Os suaves fulgores da penitência

Dotado de especial senso histórico, Dr. Plinio conhecia, entre outras coisas, as características mais profundas das civilizações, dos povos e dos estilos de arte. Nessa exposição ele explica como decaiu o gótico, e nos adverte a respeito da necessidade da graça do arrependimento e da penitência, para que surja o estilo artístico do Reino de Maria.

 

Consideremos o estilo clássico e o românico: não há dúvida de que o estilo românico, de algum modo, inspirou-se no estilo clássico. Por exemplo, aquelas arcadas e colunas do estilo românico são do estilo romano, é evidente. Mas entrou um elemento artístico e arquitetônico novo, que corresponde ao elemento psicológico novo também, o qual em alguns dos seus aspectos se percebe.

Arte clássica e o ideal do homem olímpico

Por diversas razões, a fortaleza não foi um ideal arquitetônico nem dos gregos nem dos romanos. Isso se deve talvez aos conceitos deles de arte militar, com exércitos muito móveis, e depois a noção de falanges e de legião, que era uma espécie de fortaleza viva a qual de algum modo dispensava a muralha.

Mas o fato concreto é que a fortaleza não esteve presente, a não ser muito esporadicamente, nas suas cogitações e não marcou a fundo a sua arquitetura. E por causa disso nenhum prédio deles visa ser forte. Por exemplo, a mais típica das construções dos gregos, o Parthenon. Também a tribuna das Cariátides, que eu acho tão bonita, não visa de nenhum modo proteger o orador contra uma agressão; é uma tribuna no sentido mais próprio da palavra, em que o orador faz-se ver e tem facilidade de dar alcance à sua voz.

Uma coisa curiosa que está em toda a psicologia clássica: fica insinuado, sem dizer, que a produção intelectual e a artística se fazem de modo indolor. De maneira que na arte não está de nenhum modo representado o esforço da elucubração; esta é olímpica, se desenvolve com a facilidade de um cortejo de bailarinos que vão saindo de um templo para executar um ato religioso qualquer. Assim também os raciocínios vão se desenvolvendo uns depois dos outros.

Ora, é impossível que a elucubração deles não fosse penosa. Isso que eles procuravam ocultar dava o ar olímpico às suas construções, as quais não visavam de nenhum modo ser fortes.

O estilo românico e a noção do homem real

Na concepção medieval, não. Entre os bárbaros há qualquer ideia de ocultar o pecado original, ideia essa que entre eles era co-idêntica com a civilização. Aliás, os bárbaros nem tinham ideia clara do pecado original, mas sim dos efeitos desse pecado, que eles procuravam esconder.

E a arte, simplesmente, começa a conviver abraçada nos efeitos do pecado original, mais ou menos como o homem que precisa andar apoiado numa bengala e se apresenta naturalmente com ela. E tira até uma fotografia solene com a bengala na mão; ele e a sua bengala formam um todo.

E entre os bárbaros o belo surge como uma trepadeira que se enrosca numa árvore dura, rugosa, num sulco dos mais rebarbativos que se possa imaginar, fica cheia dessas contingências, florescem umas rosinhas cor de coral e se forma uma coluna toda rósea.

Assim a arte, com essas contingências, produz uma coisa nova que a meu ver é o românico. Vê-se que o traçado de muitas igrejas românicas era para ser um, mas foi outro porque de repente o terreno começou a ceder e tiveram medo; então, puseram uma estaca, quer dizer, não levaram o prédio até onde pretendiam. E a igreja se apresenta como se tivesse levado um murro de um lado, mas de outro lado apareceu a necessidade de prestar culto à santa tal, que protege contra as intempéries; então acrescentam uma capelinha, que perturba o plano da igreja. Tudo somando, ficou um encanto, muito mais bonito do que estava no original. Mas que é o fruto da aceitação da contingência pelo homem, e a sua modelagem de acordo com a contingência, não para ser o homem olímpico, mas o homem real, descendente de Adão e Eva, remido por Nosso Senhor Jesus Cristo e entrando na vida desta Terra.

Acho que até Saumur tem algo disso, com aqueles campanários em cima, meio inesperados, mas sua planta geral é um quadrilátero compacto, maciço. Mas Saumur já é gótico, e estou falando do românico.

Não vou dizer que uma reflexão soberba de Aristóteles não seja séria, mas não tem a seriedade total. Na medida em que procura ocultar sua elaboração mental e sua dor, a pessoa não é séria, escamoteia uma parte da realidade.

O Parthenon é seríssimo por alguns lados; por outros lados falta-lhe seriedade.

O sério irrompe na arte e por detrás dele uma luz que vale infinitamente mais do que ele: o sobrenatural, o sacral.

O gótico causa a impressão de algo fechado

Dada esta teoria, poderíamos nos perguntar: Com o que nos é dado entrever sobre a Idade Média, o que podemos prever do Reino de Maria?

Ao examinar as coisas da Idade Média, creio haver um problema que perturba, o qual só se deve analisar bem quando se tiver o aparato da cultura e erudição necessária; nós não temos esse aparelhamento. Mas que é preciso considerar que havia algo que tornava um tanto pesadas as asas do voo medieval: frequentemente se apresentam manifestações diabólicas ou gnósticas dentro da arte medieval. E um trato sério da questão não pode deixar de levar isso em consideração.

Por exemplo, há algum tempo atrás eu estava vendo um monumento funerário gótico, mas daquele gótico moribundo já no século XV, em que a arte funerária começou a se desdobrar um pouco exageradamente; depois atingiu no século XVI exageros únicos. Nesse monumento, seis anjos carregavam o esquife de um senhor feudal, mas um desses anjos era um demônio com a cara voltada para trás, dando risada. Como é que isso foi feito, estava à vista de todo mundo, ninguém destruiu, ninguém sabe da explicação disso, a família aceitou, entrou na igreja, o padre celebrou Missa? Mais ainda, nós olhamos o monumento e, se não nos advertissem para aquele anjo de cara virada, o acharíamos sublimíssimo; entretanto a nota gnóstica está ali presente. E isso aflui em várias coisas.

Não estou falando dos demônios nas gárgulas, postos pelos anti-gnósticos que queriam representar o demônio como horroroso e, portanto, no papel que lhe é próprio.

Além disso, há o seguinte: o gótico dá impressão de algo fechado, do qual não irá sair a inspiração nova. Ficou tão bonito, tão admirável, tão perfeito que já chegou ao termo de si mesmo, não vai elaborar nada mais de novo. E, portanto, a imobilidade pela ausência de originalidade marcará para todo o sempre aquele estilo, que será uma infidelidade abandonar, e será uma outra infidelidade ficar dentro dele.

O “flamboyant” já tem infidelidade.

O espírito comercial e a saciedade do sobrenatural

A resposta, a meu ver, é a seguinte: também a vida de sociedade naquele tempo estava admitindo uma porção de atividades novas, que já eram vistas num prisma novo do qual as pessoas não se davam conta. Vou dar o exemplo característico. Na “aldeia de marzipã” haveria pequenos comerciantes, mas estes não a deteriorariam. Porque as proporções do comércio eram, por assim dizer, domésticas e humanas, e tudo quanto se passasse ali tinha, portanto, uma certa relação com o homem.

Quando começam a se desenvolver as estradas e se faz a famosa economia aberta, nasce um espírito comercial que não é mais ligado a nenhuma aldeia, a nenhum lugar, bem ou imóvel, mas que quer apenas ter um dinheiro volátil através de todas as estradas da Europa. E que se exprime melhor pela deusa fortuna do que por qualquer outro símbolo. A sede de aventura do militar passa para a sede de aventura do mercador, que transporta as suas riquezas e procura com isso aumentá-las fabulosamente. E o ricaço no fim da vida é o aventureiro bem sucedido como o marinheiro ladrão, pirata. Ou o guerreiro que se uniu ao deus malfazejo e durante a vida foi um bandido, como aqueles tipos de senhores feudais que tinham castelos à beira das estradas para irem roubar as pessoas que passavam, etc. Há uma coisa qualquer que vai mudando.

Essa posição mostra como a sensação de ciclo terminado existia por causa de uma saciedade do sobrenatural, do sacral, do sofrimento enquanto redentor, enquanto ligado à virtude, à Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. Entre os homens bons crescem cada vez mais aqueles que são numerários. A dedicação e a renúncia a si mesmo passam a ser, não mais da sociedade, mas de um filão de gente que vive na sociedade; o resto é pessoal que entra na patuscada. Compreende-se, assim, como o fruto social da Idade Média tivesse que caminhar para aquela extinção.

A ”cisterização”

Então, para se compreender para onde é que ela devia ter rumado, precisaríamos imaginar dois caminhos: ou o caminho de São Francisco de Assis, de São Bernardo, ou o de São Bento sublimado. Uma volta àquilo que estava sendo abandonado e uma “cisterização”(1) da Europa. Portanto, um retorno para uma ebriedade da pobreza, da simplicidade, da austeridade, que geraria padrões novos de beleza. Os vitrais das abadias cistercienses são muito bonitos, mas têm uma nota nova: são grandiosos, porém de uma certa simplicidade.

Dever-se-ia imaginar uma clara ruptura com a época anterior estagnada, e o surgimento de uma época deliciosamente penitencial sem ter nada de revolucionário. Ou uma época nova que recebesse uma graça à São Bento, e que fosse muito para cima.

Ou uma terceira hipótese: uma época que tivesse uma graça cisterciense na qual, ao cabo de uns cem anos, florescesse uma coisa beneditina, quer dizer, com o estilo, o amor muito maior às riquezas do beneditino, mas sempre com a cautela de não provocar uma nova ruptura.

Isso eu não sei verdadeiramente como imaginar, mas sei tirar da nossa vida um exemplo de algumas coisas que fazem compreender um sistema da Providência. Alguém vai andando muito bem, mas em certo momento peca, quebra. Na ruptura, reza o Miserere e faz um rebaixamento… depois surge uma flor mais alta do que a anterior.

Há um problema histórico por onde, cada vez que uma coisa vai chegando ao apogeu, os dirigentes do apogeu não se devem tomar de entusiasmo, mas precisam ter medo do demônio gnóstico, das indulgências, das tolerâncias em relação às como que gnoses. E já devem estar prontos para fazer a “cisterização”, se for necessária.

