Sainte Chapele – a capela da inocência.

Concebida por São Luís IX, a Sainte Chapelle (Capela Santa) foi edificada para servir de magnífico relicário a um dos espinhos da dolorosa coroa da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Já no seu exterior aparece sua pulcritude, deixando ver a leveza, o esguio, o elegante desse templo-escrínio e o sobrenatural que o impregna. Chama a atenção, de modo especial, o telhado com  seus adornos e suas torres. Está construído em ângulo bem fechado, o que lhe confere maior graciosidade e ligeireza, dando a impressão de que está prestes a alçar voo. Pode-se imaginar que,  soprando um vento forte, a Sainte Chapelle se lançaria em direção às imensidões do firmamento, e ali, em meio às nuvens e ao azul, tornar-se-ia ainda mais bela que na terra.

A torre central, antes um campanário, termina numa flecha que se atira para o alto, constituindo uma espécie de símbolo e de gráfico do desejo do homem de subir até Deus. Em uma das  extremidades do telhado há um florão sobre o qual pousou um anjo. São tão bem-proporcionados um ao outro, o pedestal e seu anjo, que, dir-se-ia, se este último fizesse qualquer movimento, o  florão vergaria. O anjo perderia o equilíbrio. É quase como se um pássaro estivesse pousado sobre uma delicada flor…

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Quem, pela primeira vez, visita o pavimento inferior da Sainte Chapelle, ignorando tratar-se apenas de uma antecâmara do andar de cima, dificilmente retém uma exclamação  de encanto e deslumbramento, pensando ter encontrado a suprema beleza desse edifício. Depara-se com proporções inusitadas, que conseguem conciliar numa mesma perspectiva a elevação e a intimidade, e incutem no fiel que ali reza a impressão de estar sendo recebido carinhosa e afetuosamente por Deus, na sua sala mais interna.

Esse efeito extraordinário é obtido por meio das tênues e esguias colunas. Ora formam ogivas aderentes às paredes, ora se abrem de modo tão harmonioso, tão gradual e tão perfeito, que parecem  palmeiras cujas folhas se tocam no teto.

É preciso dizer que as ogivas exercem um incomparável fascínio. Cada uma é linda, tomada isoladamente, mas o conjunto delas é ainda mais gracioso. As colunas, igualmente, são de uma  particular formosura, acentuada pelas pinturas; juntas, porém, são de uma beleza indescritível. Narra a Sagrada Escritura que Deus, quando criou o universo, repousou no sétimo dia, contemplando a obra que havia realizado.

Então se Lhe tornou patente que, se as criaturas eram individualmente belas, a criação vista no seu  todo as vencia em esplendor. É o que se dá com a Sainte Chapelle. Esse andar inferior, de tão  arrebatadora beleza, era o local onde o povo e os servidores do palácio real assistiam à Missa, ao mesmo tempo em que na capela alta se celebrava outro Santo Sacrifício, para São Luís IX e os nobres da corte.

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Ao penetrar no pavimento superior, o visitante fica arrebatado de imediato, extasiando-se com a feeria do conjunto das colunas, ogivas e sobretudo vitrais! Tão predominante é o papel dos vitrais    que a capela parece toda feita deles. De pedra há apenas o necessário para escorar o teto e suportar os caixilhos nos quais repousam cristais e vidros bem trabalhados em sua diversidade de cores, precisão dos desenhos e elegância das formas. Ao admirar o efeito produzido, vem-nos ao espírito esta ideia: “Não pensei que fosse possível, com os elementos desta terra, realizar algo assim tão  parecido com o Céu!”

Pois bem, essa maravilhosa edificação só se tornou factível em virtude da fé católica. Quer dizer, não fosse o fato de ela ter sido construída em séculos de fé, por artistas de fé, e, antes de tudo,  concebida por almas resgatadas pelo preciosíssimo sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, que lhes abriu a porta do Céu e as elevou à vida sobrenatural por meio de uma abundante infusão da  graça — o gênio humano não lograria idealizar semelhante prodígio de  beleza.

Nascida da devoção de almas profundamente impregnadas de fé e pureza batismal, essa se poderia chamar a Capela da Inocência. Pela candura que se faz notar no esguio, no elevado de suas  linhas tendentes ao mais alto, realizando um extraordinário equilíbrio de espírito, ela empolga, conduz ao auge do entusiasmo, porém um auge tão calmo, sereno e refletido, que não produz frenesi nem sensações por demais fortes ou intemperantes. Que obra prima da temperança! Tudo é lindo, magnífico, tudo arrebata. Mas tudo recolhe e tudo reza. É o ápice da candura, da  contemplação e da meditação.

Cada peça de vitral, cada pedra e cada ogiva é como uma prece, em torno do centro da oração: o altar, onde se renova de modo incruento o Santo Sacrifício do Calvário. No seu alto é exposto um  espinho da Coroa do Divino Salvador, trazido a pé e com indizível devoção, por São Luís IX, dos confins da França até Paris. É a pedra de ângulo de toda a extraordinária beleza dessa obra de arte.

Harmonia e variação, movimento e consonância, estabilidade e agilidade. É a Sainte Chapelle.

Plinio Corrêa de Oliveira

Vigilância e oração

“Tomai o elmo da salvação e a  espada do espírito, que é a palavra de Deus; orando continuamente em espírito com toda a sorte de orações e súplicas, e vigiando nisto mesmo com toda a perseverança”, recomenda-nos com inflamada solicitude o Apóstolo São Paulo. Baseado em tal ensinamento, Dr. Plinio nos alenta a enfrentarmos com determinação as provações interiores e exteriores que encontramos em nossa busca da santidade.

 

Enganam-se os que pensam que o Novo Testamento abriu para nós a era de uma vida espiritual sem lutas. Pelo contrário, São Paulo põe diante de nossos olhos a perspectiva de uma luta incessante do homem contra suas inclinações inferiores, luta esta tão dolorosa que o Apóstolo chega a compará-la ao pior dos martírios, isto é, à Crucifixão:

Digo-vos pois: Andai segundo o Espírito e não satisfareis os desejos da carne. Porque a carne tem desejos contrários ao espírito, e o espírito, desejos contrários à carne; porque estas coisas são contrárias entre si, para que não façais tudo aquilo que quereis.

