se joga e que brinca por toda a superfície da Terra.

Mas, ao mesmo tempo em que o mar nos apresenta essa unidade esplêndida, impressiona pela grande variedade que nele podemos observar.

Variedade, em primeiro lugar, quanto ao movimento. Ora o mar se nos apresenta manso e sereno, parecendo satisfazer todos os desejos de paz, de tranquilidade e de quietude de nossa alma. Ora ele se move discreta e suavemente, formando em sua superfície pequenas ondas que parecem brincar diante de nós, para fazer sorrir e distender nosso espírito como se tivesse diante de si as realidades amenas e aprazíveis da vida. E ora, por fim, ele se mostra majestoso e bravio, erguendo-se em movimentos sublimes, arremetendo furiosamente contra rochedos altaneiros e deslocando de seus abismos massas de água insondáveis para submergir ilhas e invadir continentes. Neste estado, o mar parece dominado de uma fúria avassaladora e que canta com seus rugidos e sua grandeza todo um poder existente no mais profundo dele e que não se suspeitava, nem um pouco, nos seus momentos de mansidão e de graça. Parece-nos presenciar os lances mais empolgantes e heroicos da História.

Beleza da unidade na variedade

Também há variedades estéticas do mar.

Às vezes é ele extremamente claro através de uma grande massa líquida até o fundo de suas águas. E outras vezes ele se mostra escuro, impenetrável, profundo, misterioso. Se em certos panoramas o mar se apresenta em superfícies imensas e quase sem limites, em outros ele está circunscrito pelos acidentes do litoral e forma pequenos golfos onde, por assim dizer, ele se compraz em estar em intimidade conosco, fazendo-se pequeno para melhor se deixar ver e amar.

O mar, pelos seus ruídos, não é menos variado. Ora seu murmúrio dá a impressão de uma carícia, que embala e faz dormir, ora não passa de um fundo auditivo semelhante à prosa de um velho amigo que já muitas vezes se ouviu. Mas pouco depois ele nos fala como o bramido dominador de um rei que quer impor a sua vontade a todos os elementos.

O modo pelo qual ele se “comporta” na praia é igualmente variado. Às vezes, o mar chega à terra célere e ofegante; outras vezes, caminha para ela tardio e preguiçoso, em ondas que se movem languidamente. E outras vezes, por fim, parece tão completamente parado que se diria quase contentar-se ele em ver a terra sem tocá-la.

Ora, todas essas diversidades do mar não teriam para nós concatenação nem encanto se não se apresentassem sobre o grande fundo de uma unidade fixa, invariável e grandiosa. Esta é a beleza da unidade na variedade do mar.

Variedades harmônicas

Devemos, entretanto, reconhecer que a variedade do mar é um tão poderoso elemento de beleza por não ser uma variedade qualquer, mas, sim, oferecer em alto grau os caracteres específicos da verdadeira variedade harmônica.

Essa variedade chega até a oposição, quer dizer, é tão grande que seus pontos extremos chegam a atingir aspectos opostos e como que contraditórios entre si. Esta variedade, pelo próprio fato de que reúne em uma só gama extremos tão pronunciados, tem uma suprema harmonia, uma indiscutível beleza. Nós não encontraríamos tanta beleza no mar se ele não “soubesse” ser, por exemplo, tão extremamente manso e tão extremamente furioso, tão extremamente majestoso e tão extremamente gracioso. É na harmonização do extremo da mansidão e no extremo da fúria, por exemplo, que se verifica a perfeição da variedade do mar.

Tal variedade de oposição deve comportar uma certa simetria, quer dizer, é necessário que quando uma coisa tem um caráter e leva a um extremo, o lado oposto chegue a um extremo igualmente acentuado. Se o mar fosse extremamente furioso em certos movimentos e apenas um pouco calmo em outros, sua beleza não seria grande. Para que a oposição seja perfeita, cumpre que o mar possa ser tão grande quanto furioso em umas horas, quanto é profundamente manso em outras. E só com esta simetria é ele inteiramente belo.

Harmonia das gamas intermediárias

Mas, ao mesmo tempo, as variedades harmônicas das gamas intermediárias também concorrem notavelmente para a beleza do mar. Essas situações de transição são tão harmônicas que nós, em determinados momentos, nem podemos dizer bem como o mar nos parece. Estará bravo? Estará manso? Estará claro? Estará escuro? Não o sabemos dizer porque o mar vai passando de um extremo para outro com várias fases intermediárias tão esplendidamente matizadas e harmônicas que a linguagem humana não é suficiente para as descrever, e o único processo para tal é o da comparação.

Por exemplo, quem viu o mar que esteve furioso e está ficando manso pode dizer que ele está manso, mas quanto se lembra do mar verdadeiramente manso e o considera nesse momento de transição, tem ainda a impressão do mar furioso. Por esta espécie de contradição de aspectos opostos existentes no mesmo meio-termo, tem-se bem a ideia de toda a riquíssima gama de estados intermediários que o mar atravessa.