Em concreto, na História sempre houve pessoas que observaram o fenômeno, mas não tiveram coragem de falar sobre ele, produzindo baixas de que o demônio tira proveito, porque é muito desalentador.

E volto a dizer: a história de Cister mostra que também há ali, naquelas austeridades, na sensação do apogeu, a necessidade de outros apertos. Creio que se Cister não foi o que poderia ter sido é porque a marcha das “cisterizações” parou.

É lícito esperar que não seja necessário uma “cisterização”, mas, pelo contrário, progresso? É uma pergunta que se pode fazer. Eu respondo da seguinte maneira: se não houver dilúvios sucessivos de provação, não acho que seja lícito esperar. O mal está nos dirigentes da instituição, os quais esperam que, afinal, ela tenha chegado ao século de ouro, em que não terá provação nem decadência.

Pelo contrário, se não perceberem que estão vindo provações, tremam. Porque a hora da “cisterização” chegou. Ou a instituição começa a se flagelar a si própria ou, se os acontecimentos não a flagelarem, decorre a deterioração dela.

Inocência e contrição formam uma ogiva perfeita

Pode-se admitir que uma entidade, um convento, uma Ordem religiosa, uma Ordem de Cavalaria chegasse ao seu apogeu, e vá somando apogeu com apogeu para chegar até o fim do mundo, numa série inimaginável de apogeus? Essa é a pergunta que mais precisamente se poderia fazer.

Resposta: se os responsáveis por essa obra — que pode ser também uma nação ou algo semelhante — não forem capazes de compreender que, se ela não é mais provada, precisa começar a se flagelar, do contrário a obra apodrece de fato. Quer dizer, se os responsáveis de uma Ordem religiosa pensam que, por não estar mais sofrendo incursões de inimigos da Igreja, de cátaros, albigenses, ela chegou a uma espécie de era de ouro, e, portanto, eles podem praticar a virtude sem a luta, eles são os reitores do banquete da putrefação.

Acho que isso ocorre frequentemente, porque não é ensinado o que se deve fazer.

E aqui surge o inesperado mais esperado: como podemos imaginar o Reino de Maria?

É bom método tomarmos as esperanças, os anelos que Nossa Senhora nos deu, inclusive com o que havia de mais infantil, e perguntar de que forma esta luz pode acender-se na ponta do pavio da mortificação, da penitência e do arrependimento. Aí nós vemos a possibilidade do Reino de Maria.

Mas é na feeria da graça misturada, entretanto, com os suaves fulgores da penitência, da tristeza, do “Miserere mei”, da coisa que doeu e que se pagou. É do contato de duas pedras, a graça da contrição e a da inocência as quais se juntam, que nós formamos uma ogiva perfeita. O que resta em nós de inocência, e o que devemos inovar como contrição forma uma ogiva perfeita, que nos dá o estilo do Reino de Maria.

Será uma ogiva? Não sei. Será uma coisa que, quando nós formos como devemos ser, começaremos a culturalizar nessa direção.

Uma sutil fuga da penitência

O estilo beneditino primitivo era a contrição da sociedade que tinha sido pagã, havia se putrefeito depois das catacumbas e não tinha correspondido bem à graça do eremismo.

Dessa sociedade nasceu uma outra coisa que é a graça beneditina. Em certo momento, os claustros beneditinos deixaram de ser elementos de penitência. Ficou o elemento pureza, o elemento luta, mas não basta ser mosteiro-fortaleza. É preciso a penitência: “’Peccavi’, e eu vou me flagelar a mim mesmo, com as minhas próprias mãos, porque pequei”. Desta noção, que é indispensável, eu tenho impressão de que a Ordem beneditina, em certo momento, começou a escapar.

Creio, não sei se é verdade, ter sido a Alemanha o país que mais contribuiu para desnaturar nesse sentido a Ordem beneditina. Aqueles mosteiros beneditinos na neve, lugares totalmente inóspitos, oferecendo uma proteção soberba para o corpo, para que este ali procurasse, sem preocupação, praticar a virtude e a cultura… Começam a aparecer os pães pretos magníficos, as cervejas, feitos no claustro. É mais perigoso do que a sutileza francesa, porque se tornou tão parecido com a virtude que era preciso amar muito a virtude para não se cair na contrafação.

Nesse sentido, o claustro alemão me dá um certo receio. Terá sido assim? A bela Itália como trabalhou nisso? Que lavorou nisso, lavorou…

Em que consiste a penitência

Para um inocente, todas as exigências da luta já são a taça da penitência. E para ser lutador até o fim, é uma batalha tão grande que isto já dá a penitência. Para o que não é inocente, é preciso acrescentar algo; não basta isso.

E notem que para aqueles que são amados por Nossa Senhora, mais vale a pena eles mesmos irem se adiantando. Porque, como Maria Santíssima os ama mais, provavelmente Ela lhes dará um belo naco de penitência nesta Terra. Mas o que Ela faz — porque o amor de mãe às vezes é como que sublimemente fraudulento —, para não ter que castigar os filhos, é soprar em seus ouvidos que eles precisam se castigar a si próprios.

Da reunião de hoje o que mais deveríamos reter é a penitência, porque é de extrema certeza que nós mais facilmente dela esquecemos. Quer dizer, contraímos hábitos mentais devido aos quais, dois, três minutos — ao pé da letra é isso – depois de sairmos daqui, nós teremos esquecido a penitência. E no que mais devemos pensar é na penitência. Porque esta é o antibiótico que torna possíveis as condições de saúde em nós, e sem ela a própria degustação daquilo que estou falando se torna inviável.

Sobre essa penitência se poderia falar algo.

É preciso notar o seguinte: não confundir penitência com sofrimento. Porque o indivíduo pode ter sofrimento sem penitência nenhuma.

O que vem a ser penitência?

A penitência é, antes de tudo, a convicção de que se andou mal. E essa convicção, por sua vez, resulta primordialmente de admitir como pressuposto o seguinte: eu, no fundo, não sou bom, sou mau; a todo momento a tendência para o mal está levantando a cabeça dentro de mim e, se eu não desenvolver um esforço extraordinário, pratico o mal. E depois o mal muito rapidamente se torna em mim um hábito. E o indivíduo mau é o que praticou o mal, mas sobretudo é mau aquele que transformou o mal num hábito.

Se eu não tiver essa ideia de que sou coisa podre, e de que sem a graça de Deus só farei o mal — portanto, devo ter um inimigo capital na vida chamado eu mesmo —, vou acabar formando de mim uma ideia de bonzinho, meio-termo, pessoa que no total é bem melhor do que as outras, a partir da qual a penitência é impossível. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/2/1983)

Revista Dr Plinio (Fevereiro de 2014)

 

1) Neologismo com o qual Dr. Plinio caracteriza, nesta conferência, a influência do espírito cisterciense na Europa medieval.

 

O mais belo mar! – I

Introduzindo-nos em considerações metafísicas sobre as mais variadas embarcações, Dr. Plinio nos convida a singrar os misteriosos, por vezes conturbados, mas sempre magníficos mares da História.

 

Há pouco, eu estava folheando um álbum, com panoramas da ilha de Porto Rico, e vi a fotografia de um transatlântico contemporâneo ancorado no porto. Transatlântico já não é bem uma coisa contemporânea. É um contemporâneo de ontem, porque hoje quase não há mais transatlânticos.

Mas o álbum deveria datar de uns dez anos atrás, quando os últimos transatlânticos brilhavam com seus últimos fogos e suas últimas luzes, sobre esses mares que vão ficando vazios de navios que transportam gente. São mares comerciais, rotas apenas de transporte de mercadorias.

A fotografia mostrava a cidade de Porto Rico, iluminada durante a noite com as luzes das casas refletindo-se sobre o Mar das Antilhas; e o transatlântico fortemente, quase feericamente iluminado com as luzes do tombadilho, do convés e das várias escotilhas que dão para os camarotes, todas muito acesas, formando quase um palácio de luz, junto ao porto um pouco escuro e refletindo-se também nas águas; pelo artifício da fotografia, era apresentada uma imagem verdadeiramente feérica do transatlântico.

O transatlântico: palácio de magnificência

Cogitando nisso, pensa-se no mar, na beleza de uma viagem transatlântica. Olhando aquele transatlântico de fora para dentro tem-se a impressão de um verdadeiro palácio flutuante. Se uma pessoa, fazendo o trajeto oposto ao do raio de luz, entrasse num camarote através de uma janelazinha, encontraria um ambiente de conforto, de distinção, de afago, de bem-estar, de agrado que lhe daria vontade de não sair do camarote, tão esplendoroso ele seria.

Poderíamos imaginar várias formas de camarotes: espaçosos, confortáveis, altos, ou pequenos, estreitos; superluxuosos, com cama de plumas, brocados, damascos, acolchoados, tapetes. O passageiro está com o ventilador ligado e a mão posta sobre uma mesa, pensando no tempo que corre, no navio que singra, nas ondas que passam, nas estrelas que se sucedem e no transatlântico que segue a sua rota; e ouvindo o mar que, com os seus mistérios, seus perigos, do lado de fora, como que, bate inutilmente na porta do camarote enquanto que o passageiro, dentro, sente-se tão bem, meio isolado do mundo. Dentro do mundo feérico do transatlântico há a feeria da imaginação que ajuda a pensar a respeito daquilo tudo.

Então se tem a impressão de que cada cabine do transatlântico é um ninho de bem-estar e de luxo dentro de um palácio de magnificência, de largueza, distensão e movimento.

Suponhamos que uma pessoa caminhe pelos corredores estreitos do navio, transitando diante das portas hermeticamente fechadas para quem passa. Atrás de cada uma daquelas longas portas, todas anônimas, há um passageiro que, numa viagem de alegria ou de dor, separação ou união, esperança ou decepção, ganância ou vontade de prazer, vai rumando para um destino que não tem nada que ver com o dos seus vizinhos.

Ela tem a impressão de que atravessa uma longa constelação de mistérios fechados, que se cerraram; por fim, chega aos grandes salões, tomando dois andares do transatlântico: um salão chinês de laca vermelha, um salão francês de sedas cor de água meio verde, e assim por diante, até o clássico bar alemão, com os seus pães pretos, suas linguiças, suas cervejas, seus chocolates e seus antegozos da Europa que vem chegando.

