A Paixão trajada de pulcro

Desde os remotos tempos de minha juventude tocaram-me de modo muito particular as celebrações da Semana Santa. Recordo-me, por exemplo, de assisti-las na Igreja de Santa Ifigênia (então a Catedral provisória de São Paulo), onde me colocava junto ao coro e, lá do alto, contemplava as cerimônias se desenvolverem, enquanto a música sacra ungia o ambiente com seus acentos de dor e contrição.

Aquele conjunto de movimentos e cânticos se me apresentavam com uma majestade santa, uma grandeza divina e incomparável, cumulando minha alma de veneração, respeito e desvelo religioso. Em última análise, através do cerimonial, dos símbolos e personagens, a graça agia no meu interior, fazendo-me compreender a sublime beleza com que a Igreja rememora o trágico e glorioso fato da Redenção.

Tais sentimentos se intensificaram quando tive ocasião de conhecer as célebres procissões da Paixão realizadas na Andaluzia, notadamente as de Sevilha, talvez as mais belas do mundo. Ainda os menos sensíveis e os afeitos a ritos singelos não podem negar um elogio ao esplendor dessas celebrações.

Sob dosséis recamados de ouro e prata, cintilantes à luz de centenas de velas, desfilam os passos das várias Confrarias, cada qual excedendo-se no brilho, na compenetração e devoção com os quais reverenciam os sofrimentos do Homem-Deus. E embora uma crítica rigorosa não deixasse de ver, nestes ou naqueles pormenores, nestas ou naquelas imagens, certas concessões aos exageros do renascentismo, isto não impede que nos entusiasmemos diante do maravilhoso ornando as dores de Jesus e de sua Mãe Santíssima, recordadas em verdadeiros espetáculos esculturais e cenográficos.

Por ruelas e becos, às vezes tendo ao fundo a silhueta da famosa torre da Giralda, vão passando lentamente aqueles penitentes cuja identidade se refugia sob o distinto anonimato de suas lindas vestimentas: a grande túnica e o capuz pontiagudo, no meio do qual apenas se percebe o olhar sério e contristado do que caminha junto ao andor.

E como a procissão monumental lucra em percorrer aquelas vielas centenárias, tortas, traçadas sem planos nem medidas! É o que lhe confere vida e expressão de alma! Ela morreria ou perderia muito de sua beleza se tivesse de atravessar largas avenidas, povoadas de prestigiosos hotéis, bancos e lojas de luxo.

Não, é por entre as ladeiras e ruas estreitas que se apresentam em todo o seu esplendor aquelas obras de escultura magnificíssimas, a profusão de rendas, os mantos de veludo bordados a ouro, as jóias e coroas ricamente lavoradas, os lindos candelabros, os andores cobertos de flores vermelhas “éclatantes”, como só lá existem, e que combinam de maneira perfeita com as imagens da Paixão, como se quisessem dizer a Jesus: “Meu Senhor, se me fosse dado estar convosco na Via Dolorosa, aos vossos pés eu teria posto cravos. Os mais rubros cravos de Andaluzia para vossos pés divinos!”

É o pulcro, o belo oferecido a Nosso Senhor como ato de reparação. E nessa atitude só podemos ver nobreza e seriedade de espírito, cercando de ornato a dor multiplicada pela dor: ora é o Filho de Deus carregando sua Cruz, ora flagelado e coroado de espinhos, ora posto diante de seus algozes sem ter como se defender. Jesus humilhado e grandioso, isolado na sua inocência, suportando no silêncio o gravame de nossos pecados.

E a procissão continua o seu lento caminhar, deixando à sua passagem um rastro de tristeza e maravilhamento.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

A boa oração é sempre atendida

Encerrando a série de seus comentários ao livro de Santo Afonso de Ligório – “A oração, grande meio da salvação” –, Dr. Plinio relembra e responde algumas objeções que poderiam ser levantadas acerca do valor das nossas preces e da propícia disposição de Deus para com elas.

 

Lemos na Escritura, sobretudo nos Evangelhos, muitas afirmações a respeito da eficácia da oração. Uma das mais famosas é: “Pedi e recebereis, procurai e achareis, batei e abrir-se-vos-á” (Lc 11, 9).

É a lição da parábola do homem que dorme e que, à força de ser importunado pelo vizinho a lhe bater à porta, atende o pedido deste (Lc 11, 5ss).

Ao explicar a parábola, Nosso Senhor comenta: “Quem de vós, se um filho pede pão, lhe dará uma pedra? Ou se pede peixe, lhe dará uma serpente? Ou se pede um ovo lhe dará um escorpião? Se vós pois, que sois maus, sabeis dar bons presentes a seus filhos, quanto mais vosso Pai que está nos Céus concede o bom Espírito para aqueles que o pedem”.

Por que confiar no valor da oração, se nem sempre é atendida?

Se essas palavras devessem ser tomadas “quadradamente” ao pé da letra, como se tratando de uma promessa absoluta de Nosso Senhor, a conclusão é que todas as nossas orações são sempre  atendidas.

Ora, a experiência nos mostra que nem todas são atendidas; logo, dir-se-ia que essa promessa não pode ser tomada ao pé da letra. “Então qual o valor dela?” — perguntará alguém. “Se Deus se reserva ressalvas ao fazer uma promessa, fica-se mais ou menos desnorteado quanto à sua validade.” Certa vez alguém me confidenciou: “Eu não rezo porque Deus não me atenderá, pois Ele quer que eu passe por uma prova”.

Trata-se evidentemente de uma atitude errada. Mas vê-se que a pessoa tinha uma dificuldade que pode ser expressa no seguinte raciocínio: “Se estou doente e peço a Deus que me cure, ou se estou tentado e peço que a tentação cesse, que grau de confiança posso ter no atendimento de meu pedido? O próprio São Paulo rogou três vezes a Deus que afastasse dele as tentações e não foi  atendido, pois a tentação era  uma dádiva para ele. Vale então a pena eu pedir?” O problema acima está posto em termos bem agudos e rudes. Mas é um problema lógico que exige solução, com o objetivo de compreender melhor o valor da oração e a atitude de Deus para com quem reza.

Poucos são os livros de piedade que consideram essa dificuldade inteiramente de frente. Em geral, fazem considerações muito abstratas e não fornecem uma explicação satisfatória. Tive de refletir bastante para chegar às conclusões que enunciarei a seguir.

O pedido que nunca é recusado

Em primeiro lugar, na oração devemos distinguir duas  espécies de pedidos. Há aquele que Deus atende sempre, no sentido mais rigoroso da palavra, isto é, o de nossa santificação, perseverança e salvação eterna, desde que nossa oração seja insistente. Porém, mesmo nesse caso há conformes. Pois isso não implica que se obtenha imediatamente o que pedimos. Há pessoas que se julgam no direito de fixar prazos a Deus. Elas não compreendem que Deus pode tardar em conceder as graças que imploramos, pois quer provar a nossa paciência e confiança.

Ele pode querer que passemos por provações terríveis, antes de nos conceder o que pedimos. Conheço almas que quanto mais rezam, tanto mais acreditam naufragar. A solução para elas não é parar de rezar, mas orar com maior empenho. Pois quando Deus lhes conceder a graça pedida, fa-lo-á com juros. Na minha experiência de vida espiritual eu afirmo que esse trato de Deus para com essas almas é um sinal de verdadeira predileção por elas.

É preciso que essas almas tenham confiança, esperem contra toda a esperança, sabendo que um dia obterão o que pedem, em vista da promessa de Nosso Senhor: “Em verdade, em verdade vos digo, tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, Ele vô-lo concederá”. A expressão “em verdade, em verdade” equivale a um verdadeiro juramento de Nosso Senhor.

Discernindo as vias da Providência

Tendo criado o homem com inteligência e livre arbítrio, está nos desígnios da Providência que ele não só utilize esses dons para progredir na vida material, mas também para buscar a própria  santificação.