Mas a relação entre esses próprios estados intermediários deve apresentar uma verdadeira continuidade. De um extremo a outro o mar não salta, mas passa sempre com rapidez maior ou menor por todos os estados intermediários. Esses estados são habitualmente perceptíveis em sua sucessão, como matizes que se substituem uns aos outros. Mas quando a sucessão dos matizes é muito perfeita, dá por vezes a impressão de que não muda. Mas ao cabo de pouco tempo e sem saber como, o observador está diante de um quadro diverso. É que essas mudanças foram tão delicadas e tão imperceptíveis que excederam a precisão de nossos sentidos ou pelo menos a acuidade de nossa atenção.

Variedade do progresso

Há por outro lado uma forma de variedade que não é tão nítida no mar, mas é muito relevante no céu: a variedade do progresso.

Há no firmamento uma variedade de aspectos que vem desde a aurora até a noite, de maneira tal que oferece um quadro encantador, primaveril, matutino na aurora, depois vem ganhando em colorido, em força e em majestade, até chegar à gloriosa plenitude do meio-dia. Em seguida ele se vai esvaindo lentamente até chegar às tristezas do crepúsculo e, por fim, ele toma o seu aspecto noturno. Este se conserva mais ou menos contínuo e imóvel até os primeiros clarões da aurora. Há assim, ao longo do dia, uma harmoniosa sucessão de aparências que vão dos primórdios ao apogeu, e deste à decadência, num processo de progresso e retrocesso, ciclo de aspectos variados que o céu percorre.

Outro princípio de variedade, que confere ao céu uma beleza peculiar, é o princípio monárquico: a ordenação das múltiplas formas e variedades em torno de um elemento ou ponto central, em função do qual elas se harmonizam e reciprocamente se explicam. É o papel do Sol no firmamento. Em função dele, no céu, todas as variedades não são senão fundos de quadro que cooperam para realçá-lo de mil modos em toda a sua beleza.

Reflexo da santidade de Deus

Assim temos os vários princípios da beleza realizados no mar e no céu, isto é, em duas criaturas que estão constantemente sob os nossos olhos e que são esplêndidos vestígios da beleza incriada e espiritual de Deus, Nosso Senhor.

Sabemos pela Doutrina Católica que a formosura de todas essas coisas é imagem de Deus, Espírito puro e infinitamente perfeito. Assim também, tendo o homem sido feito à imagem e semelhança de Deus, elas são também suas imagens: o céu e o mar, em seus vários estados, fazem lembrar a alma humana em suas várias disposições, o jogo complexo das paixões humanas, as virtudes da alma humana quando esta realmente reflete a santidade de Deus.

Desta maneira, essas regras de estética são para nós meios para considerarmos a verdadeira beleza da santidade em Nossa Senhora — a mais alta de todas as meras criaturas —, que, com tanta e tão esplêndida propriedade, tem sido e deve ser comparada quer ao céu quer ao mar.

Alma de uma imensidade inefável, alma na qual todas as formas de virtude e de beleza existem com uma perfeição supereminente, da qual nenhum de nós pode ter uma ideia exata, Nossa Senhora é bem aquele mar, aquele céu de virtudes diante do qual o homem deve ficar estarrecido e enlevado, e que com todas as suas forças deve procurar amar e imitar.

Unidade na variedade dos dons de Deus

Em Nossa Senhora se encontra também a mesma unidade na variedade dos dons de Deus. Ela é Nossa Senhora da Paz; Ela é Nossa Senhora das Dores; Ela é Nossa Senhora da Boa Morte. N’Ela todos os contrastes se harmonizam. Ela é ao mesmo tempo “Auxílio dos Cristãos”, mas “Refúgio dos Pecadores”; Maria é glorificada por sua humildade incomparável, mas todos os videntes que tiveram a felicidade de A contemplar comentam a sua soberana majestade; Ela se apresenta a nós “ut castrorum acies ordinata”, mas ao mesmo tempo como “Mater clementiae et misericordiae”.

N’Ela há a perfeita harmonia entre contrastes aparentemente irreconciliáveis: Virgem e Mãe! Ninguém mais plenamente mãe do que Nossa Senhora, Ela é Mãe por excelência; mas também, ninguém mais plenamente virgem do que a Virgem por excelência!

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência 15/11/1958)

Um encontro com o “Beau Dieu d’Amiens”

Acredito que ao longo de sua existência neste mundo, tem o homem incontáveis oportunidades de perceber a presença mais adorável, perfeita e sublime que imaginar se possa — a de Nosso Senhor Jesus Cristo, manifestada pelas ações da graça em nossa alma, quando meditamos em sua infinita grandeza, ou quando nos sentimos tocados por essa ou aquela representação artística de seu sagrado semblante.