Se vós, porém, sois guiados pelo Espírito, não estais debaixo da lei. Ora, as obras da carne são manifestas, são a fornicação, a impureza, a desonestidade, a luxúria, a idolatria, os malefícios, as inimizades, as contendas, as rivalidades, as iras, as rixas, as discórdias, as seitas, as invejas, os homicídios, a embriaguez, as glutonerias, e outras coisas semelhantes, sobre as quais vos previno, como já vos disse, que os que fazem tais coisas não possuirão o reino de Deus.

Ao contrário, o fruto do Espírito é a caridade, o gozo, a paz, a paciência, a benignidade, a bondade, a longanimidade, a mansidão, a fidelidade, a modéstia, a continência, a castidade. Contra estas coisas não há lei. E os que são de Cristo crucificaram a sua própria carne com os vícios e concupiscências. Se vivemos pelo Espírito, conduzamo-nos também pelo Espírito (Gal 5, 16-25).

Velar pelo frágil edifício da santificação

E com quanto cuidado deve o cristão velar pelo edifício sempre frágil de sua santificação, posto à prova por toda a sorte de provações interiores e exteriores!

Leiamos este texto: Temos, porém, este tesouro em vasos de barro, para que a superioridade da virtude seja de Deus e não de nós.

Em tudo sofremos tribulação, mas não somos oprimidos; somos cercados de dificuldades, mas não desesperamos; somos perseguidos, mas não desamparados; somos abatidos, mas não perecemos; trazendo sempre em nosso corpo a mortificação de Jesus, para que também a vida de Jesus se manifeste nos nossos corpos.

Porque nós que vivemos somos continuamente entregues à morte por amor de Jesus, para que também a vida de Jesus se manifeste em nossa carne mortal. A morte, pois, opera em nós, e a vida em vós (2 Cor 4, 7-12). Este último versículo quer dizer que São Paulo morria a si mesmo para dar a vida espiritual aos outros.

A virtude, de que se fala acima, é a virtude da pregação, isto é, a virtude do apostolado.

Sem a luta interior não se chega à glória do Céu

É orgulho ou ingenuidade imaginar que não encontramos terríveis relutâncias interiores: Efetivamente, nós sabemos que a lei é espiritual; mas eu sou carnal, vendido ao pecado. Porque não entendo o que faço; não faço o bem que quero, mas o mal que aborreço, esse é que faço (Rom 7, 14-15).

Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita o bem. Porque o querer está ao meu alcance; mas não acho o meio de o fazer perfeitamente. Porque eu não faço o bem que quero, mas o mal que não quero (Ibid 18-19).

Eu encontro, pois, esta lei em mim: quando quero fazer o bem, o mal está junto de mim; porque me deleito na lei de Deus, segundo o homem interior; mas vejo nos meus membros outra lei que se opõe à lei do meu espírito, e que me faz escravo da lei do pecado, que está nos meus membros. Infeliz de mim. Quem me livrará deste corpo de morte? (Rom 7, 21-24).

É dura esta luta, mas sem ela não se chega a glória: Se (somos) filhos, também (somos) herdeiros, herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo; mas isto se sofremos com ele, para ser com ele glorificados (Rom. 8, 17).

Só as obras de apostolado, sem a mortificação, não bastam para este fim: Quanto a mim, corro, não como à ventura; combato, não como quem açoita o ar; mas castigo o meu corpo e o reduzo à escravidão, para que não suceda que, tendo pregado aos outros, eu mesmo venha a ser réprobo (1 Cor 9, 26-27).

Vigiar e orar continuamente

Seja, pois, de vigilância nossa vida interior: Aquele pois que crê estar de pé, veja, não caia” (1 Cor 10, 12).

A conclusão, portanto, não pode deixar de ser esta: Irmãos, fortalecei-vos no Senhor e no poder da sua virtude. Revesti-vos da armadura de Deus, para que possais resistir às ciladas do demônio. Porque nós não temos que lutar (somente) contra a carne e o sangue, mas sim contra os principados e potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra os espíritos malignos (espalhados) pelos ares. Portanto, tomai a armadura de Deus, para que possais resistir no dia mau, e ficar de pé depois de ter vencido tudo.

Estai, pois, firmes, tendo cingido os vossos rins com a verdade, e vestido a couraça da justiça, e tendo os pés calçados para ir anunciar o Evangelho de paz; sobretudo tomai o escudo da fé com que possais apagar todos os dardos inflamados do maligno; tomai o elmo da salvação e a espada do espírito, que é a palavra de Deus; orando continuamente em espírito com toda a sorte de orações e súplicas, e vigiando nisto mesmo com toda a perseverança, rogando por todos os santos e por mim, para que me seja dado abrir a minha boca e pregar com liberdade o mistério do Evangelho, do qual eu, mesmo com as algemas, sou embaixador, e para que eu fale corajosamente dele como devo (Efes 6, 10-20).

Plinio Corrêa de Oliveira (Transcrito de “Em defesa da Ação Católica”, Editora Ave Maria, São Paulo, 1943, 5ª parte)

Dor e glória

Em Nosso Senhor Jesus Cristo o que mais atraía Dr. Plinio era seu sofrimento, com o matiz de majestade, de sabedoria profunda, de transcendência em relação a tudo, com uma bondade que  chega até o último ser.

Passemos à consideração da Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, com base em um bonito Crucifixo.

Dor, majestade, paz e misericórdia

A meu ver a fotografia faz ver uma beleza do Crucifixo — porque a fotografia não pode inventar —, mas que só um olhar muito atilado de um bom crítico de arte percebe. Arte só, não, piedade. Como o estado de alma de Nosso Senhor no alto da Cruz está bem interpretado!