Tudo isto constitui um palácio em cujo interior gostamos de pensar e de imaginar que andamos, muito mais do que nesses poleiros ou nessas gaiolas de gente, chamadas avião, nos quais se viaja a toda pressa. Nos aviões, a beleza do ar externo não tem nenhuma consonância com o homem, o qual só toma conhecimento do que se passa no ar, mais ou menos, como um produto enlatado conhece o que se passa na vida fora dele. É enlatado que o homem percorre essa coisa tão diáfana, o ar, o qual, depois de passar por tubulações viciadas e nada possuindo da sua pureza originária, só entra no avião por uns esguichos dirigíveis que assobiam em cima do passageiro.

Caravela: sensação do risco e do heroísmo

Podemos imaginar quantos navios percorreram os mares. E a feeria das embarcações, com as suas várias formas, começa a passar por nossos olhos.

Se nos reportarmos não mais aos transatlânticos desta última fase — fim e apogeu dos transatlânticos de metal — mas, recuando no tempo, às caravelas: oh! que beleza! Entretanto, que desconforto para o corpo! Não há a cabine maravilhosa! Nem o salão chinês de laca vermelha, o substancioso bar alemão, e nem um pouco o charme do salão francês!

Mas há outro charme! O porão do navio realmente é rude, duro, inóspito, porém que tombadilho! Este possui magníficas “chaises longues”, com forma anatômica, onde a pessoa se deita, de maneira a ter a impressão de que não possui corpo? Nem um pouco! Nele há um serviço de restaurante estupendo, oferecendo “whisky”, “gins-tônicas”, sorvetes? Não!

No tombadilho da caravela existe outro jogo de belezas e encantos! O transatlântico moderno levava o homem a não prestar atenção no mar, no ar, a esquecer-se de que estava navegando. Era um palácio ambulante tão deslumbrante, que só se dava atenção ao palácio. O resto era quase acessório.

Pelo contrário, o velho veleiro, na sua rudeza, oferecia coisas simples. Mas que coisas! Antes de tudo, velas estupendas, em castelo, em ponta, umas com a Cruz de Cristo ou as quinas de Portugal, outras com armas da Espanha, da França, do Sacro Império, de algum reino da Itália ou da Inglaterra. Ele oferecia os ventos desencadeados e furiosos das tempestades, o odor salino das ondas que inundavam às vezes o tombadilho e voltavam deixando suas madeiras embebidas de água; mas o homem, com a sensação do risco e do heroísmo, ia cortando o vento e fendendo a natureza; ou as noites doces, estreladas, tépidas, nas quais se tinha a impressão de que cada estrela sorria para cada passageiro e estavam tão próximas que se poderia brincar com cada uma delas, como se alguém acendesse uma maravilhosa luz e surgisse um céu recamado de lâmpadas de Aladim!

Então, havia a doçura das brisas que bailavam em torno do rosto, afagavam, faziam promessas do feliz destino da viagem. Ou, nas noites escuras, misteriosas, o deleite da incerteza. Ao avançar, o veleiro produzia a sensação de uma conquista no escuro, de uma conquista, por isso mesmo, bela. Cada pessoa se sentia dignificada.

Que riqueza existe na alma do homem e no universo feito por Deus para haver todo um conjunto de jogos de deleites diferentes! E como os deleites do veleiro antigo são superiores aos deleites do transatlântico moderno!

Espírito admirativo

Quando falei do transatlântico, referi-me à cabine recamada de damasco – eu gosto de damasco. Em nossa sede principal há uma sala recamada de damasco; chama-se Sala da Tradição. Aquele damasco foi comprado em Buenos Aires e eu quis que ali ele fosse colocado para a glória de nosso Movimento, o qual somente visa a glória de Nossa Senhora.

Aprecio muito tudo isso. Gosto de ter uma alma tal que saiba admirar os brocados de uma cabine de um transatlântico, e também as tempestades com as quais se defronta um veleiro. Admirar esses diversos jogos de coisas, compreendê-las e ter a alma bastante flexível para se embeber de todas elas até o fim, e perceber que ainda possui outras disposições de espírito para admirar outras coisas: aí está, verdadeiramente, uma vastidão maior do que a do mar. Eu não hesito em dizer, maior do que a do ar; essa é a vastidão de qualquer alma humana que verdadeiramente saiba admirar!

Basta sabermos admirar e termos a alma com todas as elasticidades da admiração, para sermos capazes de gostar das coisas. Por causa disso, depois de passarmos pelo veleiro magnífico da era dos descobrimentos, rumando para trás, chegaremos a uma época em que o Oceano Atlântico quase não era navegado.

Então, sair do Estreito de Gibraltar, dar a volta pela Península Ibérica e chegar ao Canal da Mancha era um verdadeiro risco, uma temeridade. E o aventureiro que chegasse até os Açores ou as Canárias era tido quase como um Cristóvão Colombo, de tal maneira o homem pouco conhecia o mar. A brutalidade do Oceano Atlântico, tão menor que a do Pacífico, deixava aterrados os nossos remotos antepassados europeus.

A epopeia da conquista dos Lugares Santos

Na Idade Média, os homens, em navios pequenos, tinham a audácia de atravessar o Mediterrâneo, hoje quase considerado um lago. Naviozinhos sem grande beleza, com pequenas velas triangulares, nos quais iam homens magníficos: os cruzados! Neles poderíamos admirar Godofredo de Bouillon, São Luís e tantos outros que iam aos grupos para a Terra Santa. As navezinhas, sem beleza no seu aspecto material, conduziam homens com almas cheias de beleza.

Nas cruzadas de São Luís, podiam-se ouvir à noite os guerreiros cantarem o “Salve Regina, Mater Misericórdiæ”, que um monge de Cister, chamado Bernardo de Claraval, acabava de compor e que, como um frêmito, atravessara a Cristandade inteira. E depois, chegando ao Oriente, São Luís, com sua armadura de ouro, saltava dentro da água com pressa de pisar em terras do Egito, para atacar o adversário e começar a epopeia da conquista dos Lugares Santos.

Aí se percebia outra forma de beleza, não do navio, da vela ou do Mediterrâneo com o seu azul magnífico, mas da alma humana, mais bela que o mar. Bonito é o Sepulcro de Cristo que se trata de libertar. Mais belo ainda é Cristo Ressurrecto de dentro do Sepulcro, que se trata de glorificar.

Os vikings

E, indo mais para trás, somos transportados pela imaginação para outro tipo de navegação.

Na Europa nórdica, encontramos o Mar do Norte com suas brumas. Nas porcelanas dinamarquesas essas brumas são magnificamente representadas: um azul que se desfaz numa neblina prateada; uma neblina prateada que se desfaz em azul. Não se percebe bem o que é água e o que é neblina em toda aquela massa indefinida, dentro da qual os dinamarqueses de hoje gostam de representar algum peixe ou outra coisa viva, mas no interior dela eu gosto de imaginar a presença dos vikings.

Dos vikings dos antigos tempos, daquelas tribos com duzentos, quinhentos homens no máximo, que se aventuravam em frotas de barcos magníficos, com aquela quilha parecida com o pescoço do cisne, que vem para trás e se joga para frente. Tinham ao mesmo tempo a elegância do pescoço do cisne e a agressividade do bico de uma águia.

Quinhentos homens utilizavam aproximadamente cem barquinhos. Eles se chamavam reis do mar, porque era o reino inteiro que viajava. Enquanto as mulheres ficavam numa ilha ou num lugar qualquer onde não pudessem ser atacadas, os homens singravam os mares para descobrir terras novas a fim de levar as famílias; ou iam simplesmente à pesca de baleias, arenques e outros bichos para se alimentarem durante o inverno.

Podemos imaginar como eles viajavam. Nas horas de perigo, todos com escudos encostados uns nos outros, fazendo um paredão de um lado e do outro, com a mão esquerda seguravam o escudo e com a direita a lança em ponta, e cantando canções “pré-wagnerianas”. Depois de uma navegação arriscada, entravam por um fiorde escarpado da Noruega ou um porto brumoso da Inglaterra ou, indo mais além, chegavam até a Islândia, a qual representava já algo do mundo novo que se tratava de atingir.

Que série de embarcações maravilhosas! Entretanto, quanta outra coisa se poderia dizer sobre navios!

Veneza, a feérica, perdeu o império comercial dos mares…

Minha imaginação se reporta a outro quadro completamente diferente.

“Ancien Régime”(1): delicadezas, reverências, elegâncias. Uma cidade à beira-mar. De noite, brilham luzes e fogos; de vez em quando, cravados no fundo do mar, uns espetos com lanternas. É Veneza, a feérica!

Na cidade há uma expectativa geral. De longe, ao mar, ouve-se uma música de Vivaldi; depois se veem as luzes e se percebem as flores, das quais se sentem os perfumes; escutam-se as batidas suaves dos remos: é uma nau toda dourada, com as elegâncias do estilo do “Ancien Régime”; na frente, uma figura alta, com um barrete frígio, com aquela parte voltada para a frente, e todo vestido com um traje de cor bordô profundo e que olha como um rei.

É o Doge de Veneza, que volta na sua famosa nau de gala, o Bucentauro, da festa dos desponsórios de Veneza com o mar. Para realizar esses desponsórios, à tarde miríades de gôndolas saem, cujos gondoleiros tocam violinos e cantam festivamente; e o Bucentauro com o famoso conselho dos dez, tendo o Doge, à frente, homens e damas de sua corte, ao som de músicas. Vão até alto-mar do Adriático e, no momento solene, todos param, os remos se levantam. Expectativa geral. O Doge toma, de um escrínio precioso, um precioso anel e o joga no fundo do mar: é o casamento, os desponsórios de Veneza com o mar!

Isso afirmava outrora o poder de Veneza sobre o Adriático e o Mediterrâneo; posteriormente houve a Veneza de Marco Polo, que mandava homens ir a pé até a China e, quando voltavam, contavam o que viram.

Mas depois uma nação espalhou em Veneza a desolação. Barcos dessa nação atracaram em Veneza e deles desceram homens altos e bem largos, robustos, olhos e cabelos pretos, pele clara, passo firme, decidido, falar cantante e franco. Mostravam especiarias, dizendo: “Todas essas coisas procedem do Oriente. Nós as trouxemos por mar! Demos a volta à África, pelo Cabo da Boa Esperança!”