Nesse sentido, sempre me comprouve de modo particular uma imagem de Nosso Senhor que se encontra no lado externo da famosa e linda catedral francesa de Amiens. Essa escultura O retrata numa tão majestosa e bondosa beleza, que ela passou a ser chamada de “Le Beau Dieu d’Amiens”: o belo Deus da cidade de Amiens.

Imaginemos quais sentimentos povoariam nosso coração se, enquanto passeássemos por um campo, de repente víssemos andando em sentido contrário o “Beau Dieu d’Amiens”!

Poderíamos então contemplá-Lo na nobreza do seu porte, no ereto de seu corpo, na harmonia de seus traços, na delicadeza de sua atitude, no que Ele possui de régio — pois a imagem na catedral é a de um Rei em toda a sua magnitude — e de hierático. Trata-se de uma figura que, a bem dizer, participa da heráldica, de tal maneira transparece nela o caráter sacral, as mãos em atitude de quem abençoa e ensina, estreitando ao peito o livro do Santo Evangelho.

Admiraríamos a luminosa cor de sua túnica, de seu manto, a formosura de sua face, emoldurada pelos cabelos e a barba igualmente formosos.

Caminhamos mais alguns passos, e Ele está à nossa frente. Antes mesmo de nos darmos conta, caímos genuflexos, tanto nos envolveria a noção da superioridade, da perfeição e da bondade infinitas de Jesus! Essa ideia nos faz dobrar os joelhos e nos aconchegarmos a Ele, como se Lhe disséssemos: “Contra todas as tempestades sois Vós, Senhor, o meu amparo. Protegei-me!”

Podemos crer que Nosso Senhor abandonaria a atitude hierática que a imagem de Amiens nos apresenta, e sorriria para nós. Essa nobreza divina, posta em sorriso, em quantas delicadezas se desfaz? Em quanta amenidade transluz? Em quanta clemência? E Ele nos pergunta: “Filho, o que queres?”

Os olhos profundos de Jesus — os quais imaginamos castanhos claros — penetram nos nossos, e nós, pelo olhar d’Ele, percebemos que o Mestre nos conhece melhor do que nós mesmos, nos ama de um amor acima de qualquer predileção humana, e sabe de todas as nossas necessidades, para todas é Ele próprio o remédio.

Jesus nos indaga, pois, sobre o nosso desejo. E teríamos vontade de Lhe responder:
— Senhor, quero tanta coisa, que nem sei dizer! Porém, Vós sabeis tudo quanto anelo. Mais: sabeis de tudo quanto preciso. Pois em meio a tantas volições minhas, quantas vezes estão ausentes as coisas de que realmente necessito, e quantas se atêm a coisas que me são supérfluas! Mas, Vós, Sabedoria eterna e encarnada, conheceis tudo que verdadeiramente me importa. Senhor, tende pena de mim!”

Um desejo mais elevado nasce em nossa alma, o de estar sempre com Ele; que o “Beau Dieu” nunca nos abandone. E quando começamos a balbuciar uma súplica nesse sentido, um fenômeno curioso, maravilhoso se opera: Jesus desaparece aos nossos olhos, e temos a impressão viva de que Ele está em nós! Misteriosamente, Ele habita em nosso interior, como se morasse numa casa, e ali, dentro de nossa alma, reza ao Padre Eterno por nós, cumula-nos de graças, favores, dons que nem sabemos descrever.

Tomados por sentimentos indizíveis, a Ele nos dirigimos:
“Senhor, eu estava certo de que me daríeis algo superior a todos os meus desejos. Concedeste-me a presença eucarística. Dentro de mim, realizais maravilhas e produzis benefícios dos quais só terei completa noção no Céu, quando, pelas mãos misericordiosas de vossa Mãe Santíssima, para lá me levardes e eu vos contemplar face a face. Senhor, para Vós, a minha gratidão inteira!”
Eis como poderíamos conceber um encontro com o “Beau Dieu d’Amiens”, em algum recanto daqueles agradáveis campos franceses…

CINTILAÇÕES DAS EXCELÊNCIAS DIVINAS

A partir dos mais remotos flashes que tive desde minha infância, através dessas graças especiais que foram se explicitando e maturando ao longo da vida, a Providência me colocou diante desta ideia: Deus emitiu para o mundo um “lumen” [uma luz], que é Nosso Senhor Jesus Cristo; mas este “lumen” que nos aparece em seu auge na pessoa divina d’Ele, e numa perfeição indizível na pessoa criada de Nossa Senhora, também pode ser percebido nos demais aspectos da criação, essencialmente considerados à luz da Civilização Cristã.