Os dois pontos da escultura em que mais o trabalho artístico e a expressão se aprimoram são: os lábios abertos, os dentes separados ligeiramente, dando a ideia, também levemente, do queixo caído; depois, os olhos que fitam, triste e desoladamente, alguma coisa que eles estão contemplando, mas não estão vendo.

O olhar está distante, na consideração de algo muito diverso que o enche de tristeza. O queixo, assim ligeiramente caído, dá a impressão de tal abandono das forças, que não há mais vigor nem sequer para manter cerrados os lábios.

Contudo, apesar do extremo dessa dor moral, mais do que física — de fato, Nosso Senhor sofreu mais a Alma do que no Corpo durante a sua Paixão —, nós notamos uma paz, uma misericórdia, uma delicadeza de sentimentos, em que o furor não está presente. A tristeza, sim, está em tudo e por tudo. Mas uma tristeza tal que, Esse condenado à morte, privado dos trajes que qualquer passante possui, entretanto tem uma atitude que deixa longe a majestade de qualquer rei!

O artista soube muito bem representar os cabelos de Nosso Senhor, não penteados direito — porque isso não teria propósito depois de tudo quanto Ele sofreu —, mas lindamente desgrenhados, de maneira a formarem cachos lindíssimos! A barba é tão pequena que não daria jeito para pô- -la revolta. Então, ela cai ordenadamente para emoldurar o rosto.

Nosso Senhor chorou também a decadência das nações católicas

A pessoa que contempla essa imagem tem quase a impressão de que entrará, de um momento para outro, no campo de visão desse olhar. O aspecto de tristeza é pungente.

Durante sua Paixão e Morte, Nosso Senhor Jesus Cristo previa tudo quanto iria acontecer até o fim do mundo, como a humanidade tomaria aquele sacrifício extraordinário, único, realizado por  Ele; gemia e sofria por todas as ingratidões que os homens teriam para com Ele. De vez em quando, o horizonte da História era cortado, diante de seus olhos proféticos, por esta ou aquela figura, este ou aquele Santo, esta ou aquela Ordem religiosa, esta ou aquela escola de pensamento, esta ou aquela Cruzada cheia de fervor.

E o Divino Redentor sentia-Se confortado em meio a sua dor. Isso não O terá ajudado a carregar a Cruz e a sofrer sua Paixão até o último alento, até o último ponto em que Ele disse: “Meu Deus,  meu Deus, por que Me abandonaste?” (Mt 27, 46).

Podemos ter certeza de uma coisa: em determinado momento, Ele chorou a decadência das nações católicas do Ocidente. Tudo quanto nos causa horror nos dias de hoje, que repulsa terá provocado à santidade infinita do próprio Deus?

Percebem-se os grandes espinhos que transpassaram a fronte de Nosso Senhor. No alto do olho esquerdo nota-se uma machucadura terrível. Tem-se a impressão de que um espinho esteve lá e caiu, deixando um ferimento medonho.

Vejam com quanta delicadeza escorre o Sangue ao longo do Corpo Divino, de maneira a formar dois longos filetes, na ponta de cada um dos quais está um rubi!

O primeiro canonizado da História

A impressão de desolação e de desamparo é muito acentuada nesta fotografia. É uma dor de quem sabe não ter remédio, nem limite, e caminha para a morte que se anuncia, não com as  consolações de quem está esperando o Céu, mas na tristeza do que vai acontecer, porque Ele percebe a maldade dos homens que estão se jogando contra Ele.

Podemos imaginar a diferença entre essa fisionomia e a que deve ter feito o bom ladrão, no momento em que ouviu Nosso Senhor lhe dizer: “Hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23, 43).

Ao dizer ao bom ladrão que ele estaria no Paraíso, Jesus afirmava, antes de tudo, que Ele estaria lá, e o ladrão se encontraria com  Ele. O bom ladrão foi o primeiro canonizado na história das  canonizações; teve ali o Céu garantido.

Por que Nosso Senhor disse isso a ele? O bom ladrão pediu perdão e Jesus o perdoou. Mas na hora de perdoá-lo o Redentor quis dar-lhe essa alegria, para ele transpor com ânimo os terríveis  umbrais da morte.

Ora, essa alegria não se nota neste semblante. Alguém dirá: “Dr. Plinio, não há uma contradição?” Não. Jesus quis beber a taça da dor até o fim, sofrer tudo quanto era possível sofrer. Ao outro Ele  deu uma alegria no momento do passo final. Nosso Senhor entrou triste na hora de sua Morte, mas logo depois Ele teve, naturalmente, a alegria em que sua Alma santíssima, hipostaticamente unida à Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, deixava de sofrer as dores do Corpo. Começava o período em que Ele ia ao Limbo para encontrar todas as almas que estavam lá e levá-las para o Céu.

A boa tristeza e a má alegria

Nesse semblante a desolação parece tão profunda que se tem a impressão de não tardar para sobrevir a morte. A desolação moral é maior do que a física. Dir-se-ia ser uma longa meditação que vai chegando às suas últimas e mais amargas consequências.

Os autores que comentam a construção das grandes catedrais da Idade Média observam que elas são construídas na consideração da glória de Cristo Ressurrecto. E que a ideia da alegria e da vitória d’Ele encheu de luz a piedade dos medievais.

É verdade que, quando a Idade Média começava talvez a entrar no seu declínio — é difícil precisar —, iniciou-se um movimento extraordinário de devoção a Nosso Senhor Jesus Cristo crucificado.

Esse movimento foi se difundindo por São Francisco de Assis com os estigmas, etc. Mas o que a Idade Média deixou de mais característico foi Cristo Ressurrecto.

Entretanto, desde menino, o que mais me impressionou foi Jesus Cristo na sua dor. Estivesse Ele crucificado ou não; numa atitude como o Sagrado Coração de Jesus, mostrando seu Coração aos  homens e dirigindo- -Se a eles; ou em qualquer outro episódio  de sua vida, como naquele conjunto escultural da Igreja do Sagrado Coração de Jesus que O representa entre os doutores no  Templo, etc.; o que sempre me atraiu mais para considerar e adorar foi a Ele enquanto, naquele determinado episódio, sofrendo.