Contam os historiadores que os nossos ancestrais portugueses puseram à venda as mercadorias que eles traziam – pimenta, cravo, canela, açúcar, baunilha – a preço de arrebentar o varejo veneziano. Era a prova de que o domínio das especiarias pertencia a Portugal. Não se vinha mais por terra, mas por água. Portugal tinha rasgado o monopólio veneziano e, como também a Espanha faria depois, inundou a Europa com as especiarias. Houve, então, dias inteiros de pranto e consternação em Veneza.

…mas ganhou o império da beleza

Não conheço a História de Veneza nos seus pormenores, mas foi com certeza nessa circunstância que se deu uma revelação para Veneza; ela perdeu o império comercial dos mares, mas não tinha percebido que ganhara um império muito mais precioso: o da beleza.

Veneza aproveitara o tempo de sua riqueza para se encher de palácios, de obras-primas imortais e para tornar-se umas das cidades mais belas e talvez a mais original de todo o universo. E quando ela começou a decair comercialmente, as nações, inconsoláveis pela sua decadência, começaram a visitar a feérica moribunda que ia expirando. E todos lhe traziam a sua contribuição, o tributo de sua admiração: o ouro do turismo que começava. Veneza foi, talvez, o primeiro centro internacional de verdadeiro turismo. O mundo inteiro se encantava e lá gastava dinheiro, pois não queria que Veneza morresse!

Então Veneza compreendeu que, continuando a vida de luxo, de festa, de arte, prolongava sua própria vida; e que ela estava casada com o “pulchrum”, possuía uma beleza imortal. Somente nessa ocasião ela se deu conta, pela admiração dos homens da terra firme, de que cada um de seus quarteirões é como um transatlântico, e de que Veneza se assemelha a uma esquadra maravilhosa, fixa no fundo da laguna: em cada ilha, cada bloco de casas é admirável. Veneza é muito mais do que o transatlântico que, no começo desta exposição, eu fiz figurar diante de vossos olhos.

Vós ficastes encantados quando falei do transatlântico de Porto Rico. Ao ver a fotografia dele, encantei-me também; mas quando terminamos nossa viagem em Veneza, que baixa de nível esse transatlântico! Nosso espírito foge espavorido e não tem vontade de pensar nas magníficas caravelas portuguesas, nem nas naus vikings. Chegou a Veneza, parou! Ali existe qualquer coisa de feito, de acabado, de definitivo.

Percorremos mentalmente vários tipos de navios. E em cada um deles as cordas de nossa admiração, como o alaúde chinês — que aqui foi tocado no início de nossa reunião —, vibraram de um determinado modo. E fomos transportados, assim, da vida quotidiana, da terra firme, para outros horizontes. Acabamos de velejar pelos mares da História, e compreendemos que esta é um mar mais bonito do que todos os mares.

Continua no próximo número…

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/11/1979)

Revista Dr Plinio (Fevereiro de 2012)

 

1) Período da História da França que precede a Revolução Francesa.

 

Procurar sempre o mais perfeito

A alma inocente, favorecida pela graça, tem um movimento ascensional em direção a Deus, desejando sempre o maravilhoso. Entretanto, a Revolução procura perverter as pessoas desviando-as desse caminho, apresentando-lhes falsificações da verdade, do bem e do belo.

 

No fundo, o homem encontra aquilo que procura. E, segundo uma expressão francesa muito adequada, “quem não sabe o que procura, não sabe o que encontra”. Resultado: aquele que procura uma determinada coisa a encontra; se não a procura, ele acaba não a encontrando.

O princípio de todas as virtudes

Em termos mais precisos, se uma alma é colocada diante de uma coisa verdadeira, ela se pergunta qual é a conclusão, qual a verdade que parte daí. Diante de uma coisa boa: pode haver ainda melhor? Diante de uma coisa bela: há um modo de embelezá-la mais? Quando a alma tem esse movimento, ela possui em si o princípio de todas as virtudes. No fundo, a alma é feita de tal maneira que, colocada diante daquilo que é segundo Deus, ela quer ainda mais.

A verdade, o bem, a beleza criados são reflexos do Bem, da Verdade, da Beleza incriados. E quando a pessoa, diante da verdade, do bem e da beleza criados quer mais e mais, ela procura Deus. Sua alma está em ascensão, buscando crescer cada vez mais e atingir o píncaro. Instintivamente, por causa dessa disposição prévia de espírito, ela procura sempre o mais perfeito. E o resultado é que encontra.

Então, por exemplo, diante de um lindo copo de cristal, a pessoa pode se perguntar: com um quartzo rosa, meio lilás, elaborado, não se faria também um copo bonito? Que pena as esmeraldas serem tão pequenas, porque não é possível fazer um copo de esmeraldas… Mas como seria bonito um copo de esmeraldas! O que significa esse movimento da alma? Significa desejar mais alguma coisa, que é segundo Deus.

Uma pessoa ouve falar das rodas(1) da Santa Casa de Misericórdia, da caridade daquelas freiras, e no primeiro momento imagina: Como seria bonito que, em vários lugares do mundo, freiras vestidas como Santa Catarina Labouré — que recebeu a visão da Medalha Milagrosa —, com aquele chapéu branco, hábito preto, cuidando das criancinhas dos outros, com uma pena, uma condescendência que as mães não tiveram, ensinando a Religião e aguentando as ingratidões das crianças, que às vezes são ingratas com os pais e quanto mais o serão com quem não são os pais! E carregando a cruz que o pai, ou a mãe, prevaricador não carregou! Que bonito refletir: de repente algo da graça, através da freira, incide sobre a criança e a alma desta vai se modelando!

Depois de ter imaginado isso, vem uma pergunta: como seria com Santa Catarina Labouré? Poderia eu imaginá-la? E posteriormente surgiria outra indagação: e se uma criança ignota fosse parar nos braços de Nossa Senhora, como a Santíssima Virgem faria?

Querer melhorar continuamente

Por que a alma vai por si imaginando o mais maravilhoso? Porque ela tem esse movimento ascensional rumando para Deus, que é o dinamismo de sua própria inocência, favorecido pela graça, naturalmente. Com essas cogitações, que são naturais à alma inocente, ela procura coisas maiores e, procurando, encontra. E a alma tem a proteção do anjo da guarda, de Nossa Senhora.

Representam-nos tantas vezes o anjo da guarda amparando uma criança para não tropeçar numa pedra; e é verdade. Mas quanto mais ele a ajuda para não tropeçar num sofisma, num erro, para acertar com a verdade, ter mais estímulo para querer o bem, amar a beleza! Quantas e quantas vezes movimentos bons de nossa alma foram do anjo da guarda, que cochichou ao nosso espírito, sem percebermos, tal coisa, tal outra, e caminhamos para frente! Nossa alma, angelizada, transportada por ele, voa de degrau em degrau, sob os auspícios e o bafejo dele. Isto é subir!

Então, procurando se encontra, e assim se produz também formas de perfeição cada vez maiores. Começam a aparecer os artistas, os literatos, os pensadores, os filósofos, os santos, a civilização inteira floresce. É a Cristandade, a marcha para cima. Num ambiente assim, em que as pessoas são ávidas disso, cada passo numa das vias — verdade, bem ou beleza — todo mundo nota: Olha aquele lá, que vocabulário! E aquele outro, que maneiras educadas! Aquele outro, que bondade! E aquele outro, que firmeza no pensar e que coerência! E assim por diante. E todos os pequenos progressos são notados, aplaudidos por todo mundo, e tudo na sociedade trabalha para que a virtude seja fácil de praticar e atraente. É o desejo de melhorar continuamente.

Às vezes a Revolução apresenta algo com ares de “verum, bonum, pulchrum”

No meio disso, que estou apresentando quase como uma regra implacável, há, entretanto, muito de placável, que é celestialmente desconcertante. Na vida de todo mundo que vai seguindo o caminho da ascensão, de vez em quando se levanta — todos conhecem a cobra tipo naja, que se ergue e se apresenta ao homem, pondo a língua e querendo morder —, a semelhança de uma naja, uma tentação. E essa tentação é algo da Revolução que procura apresentar-se com ares de “verum, bonum, pulchrum”, como quem diz: “Olha, eu tenho até mais do que o caminho do bem que você está trilhando; siga-me!” Isso houve em várias épocas da História, como exemplificarei.

Há também o contrário, no caminho da Revolução: o “verum, bonum e pulchrum” às vezes atuam como Nosso Senhor fez com São Pedro. Jesus parou e olhou para ele. E alguns fazem como São Pedro: se deixam apanhar por aquele olhar, convertem-se e choram amargamente. Os que estão neste auditório, olhando para o tempo em que não pertenciam ao nosso Movimento — e andavam por esses caminhos que são descaminhos —, é impossível não se lembrarem de uma ou outra ocasião, quando de repente algo de “bonum”, ou de “verum”, ou de “pulchrum” lhes brilhou mais. Então vacilaram um pouco, mas não desviaram o caminho; até o momento em que Nossa Senhora lhes fez aparecer a Vocação.

São as horas terríveis e, ao mesmo tempo, comovedoras da História. Há ocasiões da História em que o mal se apresenta sem máscara e diz: “Eu sou o mal! Sigam-me!” E as pessoas o seguem. Em outras ocasiões, o mal se apresenta com aparências de “verum”, de “bonum” e de “pulchrum”. Olha resplandecente e declara: “Vou fazer um raciocínio e ninguém conseguirá desmontar!” Ou então: “Vou praticar um ato de virtude que ninguém conseguirá imitar!” E faz certo ato. Ou então: “Vou fazer uma coisa linda, que ninguém poderá copiar nem, menos ainda, exceder!” E funda uma escola artística. E diz a cada pessoa: “Você não quer “verum”, ou “bonum”, ou “pulchrum”? Venha comigo, eu lhe dou. Olha isso, aquilo, aquilo outro!”

Há uma forma do obsessivo nesse convite, semelhante ao guizo da cascavel. Antes de a cascavel morder ela toca aquele guizo. Assim também faz o mal: “Olha aqui! Olha aqui! Olha aqui!”

O princípio da tábula rasa

Estou me lembrando de uma coisa assim, que é um princípio filosófico o qual se apresenta com uma clareza extraordinária, mas é uma mentira em nome da qual não sei quantos despencaram ladeira abaixo. É o princípio da tábula rasa, que diz: antes de estudar certa coisa, devo fazer abstração de todos os dados que eu tinha sobre ela. E antes de julgar, também devo fazer um estudo novo. Porque o que eu sabia antes pode deformar o meu pensamento. Vou partir de um grau zero, como uma tábua rasa, sobre a qual um carpinteiro passou a plaina; aí estou em condições para ter um pensamento límpido e verdadeiro.