Portanto, a atração que sempre senti — menino, jovem ou homem maduro — pelas mais diversas maravilhas da Cristandade, devia-se não só à beleza delas, mas, sobretudo, ao fato de que me remetiam para algo diáfano, superior, lindíssimo, que desde logo conquistava minha alma. Eram reflexos de uma perfeição absoluta que reluziam aos meus olhos e a tornavam mais próxima de mim. Lembro-me, por exemplo, dos primeiros flashes que tive a respeito da Idade Média quando, num corso de Carnaval, reparei numa moça portando um chapéu cônico característico daquela época, com um grande tule pendurado e que o vento fazia tremular de modo elegante e airoso.

Quando ela passou perto do local em que me encontrava e meu olhar recaiu sobre o chapéu, abandonei o jogo das serpentinas e exclamei: “Ahhh! O que é aquilo?” E me disseram: “Um chapéu da Idade Média”. Eu pensei comigo: “Idade Média! Preciso reter esse nome. É da Idade Média. Aqui existe algo para mim!”

A graça me tocara, fazendo-me sentir uma espécie de avidez de segurar aquele objeto tão bonito. E se eu pudesse, faria parar o automóvel dela e diria à moça: — Não se mexa! Eu quero ver como é o seu chapéu! Era como se uma nuvem de ouro passasse sobre mim a propósito de um fruto da cristandade medieval, e que representava um “tréssaillement” [sobressalto] das graças da Idade Média ainda presente nas almas. A ideia que ficou no meu espírito de menino foi: “Esta beleza religiosa é tudo, é a fórmula de tudo, é a solução de tudo!” Era um flash, eco e reminiscência do luminoso flash em função do qual, penso eu, vivia toda a Civilização Cristã nos seus mais esplendorosos dias.

E assim como aquele chapéu cônico me transportou de entusiasmo, do mesmo modo, quando considero qualquer obra nascida da alma medieval — por exemplo, uma catedral, um vitral, uma fila de santos nos seus pedestais, uma torre ou um castelo — tenho a impressão de que por detrás dela como que se manifesta e se faz sentir um Espírito altíssimo, diante do qual eu não sou senão uma poeirazinha perdida, de tal maneira Ele é alto e sublime.

Um Espírito que nos envolve com sua inextinguível bondade, desejoso de comunicar à criação todas as suas sublimidades e riquezas, de forma que, para com a menor criaturazinha existente, Ele tem um amor pelo qual a atrai, vivifica e inunda, como se só existisse para ela. Ele a penetra com uma ternura absoluta, quase lírica, perto da qual a ternura materna não é senão pálida imagem.

Um Espírito que pensa profundamente sobre si próprio e sobre o que faz, tendo a respeito de tudo idéias prodigiosas, que eu não alcanço a não ser de longe e pelas fímbrias. Mas, a fímbria que eu alcanço me deixa maravilhado com o que há naquele interior imenso. Ele é um mar meio fechado para mim, do qual degusto algo que me encanta e arrebata, de modo pleno, cheio.

Um Espírito ao mesmo tempo infinitamente justo e equitativo, e que na sua equidade e justiça é rígido, intransigente e terrível, contrário a tudo quanto seja negação, caos, pecado, desordem, sujeira, erro, que n’Ele não podem encontrar senão a recusa inflexível como uma espada. Ele é a fonte de todas as bênçãos e de todas as misericórdias, assim como o é de todas as necessárias punições.

E essa diferença de aspectos, entretanto harmoniosos e complementares, também nos devem encher de enlevo e adoração. São perfeições divinas, cujos reflexos aparecem nas magnificências engendradas pela Igreja Católica, e que os flashes fazem reluzir aos nossos olhos, dando-nos como que visões de Deus. Num vitral de um azul fabuloso, por exemplo, com todas as tonalidades de  delicadeza que no azul cabem, veremos a suavidade deste Ser. Num vitral vermelho no qual a luz do sol acende incandescências, discerniremos a fornalha de caridade com que Ele inflama seu  próprio Coração Divino.

E assim, a propósito das extraordinárias policromias dos vitrais, dos sons graves ou festivos dos bronzes tangidos nos altos dos campanários, da imponência religiosa das torres que se erguem aos céus, da força vigilante e destemida das muralhas e ameias, da riqueza dos altares recamados de ouro e de prata, da singeleza austera e contemplativa dos claustros — a propósito de todas as maravilhas da Civilização Cristã, enfim, nossas almas podem conhecer algo das rutilantes excelências de Deus.

E o que me encanta de modo todo particular é saber que esse Ser, o próprio Deus, está realmente presente em todos os tabernáculos da Terra, na hóstia consagrada, numa pequena rodela de trigo com água transubstanciada no corpo, sangue, alma e divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo. Aí, então, sinto-me completamente satisfeito. Não há mais nada a dizer…

(Revista Dr Plinio, Janeiro de 2003, p. 30)