A inteligência humana, servida como por um instinto que vem da graça, encontra condições para realizar um reto juízo a respeito de tudo quanto se refere à vida espiritual. A cada homem Deus dá   uma noção do que lhe convém para a sua salvação. Não se trata de uma noção genérica, mas de uma noção aplicada à sua vida pessoal concreta.

Mas a medida de segurança e de clareza que as almas têm no conhecimento de suas próprias vias, varia muito de uma para outra.

Há algumas às quais Deus concede uma clareza excepcional a esse respeito, enquanto outras vêem num lusco-fusco. Isso depende da pedagogia de Deus com cada alma.

Assim, por exemplo, àquelas que por seus defeitos naturais seriam muito tentadas de orgulho, Deus concede pouca clareza nesse discernimento, a fim de que não repousem sobre si, e sejam  obrigadas a rezar muito para poder ver com clareza como se conduzir, bem como a consultar e a seguir a direção espiritual de um outro homem, que tem mais discernimento do que elas.

De fato, nos casos em que as certezas são tênues, ou em casos de dúvida, Deus completa essa noção por meio da abalizada orientação de diretores espirituais.

A ação do Espírito Santo nas almas

Quando posso ter confiança de que meus pedidos serão ouvidos por Deus?

É precisamente quando, por efeito de uma graça interior de discernimento, tenho certeza de que minha solicitação corresponde aos caminhos traçados por Deus a meu respeito. Então devo pedir com toda confiança, porque Deus quer me conceder o que Lhe rogo.

Há, evidentemente, outros meios de comprovar qual é o caminho que Deus escolheu para mim: são certos sinais e circunstâncias que confirmam a certeza interior inicial. A confiança adquire  então um fundamento lógico, e a promessa de que nossa oração será atendida se aplica nesse caso estritamente.

As certezas quanto às vias de Deus nascem às vezes de revelações interiores como, por exemplo, no caso de Santa Joana d’Arc. Nascem também, por vezes, não de revelações, mas do conjunto de inspirações postas pelo Espírito Santo na alma. Santa Teresinha do Menino Jesus tinha certeza absoluta de que todas as suas irmãs seriam religiosas e rezava ardentemente para que o fossem, sem condicionar suas preces a outros desígnios de Deus, pois estava convicta de estar pedindo o que Deus queria dar. Esta é a fé que move montanhas, tanto no primeiro caso, como no segundo.

Essas certezas interiores, quando são obra da graça do Espírito Santo, revelam-se tão fortes que não são passíveis de dúvida. Em outros campos da vida espiritual elas também se manifestam, como por exemplo naquele famoso episódio de São Mauro, discípulo de São Bento, que em certa ocasião caminhou sobre as águas por ordem do abade para salvar o menino Plácido que estava se afogando. Uma ação especial da graça, por meio de imponderáveis, lhe disse no interior da alma que ele devia seguir o caminho da obediência naquela circunstância. Foi tal a eloquência da voz interior, que não titubeou um instante, e inclusive operou um prodígio. Essa é a fé que move as montanhas.

Sentir os “imponderáveis” e ouvir as vozes interiores

É preciso estar atento a esse instinto interior que nos mostra o que a Providência quer nos conceder em concreto. Pois Deus tem caminhos muito diferentes para as almas. Santa Teresinha do Menino Jesus, por exemplo, tinha como propósito “nada pedir e nada recusar”. Ora, ela que tinha essa praxe, é a Santa que mais atendeu pedidos, cumprindo seu projeto de passar o Céu  derramando sobre a Terra uma chuva de rosas. Sua via espiritual era de nunca pedir nada, mas ela estimulava as pessoas a que pedissem.

Não estava na via de Santa Teresinha fazer o que Santa Escolástica fez. Esta soube, por revelação, que a morte de São Bento estava próxima. Certo dia em que o Abade a visitou, insistiu com ele  que não fosse embora mas permanecesse ainda algum tempo conversando. São Bento foi terminante e decidiu se retirar. Ela então rezou, e uma tempestade tremenda impediu que São Bento a deixasse.

Há muitas mansões na Casa do Pai Celeste. Compete à alma discernir sua própria via, e pedir as graças que Deus quer lhe conceder.

Mas é preciso considerar que há um certo lusco-fusco, ao qual Deus nos quer deixar sujeitos, e que torna possível um engano na interpretação dessa voz interior. Foi o que se deu com Santa Joana d’Arc. Por tudo quanto se diz da sua vida, parece que ela não imaginava morrer queimada, como término normal de sua carreira. É frisante, nesse sentido, em certa ocasião ela ter saltado da torre  onde estava presa, para tentar fugir, chegando mesmo a se machucar. Ela não compreendeu, mas resignou- se à vontade de Deus, o que é o mais importante.

Esses lusco-fuscos existem, e é preciso nos habituarmos a eles. Geometrizar a vida espiritual, ou nos enervarmos com ela, é agir contra o regime estabelecido por Deus.

Por outro lado, se é verdade que interiormente posso me enganar, como no caso de Santa Joana D’Arc, não quer isso dizer que não devo confiar no que me é dado conhecer interiormente sobre o   meu caminho. Meu diretor espiritual pode se equivocar em relação a mim, mas isso tampouco quer dizer que a direção espiritual não valha nada. Essa alternativa, infalibilidade ou zero, está evidentemente fora da linha da Providência.

A boa oração é sempre respondida

Esses princípios, quando aplicados à oração para obter bens materiais, ensinam-nos que é preciso ter confiança de que seremos atendidos quando há razões ponderáveis para julgar que o que  pedimos é bom e conforme à vontade da Providência.

E se fizermos nosso pedido a Deus, em maneira condicional— que é como deve ser — e Deus não nos atender, saibamos que nos dará qualquer outra coisa. Pois nossa oração nunca ficará sem ser atendida, mas nos trará algum benefício, que inclusive pode ser maior do que o  solicitado por nós.

Devemos imitar São Paulo que, quando pediu a Deus a libertação das tentações que sofria, o fez com a predisposição de aceitar a vontade de Deus de não atendê-lo e mantê-lo exposto à vexação para o bem de sua alma.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Bom gosto…

Embora se trate de um tema delicado e pouco passível de consenso, o bom gosto envolve, contudo, uma circunstância que eu diria indiscutível. Explico.

Quando consideramos as nações nas quais floresceram renomados sistemas artísticos, percebe-se que estes não foram elaborados por especialistas, senão num sentido muito particular da palavra. Podemos comprová-lo nas expressões da cultura católica e da civilização cristã, como também nas de outras civilizações que enriqueceram, com seus belos contributos, o precioso acervo artístico da Cristandade.

Por exemplo, é inegável o valor de certas obras de arte da China e o bom gosto que as modelou, conferindo-lhes tal formosura que são dignas de figurar, no Ocidente, em qualquer palácio real, imperial ou mesmo pontifício. Assim, em diversos lugares nos é dado admirar jarros, tapetes, marfins, gravuras, leques e, de modo todo particular, porcelanas engendrados pelo talento chinês.

Quanto a estas últimas, narram as crônicas que teriam sido descobertas pelos jesuítas na China: maravilharam-se com o produto e desejaram trazê-lo para a cultura ocidental. Não lograram, porém, que os artistas chineses lhes revelassem a fórmula e os procedimentos para elaborá-lo.

Mas, a conhecida sagacidade dos filhos de Santo Inácio não se desarmou diante daquela recusa. Zelosos apóstolos e astutos observadores, ao exercerem seus trabalhos de missionários junto ao povo, notaram que outras pessoas, mais humildes, também confeccionavam porcelana. Com finura e tato, eles acabaram por obter da gente miúda o segredo dessa arte tão esplendorosa. Na primeira oportunidade, enviaram à Europa a fórmula e toda espécie de objetos chineses, para que os ocidentais tivessem ideia das possibilidades de cultura e de civilização que aquela China lhes oferecia.