À primeira vista, parece a coisa mais evidente que há. O indivíduo pensa: “Eu me dispo de preconceitos e faço um raciocínio sereno”. Aparentemente é de uma verdade que tem garras, arrasta. Nosso instinto diz: há algo nisso de falso. Mas se alguém pedir: “Apresente o argumento verdadeiro contra isso!”, temos que pensar muito para arranjar um castelo de pequenos argumentos a fim de mostrar que o princípio da tábula rasa é errado.

Quem é intransigente com relação aos maus está progredindo na virtude

Mas, quando o mal toma ares de “bonum, verum, pulchrum”, é apenas por algum tempo. Pouco depois, ele deixa a máscara no chão e mostra a careta por inteiro. Mas o indivíduo já se habituou, se viciou com o mal e aí não tem mais jeito; ele cede mesmo. Quer dizer, é uma forma de desnaturar, de corromper, de deteriorar as pessoas. No fundo, quem segue o mal tem uma sensibilidade tão fina que, quando o “verum, bonum, pulchrum” é apresentado sob máscara, as pessoas, nas épocas de transição, se comovem e aplaudem esse “verum, bonum, pulchrum” falsificado. Aplaudem porque sentem que é falsificado; percebem ser uma ponte para elas mesmas, sem muito choque, chegarem ao mal.

Eu termino com esta conclusão: prestem atenção, quem possui muita percepção para saber quem não presta, tem vontade de subir. Quem possui pouca percepção para saber quem não presta, tem vontade de descer. Quem tem muita moleza com aquele que não presta, é conivente e está descendo. Quem possui muita intransigência com aquele que não presta, é bom e está subindo. Essas coisas à distância se percebem, se discernem. O resto não é senão hipocrisia.  v

 

(Extraído de conferência de 4/4/1981)

 

1) Caixas em formato cilíndrico colocadas junto às portarias de conventos e Santas Casas de Misericórdia, destinadas a receber crianças abandonadas pelos pais.

 

Heróicos na virtude da confiança

“Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais vossos corações”, diz o salmista (94, 7-8). Fazendo eco ao autor sagrado, Dr. Plinio nos aconselha a não desprezarmos as inspirações da graça em nossa  alma, sobretudo quando ela nos move à esperança contra todas as aparências adversas, à confiança heroica e ilimitada na misericórdia de Maria Santíssima.

Conforme nos ensina a experiência na vida espiritual, pode-se dizer que a fidelidade daqueles que se mantêm fiéis quando todos os motivos lhes falam de desesperança e todas as razões lhes  impõem dúvidas, vale mais para a causa católica do que a fidelidade daqueles que não enfrentam tempestades e borrascas na sua trajetória de piedade.

Uma pessoa que, em condições adversas, permaneça fiel, é como uma árvore que se mostra mais frondosa do que todas as outras que não resistiram à tormenta, ou que por esta não tenham  passado.

Aquela se sobressai, como prêmio pela sua fidelidade. Creio que essa é uma constante na história da Igreja e das obras católicas ao longo dos tempos.

Uma vocação para todos

Por exemplo, se um jovem continuar a observar os Mandamentos e a praticar a virtude, num ambiente onde tudo o solicita para o pecado e a prevaricação, dele poderá surgir um grupo de católicos que, postos diante de uma perseguição religiosa, se transformarão em heróis da fé e escreverão uma epopeia nos anais do catolicismo. Seria uma forma de a providência, a rogos de Nossa Senhora, premiar a fidelidade deles.

Tenho para mim, aliás, que todos nós somos chamados a essa espécie de vocação, isto é, a de sermos heroicos na confiança. Em vista disso, precisamos sempre confiar que o plano e os desígnios de Deus a respeito de cada de um nós se realizará, apesar de todas as aparências em sentido contrário. E se, apesar dessas circunstâncias contrárias, continuarmos obstinadamente fiéis, essa fidelidade se torna invencível, move montanhas e opera milagres. Muitos fatos nas vidas dos Santos, contados na sua singeleza, têm um sabor de historietas encantadoras, mas, no fundo, possuem altíssimo significado, e nos falam dessa força da confiança invencível.

O milagre na vida dedois jovens beneditinos

Ilustra muito bem essa verdade o episódio ocorrido na vida de São Mauro e São Plácido, dois jovens discípulos de São Bento, narrado por São Gregório Magno. Conta-nos este que São Plácido, o mais novo deles, estava se afogando nas águas de um rio. Vendo o religioso em perigo, São Bento ordenou que São Mauro o fosse resgatar. Este não hesitou um instante e, obedecendo à ordem do Superior, lançou seu escapulário nas águas e andou sobre ele, como sobre um tapete. Chegou até São Plácido, o tirou do rio e os dois retornaram andando na superfície líquida, de volta para junto de São Bento.

Pressentimento de que nossos melhores desejos se realizarão

Muitos dirão: “Milagre da obediência!” Sem dúvida. Entretanto, também a confiança tem seu prêmio próprio.

Ela é uma forma de obediência. É uma espécie de pressentimento interior, nascido de uma ação da graça, que nos faz sentir com inteira certeza que algo desejado pelos melhores lados de nossa alma se realizará.

Essa é a definição da confiança. Às vezes, há evidências contrárias que procuram desmentir essa confiança. Porém, se esperarmos e pedirmos muito, contra ventos e marés, aquilo se fará verdadeiramente. Poderá vir por caminhos inesperados, caprichosos, depois de longa demora que constituirá para nós uma dura provação.

Mas, quanto mais tardar, maior será a glória, mais brilhante o resultado de nossa perseverança, pois aquilo se realiza certamente. E é preciso sermos heróicos nesse ponto: quando tudo afirma o contrário, devemos dizer: “Continuarei a esperar com mais afinco, pois o que desejo acabará se operando, pela misericórdia de Maria Santíssima!”

Ponto de partida para um reflorescimento

Dentro do nosso próprio movimento temos exemplos do quanto pode a força da confiança. Com efeito, mais de uma vez temos visto núcleos de amigos nossos onde todos se mostravam fervorosos e animados no começo de sua trajetória na vocação. Com o passar do tempo, porém, um se deixa tomar pelo desânimo, outro pela tibieza, aquele esmorece na prática da piedade, e o grupo se ressente dessa estagnação espiritual. Mas, se um deles permanecer fiel ao fervor primeiro, esse núcleo de amigos acabará recobrando ânimo e renascerá das cinzas.

Isso que se passa num setor do movimento, pode se dar no grupo constituído numa cidade qualquer.

De início, todos estão confiantes e esperançosos quanto ao futuro da obra naquela região. Lançam-se com fervor no apostolado. Contudo, sopra um vendaval, todos se dispersam de um momento para outro.

Exceto um que, se não perder aquela fidelidade invencível, com segurança e sem choramingos, será o ponto de partida para um reflorescimento daquele grupo. O mesmo princípio de aplica a cada obra nossa, de caráter individual, dentro da vocação. Começamos um apostolado, e temos a impressão de que não vai para a frente. Ficamos abatidos. Se continuarmos fiéis, tudo reverdecerá, ao cabo de algum tempo surgirão ótimos e duradouros frutos.

Sintomas de que o pressentimento nasce da graça

Essa é a confiança cega de quem acredita naquele pressentimento, percebe pela fé que este é uma voz da graça e persevera contra todas as aparências externas. Alguém poderia levantar a seguinte questão, a meu ver legítima: como se pode distinguir a simples presunção de um pressentimento válido, pois às vezes se tem uma série de pressentimentos que não se realizam. Como discernir, então, o bom pressentimento que nos vem de Deus?

Eu diria haver três sintomas que nos indicam a boa procedência desse pressentimento. Em primeiro lugar, sentir que desejo algo pelos melhores lados de minha alma e, portanto, os piores estão afastados. Em toda alma, os melhores lados são: o amor a Nosso Senhor Jesus Cristo e a Nossa Senhora, à Santa Igreja Católica e à Civilização Cristã.

Em segundo lugar, sentir que quando espero algo, minha piedade, minha abnegação, florescem e minha alma encontra alegria dentro da virtude.

E o terceiro sintoma: quando duvido daquilo, minha piedade fenece, começo a sentir tristeza em ter sido chamado por Nossa Senhora, e a virtude, em vez de ser um palácio de luz, passa a ser para mim uma masmorra sombria. Minha dedicação desaparece.

Essas características configuram, portanto, o pressentimento suscitado pela graça dentro de minha alma. Não é um privilégio dos justos Não se deve pensar que esses estímulos da graça sejam privativos dos santos. Até pecadores os recebem, como ação da clemência divina para conduzi-los à emenda de vida. A história está semeada de exemplos dessas vozes da graça agindo no interior de almas pecadoras, levando-as ao arrependimento e a uma heroica prática da virtude.

Não se trata de uma visão nem de revelação. É um pressentimento, no sentido etimológico da palavra: algo que se sente que será, antes que venha a ser. E esse pressentimento se realiza e se confirma.

Assim, confiando em que os nossos melhores desejos se realizarão, somos capazes de praticar muitas virtudes. Se essa esperança decai, nossa vida espiritual fenece. Não fechemos, pois, nossos ouvidos à voz interior da graça. Não julguemos que todo pressentimento como tal é bobagem à qual não se deve dar importância. Sem dúvida,  dar crédito a qualquer pressentimento seria  temeridade e pode mesmo ser superstição. Cumpre saber discernir a obra do Espírito Santo em nós, daquilo que é produto de nossos caprichos. Daí a necessidade de conferir nossas moções interiores com as características que acima estabelecemos.

Verificados esses três sintomas, podemos calmamente enfrentar até mesmo o inverossímil, porque este, pelo favor de Nossa Senhora, certamente se realizará. Esse é o heroísmo da confiança.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 12/1/1971)

Espelho perfeito da Sagrada Face

Nosso Senhor Jesus Cristo é o modelo de tudo quanto há de bom, grandioso e belo no mundo. Se Ele não tivesse existido ou não fosse Deus, a vida terrena seria algo tão fútil e vazia, uma mera sucessão de deleites alternados com sofrimentos que, em última análise, não se encontraria nela razão autêntica para ser vivida.