E dando ao seu sofrimento aquele matiz de majestade, de sabedoria profunda, de transcendência em relação a tudo, mas de bondade que chega até o último ser, o último verme,  o último pecador  que se coloque diante d’Ele. Isto foi o que sempre, de modo muitíssimo especial, atraiu- -me n’Ele e me levou a adorá-Lo. Não custei a perceber que essa disposição de minha alma estava em contraste diametralmente com a alegria de fandango que dominava a minha época de menino, com a difusão de toda a atmosfera de Hollywood, de todo o ambiente do cinema moderno, criando  um clima de alegria artificial, doida, tonta, agitada, sedenta de pecado e já meio imersa no pecado, que caracterizava o meu tempo de infância. Então, era uma alegria má. E eu ficava colocado  entre a boa tristeza e a má alegria.

Eu não sabia discernir bem entre a boa e a má alegria, e me parecia que havia no mundo duas correntes, considerado o mundo do ponto de vista psicológico: uma era a dos que amavam a dor e  que, portanto, adoravam a Nosso Senhor; e a outra a dos que amavam a alegria e eram os partidários do cinema. E isso formava uma contradição que eu não sabia explicar inteiramente.

Porém, eu era levado a um equívoco de ponto de vista, segundo o qual toda pessoa alegre era suspeita de certa adesão ao fandango cinematográfico, que ia arrastando tantas e tantas almas para o  pecado. Pelo contrário, a pessoa triste eu considerava que estava sempre no caminho certo, pelo menos para se converter, se não era uma pessoa inteiramente virtuosa.

Levei anos para perceber que aqueles que estão tristes com Nosso Senhor são os alegres desta vida, e aqueles que estão alegres com satanás são os tristes desta vida.

Tristeza digna, nobre, varonil

Sempre me pareceu que, apesar disso ser verdadeiro, por estarmos nesta época de tanto pecado e  tanta ignomínia — que determinou  a mensagem de Fátima com tudo o que ela contém —, o  autêntico católico poderia ter sua alma alegre, estaria bem, mas essa alegria nunca deixaria de ter um véu de tristeza digna, nobre, varonil, como quem acompanha Nosso Senhor até o alto da Cruz.

Observando as cerimônias religiosas daquele tempo, eu notava isto: mesmo nas cerimônias mais gaudiosas estava presente um traço de dor, certa compaixão a qual tinha por objeto a Nosso  Senhor Jesus Cristo. Inclusive na festa mais límpida, mais alegre, mais desanuviada, o  Natal, havia uma nota de tristeza, de compaixão do Menino que nasce tão pequenino, no frio, deitado na  mera palha, e que vem começar sua longa jornada na Terra… Essa nota de compaixão perpassava as alegrias luminosas  e magníficas do Natal.

Na própria Páscoa da Ressurreição, Nosso Senhor é apresentado ressurrecto, mas com suas chagas brilhando.

As chagas lembram tudo aquilo pelo que Ele passou. Quer dizer, uma reminiscência da dor, da Cruz sempre presente, de um modo ou de outro, numa cerimônia católica. Foi por essa razão  também que eu quis sempre ter a cruz nas nossas sedes: cruzeiros pretos, altos, secos, como foi negra e sem consolações a Paixão de Nosso Senhor. E dois magníficos crucifixos na Sede do Reino  de Maria, um dos quais acabamos de comentar. Assim me veio a ideia de ser esta a posição natural da alma do católico.

Daí nasce a seguinte convicção: a vida, para ser tomada catolicamente, tem que levar consigo esse traço de grandeza e de seriedade, sem o qual ela não vale nada. A vida é uma participação na Cruz  e Nosso Senhor Jesus Cristo. Eu tenho que sofrer como Ele sofreu. E quanto mais eu padecer, tanto melhor será, porque terei tido maior honra de me achegar mais a Ele.

E, diante do sofrimento, adestrar a nossa sensibilidade. Não para fugir, não para rogar incondicionalmente a Nossa Senhora que afaste de nós a dor. Pedir pode-se. Ele mesmo pediu: “Se for  possível, afastai de Mim este cálice”. Mas Ele acrescentou: “faça-se a vossa vontade e não a minha” (cf. Lc 22,42).

Assim nós devemos olhar para a dor que nos espreita no caminho: “Se for possível, afastai de mim este cálice; se não for possível, faça-se a vossa vontade e não a minha”. E estar com a alma  preparada e temperada para, a qualquer momento, com paz, com varonilidade e, sobretudo, com espírito de Fé suportar qualquer dor: a mais inopinada, a mais injusta, a que abalaria mais nosso   princípio axiológico. Seja lá o que for, aguentar, porque foi assim que Ele sofreu.

Que Nossa Senhora nos ajude a ter essas reflexões bem no fundo de nossas almas.

Penetramos nos tempos cujo dia seguinte nós não conhecemos. Espreitar-nos-á a dor? Talvez! Se nos espreitar a dor, nos espreita a glória. Vamos para a frente!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 21/8/1985)

REFRIGÉRIO, LUZ E PAZ

Belo ao extremo é o fato de que, no Novo Testamento, Deus tenha diminuído a distância entre Ele e os homens, descendo até nós e tomando a nossa natureza, através da Encarnação do Verbo, efundindo largamente suas graças e dádivas celestiais, de modo ainda mais intenso do que o fazia no Antigo Testamento.

Essa disposição divina determina, então, uma mudança na ótica da história humana: aquilo que era próprio das almas muito eleitas e grandes, transforma-se em dom esplêndido também para as  menores e até para as muito pequenas. Tal é a prodigiosa efusão de graças do Novo Testamento.

Exemplo eloquente — embora pouco frisado — de manifestação dessa riqueza espiritual encontramos nos “gisants” das sepulturas medievais. Sempre me entusiasmou a visão daquelas imagens de cavaleiros jacentes, estendidos sobre a laje de seus túmulos, revestidos de armadura, a espada cingida ao lado, as mãos postas e os olhos fechados para o tempo, fitando a eternidade.