Não tardou muito, e os europeus começaram a fabricar sua própria porcelana. Surgiram as magníficas peças francesas, inglesas, alemãs e outras, de extraordinária categoria, que logo passaram a competir com a preferência pelos objetos à base de metais preciosos. As baixelas de ouro e de prata, até então soberanas, viram-se ombreadas pelos delicados aparelhos de jantar, pintados em matizes róseos e níveos, bordejados de azuis e vermelhos intensos, ornados de pinturas com paisagens bucólicas, com buquês e guirlandas de extremo bom gosto. Bom gosto…

Plinio Corrêa de Oliveira

Imagem da eternidade

Imaginem um pássaro que, de cem em cem anos, passasse uma vez pelo Pão de Açúcar e roçasse com o bico aquela montanha, de maneira a retirar um pouquinho de farelo. Quantos séculos levaria esse pássaro para destruir o Pão de Açúcar?

Pois bem, quando o Pão de Açúcar estivesse desfeito, a eternidade ainda estava no começo, porque não tem fim…

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 15/10/1989)

Imagem da eternidade 

Oração: Ação de graças pelo sofrimento recebido

Ó minha Mãe, eu Vos agradeço por me terdes dado esta ocasião de sofrer por Vós, e Vos digo: quero esta dor! Eu a desejo porque Vós assim o quereis; e a desejo durante o tempo que Vós quiserdes! Ajudai-me na minha debilidade para que eu possa carregar esta cruz como Vós entenderdes. Eu a osculo como Nosso Senhor a osculou no momento de colocá-la sobre os ombros, porque desejo tudo sofrer.

Eu ficaria desolado se minha vida fosse sem cruz. A vida sem cruz é uma vida sem Vós e, portanto, aceito a cruz de todo o coração. Tenho a alegria de receber este sofrimento em união convosco e para Vos agradar.

Dai-me, ó Mãe, o amor e o senso da cruz!

Plinio Corrêa de Oliveira (Composta em 5/12/1967)

Venerável nascente da Cristandade

Muito do que se tem admirado da Civilização Cristã ao longo dos séculos, e se admirará até o fim dos tempos, pode-se dizer que nasceu de uma gruta. Aberta no meio de montes ásperos e  íngremes, ela abrigou o jovem Bento de Núrsia, que ali se refugiara para encetar sua vida contemplativa. Nela, ele forjou sua magnífica e santa alma de patriarca.

E dela se irradiou a Ordem Beneditina, da qual floresceu o movimento cluniacense, do qual, por sua vez, brotou a sociedade católica medieval. Uma gruta, portanto, imensamente venerável.

Trata-se de Subiaco, a “tintura mãe”, a fonte de onde jorrou a água da cristandade européia ocidental, de cujo desenvolvimento nasceriam a América e todas as expansões católicas pelo mundo.

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As montanhas se sucedem e se encontram em vértices acentuados. Nenhuma delas cai de modo bonito. Nenhuma desenha as flexões e de flexões suaves dos montes da Baía da Guanabara. São  elevações agrestes, justapostas pela mão do Criador, não se conhecem, não são amigas umas das outras, e mais parecem dilaceradas diante do firmamento. Para que servem?

Para o vazio, para a aridez, para o isolamento dos homens chamados a viver na solidão. Ali, o religioso se sente imerso na terra abandonada e rude, pois para ele a existência neste mundo nada reserva.

O seu viver é olhar para o Céu: “Pater Noster qui es in coelis, sanctificetur nomen tuum”…

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A gruta… É muito bonito, poético até, dizer que São Bento encerrou-se ainda moço numa gruta. Porém, o peregrino que visita Subiaco surpreende-se ao contemplar aquelas pedras ríspidas — em todo o sentido da palavra ríspida — com as quais o jovem ermitão teve de conviver. Pouca ou nenhuma beleza as distingue. Todas parecem uma amálgama constituída em épocas pré-históricas, quando ainda escorriam à maneira de cera de vela, acumulando-se na desordem, e na desordem se petrificando, depois de calores e frios espantosos. Tudo é desconforto, tudo é solidão, tudo é Céu! Devemos imaginar São Bento vivendo aí, lendo, meditando, rezando, talvez sem se dar conta de que, naquele fundo de rocha, a Cristandade européia estava nascendo.

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As construções, por sua vez, erguidas com certa irregularidade, apresentam no seu conjunto uma beleza indefinível, ressaltada pelo fato de se confundirem com penhascos estupendos, que têm algo de profético, pois neles parece encerrar-se todo o futuro da ordem beneditina.

Arcarias românicas servem de arrimo para os grandes edifícios do mosteiro. Arcos que transmitem uma idéia de lógica, de força, de calma, que têm seu encanto próprio, e mesmo uma certa majestade. Refletem eles algo da retidão, da despretensão e da robustez da alma do magnífico Patriarca.

A um canto, o pequeno campanário, singelo e modesto, mas suficiente para abençoar aquelas solidões, na aurora e no pôr do sol, com o timbre do seu bronze a saudar a Virgem Santíssima nos  toques do Angelus.

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Dir-se-ia que o ambiente próprio para ser o berço da cristandade medieval deveria ser mesmo essa solidão predestinada, na qual o espírito humano se compraz em imaginar que a vegetação, as grandes árvores, os penhascos e as ondulações do terreno eram impregnadas de graças vaticinadoras do que adviria para a Europa nos séculos medievos.

E ainda que São Bento não soubesse nem previsse tudo o que estava por nascer, ele tinha entretanto seus anseios e ideais de uma civilização cristã. E todas aquelas montanhas, pedras e penhascos repercutiam os seus ideais; e os ventos, quando ali sopravam, pareciam cantar os seus anseios.

Resultado, quando hoje se visita Subiaco, procura-se interrogar aqueles montes e quelas grutas que ouviram os ecos dos passos de São Bento, os soluços e os prantos dele durante as crises e  tentações, o sussurro de suas preces e os seus cânticos de alegria. Procura-se, enfim, sentir de algum modo as ressonâncias de uma história que lá se passou, de um futuro que lá se engendrou, e perceber os reboares de bênçãos e graças que ali reinaram, que ali ainda palpitam.

Em Subiaco, tem-se a impressão de que se toca o Céu com as mãos. Mais ainda. É o Céu que baixa à Terra e inunda os homens com sua bondade, sua sacralidade e sua grandeza.

 

“Passou pela vida praticando o bem”

Ao discursar como paraninfo do Colégio Arquidiocesano, em 1936, Dr. Plinio exalta o ideal do catolicismo autêntico que, diante do mundo posto na alternativa de decidir por Cristo ou contra Ele, não transige nem se intimida, proclamando sua Fé com enérgica e inquebrantável tenacidade.

 

Permiti que esta oração, que nasceu do âmago de meu coração e contém o mais sincero de meus sentimentos, seja dirigida, em nome da gloriosa mocidade católica, que tenho a honra de representar nesta solenidade, aos meus jovens amigos, os bacharelandos do Colégio Arquidiocesano, de 1936 . (….)

As gerações que precederam a esta, que hoje ingressa na vida, então divididas em campos antagônicos. Uma imensa divergência intelectual separa seus expoentes mais representativos. Do alto das cátedras universitárias e das tribunas parlamentares, através das colunas dos jornais ou das páginas dos livros, pela palavra ampliada ao microfone ou abafada no segredo das confabulações políticas, procuram os professores, os escritores e os estadistas do presente traçar os rumos por onde querem guiar o Brasil.

Não se iludam, porém, os pregadores de ideologias boas ou más, construtoras ou demolidoras: sua doutrinação só será fecunda, na medida em que ela penetrar no espírito e no coração das gerações novas. A estas é que pertence o futuro. Para onde ela se orientar, orientar‑se‑á o Brasil de amanhã. Os pregadores de doutrinas não são, hoje em dia, senão meros advogados de causas santas ou de causas fraudulentas. À nova geração, é que incumbe a augusta função de juiz. (…)

A crise da adolescência

Pouco têm escrito sobre [a crise da adolescência] os sociólogos e os historiadores. Não importa. Tratemos de analisar esta crise, de lhe apontar as origens, de lhe investigar os efeitos, e chegaremos à conclusão de que nela se encontra uma das causas mais ativas de grande catástrofe do mundo contemporâneo.