Se esse princípio é verdadeiro, devemos reconhecer que a Santa Igreja Católica é o espelho perfeito de seu Fundador, o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo. Assim, se alguém desejar sentir um pouco da impressão que teria ao ver a face sagrada do Divino Redentor, pode fazê-lo ao perceber os movimentos de sua alma ao contemplar as maravilhas engendradas pelo espírito católico ao longo dos séculos da Civilização Cristã.

Pode percebê-lo ao admirar uma catedral gótica, uma grande pompa litúrgica, um estupendo órgão tocando composições sacras, um coro cantando músicas gregorianas, ou assistindo a uma emocionante celebração eucarística, com um clero piedoso e um povo fiel. Podemos pensar numa encantadora comemoração de Natal na Catedral de Reims, de Amiens, de Colônia, ou de Bourges, em meio às mil coruscações de velas acesas, espargindo cintilações sobre as colunas de pedra e os vitrais recolhidos nas suas ogivas, na abençoada noite natalina.

Semelhantes sensações teria essa alma diante de incontáveis outros monumentos e obras da Cristandade, próprios a suscitar no coração humano aquela impressão que lhe causaria a visão da face adorável de Nosso Senhor Jesus Cristo. Porque, repetimos, todas as belezas e riquezas da Igreja e da civilização por ela inspirada, irradiam-se da figura do Filho de Deus e n’Ele encontram sua incomparável matriz. Ele é a alma de envergadura infinita que foi e continua sendo a autora de todas essas maravilhas, através dos séculos.

E não compreender essa verdade, não perceber os sentidos últimos dessa unidade sublime que unge e explica todos os aspectos belíssimos da Igreja, é ter compreendido pouco ou não ter compreendido nada da mesma Santa Igreja Católica Apostólica Romana…

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 30/3/67)

São José e a fecundidade da vida interior

Quando alguém se refere aos grandes vultos da história, imediatamente nos vem à memória a figura de um genial estadista, de um celebrado filósofo, de um brilhante general. Todavia, tudo isso não é nada em comparação com a sublimidade de ter colaborado na realização da Redenção. Eis a incomparável vocação de São José, destacada por Dr. Plinio, que no-lo apresenta como modelo a ser seguido por todos os católicos.

A ignorância religiosa em que vivemos tem produzido, entre outros efeitos nocivos, o desvirtuamento inteiro do significado real de algumas determinações da Igreja, que, quando mal  interpretadas, são inteiramente estéreis de frutos espirituais, e quando bem compreendidas, são férteis em graças e proveitos de toda ordem.

São José, modelo de todas as grandes virtudes

É o que se dá, por exemplo, em relação ao culto de São José que, proposto pela Igreja como modelo dos chefes de família e dos operários, é também, pelo imenso acervo de virtudes com que foi enriquecido pela graça, modelo ideal de todas as grandes virtudes católicas.

A maioria dos católicos, porém, não pensa seriamente em tomar São José como seu modelo. De um lado, a imensa santidade do pai [jurídico] de Jesus, a quem a Igreja cultua com a suprema dulia, parece um ideal absolutamente inatingível. De outro lado, a fraqueza humana de que nos sentimos repletos, solicitada por toda sorte de inclinações, nos afasta por tal forma de qualquer ideal espiritual, que julgamos muito já ter feito quando nos libertamos do jugo do pecado mortal e venial, e vivemos uma vida espiritual estacionária, relativamente suave, pois que se limita à conservação do terreno conquistado, mas inteiramente estéril para a Igreja e para a maior glória de Deus.

Em busca da perfeição espiritual

A Igreja certamente não pretende que seus filhos igualem em glória e em virtude aquele que, depois de Maria Santíssima, foi o mais elevado expoente de virtudes da humanidade.

Por outro lado, porém, ela não quer de modo algum que limitemos nossos horizontes espirituais a uma vida piedosa banal, amesquinhada pela errônea ilusão de que seria falta de humildade aspirar-se à santidade que brilhou no gênio de São Tomás, na combatividade de Santo Inácio, no recolhimento de Santa Teresa e na caridade de São Francisco.

A Igreja desmascara esta falsa humildade, apontando nela, ou um pretexto especioso da covardia espiritual, ou uma concepção orgulhosa da virtude, considerada mais como fruto do esforço humano do que da misericórdia de Deus. E, ao mesmo tempo, ela se serve do exemplo de seus grandes santos para “levantar ao alto” nossos corações, indicando-nos que a única preocupação real desta vida, o único problema verdadeiramente importante de nossa existência, é a aquisição daquela perfeição espiritual que será o único patrimônio que conservaremos, a despeito das crises financeiras, das comoções sociais e da fragilidade das coisas humanas, para, finalmente, transpormos com ele os próprios umbrais da eternidade.

É disto exemplo frisante o grande São José. Nascido de família ilustre, arrasta, no entanto, uma existência obscura que, contrastando com o brilho de seu nome, o colocou na mais baixa camada da sociedade de seu tempo. Escasseiam-lhe os dotes naturais com que os homens se fazem grandes. Não dispõe de exércitos nem de súditos, que levem ao longe a glória de seu nome. Não dispõe do dinheiro com que galgar às altas posições. Vive humilde e desprezado, à sombra do Templo majestoso, e no próprio país em que reinara a sabedoria de Salomão.

No entanto, brilha nele a chama da caridade. Um intenso amor de Deus, uma espiritualidade e uma vida interior admiráveis fazem de sua alma objeto da complacência da Santíssima Trindade, e este homem humilde é chamado a co-participar de modo direto em acontecimentos dos quais decorreriam os mais notáveis fatos da história do mundo.

A Religião católica, coluna da civilização

A Redenção do mundo, que é o fato central de toda a nossa história, determinou a queda do paganismo, o aparecimento e o triunfo da Igreja Católica, a implantação de uma civilização baseada em concepções inteiramente novas da família, do Estado, do indivíduo e da Religião, que foram os fatos iniciais e a causa do grande progresso que hoje admiramos.

A família pagã, transformada e sobrenaturalizada pelo contato com os Sacramentos da Igreja, transformou-se em foco admirável de perfeição espiritual e em escola austera da disciplina dos instintos inferiores.

O Estado pagão, transformado em sua base pelo Catolicismo, deixou de ser privilégio de plutocratas ou demagogos, para ser antes de tudo um admirável meio de distribuição equitativa da justiça e proteção a todos os indivíduos.

O indivíduo, que no paganismo era presa de suas paixões, viu abrir-se diante de si o admirável ideal de perfeição espiritual pregado pelo Homem-Deus; e o homem medieval, descendente dos sibaritas da Antiguidade, se transformou no cruzado, no asceta ou no filósofo cristão.

A Religião, enfim, conseguiu trazer ao mundo, com seus Sacramentos, com a graça de que é veículo, e com o admirável apostolado hierárquico da Igreja, uma continuidade de ação santificadora que tem sido a coluna da civilização.

Todos esses acontecimentos gloriosos tiveram sua origem na Redenção. São José, pela admirável correspondência à graça com que se distinguiu, colaborou de modo eminente no plano divino da Redenção. E, como tal, é merecedor de grande parcela da glória que, legitimamente, cabe ao Divino Salvador, pela imensidade de benefícios com que nos cumulou.

Inestimável valor de uma vida espiritual intensa

Vemos, pois, a admirável fecundidade de uma vida que todas as circunstâncias naturais tendiam a tornar estéril. Vemos a prodigiosa capacidade de ação da santidade que, no recolhimento e na humildade, colaborou diretamente em acontecimentos muito mais importantes e teve uma participação incalculavelmente mais notável em toda a história da humanidade do que Alexandre com seus exércitos, Kant com seu saber arrogante, ou Maquiavel com sua diplomacia astuta e amoral.

Vida interior, portanto. Vida interior intensa, constante, ilimitadamente ambiciosa, no sentido espiritual da palavra, eis a grande lição que (o exemplo) de São José nos deixa.

Intimamente unidos a Nossa Senhora como o foi São José, não nos deve desanimar, ante a grandeza dessa lição, a escassez de nossas forças, pois que devemos exclamar como encorajamento: “Omnia possum in eo qui me confortat — Tudo posso n’Aquele que me conforta”.

Plinio Corrêa de Oliveira (Transcrito do “Legionário”, nº 116, de 26/3/1933. Título e subtítulos nossos.)

Ladainha da Humildade – Desprendimento e amor a Deus

Dr. Plinio nutria grande apreço — e a recomendava vivamente a todos — pela  Ladainha da Humildade, composta pelo Cardeal Rafael Merry del Val, Secretário de Estado  do Papa São Pio X.
Conforme ressaltava Dr. Plinio, é a humildade um dos importantes esteios para a perseverança do católico, como salvaguarda da virtude da pureza e da autenticidade de qualquer ato piedoso.

A Ladainha da Humildade, escrita pelo Cardeal Merry del Val, embora magnífica e de inestimável proveito para as almas, devendo ser rezada amiúde, poderia admitir certo desenvolvimento particularmente útil para os membros de nossa obra.

Contrária à visão egoísta da vida

Nesse sentido, ocorreu-me fazer uma aplicação dos mesmos conceitos enunciados pelo Cardeal Merry del Val a tópicos que nos interessam de modo especial.

Sob um certo ponto de vista, essa oração poderia ser chamada “Ladainha do Desprendimento”, pois todos os pedidos nela formulados têm por objetivo evitar o egoísmo.

Assim, os desejos de ser estimado, amado, honrado, consultado, preferido, de ser mais santo do que os outros, etc., resultam, em última análise, da preocupação egoísta de considerar-se o primeiro e ter tudo para si. Em síntese, de quem possui, como ideia fixa, o “eu, eu, eu”.

Crescer no amor a Deus e ao próximo

Surge, então, este pensamento: “Está bem, não desejo ser amado, conhecido, louvado. Esse é o lado negativo do assunto. Qual será seu aspecto positivo?”

O lado positivo, contrário ao egoísmo, consiste não apenas no amor ao próximo, mas, sobretudo, no amor a Deus. O verdadeiro amor ao semelhante é um reflexo do amor a Deus, que se exprime também pela devoção a Nossa Senhora, à Santa Igreja Católica Apostólica Romana — Corpo Místico de Cristo — bem como pelo amor à vontade do Altíssimo e, portanto, à nossa vocação, ao movimento do qual participamos.