Figuras de cruzados prontos para a batalha, porém, enquanto a hora desta não soa, eles repousam. Não é a imagem de quem morre, mas de quem descansa à espera do Céu. Claro, sob aquela silhueta talhada em mármore ou granito, acha-se um corpo em decomposição. Provavelmente, já agora, séculos transcorridos, apenas um punhado de pó. Entretanto, se viveu e morreu naquela  bendita atmosfera de bênçãos e graças, terá alcançado a bem aventurança eterna. No dia do Juízo, esse mesmo corpo ressurgirá e se unirá de novo àquela alma que mereceu a visão beatífica.

Outras sepulturas ostentam a imagem de algum importante prelado, numa postura compenetrada e séria, como se preparado estivesse para sua última e solene celebração eucarística: vestido com seus paramentos de gala, a mitra cingindo sua fronte, e o báculo ao seu lado, símbolo perene de seu poder eclesiástico.

Pode-se ver, ainda, as esculturas de nobres casais, dormindo o sono da morte sobre seus túmulos. Em geral, trazem a coroa correspondente ao grau de nobreza a que pertenciam, e suas vestes são aquelas que trajariam para uma grandiosa festa que dessem em seus domínios. Ambos, marido e mulher, numa união admirável percebida até na representação fria da pedra e do mármore. Ao mesmo tempo recendendo uma tal pureza e castidade, que é edificante contemplá-los estendidos na laje sepulcral, eles também aguardando a ressurreição da carne.

Há nessas imagens um reflexo daquele recolhimento profundo, daquela sensação experimentada por almas que se encontravam estavelmente, sem perder o fôlego, sob a dita efusão de graças que  a vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo trouxe para o mundo.

Símbolos de uma ordenação de espírito, de seriedade, deliberação e orientação conformes os desígnios de Deus para todos e cada um dos homens, de tal maneira que, vendo-os ali, silenciosos e  serenos, tem-se a impressão de entrarmos em outro universo: abandonamos essa frigideira de pecados que é a civilização contemporânea, e imergimos num lugar onde só existem refrigério, luz e paz…

 

O exemplo de Simão Cireneu

Enquanto O conduziam, detiveram um certo Simão de Cirene, que voltava do campo, e impuseram-lhe a cruz para que a carregasse atrás de Jesus” (Lc 23, 26). Falando de improviso para um  auditório de jovens, Dr. Plinio compôs um quadro em torno desse episódio da Paixão.

A figura de Simão Cireneu nos aparece de passagem, na breve porém eloquente narração do evangelista. Uma só frase, através da qual podemos fazer peregrinar nossa imaginação.

Assim, devemos pensar no Cireneu como um homem modesto, pobre, levando a sua existência rural do melhor modo que lhe era possível, com aquela felicidade própria dos menos abastados,  livres dos problemas e apreensões que muitas vezes rondam os donos de maiores posses.

A perspectiva de aceitar a dor

Vinha ele, portanto, caminhando despreocupadamente, a atenção voltada para as miudezas de sua vida simples e alegre: a sandália meia desgastada que era preciso consertar; um passarinho avistado num arbusto da estrada, e que talvez fosse divertido apanhar e levar para comer ou conservar numa gaiola, etc., etc. Quiçá viesse cantarolando e assoviando, sem ter a mínima ideia do que o aguardava pela frente.

De súbito, ouve os gritos de uma turbamulta: “Mata! Mata! Crucifica! Crucifica!” Logo depois, fortes gemidos: “Ai, ai! Tende pena de mim!” E a tragédia irrompeu na tranquila vida do Cireneu. Ele nunca ouvira ninguém gemer daquele modo. Que dor lancinante! “Quem seria o homem que bradava assim? Mas, estaria gritando ou cantando? Que voz harmoniosa, que timbre bonito! Que  vontade eu teria de ajudar esse homem que geme de maneira tão celeste. Quem será ele?”

Sentiu-se meio atraído, pela primeira vez, por algo que nunca o interessara na vida. Quando ele via alguém sofrer, tinha desejo de fugir. A dor é o que a sua alegria despreocupada não queria. Seu impulso era o de se esquivar a todas as mágoas, escapar dos que sofrem, pois de repente o padecimento alheio o contagiaria. Entretanto, aquele homem à sua frente necessita de uma ajuda, implora por um apoio. O Cireneu tem pena, e vislumbra a tragédia na qual ele jamais gostaria de entrar. Securitário, quer se afastar daquele caminho.

Ao mesmo tempo, porém, a voz chegava mais perto, e os berros dos algozes também se tornavam mais altos. Simão pensava: “Que contraste! Quando este homem geme, seus lamentos são uma música; e esses que gritam contra Ele, que o perseguem, que barulho medonho, que vozes horrorosas, que charanga sem harmonia, que gente má! Estou com vontade de tomar um partido”.

Era a graça que, sem ele saber, penetrava na sua alma, em seu coração rachado de pena, inclinando-o a fazer o bem. Mas, de outro lado, vinha o egoísmo, a tentação do demônio: “Cuidado! Pense em si, não se incomode. Fuja!

Isto aqui dará encrenca, e de repente você vai para a dor junto com ele. Dor, não! Fuja da dor! Idiota, não se comova”.

O encontro com Jesus

Indeciso, ele continua a ir para a frente. Em certo momento dá-se o encontro: o Cireneu vê um homem de trinta e três anos, longos cabelos desalinhados, gotejando sangue, o rosto coberto de contusões que o tornavam azul num ponto e noutro, o nariz naturalmente arqueado, quebrado por uma pancada brutal, os olhos pisados, a cabeça coroada de espinhos, e com uma cruz pesadíssima às costas, penosamente arrastada por Ele.