A crise da adolescência é, em via de regra, o fato culminante daquilo a que se poderia chamar a história interior de toda a humanidade, nos últimos cem anos. É na diferença das atitudes tomadas por nós e nossos avós perante esta crise, que se encontra, em grande parte, o segredo da radical oposição entre o século XIX e o século XX, na filosofia, na sociologia, na política, na literatura e nas artes.

Nos cento e poucos anos que medeiam entre a queda de Napoleão e os dias que vivemos, a sociedade tem educado a infância em princípios que, geralmente, são cristãos.

Faça‑se a estatística do número de adolescentes que, anualmente concluem o curso em colégios católicos, e ter‑se‑á uma ideia da extensão que a influência cristã tem na formação da infância contemporânea. Por mais que, em nossos dias, os fatores do ambiente contrariem esta influência, ela ainda é considerável. E muito mais considerável ela foi nas gerações anteriores tão céticas quanto a nossa, mas mais respeitadoras — por espírito de tradição, se quiserem — da moral cristã.

No século passado, como neste século ainda, o lar e o colégio, os dois principais ambientes em que transcorre a infância, foram guiados, em via de regra, por um espírito que, ora mais ora menos intensamente, apresenta matizes cristãos.

No colégio católico, a doce figura do Cristo irradia sobre os alunos o esplendor de sua harmonia moral. Por mais que essa irradiação seja inconscientemente recebida como muitas vezes ocorre, ela não deixa de ser real. O Cristo que se contorce em sofrimentos e em súplicas pela humanidade, no Crucifixo do refeitório, o Cristo que, no altar da Capela, aponta aos alunos o seu peito entreaberto, no qual pulsa um coração abrasado de amor, o Cristo cuja doçura e cuja imensa misericórdia são ensinadas na aula de Religião, exerce sobre os alunos uma impressão profunda, a que não se furtaram nem sequer os campeões da impiedade do século XIX.

No lar, o Cristo também figura como um protetor benigno e supremo dos interesses domésticos. É à sua bondade, que se deve toda a felicidade da família. É à sua clemência, que a família recorre nos momentos amargos da provação. É à sombra de sua lei, que florescem castamente as afeições domésticas, é d’Ele, que emana o ambiente de pureza sem o qual a vida da família não é possível.

O Cristianismo floresce no ambiente doméstico, não apenas pela eficácia do culto que aí se pratica, como na carícia casta de mãe, da irmã, na austeridade do pai, e na inocência da vida dos filhos.
No século XIX como no século XX — aliás, no século XX menos do que no século XIX — é esta a regra geral.

O jovem entra num mundo que prega uma lei oposta

Mas, com a adolescência, rompem‑se os véus que ocultavam à infância o verdadeiro aspecto da vida moderna. E o jovem, afeito a um ambiente de Fé e de pureza, se vê forçado a ingressar inesperadamente em um mundo que prega uma lei diametralmente oposta à que ele aprendeu a respeitar. (…)
Ao adolescente, educado no amor da Fé e da pureza, a sociedade dirige, no limiar da vida, uma frase que é a antítese da do famoso bispo de Reims: “curva a cabeça, cristão, queima o que adoraste e adora o que queimaste.”

Se o adolescente tiver o heroísmo de resistir, o mundo o apupará como um covarde. Se tiver a covardia de ceder, aplaudi‑lo‑á como um herói.

Esboçando em largos traços o panorama da crise da adolescência na sociedade semi‑cristã dos últimos cem anos, não tive a pretensão de enquadrar, nesta descrição, com todos os seus detalhes particulares, a imensidade de aspectos diversos que, segundo as circunstâncias de tempo e lugar, essa crise pode assumir.

A necessidade de optar por Cristo ou contra ele

Em todos estes aspectos, no meio de tantas variantes, só quis destacar um traço fundamental, que se conserva invariável. Hoje como ontem — e, repito‑o, ontem muito mais do que hoje — a influência da Religião se exerce sobre a infância, de modo todo particular. Essa influência, que a sociedade moderna tolera por um resto de Fé ou de tradição, entra em choque com as exigências do ambiente que rodeia a mocidade. Deste choque, nasce para os adolescentes a necessidade de optar por Cristo ou contra Ele. Mais consciente em uns, menos consciente em outros, esta necessidade se impõe a todos. E é nas lutas íntimas que esta opção provoca, que consiste, em síntese, a crise da adolescência.

Nesta crise, como procedeu o homem do século XIX? Colocado na contingência de optar pelo Cristo ou contra Ele, que partido tomou?

Um e outro. Ou melhor, nem um nem outro. A atitude do século XIX, na crise da adolescência, foi sobretudo, uma atitude de vacilação. Desta vacilação nasceu a grande característica do século, que foi a incoerência.

É peculiar ao Catolicismo uma admirável harmonia entre sua doutrina religiosa, seus princípios morais e suas diretrizes sociais. Não é possível negar a primeira, sem atacar os fundamentos dos outros. Como não é possível rejeitar a esta, sem se colocar em oposição flagrante com aquela. O monolito, desde que seja fragmentado, deixa de ser monolito. O Catolicismo, desde que seja privado de uma de suas partes deixa de ser Catolicismo.

Não percebeu isto o século XIX. E exatamente por isto, na imensa vacilação que foi a causa de sua incoerência fundamental, o século XIX raras vezes chegou a repudiar completamente o Cristo pela boca de seus principais pensadores.(…) E não foi diversa a atitude da generalidade dos homens. A maior parte deles admirava a moral cristã, exigindo dentro do lar a sua rigorosa observância. O que não era obstáculo a que negasse os princípios religiosos em que se estribava esta moral, e se julgasse livre de a violar na vida extraconjugal. A família continuava a viver cristãmente, ainda mesmo depois de perdida a Fé. Como dizia Renan, a sociedade do seu tempo conservava vestígios do Cristianismo, sem conservar a Fé, como um vaso que tem por algum tempo o perfume das flores que dele retiraram.

Outros, faziam o contrário. Conservavam a Fé mas desprezavam todas as conseqüências morais que dela decorrem. Católicos na igreja e no lar, eram pagãos na política, na vida profissional e, sobretudo, na vida extraconjugal.

Espíritos fragmentados, admirando verdades a que não obedeciam, ou obedecendo a princípios que não aceitavam, os homens do século XIX tinham dentro de si o imenso mal‑estar que a prosperidade material apenas conseguiu anestesiar, e que tumultua necessariamente no coração de todo homem que não estabeleceu dentro de si o reinado da coerência. (…)

Repúdio à incoerência das gerações passadas

O século XIX admirava a “fé do carvoeiro”, na sua simplicidade e na sua pureza. Mas ridicularizava como preconceito inconsciente a Fé do cientista. Admitia a Fé nas crianças. Mas condenava‑a nos jovens e nos homens adultos. Quando muito, tolerava‑a na velhice. Exigia a pureza para a mulher. E exigia a impureza para o homem. Exigia a disciplina para o operário. Mas aplaudia o espírito revolucionário do pensador.

Evidentemente, contradições tão profundas deviam gerar crises íntimas, de grande intensidade. Em geral, foi em crises assim, que se formaram todos os agitadores que, no século XIX, atearam na Europa o incêndio dos ideais revolucionários. E foi também em crises assim, que se formaram quase todos os grandes convertidos ao Catolicismo, que proclamaram bem alto, contra o mundo e o século em que viviam, a sua Fé na Igreja de Deus.

Os acontecimentos dramáticos de que o século XX tem sido ator e testemunha, só concorreram para precipitar o desenlace desta crise.

Cada vez mais, a atitude de incoerência das gerações passadas vai sendo repudiada pelas gerações presentes. A bem dizer, nas gerações que despontam, só se deixam governar pela moral fragmentária do século passado os insuficientes, os displicentes, os indiferentes. (….)