Em conseqüência, apresentar o lado positivo dessa Ladainha envolve a seguinte questão: ao entrar num ambiente, devo sinceramente estar despreocupado de ser o primeiro, de ser honrado, louvado, estimado, consultado, etc., e cumpre tomar essa atitude por amor a Deus. Portanto, preciso querer que o Criador e a Igreja sejam amados sobre todas as coisas; e seja eu capaz de amar minha vocação acima de todas as coisas meramente humanas.

Ter sempre em mente o aspecto positivo desses pedidos

Importa considerar também que, ao me esforçar para evitar que o amor próprio, o orgulho e o egoísmo me dominem, preciso ter uma certa visualização que me ajude a combater esses defeitos. Imagine-se, por exemplo, que eu pronuncie uma conferência e o público, muito indulgente e pouco dado a críticas, me cumule de aplausos. Qual deve ser o pensamento correto a se formular nessa hora?

“Que ovacionem a mim, não tem importância. Minha exposição conseguiu despertar o amor a Deus e à Igreja Católica em alguém? Esses aplausos significam um verdadeiro movimento de virtude que minhas palavras suscitaram? Se assim foi, alegrar-me-ei. Não, porém, quanto ao que diz respeito a mim, porque esta é minha razão de ser. Sou filho de Deus e da Santa Igreja, servo de Nossa Senhora: com isto devo me preocupar.”

Ter sempre em mente esse aspecto positivo da Ladainha da Humildade é um esplêndido auxílio para se praticar de modo completo essa virtude propugnada pelo Cardeal Rafael Merry del Val em sua prece, bem como para evitar os defeitos nela apontados.

O modo mais acertado de se rezar a Ladainha da Humildade

Assim, parece-me em extremo conveniente meditarmos sempre no conteúdo dessa valiosa oração. E fazê-lo com aplicações concretas à nossa vida quotidiana, ao nosso dia-a-dia na vocação. Pois o amor próprio é algo tão contínuo, polimórfico e profundamente radicado na natureza humana, que qualquer pessoa, não tendo vigilância, acaba sendo meio infiltrado — para dizer pouco! — por ele.

Exemplifico. Se desempenhamos uma tarefa de modo bem feito, obtemos um grande resultado para nosso apostolado e, por isso, somos objetos de admiração dos outros. A pergunta que devemos fazer a nós mesmos é: “Agimos assim por satisfação própria ou por Nossa Senhora? Para sermos aplaudidos ou a fim de que Ela seja bem servida?”

Se realizamos o trabalho para glorificar a Santíssima Virgem, é o correto e o desejável. Mas, se eu degustar os elogios e pensar: “Homem! Fiz tal coisa, e como os outros me admiraram naquela hora! Fulano, que sempre me contraria, ficou com uma face comprida…” — estarei me entregando a considerações lastimáveis, as quais roubam todo o mérito do meu apostolado.

Precisamos ser indiferentes ao fato de aparecermos ou não naquilo que fazemos nas vias da nossa vocação. E para se alcançar esse desprendimento, só há um meio eficaz: examinar-se e perguntar se Nossa Senhora de fato está bem servida, honrada e glorificada com nossas realizações.

Quer dizer, o modo mais prático e correto de rezar a Ladainha da Humildade é fazer continuamente essas aplicações ao nosso comportamento na vida interna de nossa associação. Por outro lado, se empreendemos um trabalho importante e ninguém nos elogia, não nos incomodemos. Desde que tenhamos procurado atender aos desígnios de Deus, o resto não importa.

É procedendo dessa forma que se combate inteiramente o egoísmo e o orgulho.

Gloriosa perenidade

Durante as visitas que fiz a Roma, agradava-me discernir e sentir algo que eu chamaria de a perenidade da Igreja Católica, quer dizer, o modo maravilhoso como ela vai prolongando sua existência neste mundo. Na sua história os séculos se sucedem e como que se confundem, formando uma espécie de miscelânea suavíssima, importantíssima, seríssima, de tal maneira que, ao  contemplarmos os vários templos católicos de Roma, admiramos os passos da Igreja através dos tempos.

Dir-se-ia que todas as épocas vividas por ela ali se revelam, num estado ligeiramente melancólico, porém doce, tranqüilo — não isento de bem-estar — e olhando para a eternidade, como quem diz: “Meu dever está cumprindo, mas resta-me a mim o estar aqui, para representar o papel no cortejo dos séculos até que a peregrinação do homem sobre a face da Terra se complete”.

O visitante com uma alma sensível a esses aspectos, pode se deter diante de qualquer uma dessas igrejas romanas e talvez perceberá, como eu percebia, que aquele edifício sagrado traz consigo a atmosfera dos primeiros anos do Cristianismo; junto a ele, ou no seu interior, ainda ecoam gemidos de mártires, e a luz do sol, neste momento ou naquele, banha de uma luz incomparável a face de uma imagem ou a ponta de um mosaico seculares.

Essa sensação nos faz imergir no passado, e como que degustarmos as graças e a santidade da Igreja como estas se manifestavam aos homens daqueles remotos tempos. Em torno daquelas obras de arte, imagens, relicários, essa santidade e essas graças como que se mantiveram paradas.

Mais de uma vez pude constatar essa impressão. Passava diante de uma igreja romana, detinha-me por  alguns instantes a admirá-la e sentia vir do seu interior um arfar dos séculos mesclado a um vento que consigo carreava graças, e aquilo me envolvia por inteiro. Adiante, outra igreja, outra beleza, os mesmos sentimentos.

Isto fala muito da perenidade da Igreja. E, de fato, toda grande instituição que vem do fundo dos séculos e caminha séculos para frente, a fim de alcançar genuína glória precisa ter algo pelo menos desse ocaso em que se misturam todas as épocas já vividas por ela. Sem esse predicado, se tudo for novo e composto no momento presente, será como uma criança recém-nascida no berço.

Não. Viva, sofra, lute, combata sua batalha! Atravesse uma longa existência e seja a pessoa heroica em cuja alma se somam os diversos estados de espírito que a modelaram. Seja alguém no qual dorme o passado e pulsa o futuro!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 10/6/1987)

Como podemos imitar os santos?

Durante as décadas de 60 e 70 Dr. Plinio fazia conferências diárias, em geral comentando a vida do santo cuja festa a Igreja celebrava naquela data. Donde essas reuniões serem chamadas de “Santo do Dia”, nas quais a edificante virtude dos heróis da Fé eram propostas como modelo a quantos acompanhavam ditas exposições. Certa vez, atendendo ao interesse de seu auditório, Dr. Plinio salientou o melhor modo de seguirmos o exemplo dos grandes santos.

Com freqüência no “Santo do Dia”, fazendo comentários a respeito deste ou daquele bem-aventurado, apresento um quadro da vida espiritual que poderia ser assim resumido: a Fé ilumina a inteligência; esta dirige a vontade a qual, por sua vez, fortalece a sensibilidade humana. Agindo dessa forma, o homem está em ordem em relação a Deus. Os santos o conseguiram por meio de meditações, raciocínios, exercícios metódicos e cuidados persistentes, enfrentando lutas e sofrimentos extraordinários.

Dificuldade dos mais fracos

Sempre procuro elogiar enfaticamente esse modo de praticar a virtude, o que suscita em alguns de meus ouvintes a seguinte pergunta: “Dr. Plinio, os ‘Santos do Dia’ são feitos em grande parte para as gerações mais novas, e até novíssimas, compostas de capengas(1). Os santos sobre os quais o senhor tece comentários são o contrário da “capenguice”, porque têm muita personalidade, são capazes de sofrer, de praticar atos heroicos e fazem obras que nós não conseguimos realizar. Então, que proveito podemos tirar dessas exposições?”

Virtudes a serem admiradas, mais do que imitadas

Respondo à compreensível indagação.

Antes de tudo, cumpre considerar que, em toda a História da Igreja Deus suscita santos com virtudes tão extraordinárias que devem ser admiradas, mais do que imitadas. Exemplo frisante é o de São Simão Estilita, o qual, para fugir das atrações mundanas, subiu no alto de uma coluna e ali passou a vida inteira em oração e penitência. O que sucederia se toda pessoa com dificuldades em cumprir os Mandamentos, ficasse o dia inteiro rezando sobre uma coluna?

Não haveria colunas que bastassem. Além disso, o número de colunas abandonadas seria imenso…

Sem dúvida, o procedimento de São Simão Estilita é um modo admirável de praticar a virtude. Não há palavras que possam exprimir nosso respeito e enlevo por um homem que permanece durante anos no alto de uma coluna, não pensando em outra coisa senão em Nosso Senhor e nas verdades eternas. Contudo, se o desígnio de Deus para a maior parte dos homens não é o de imitar São Simão Estilita, a admiração pelo santo deve levá-los a praticar virtudes menores, ou pelo menos de modo menos excepcionalmente heroico.

Cada um poderia dizer a si mesmo: “Claro está, não posso chegar ao grau de virtude que São Simão Estilita atingiu, mas desejo caminhar nessa direção”.

Ora, se esse anelo nasce em nosso interior, significa que aquele santo é uma espécie de precursor de milhões de almas que, de algum modo, fazem aquilo que ele realizou. E, portanto, o extremo da admiração redunda numa como que imitação, a qual beneficia incontáveis corações.

Todos somos chamados à santidade

Em segundo lugar, precisamos compreender que, embora as virtudes heroicas de alguns santos do passado não possam ser praticadas pelos homens de hoje — e nem pertençam às vias comuns da graça —, a santidade está ao alcance de todos. Porque a perfeição moral é atingível por qualquer homem que a deseje, com o auxílio da graça. E quando admiramos um santo, nos encantamos com a santidade, e somos convidados a seguir de alguma forma o exemplo de sua vida virtuosa.

Outro não foi o pensamento que inundou a alma de Santa Teresinha do Menino Jesus, a doutora da chamada infância espiritual. Quer dizer, ela se comportava diante de Deus com a humildade e a simplicidade de uma criança. Não almejava fazer coisas extraordinárias, mas apenas servir a Deus nas formas quotidianas e comuns da virtude. Porém, praticando-as com um amor tal que este significava verdadeiramente a santidade.