Simão se enche de horror: “Mas, há tanta dor assim na vida? Pode acontecer isso a alguém? Eu nunca pensei que isso pudesse acontecer a ninguém, e de repente aconteceu a Ele. Não pode, então, acontecer a mim?”

Um dos legionários romanos, um dos senhores da Terra Santa, reluzindo no seu capacete magnífico, sua armadura lustrosa, lanças e armas de César, avista o Cireneu nessa indecisão e lhe diz  brutalmente: — Pegue a ponta da cruz!

Ele pensa: “Como?! Essa cruz ensopada de sangue? Eu vou me molhar com ele”. Mas, enquanto racionava assim, um raio de sol incide sobre o sangue, e este brilha com uma linda cor rubi. Simão se sente atraído, algo lhe diz: “Esse sangue é a salvação, agarre-o!” Mas… mas… mas… e a dor, e o peso dessa cruz?

—Pegue já! — insiste o legionário. — Porque este homem não está aguentando mais, e ainda tem de subir até o alto daquela montanha! “Mas, então tenho de levar essa cruz até aquele monte, atrás desse pobre coitado, gemendo? Não tenho coragem, é muito esforço e não gosto de fazer esforço. Oh! Como é isso?”

—Pegue, se não você apanha! “Agora a situação se complica, porque se trata do meu sangue. Dessa não fujo… Devia ter escapado antes. Vou ter de pegar”.

Diálogo de olhares

Simão apanha a cruz. Aquele que a carrega o fita, e ele percebe que esse olhar o penetra completamente. Sente algo de único em sua vida, pois ninguém jamais o olhou assim. Um olhar extraordinário, demonstrando que o conhecia desde sempre, e o envolvia de um afeto incomparável.

Ele se viu conhecido e compreendido nas suas peculiaridades mais pessoais, nas suas dores, das quais aquele olhar tinha pena. Mais do que antes, Simão se sentiu atraidíssimo. Já pegava a cruz, o sangue quente que nela escorria lhe batia nas mãos, e ele se envolvendo naquela tragédia que o cativava.

Um diálogo mudo se estabelece entre o Homem-Deus e o Cirineu. Nosso Senhor lhe diz: “Meu filho, é por você que Eu sofro. Você me vê no auge do abandono, da desgraça, no último ponto do desprezo humano. Mas olhe para Mim. Que misteriosa grandeza, que enigmática e envolvente bondade, que dedilha sua alma como um bom médico toma uma chaga para nela colocar unguento!

Você não sente que está sofrendo fisicamente com o peso da minha cruz, mas a sua alma experimenta uma leveza inusitada? Não percebe um horizonte novo abrindo-se para você?”

Estão ao pé do Calvário. É preciso continuar a subir e a cruz para Simão é cada vez mais pesada. Ele pensa: “É terrível isso, mas mais terrível seria se eu jogasse a cruz no chão e Ele caísse sob o  peso dela, quebrando as palmas das suas mãos nas pedras desse caminho. Eu não suportaria isso. Agora eu vou até em cima.”

Subiu e, lá no alto, humilde, respeitoso, com bondade ajudou Nosso Senhor a deitar a cruz no chão. Jesus lhe dirigiu um olhar de reconhecimento, o último que deu para Simão. O Cireneu afastou-se e notou que os romanos já não estavam pensando nele. Achava-se fora da tragédia. Enquanto se distanciava, ouviu as ordens gritadas pelos esbirros: “Abra os braços! Estenda bem as pernas!

Vamos cravar esses pregos nas suas mãos e nos seus pés!” E a pancadaria começou.

Feliz encontro com Nossa Senhora

De longe, ao mesmo tempo apavorado e fascinado, ainda limpando na sua  túnica as mãos tintas do sangue de Jesus, o Cireneu acompanhou todo  o desenrolar daquele terrível drama em que se consumava a Redenção da humanidade. Observou o diálogo de Nosso Senhor com os dois ladrões, soube da promessa do Paraíso que Ele assegurou a Dimas; viu o povinho que passava sob a cruz; alguns que vaiavam o Crucificado, outros que O apedrejavam, e outros que choravam. Reparou no céu que ia se escurecendo, a tarde que se transformou em noite, e então ouviu o derradeiro brado de Jesus: “Tudo acabou!

Aos pés da cruz havia um grupo de mulheres, entre as quais uma que trazia o rosto encoberto, mas exercia sobre o Cireneu atração parecida com aquela exercida pelo Homem-Deus. Ele  perguntou: — Quem é aquela que se esconde?

— É a Mãe d’Ele. A Mãe d’Ele? Mas, para mim Ela vale mais que uma rainha, mais que uma imperatriz, mais que todo o mundo! Que honra ser Mãe desse homem fracassado, desse homem tão inábil que, sendo inocente, não evitou a própria morte. Que sabedoria a desse homem derrotado, e que vitória essa cena!

O Cireneu continuava a olhar para aquele quadro grandioso à sua frente, e teve medo. Sobretudo quando sentiu a terra tremer, o Templo balançar, e viu estranhas figuras andando de um lado para outro, olhos fechados, envoltas em faixas de panos brancos (como eram então sepultados os cadáveres), e dizendo terríveis censuras ao povo.

Simão quis falar com aquela Senhora, mas não ousou. Achou-a tão pura, que ele não tinha o direito de dirigir-Lhe a palavra. Logo depois, Ela se afastava com o cortejo que conduzia o Divino  Redentor para a sepultura, com todo o ritual que precedia a deposição do corpo no seu túmulo. Ele não teve coragem de acompanhá-La, e pensou: “Afinal de contas, o que me acontecerá? Vejo-me tão cheio de idéias, de preocupações, e estou perdendo a esperança, porque sou um miserável, um medroso, um homem carregado de pecados, e nunca estarei à altura de tudo quanto presenciei…”

O cortejo aproximou-se dele, aquela Senhora deitou um olhar de bondade e só lhe disse duas palavras: “Meu filho!”

Ele pensou: “Ganhei o dia, ganhei a vida, estou perdoado! Vou para casa”.