Pregadores infatigáveis do grande ideal

As falanges marianas são, no Brasil, um exército quase inumerável de moços que, em um combate de todas as horas e de todos os minutos, pugnam pelo Cristo e pela civilização, contra o mundo contemporâneo que rola pelo abismo da anarquia, impelido pela força de seus próprios vícios. (…)

Pela palavra, pelo exemplo, pelo estudo, o Congregado Mariano é um pregador infatigável do grande ideal pelo qual vive. Indiferente à admiração de alguns como ao desprezo de muitos, ele segue o seu caminho invariavelmente reto, cumprindo o dever, amando o próximo, amando a Pátria, servindo a todos os semelhantes, por amor de Deus. De sorte que, na sepultura de cada Congregado Mariano, a Pátria possa escrever um dia, como epitáfio, aquelas palavras admiráveis que o Apóstolo disse do próprio Cristo Jesus (At 10, 38): “Pertransivit benefaciendo” (Passou pela vida praticando o bem).

Mas o amor ao bem tem como corolário necessário o ódio ao mal. O Congregado Mariano é um inimigo irredutível do mal. Onde muitos se calam, onde tantos se acovardam, onde quase todos silenciam, a voz do Congregado Mariano se ergue altiva e denodada, para estigmatizar o mal, para desmascarar seus partidários, para contrariar os ardis dos inimigos da civilização. Com a mesma indiferença com que enfrenta hoje os sarcasmos e as perseguições, enfrentará amanhã os canhões e as baionetas. Não há barreira que seu idealismo não vença. Não há dificuldade que sua abnegação não supere. Não há obstáculo que prevaleça contra a sua tenacidade enérgica e invencível.

Plinio Corrêa de Oliveira (Excertos do discurso publicado em “Echos”, nº 29, de 22/11/1936)

Prêmio demasiadamente grande

Segundo uma bela e tão razoável tradição, no momento em que a Santíssima Virgem, meditando na figura do Messias profetizado nas Sagradas Escrituras, completou a imagem que Ela deveria  formar a respeito d’Ele, o Arcanjo São Gabriel Lhe apareceu.

Assim, a primeira tarefa de Nossa Senhora foi conceber em seu espírito como seria o Redentor. Que santidade deveria ter a Virgem Maria para, com êxito, imaginar a fisionomia, o olhar, o timbre de voz, os gestos, o caminhar, o repouso do Filho de Deus!

E que alma era preciso ter para, depois disso, receber de Deus esta sentença: “Dedicaste a tua mente a desvendar este mistério, fizeste-o com tanto amor e tanto acerto que Eu Te digo: “Aquele que excogitaste, Tu gerarás!”

Prêmio maravilhoso, como nunca houve nem haverá igual na História! Ele disse de Si mesmo àqueles que fossem fiéis: “Serei, Eu mesmo, a vossa recompensa demasiadamente grande” (cf. Gn 15,  1). Nosso Senhor Jesus Cristo é tão perfeito que até para Nossa Senhora Ele foi o prêmio demasiadamente grande.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/2/1985)

Aspecto democrático em Nosso Senhor Jesus Cristo

Nosso Senhor é Rei de infinita grandeza, seu modo de ser é aristocrático. E, estando presente nos sacrários das igrejinhas espalhadas por toda a Terra, onde atende e conversa com qualquer pessoa do povo, Ele manifesta seu aspecto democrático.

O Magistério da Igreja ensina que das três formas de governo — monarquia, aristocracia e democracia — nenhuma é contrária à justiça e, portanto, à Lei de Deus. Assim, um povo pode optar por qualquer uma delas, conforme entenda, porque todas são lícitas.

A Revolução Francesa quis impor a república em toda a Europa

Foi o que se praticou na Idade Média, em que havia tanto monarquias como cidades aristocráticas sem chefe monárquico — por  exemplo, a República Sereníssima de Veneza, cujo chefe, o Doge, era temporário, eleito pela aristocracia inscrita no livro de ouro de Veneza. Ele mesmo devia ser aristocrata, e substituído ao cabo de dez anos de mandato.

Havia também várias repúblicas democráticas na Idade Média, principalmente as cidades livres na Alemanha, Suíça e Itália, nas quais os plebeus burgueses, trabalhadores manuais elegiam o  governo.

Nunca se sustentou, na Idade Média, a ideia de que uma destas três formas de governo fosse injusta e incompatível com as outras. Por isso, não passava pela mente de ninguém, naquela época, fazer uma cruzada de um país contra outro para impor determinada forma de governo. Pelo contrário, conviviam na maior boa vontade, na maior bonomia, e cada um se organizava como queria, segundo as peculiaridades, as circunstâncias, o transcurso dos acontecimentos históricos e mil outros fatores.

Esta é a soberania pela qual cada um escolhe para si próprio o governo que entende.

Com a Revolução Francesa começaram a aparecer as guerras para impor o regime republicano à Europa inteira. A partir desse momento, estabeleceu-se uma luta das aristocracias e monarquias contra as repúblicas e vice-versa. Mas é porque o movimento republicano passou a ser animado pela Revolução, coisa que não acontecia na Idade Média.

Ora, a Revolução tem uma tese: a monarquia e a aristocracia são formas de governo opostas à dignidade humana e, como tais, contrárias ao Evangelho, à lei de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Portanto, é necessário eliminar, por meio de lutas libertadoras, esses regimes dos povos oprimidos. Alguns inábeis defensores das monarquias e das aristocracias, vendo o caráter intrinsecamente mau do movimento republicano do século XIX, deduziram daí que a república era intrinsecamente má, sem se lembrarem dos precedentes anteriores, nos quais havia tantas cidades livres
republicanas em que a investidura do chefe da república no cargo era feita na igreja, em cerimônia religiosa, assim como a investidura do monarca e do príncipe.

Leão XIII condenou a tese de que a democracia é uma forma de governo injusta e desenvolveu o que estou dizendo aqui, naturalmente com o brilho e com a autoridade dele.

O movimento modernista — heresia secreta que lavrou no tempo de São Pio X, o qual a esmagou com a Encíclica “Pascendi Dominici gregis”, mas renasceu no tempo de Bento XV sob outras formas — sustentava o contrário, isto é, que só a democracia é a forma de governo legítima.

São Pio X condenou severamente essa tese, de maneira que devemos pensar a respeito desse assunto o que o Magistério da Igreja nos indica.

Devemos admirar e tender para o mais perfeito

Entretanto, submetendo a ulterior juízo da Igreja, acrescento a este pensamento o seguinte: São Tomás de Aquino diz que a mais perfeita das formas de governo é a monarquia, sobretudo quando ordenada, composta com a aristocracia e a democracia.

Quer dizer, devem coexistir certos elementos de monarquia, de aristocracia e de democracia dentro das formas de governo. De que modo? “L’Histoire par l’image” (CC 3.0)

O Portugal do Ancien Régime(1), até o século XVIII, por exemplo, possuía isso muito bem distribuído, porque para a direção do reino havia o rei; para a direção da parte rural do país, a nobreza, ainda com os seus castelos, remanescentes vestígios dos antigos feudos; e havia, nas cidades habitualmente habitadas pela burguesia, um regime de foros, que eram liberdades da cidade em relação ao rei e ao senhor feudal, pelas quais se conferia à urbe o direito de governar a si mesma, os seus assuntos internos, desde que não contundisse com as leis do rei, nem com as prescrições do senhor feudal.

Essas liberdades forais eram muito apreciadas, e os estudiosos as têm analisado e considerado muito sábias, variando de cidade para cidade, conforme as circunstâncias de cada uma, a evolução histórica, etc.

Não era, portanto, uma espécie de “saco de gatos” de três formas de governo opostas; tampouco  o sistema inglês: Câmara dos Lordes aqui, Câmara dos Comuns ali, vamos ver para que lado a balança pende… Não era isso. Cada um tinha a sua esfera.