O teor de relações de Santa Teresinha com Nosso Senhor era semelhante ao da criança com seus pais, e poderia ser qualificado quase de filial e reverentemente sem cerimônia. Ela não procurava de modo algum ser grande diante de Deus, e sim humilde e pequena, vivendo da confiança na misericórdia do Altíssimo minuto a minuto. Dessa maneira ela alcançou a santidade.

Como águia que fita o sol através das nuvens

Pode-se dizer que Santa Teresinha levou essa confiança a extremos singulares. Por exemplo, ela era um braseiro de amor a Deus, mas sua alma passou por longos períodos de aridez. Em certas ocasiões essas penas espirituais a afligiam até mesmo durante o cântico do Ofício.

Entretanto, nas mais diversas provações, ela se mantinha serena, e já no fim de sua vida, devorada por tentações contra a fé, ela resistia de modo admirável e completo. Diante de tudo isso, conservava a atitude de pequenez, vazia de si mesmo, sabendo que valia muito aos olhos de Deus. Por isso costumava reafirmar que Nosso Senhor a protegia, embora ela não o sentisse.

Nesse sentido, empregava a linda metáfora da águia que fita o sol através das nuvens: não lhe era possível divisar o sol divino, mas estava com as vistas continuamente voltadas para Ele, amando-O do modo mais intenso possível.

Certa feita lhe perguntaram como ela agiria se tivesse a infelicidade de cometer um pecado grave. Resposta: “A misericórdia de Deus é tão grande que eu retomaria, com a alma partida de dor, minha vida espiritual no ponto anterior à queda, e recomeçaria a ascensão tranquilamente”.

Não cabe chamar Santa Teresinha de capenga, mas ela abriu a pequena via para os capengas que viriam depois dela, proporcionando-lhes uma vida espiritual modesta, humilde, mas repleta de amor, dando-lhes a oportunidade de realizar, à sua maneira, grandes coisas.

Concluímos, portanto, dizendo que convém conhecermos as altas virtudes dos santos insignes para amá-las, admirá-las e, na medida do possível, imitá-las, segundo as disposições propostas pela “pequena via”.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 12/1/1966)

 

1) Dr. Plinio costumava empregar a palavra “capenga” no sentido metafórico, a fim de indicar certas debilidades de alma manifestadas por filhos das gerações que o sucederam. Estes apresentavam deficiências espirituais análogas às de um coxo, e assim como o capenga de corpo precisa de muleta para caminhar, o de alma, por ser inconstante, necessita sempre de especial apoio para progredir na piedade.

Parece um conto de fadas

Uma pequena igreja da Itália, em contraste com o prosaísmo e a feiura de tantos prédios atuais — construídos  conforme o espírito revolucionário —, é mimosa com distinção e solenidade, remetendo-nos a uma atmosfera irreal e maravilhosa.

O ponto de vista sob o qual analiso e comento os monumentos europeus é o de despertar o amor a um tipo de maravilhoso existente na Europa, elaborado pela civilização cristã, e que é, portanto, um fruto do Sangue infinitamente precioso de Nosso Senhor Jesus Cristo e das lágrimas de Nossa Senhora.

Maravilhoso sapiencial, de caráter religioso

Foi disto, do senso da cruz, da virtude, do sacrifício que nasceu uma civilização que engendrou essas maravilhas, as quais exprimem algo do espírito e da sabedoria da Igreja. É esse maravilhoso sapiencial, de caráter religioso que consideraremos agora.

Temos aqui fotografias da Igreja dos Santos Nicolò e Cataldo, na cidade de Lecce, na Itália, contendo vários elementos ornamentais explorados a diversos títulos, constituindo várias formas de beleza do panorama italiano.

O panorama italiano é peculiar, pois certas coisas que são bonitas em qualquer parte do mundo, mas possuem dessas belezas comuns e vulgares que vemos e passamos adiante, na Itália existem de um modo especial, por onde elas tomam uma beleza quase clássica, que forma um dos maiores ornamentos desse país e um dos mais altos pontos de atenção do gênero humano.

Por exemplo, quem já esteve na Itália compreende, mas para quem nunca a visitou não é tão fácil compreender a beleza dos muros velhos escalavrados, de pedras que duram séculos, com cicatrizes de todas as molecagens que se fizeram em cima delas, de todos os granizos que caíram sobre elas, e que conservam a dignidade de uma face envelhecida, rugosa, mas com ar de matrona régia.

Notem esse muro. Uma pessoa com espírito moderno e pragmático teria mandado passar massa e depois pintar a óleo, para ficar lisinho e bonitinho, porque esse tipo de pessoas não entende senão o que seja lisinho e bonitinho.

Vejam quantas cicatrizes há nessas pedras! Todas cheias de poros, de sujeiras, de calosidades. Entretanto, isso batido pelo Sol da Itália dá uma ideia de eternidade, de uma coisa que nada destrói.

Essa trepadeira dá a impressão de algo com uma forma de vida endêmica que não há Sol que acabe com ela, e segura com força o prédio, como quem diz: “Eu viverei”. As próprias pedras, batidas pelo Sol, têm qualquer coisa da boa natureza que resiste a tudo. Disso desprende-se uma noção de perenidade.

É preciso saber entender o pitoresco

Pode-se imaginar em uma dessas ruelas uma pizzaria onde se vende a famosa pizza napolitana, outro estabelecimento cheirando a polenta ou a mortadela, de dentro do qual se ouve um berro do patrão para a filha dele: “Angelina, eu já disse que me traga tal coisa para este freguês!” — com ares de Nero proclamando a queda de Roma, atrás do balcão como se fosse um trono, e com aquela tendência declamatória pitoresca do italiano.

O filho do dono, por sua vez, é um homem que toca guitarra e canta “O Sole mio…” De repente, atrás de um arco desses ouve-se um gato miando… Há dentro disso qualquer coisa de rústico, de elementar, de simples, de uma plebe sadia, vigorosa, que canta o Sol sem nenhuma espécie de artifício, e que constitui um dos verdadeiros encantos da Itália.

É muito bonito esse contraste no velho urbanismo da Itália: ruazinhas completamente emaranhadas, sem calçada e dentro das quais entram motocicletas, vespas, lambretas e automoveisinhos modernos. As pessoas se afastam, passa o automóvel, elas protestam, berram… Uma viazinha estreita que, de repente, dá num laguinho inesperado.

Segundo um urbanismo “hollywoodiano” o bonito seria uma avenida muito larga, terminando num lago ainda mais largo do que ela. E o transeunte, de longe, vai vendo a avenida por onde vai.

Quando chega ao final, não  tem nada de novo. Boceja ao chegar ao lago, pois já o estava vendo à distância.

Na Itália, não. Tudo isso é pitoresco, e é preciso saber entendê-lo. Do contrário, não se viajou pela Itália, não se viu a Itália.

Vamos, agora, analisar a igreja. Quem a construiu parece ter tido a pretensão de edificá-la como se fosse uma basílica. Ela é de proporções pequenas, mas toda sua fachada é trabalhada com a distinção e com a solenidade que caberiam a uma igreja grande. Poder-se-ia imaginar uma imensa basílica construída com essa fachada; ficaria linda! Mas o artista soube dar a isso o tamanho reduzido, para ficar, ao mesmo tempo, digno e engraçadinho.

Temos, então, a beleza específica dessa fachada, na qual distinguimos dois elementos: uma cúpula e depois a fachada propriamente dita. Esta se compõe de uma linha central, que é a linha grande, e de duas linhas colaterais que são acólitas da linha central, existem para ela. Se analisarmos a linha central, notaremos ser relativamente simples. Ela tem um porte bonito, harmonioso, muito bem feito, uma proporção entre a altura e a largura muito bem tomada, a proporção de altura entre as colunas e o arco é muito bem tirada também.

A porta é trabalhada, mas sem excesso. Acima dela encontramos uma longa parede vazia, onde o único elemento decorativo é a rosácea que existe, provavelmente, para conduzir luz ao coro dentro da igreja. Quer dizer, tem uma finalidade prática.

O ornamento só aparece bem no alto. São formas, figuras com o seguinte objetivo: a largura dessa parte central, quando chega a certa altura se estreita um pouco. Esta sucessão de larguras diferentes culmina num ponto terminal leve, por onde acaba quase se fundindo no céu.

O sorriso da Arte

Ao lado desta parte central muito simples vemos duas partes colaterais bastante ornadas. Tudo é muito bem construído: as duas partes se repetem e têm colunas com dois nichos nos quais se encontram imagens de Santos.

Essas são colunas jônicas, todas caneladas, como o fuste em cima também, todo ele com as clássicas folhagens de acanto, e depois, em cima, uma trave. Cada uma dessas partes poderia constituir um edifício autônomo, tão bonitas são. Entretanto, encaixam-se harmoniosamente dentro do conjunto da igreja.

Se abstrairmos a parte superior, veremos como o restante forma uma linha básica larga e sólida em relação ao que vem acima, que é mais leve em função do princípio de que o mais pesado carrega o mais leve e o mais forte sustenta o mais fraco. É o contrário do princípio existente em determinados prédios modernos, nos quais uma superfície pequena parece esmagada por uma massa de  cimento sobreposta.

Aqui não: o elemento com aparência de débil fica em cima e o componente pesado embaixo.

Por fim, nota-se toda uma ornamentação abundante terminando o edifício, porque a parte mais nobre, mais leve, mais etérea, deve estar junto do céu. As figuras leves ficam colocadas perto do teto para dar ideia de algo que está subindo para o firmamento e ali se perde. Todas as construções antigas observavam essa norma, que se perdeu depois por artifícios da Revolução.

Considerando o conjunto do edifício temos um monumento muito bem feito, mimoso, mas com ares de pequeno rei. Mais ou menos como seria o Príncipe de Mônaco; é um rei em miniatura. Ninguém dá risada dele; ele é o “garnisé” no gênero dos reis. O garnisé é o sorriso de Deus a propósito do galo, que o mesmo Deus criou.

Aqui é o sorriso da Arte a respeito de suas próprias grandezas. Ao invés de construir uma obra linda e grande, ela faz uma coisa pequena e igualmente linda, para poder sorrir a respeito de si  mesma. O monumento, considerado deste ponto de vista e em contraste com o prosaico de outros prédios, parece um pouco um conto de fadas, uma coisa um tanto irreal, maravilhosa.

Temos, então, um dos ângulos bonitos da Europa sagrada.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/3/1967)