Ao chegar na sua modesta residência, encontrou a mulher e os filhos dormindo. Tudo estava tranqüilo. Teve então o cuidado de trocar de roupa, tomou a túnica ensanguentada e osculou-a com  reverência. Era o seu primeiro ato de adoração e de fé: “Esse Homem, cujo sangue tinge a minha vestimenta, é Deus!”

Dobrou a túnica como se fosse o maior tesouro do mundo e a guardou onde ninguém podia mexer. Em seguida, dirigiu-se ao pequeno jardim de sua casa, sentou-se num rústico banco de madeira e se pôs a pensar em tudo quanto vira naquele dia. De repente, percebe que algumas pessoas daquele cortejo voltavam do sepulcro, entre elas a Senhora que tanto o impressionara. Simão saiu de novo atrás delas, acompanhando-as até a casa onde moravam. Antes de entrar, a Senhora voltou-se para ele e, do fundo da dor d’Ela, deu-lhe um machucado, mas florido sorriso. Como se lhe dissesse: “Eu vivo aqui”. Entrou e desapareceu.

Simão compreendeu que se tratava de um convite para ele. Passou então a frequentar o convívio com Nossa Senhora e os Apóstolos. Tudo leva a crer que se santificou.

O silêncio paira sobre o desenrolar desta vida que, para a história, começa também no silêncio. Um homem adulto, saído bruscamente da vulgaridade, entra nesse arco de dor e de glória. Acaba cumprindo o seu dever depois de mil dificuldades, e some de novo no anonimato. Mas a sua alma, sem dúvida, foi recebida no Céu. Ele havia tido a honra, a vocação única de, sozinho, carregar a cruz do Cordeiro de Deus.

Sofrendo por Nosso Senhor, O ajudamos a carregar a cruz

E nós, podemos carregar a cruz de Nosso Senhor? Do madeiro em que Ele foi pregado resta apenas um pedaço, em Roma, do qual se extraem fragmentos de um valor moral e religioso inapreciável: são as relíquias do Santo Lenho. Mas, a grande cruz em que o Salvador morreu, esta não existe mais. Como podemos, então, carregá-la?

Há inúmeros modos de fazê-lo, pois inúmeros são os tipos de sofrimento pelos quais passamos. E quando padecemos por amor a Nosso Senhor Jesus Cristo, estamos carregando com Ele o Santo  Lenho. Sejam as penas físicas que se abatem sobre nós, sejam as dores e provações morais, sejam os desprezos e malquerença de que somos objetos por nossa fidelidade à Igreja Católica, sejam  ainda os duros esforços que, não raras vezes, nos custa a prática exímia dos Mandamentos: sempre que o sofremos, é um passo a mais que damos junto com o Divino Redentor, aliviando-Lhe o peso da cruz.

Cumpre, porém, não nos esquecermos de outra verdade. Ajudando assim a Jesus na sua “Via Crucis”, a exemplo de Simão Cireneu, estaremos, como este, nos tornando merecedores de uma  recompensa demasiadamente grande, de um prêmio de valor incomensurável, que o próprio Salvador nos tem reservado no Céu.

 

Hora certa, pensamento certo

Sob as maravilhosas irradiações da Santa Igreja, o relógio transcende sua função meramente utilitária para tornar-se um símbolo da infalibilidade da Esposa de Cristo a orientar o pensamento humano.

 

No tempo de Carlos Magno ignorava-se a existência do relógio mecânico. Um dos sistemas utilizados para marcar o tempo era a ampulheta, composta de dois recipientes ligados entre si por um gargalo finíssimo. Cada um desses recipientes tem a forma de um meio ovo, colocados de maneira a permitir que uma areia muito selecionada, com grãos bem finos, escoe durante determinado tempo de uma parte para outra da ampulheta.

Presente recebido por Carlos Magno

O primeiro relógio mecânico que chegou ao Ocidente foi mandado de presente a Carlos Magno, durante um intervalo de paz entre os mouros e os católicos, por um maometano inimigo da Cruz de Cristo: o Sultão Harun al-Rashid.

O espírito medieval, ao qual nós nos devemos reportar continuamente como um receptáculo do espírito da Igreja e do espírito da tradição, se debruçou sobre esta invenção.

Carlos Magno, logo que recebeu o relógio e viu o que era, incumbiu Alcuíno — uma espécie de ministro de finanças dele — e outras pessoas de o estudarem. Os europeus se puseram a aprender relojoaria, e daí decorreu que veio ao espírito deles fazer da relojoaria uma maravilha de precisão na marcação do tempo, mas, por outro lado, também verdadeiras obras de arte incomparáveis.

Na Alemanha, há numa torre um relógio em cujo quadrante, a cada hora, passa a figura de um Apóstolo. E quando bate meio-dia, aparecem as representações dos doze Apóstolos.

Outros relógios têm figuras que batem um sino. Por exemplo, em Veneza um relógio de um prédio que fica ao lado da Catedral de São Marcos. Há duas figuras de homens, que batem com toda a força num sino grande, marcando assim as horas. São bonecos de bronze, de bom gosto, e que exprimem inteligência; é uma coisa admirável!

Há relógios enormes e outros tão pequenos que se tornam facilmente portáteis: o homem pode levar um relógio no seu bolso e a senhora colocá-lo num anel. Mas observem o relógio que o homem leva no bolso ou aquele que a marquesa coloca no dedo: são feitos de esmalte, têm pedras preciosas e outras coisas bonitas; são usados por quem pode comprá-los. E há coisas mais modestas para quem precisa de um relógio a fim de marcar as suas horas dignamente.

Aspectos simbólicos e utilitários dos relógios

Entretanto, o relógio-pulseira, em certo momento, fez parte do progresso, e a aparição dele suprimiu alguns aspectos da vida concreta antiga. Por exemplo: na Europa inteira usavam-se relógios grandes, bonitos, com carrilhão, para pôr na sala de jantar, ou na sala de estar, e suas badaladas se ouviam nas demais dependências da casa, marcando a hora para a família inteira.