Aliás, um francês definiu a província, a região, assim: esfera de influência de uma grande família. Acho a definição magnífica. No regime misto a que me refiro, o governo do reino é do rei; a  direção da província, da região pertence ao nobre; e a do município, ao povo que nele habita. É tão natural, tão claro, e constitui uma das modalidades possíveis de combinação dessas formas de governo.

Não obstante, parece-me que, sendo a monarquia a forma de governo mais perfeita, embora o povo que não viva em regime monárquico tenha esse direito — e até, se a monarquia não se ajustar bem às circunstâncias dele, ele não deve adotá-la —, é natural que ele tenha uma simpatia e uma admiração prevalente por aqueles povos onde a forma de governo mais perfeita possa se executar e desenvolver as suas excelências.

A humanidade deve, criteriosa e sabiamente, tender quanto possível para o mais perfeito e não pode considerar um título de orgulho estar no regime menos perfeito, como seria o meramente aristocrático ou democrático.

Essas considerações, acrescentadas com a devida veneração aos ensinamentos de Leão XIII e São Pio X, não me parecem contundir em nada com o pensamento deles.

As imagens de Nosso Senhor, elaboradas ao longo dos séculos, e o Santo Sudário

Então nasceria uma pergunta até muito bonita. Houve quem me indagasse a respeito dos aspectos aristocráticos e monárquicos do Sagrado Coração de Jesus. Mas como seria também a  democracia no Sagrado Coração de Jesus? Não vamos ter medo da pergunta.

Haveria dois ângulos pelos quais poderíamos abordar o tema: um seria tomar Nosso Senhor Jesus Cristo como Ele é, e considerar o que de monárquico, de aristocrático e de democrático se irradia n’Ele. Outro ângulo seria o seguinte: tomado, em tese, o ensinamento d’Ele, encontrarmos o fundamento para dizer que em tal passagem ou circunstância Ele manifestou-Se mais favorável a esta ou àquela forma de governo.

De momento, parece-me mais conveniente a primeira fórmula. Nas figuras de Nosso Senhor que eu tenho visto, em fotografias ou diretamente, nas catacumbas de Roma, há pinturas  representando-O, por exemplo, como o Bom Pastor ou em outros de seus atributos, mas não me lembro de pinturas que representem sua Sagrada Face. Não se sabe de alguém que, tendo  conhecido pessoalmente Nosso Senhor, O tenha retratado em imagens. Sou propenso a admitir que se conheciam  suas feições por tradição oral.

Tendo caído o Império Romano do Ocidente, começaram as construções da alta Idade Média, e surgiram as imagens de Nosso Senhor Jesus Cristo cujas feições seriam comprovadas, séculos mais tarde, com a descoberta do Santo Sudário.

Dir-se-ia ser muito explicável que cada povo modelasse o Divino Mestre segundo a imaginação, produto da própria cultura. Entretanto, as figuras elaboradas ao longo de séculos indicam, com  maior ou menor precisão, mas indiscutivelmente, que a Pessoa do Santo Sudário é a mesma representada pelas imagens comuns.

Como se deu este salto por cima dos séculos e se “adivinhou” a figura Sagrada de Nosso Senhor Jesus Cristo? Nunca tive tempo de estudar a fundo isso, mas li o suficiente para fazer uma  conjectura séria, que é a seguinte: Aos poucos, com o auxílio da graça, a piedade dos fiéis foi compondo essa figura.

Pode ter acontecido também que algum Santo ou Santa tenha visto, em uma  revelação privada, e tenha até pintado a figura de Nosso Senhor. Essa imagem agradou enormemente ao senso geral dos fiéis e, por causa disso, foi se espalhando de país em país e sendo aceita por todo o mundo como indiscutível, e assim se propagou por toda a Igreja.

Ora, isso é fruto da graça, uma espécie de revelação privada da verdade, que Nosso Senhor teria dado muito belamente à Igreja, à medida que ela ia se distanciando da vida terrena d’Ele, levada pelo curso da História. Com o passar do tempo, fomos nos afastando dos dias em que Ele esteve aqui presente, de um modo visível, sensível. Para consolar a nossa orfandade, Ele nos deixou, antes de tudo, a Sagrada Eucaristia, mas também o Sagrado Rosto d’Ele, por essas formas de produção, evolução e fixação do senso dos fiéis.

Vemos, por aí, como há mistérios lindíssimos que Nosso Senhor e Nossa Senhora guardam, e que só as posteridades depois vão conhecer.

Maria Santíssima provavelmente conhecia a utilização que a Providência faria do Santo Sudário, mas não creio que os Apóstolos a conhecessem, nem mesmo Santa Maria Madalena; muito menos
Nicodemos ou José de Arimateia.

Entretanto, o Sudário com o qual Jesus foi sepultado seria, dali a dois mil anos, a prova de que Ele tinha estado naquele pano. Assim, na sepultura, morto, Ele estava envolto no documento que comprovaria a sua vinda e o seu futuro.

“Vox populi, vox Dei”

Este aspecto — a meu ver, lindíssimo — dá-nos muito a ideia do caráter de participação popular na vida da Igreja. Não houve um grande homem, não houve ninguém que aparecesse e dissesse: “Ele foi assim”, pintou-O e as multidões caíram de joelhos. Alguém terá pintado, mas o que de fato assegurou a expansão foi o consenso geral, uma espécie de sufrágio universal.

Há uma expressão que diz “vox populi”, vox Dei: a voz do povo de Deus é a voz de Deus. É muito bonito, muito ordenado, muito direito. Dou outro exemplo.

No século XIX a “vox populi” se pôs a cantar o Stille Nacht, e o mundo inteiro a adotou como a música de Natal por excelência, por um consenso universal. Por que se canta o Stille Nacht aqui, na Nigéria, na Libéria e em quantos lugares há na Terra? A história dessa canção está ao alcance de todo mundo; sabe-se qual foi a aldeia alemã em que ela nasceu, o nome do compositor; há até um museuzinho organizado na casa dele. Entretanto, o que fez a celebridade dessa música foi o consenso, expresso por ela, a respeito do que todos sentiam por ocasião do Natal.

Não houve uma bula do Papa mandando cantar o Stille Nacht, nem qualquer outro decreto. Nem se trata de um canto litúrgico. Entretanto, não se compreende uma festa de Natal onde, antes ou depois da celebração litúrgica, não se cante o Stille Nacht.

Vê-se que a mão da Providência não é alheia a isso; muito pelo contrário, graças a Ela chegou-se a esse ponto maravilhoso de consenso popular geral. Mas esta é uma questão tão fina, tão sutil, que seria impossível explicá-la à maior parte das pessoas que, ouvindo o Stille Nacht, puseram- se a cantar também.

O senso é uma coisa diferente do raciocínio quadrado, e um povo pode ter um grande senso até não tendo grande instrução. Essa é, por exemplo, uma forma magnífica de colaboração do fator popular na Igreja.

Na própria infalibilidade da Santa Igreja há certa participação daquilo que eu chamaria de fator democrático. É admitido pela Teologia que Deus não pode deixar cair em erro todos os católicos em todos os lugares. E quando a Igreja inteira, com sua Hierarquia e os fiéis, aceita durante muito tempo determinada doutrina, aquilo é verdade infalível, ainda que não tenha sido explicitamente definida pelo Magistério eclesiástico.

Para que a colaboração popular seja proveitosa e possa dar o seu melhor fruto é preciso saber interrogar o povo e deixá-lo exprimir-se, permitindo que os costumes — que são a boa voz do povo — vão se constituindo.

Uma pessoa que, vendo um vale qualquer, pensasse: “Esse vale e a altura desses montes são semelhantes aos do Roncal. Que tal fazer aqui uns quinze municípios independentes?” Seria uma bobagem. Essas coisas nascem e não têm cópia no mundo inteiro. É a originalidade da coisa popular que não é feita para ser copiada, nascida do profundo dos costumes, do dia a dia, sendo em cada lugar de um jeito.

A meu ver, a voz do povo não se faz ouvir simplesmente por meio de propaganda pelo rádio e pela televisão, convocando depois a população para dar opinião sobre problemas com os quais certas parcelas do povo não têm nada a ver.

Por exemplo, o Governo do Império ou da República no Brasil precisa dispor medidas sobre a navegação fluvial no Amazonas. Ora, o que o eleitor gaúcho, na outra ponta do País, vai entender desse assunto? Entretanto, quando chegar a hora de votar uma lei sobre a navegação no Amazonas, a bancada do Rio Grande do Sul, como todas as outras, vai ter que opinar.

O que o representante dos santistas ou dos cariocas, nascidos no litoral, pode decidir a respeito de problemas do Mato Grosso, Goiás, Minas Gerais, onde não existe mar? Hoje as coisas entre nós estão organizadas assim, todos os problemas nacionais devem ser objeto de decisão da parte do País inteiro.

Entretanto, ninguém tem tempo de tomar nota de tudo isso. O regionalismo sadio, deixando às várias partes do povo a liberdade de opinar de um jeito ou de outro, tem muitos elementos para a solução dos problemas nacionais. Nesse sentido, eu seria inimigo de quem, no Brasil, fosse separatista. Creio que o Brasil poderia ser mais largo como federação.

Os Estados Unidos têm federação muito mais ampla do que o Brasil e, mesmo assim, parece-me que poderiam ser mais descentralizados ainda, porque aí se ouve a “vox populi”.

Tirar o colete de cem mil leis

Alguém dirá: “Mas o que o senhor pensa do sistema representativo moderno, com votos, câmaras, etc.?” Penso que ele, habitualmente, é menos mau do que as ditaduras. Porém, a meu ver, nem ele nem as ditaduras valem nada. E se me perguntassem qual é a opção entre uma coisa e outra, eu diria: Nada! Eu não tenho nada a escolher nessa bandeja.

A minha sugestão é muito simples: tirar o mundo inteiro de dentro desse colete de cem mil leis em que as pessoas se embaraçam, e deixar a liberdade respirar e organizar a si mesma, sob certo controle, certa vigilância, principalmente num ponto, isto é, que a Lei de Deus seja observada.

Porque se a Lei divina for conhecida, amada e praticada, tudo se arranja; se não for, não há o que conserte nada. Podem assar, cozinhar e fritar como quiserem, sai uma porcaria, seja monarquia, aristocracia ou democracia.

Tocamos, então, no ponto final: Nosso Senhor Jesus Cristo, visto sob seu aspecto democrático. O que quer dizer isto? Considerado enquanto Rei de infinita grandeza, de majestade insondável e de uma bondade tal que Ele mora realmente presente no pequeno sacrário de cada igrejinha no vale do Roncal e de todos os outros “Roncais” que possa haver espalhados pelo mundo, bem como em qualquer pequena aldeia existente nos Andes ou no centro montanhoso do Brasil — enfim, onde for—, ali, pela sua presença eucarística, Nosso Senhor Jesus Cristo fala ao fiel que se ajoelha. É um dom que não tem qualificativo, acima de toda dádiva, uma beleza, uma maravilha!

Pela sua Igreja, Ele ensina a doutrina, alimenta e salva as almas, tornando- as assim bastante ordenadas para que elas constituam, naturalmente, um concerto de grandes e pequenos, como os instrumentos diversos de uma orquestra quando tocam o Stille Nacht. Assim também, todos juntos vão contribuindo com a sua própria opinião para formar o consenso geral. Donde saem as instituições originais, os modos de ser, as peculiaridades de cada lugar, sem que um país se sinta obrigado a copiar nenhum outro.

Deixem vir de baixo para cima o consenso geral, então se estabelecerão as leis e os costumes que duram séculos. O Sagrado Coração de Jesus é a fonte de tudo isso, é a sanidade do povo garantida pela santidade da ação divina d’Ele sobre cada homem”.

1) Ancien Régime

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/12/1985)

O "Stabat Mater" verdadeira joia de fé e coerência

A presença da Mãe Dolorosa junto à Cruz inspirou um dos mais eloquentes hinos pelo qual nos é dado exaltar o sacrifício co-redentor de Maria Santíssima, ao mesmo tempo que nos incita à compunção e ao arrependimento por nossos pecados. Conforme podemos constatar nas palavras transcritas a seguir, muito o apreciava Dr. Plinio, tomando-o como um misto de singela poesia e comovente oração.

 

Cântico muito apropriado para alimentar nossa piedade nos dias da Semana Santa, o “Stabat Mater” mereceria um comentário tão extenso quanto grande é sua beleza e unção. Porém, não sendo possível nos estendermos como desejaríamos, analisarei algumas passagens, baseando-me numa tradução a qual, infelizmente, não possui o mesmo sabor do texto original em latim.

A situação mais trágica de toda a História

Estava a Mãe dolorosa, ao pé da Cruz, lacrimosa, e o Filho pendente dela.

Dura espada lhe rasgava a alma pura, com dor, tristeza e gemidos.

Após a apresentação desse quadro, seguem-se algumas orações: Eia Mãe fonte de amores, fazei que essas fortes dores eu sinta e convosco chore.

Fazei que a alma se me inflame, para que a Cristo Deus só ame e só busque o seu agrado.

Santa Mãe, isso vos peço, fique o peito bem impresso das chagas do Crucificado.

Fazei-me, enquanto viver, com meu Jesus condoer, convosco chorar deveras.

A cena aqui descrita, de Nosso Senhor pendente da Cruz e Nossa Senhora em pé (pois este é o significado de “stare”, em latim), chorando, é a mais patética de toda a história do mundo.

Nunca houve situação mais trágica do que essa, nem nada que se lhe comparasse. Diante desse quadro que deveria comover todos os homens, adquire especial relevo aquelas várias preces.

Caráter sagrado das relações mãe-filho

Para compreendermos o inteiro alcance desse cântico, convém considerarmos a relação Filho-Mãe.

No alto do Calvário se encontra Nosso Senhor, na força de sua idade, pregado na Cruz, exposto a um tormento indizivelmente agudo, com o Corpo todo chagado devido aos maus tratos anteriores, a coroa de espinhos ferindo-Lhe a cabeça, prestes a exalar sua alma. Passou por todas as dores e se acha no fim da agonia. D’Ele se poderia dizer, metaforicamente, como o fez a Sagrada Escritura: “Já não era um homem, mas um verme” (Sl 21, 7), e reputado “como um leproso” (Is 53, 4), de tal maneira estava desfigurado, chagado e lanhado.

Conforme predissera o Profeta Isaías, do alto da cabeça até a planta dos pés não havia em Jesus parte sã. Ora, a pessoa nessa situação pungente, própria a despertar a compaixão de todo o mundo, é ao mesmo tempo o Homem-Deus. Sendo o Inocente, e sofrendo o martírio mais injusto, humilhado pela ralé mais infame, tudo quanto contra Ele se executava assumia uma gravidade verdadeiramente infinita. Cometia-se, portanto, um pecado imenso, algo que deveria levantar de indignação até as pedras.

Pois bem, ao pé da Cruz estava a Mãe do Supliciado.

Nada se respeita tanto no mundo quanto uma mãe que chora junto a seu filho morto. Isso faz cessar todas as hostilidades, apodos, qualquer espírito de vingança, toca e inclina as almas para a misericórdia. É a fraqueza feminina no que tem de mais sublime, a condição de mãe posta diante do que há de mais doloroso: o falecimento de seu próprio filho.

Tais sentimentos se verificam inclusive em se tratando do pior dos criminosos, digno da maior execração, justamente condenado à morte. Quando, nas vésperas de sua execução, anuncia-se a visita da mãe dele, tudo se suspende. A irritação despertada contra o sentenciado como que recebe um parênteses, todos acolhem sua progenitora com respeito e a conduzem junto ao filho que ela deseja consolar. E esse réu, objeto da reprovação geral, enquanto está com sua mãe adquire — pela sua condição de filho — uma respeitabilidade a qual pareceria impossível em semelhante facínora. Ninguém o atormenta nem o incomoda. Suspende-se o curso da justiça, até que o contato com sua mãe tenha cessado.

Tudo isso porque a relação mãe-filho é sagrada, envolve reservas de ternura inimagináveis. Em razão do que ela tem de sacrossanto em si, aplaca as cóleras e impõe toda forma de respeito.

Misérias da sensibilidade humana

Ora, no Calvário está a mais perfeita de todas as mães, chorando a ofensa feita a Deus com uma profundidade de sentido que não podemos sequer imaginar. Em face dessa cena compungente ao extremo, era de se presumir que a piedade humana naturalmente se enternecesse.

Se presenciássemos a crueldade de alguém que mata uma cachorra, abandonando à própria sorte os filhotes dela sem terem quem lhes procure alimento, sentiríamos uma impressão desagradável, teríamos pena. Pois somos assim, e nos enternecemos — às vezes exageradamente — com a dor sofrida pelos animais.

Então, se temos Fé e acreditamos que Nosso Senhor Jesus Cristo é Deus e morreu na Cruz para nos salvar, que Nossa Senhora existiu e estava ao pé da Cruz, deveríamos ter nossa alma partida de dor e nada poderia nos falar tanto quanto essa situação. Entretanto, devido à miséria da sensibilidade humana, dá-se algo de inconcebível: os mesmos que se deixam comover pelo infortúnio de um bicho, diante da Paixão se tornam “glaciais”, e dizem: “Já sabemos disso, hããã…”. A Morte de Nosso Senhor é uma das estações da Via Sacra. Dos que a rezam, quantos não têm a atenção voltada para outros assuntos? E quantos, mais numerosos, nem sequer dela participam, alegando ocupações mais importantes?

Essa indiferença humana é tão marcante que, depois de apresentar esse quadro, muito judiciosamente o “Stabat Mater” acrescenta quatro orações nas quais pedimos a Deus algo que deveria borbulhar do fundo das almas: o sentimento de arrependimento, compunção, gratidão; o desejo de aproveitar para si os frutos dessa Redenção, daquelas lágrimas, daquele Sangue, para progredirmos na prática do bem.

Por que existe tal indiferença? Porque esse tema é bonito, elevado, santo, grandioso demais. E pela sua natureza decaída com o pecado original, o homem se tornou tão ruim que, em presença de algo muito sublime, santo e elevado, fica completamente insensível. Há todos os motivos para chorar e se compungir, mas não chora nem sente compunção.

Pedir a graça da verdadeira compunção

Cumpre termos presente que o autêntico movimento e piedade provém de um ato de Fé e amor a Deus, frutos da vida sobrenatural recebida por nós através da graça. Não a podemos adquirir por simples méritos de nossa natureza.

Assim, temos de pedir e desejar ardentemente essa graça insigne: que a Paixão de Nosso Senhor não seja para nós uma coisa morta, poeirenta e distante, ocorrida há séculos, e sim algo de vivo que nos diz respeito diretamente, e nos toque no fundo da alma como sucedeu a todos os santos.

Esse “tocar no fundo da alma” não significa apenas um mero sentimento de tristeza, mas também de solidariedade para compreendermos a inteira relação do holocausto de Jesus conosco, movendo-nos a um ato de genui­no amor a Deus e de correspondência às graças.

Nosso Senhor e a Santíssima Virgem sofreram todas essas dores na intenção de salvar os homens, e mesmo que fosse para resgatar só a mim, as teriam padecido. Eles me conheciam pessoalmente no momento desse sacrifício, pensaram em mim e o aceitaram para me redimir. Assim, hei de corresponder a tanta misericórdia, deixarei de pecar e progredirei na virtude. Quero salvar almas e implantar o Reino de Maria na Terra, como a plena retribuição àquilo que na Paixão foi realizado.

É, portanto, esse movimento de alma, sensibilizada pela Paixão, que devemos pedir nas orações.

A esse propósito, tomo a liberdade de evocar um exemplo pessoal. No meu tempo de menino, quando me preparava para me confessar e fazer a Primeira Comunhão, minha governanta alemã, “Fräulein” Mathilde, dizia-me: “Faça seu exame de consciência”.

Eu o fazia e escrevia as faltas num papel, pois era muito distraído e receava me esquecer. Chegando na igreja, a governanta me mandava ajoelhar e rezar o ato de contrição. Em seguida me perguntava:
— Você se arrependeu?
— Não…
— Então reze a Via Sacra!

Terminada a oração, a mesma pergunta:
— Você se arrependeu?

Eu perdia a face diante de tanta maldade que era a minha ausência de arrependimento, mas não queria fazer uma confissão sacrílega, e respondia: “Não”. Ela decretava: “Faça novamente a Via Sacra!”

Afinal, para conseguir me livrar de tanta Via Sacra, excogitava qualquer emoção ligeiramente “arrependitiva” e a governanta declarava: “Vai logo para o confessionário, senão essa contrição desaparece”.

E eu, compenetrado de minha tremenda vilania — pois era um homem que não se arrependia de nada, tendo de se confessar rapidamente antes que se esvaísse aquele mínimo sentimento de culpa —, pensava: “É verdade, deixa eu pegar minha ‘contriçãozinha’ no pulo; do contrário, não sei o que será de mim.”

Claro está, essa governanta possuía uma ideia errada do que era o sentimento de contrição. Na realidade, não se trata de simples choramingar nem de uma dor sensível, mas é tomar profundamente a sério os dados fornecidos pela Fé, cogitando, por exemplo, no seguinte: até a última gota do Sangue de Nosso Senhor teve de ser derramada, quando a lança perfurou o próprio símbolo do amor, que é o Sagrado Coração. Ele sofreu tudo por mim! Então, a que conclusões devo chegar?

Essa seriedade da alma é a compunção. Muitos santos a tiveram acompanhada de pranto, que é um grande dom: o das lágrimas. Mas este, embora muito conveniente, não é necessário para o autêntico arrependimento.

Portanto, em virtude dos méritos de Nosso Senhor Jesus Cristo, devemos pedir a graça da verdadeira compunção. E nesse intuito — sem procurar um “calorífero emocional” — será mesmo louvável que recitemos piedosamente uma Via Sacra.

Tesouros de lógica e virtude

Compreendemos, então, como o “Stabat Mater” é bem constituído.

Ele coloca diante nós o mais comovente dos quadros, e nos leva a fazer pedidos de que esta situação trágica de fato nos comova, reconhecendo a fundo a maldade e a dureza humanas, insensíveis a tanta dor.

Eia Mãe fonte de amores, fazei que essas fortes dores eu sinta e convosco chore.

Quer dizer, que eu me solidarize convosco. Concedei à minha alma uma participação na vossa dor.

Fazei que a alma se me inflame, para que a Cristo Deus só ame e só busque o seu agrado.

Depois da solidariedade, implora-se algo mais alto: uma união tal que eu só ame a Ele, Cristo Jesus.

Santa Mãe, isso vos peço, fique o peito bem impresso das chagas do Crucificado.

Note-se como está bem graduado e pensado: solidariedade, amor exclusivo, participação no sofrimento d’Ele aqui na Terra. Quero ter impressas em mim as chagas de Jesus.

E por fim:
Fazei-me, enquanto viver, com meu Jesus condoer, convosco chorar deveras.

Pede-se a graça da perseverança, para que durante minha existência inteira essa disposição de alma permaneça viva. Amém.

Percebe-se, dessa forma, a maravilha de Fé, lógica, coerência e humildade contida nessa oração. E esta outra característica, não menos bela: posto diante de Cristo crucificado, o fiel não se dirige diretamente ao Redentor, mas a Nossa Senhora, sabendo ser Esta o caminho mais certo e seguro de chegar a Ele. Então, aceitando a mediação universal de Maria, roga-Lhe sua intercessão para que suas preces sejam ouvidas pelo Senhor Jesus.

Na verdade, o “Stabat Mater” é uma poesia tão singela, tão simples, que requer profunda análise para se compreender e admirar os tesouros de teologia e virtudes nela encerrados. v