Passaram da moda, quase ninguém mais os tem. Por quê? Porque o relógio portátil de pulso tornou inúteis esses outros relógios.

Mas quanta coisa desapareceu em torno da ideia do relógio que dava o seu carrilhão solene, enchendo a casa e pondo certa uniformidade na vida de família!

São aspectos minúsculos, mas quanta riqueza e quantas coisas lindas dentro disso!

Existe, contudo, a ideia de que o esforço humano à procura da utilidade deve ser respeitado. E, debaixo desse ponto de vista, deve ser até admirado.

Mas é diferente do esforço do espírito humano quando busca as coisas contemplativas, que se voltam para a observação da vida, a análise sociológica, psicológica, a direção espiritual das multidões humanas, dos povos, das nações, os primores da estética. Tudo isto vale mais do que a coisa verdadeiramente valiosa que está colocada dentro de um bonito objeto.

Relógios nas torres de igrejas

Há, entretanto, um maravilhoso mais belo do que esse, porque já não é só do homem: é o maravilhoso divino, a presença da graça na alma; é a Igreja Católica enquanto sobrenatural, com tudo quanto dela se irradia e que deixa longe o meramente humano. Não há instituição tão bonita como a Igreja Católica!

Considerem só esta maravilha: os relógios nas torres de igrejas.

Quando o relógio foi inventado, não se possuía ainda a tecnologia necessária para fabricar relógios pequenos. Faziam-se, então, relógios enormes que cabiam bem nas torres das igrejas. Ademais, era preciso muito dinheiro para instalar um relógio, o que devia ser feito num lugar alto para servir à população inteira. Então a torre da igreja era o lugar adequado.

Mas a Igreja transformou isso num símbolo: assim como o relógio da torre indica a hora certa para toda a população, a Esposa de Cristo dá o pensamento certo para todos os homens.

Eu não conheço nada tão bonito quanto a instituição infalível, com aquela calma da Igreja — porque a verdadeira Igreja é eminentemente calma — que dá o pensamento certo para cada um a respeito de tudo, com aquela naturalidade da mãe que diz “Meu filho”, acaricia, honra, eleva e passa para outro assunto. Avançam os séculos, ela se mantém naquela serenidade majestosa…

Tudo isto é Igreja Católica, não tem igual, é outro ramo de maravilhoso!                v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 29/5/1974, 2/8/1990 e 16/11/1992)

Revista Dr Plinio 216 (Março de 2016)

 

Templo onde Jesus quer ser invocado

Ó Jesus que viveis em Maria, vinde e vivei em vossos servos, no espírito de vossa santidade, diz São Luís Grignion de Montfort na conhecida Oração a Jesus vivendo em Maria.

Nosso Senhor viveu em Maria, e d’Ela comunicou-se aos homens. Nossa Senhora é o sacrário onde está Jesus Cristo, e o santuário de dentro do qual todas as graças se difundem para o gênero  humano. Por isso, rezemos a Jesus enquanto vivendo em Maria, porque Ele quer ser invocado dentro do seu templo, que é a Santíssima Virgem.

Pedir a Ele o quê? Que Ele venha e viva em nós, como vivia n’Ela. Jesus viver em nós significa termos o espírito da santidade d’Ele, o espírito da santidade de Maria, que é o mesmo espírito da  Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

Isto é o que devemos pedir, por meio de Nossa Senhora, a Jesus enquanto vivendo n’Ela.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Símbolo da santidade, majestade e força – II

Percorrendo o périplo que nos conduz das realidades visíveis às invisíveis, por meio da bondade e beleza das criaturas, chegamos a Deus, Nosso Senhor. Nada torna a vida tão agradável e interessante quanto fazer este tipo de meditação.

 

Estamos longe de analisar o leão simplesmente enquanto um animal forte que domina os outros. Consideramo-lo, isto sim, como um ser de uma rara beleza, que exprime certos predicados intrínsecos de sua natureza, entre os quais um determinado tipo de força e de coragem.

Força régia a serviço da majestade

A força possui todas as características do vigor a serviço de quem é rei. É uma força régia, quer dizer, de quem tem o direito e a missão de mandar, possui a nobreza intrínseca de uma superioridade de alma inerente ao ser dele, tem um direito normal a ocupar os cargos de mando e deve normalmente ocupar esses cargos. E por causa disto o leão exprime a ideia de força régia a serviço de uma majestade régia e dominadora. O papel da heráldica é exatamente pintá-lo de um modo meio irreal, que exprima o melhor da realidade dele, de maneira que se percebe mais facilmente do que num leão de verdade. O que, aliás, é sempre o papel da arte: desfigurar um pouco a realidade para obter o melhor da realidade.

O leão é, em última análise, o símbolo da majestade, a qual inclui, entre outras coisas, a força. É próprio da majestade ser suprema dentro da ordem e da lei, um ente supremo que funciona segundo a ordem natural das coisas e mantém esta ordem. O adequado da lei é ser um ditame da razão, promulgado pela autoridade competente; essa é a definição de lei. O próprio do rei, que é o autor da lei, é de ser o auge do bem, o auge da sabedoria, o auge da justiça e o auge da força.

O leão tem exatamente isto: está numa harmonia com toda a natureza, é uma espécie de obra-prima da natureza. E, enquanto tal, é verdadeiramente régio porque supremo na boa linha, na boa ordem; supremo considerado como tendo uma força que lhe assegura o exercício da supremacia que lhe compete.

Um animal ordenador

De onde, então, existe uma ideia de santidade ligada ao conceito de leão. Ele representa o que há de santo na dignidade régia. Porque o que há de santo, de reto conforme a ordem estabelecida pelo Criador, de supremo, de excelente feito por Deus, o leão representa. De maneira tal que assim como, por exemplo, na heráldica, temos águias com halos de santos, nós poderíamos ter um leão com um halo de santidade. Pelo mesmo título; e até a um título mais alto. O que quer dizer a santidade da majestade?

A majestade é o poder supremo legítimo, e toda autoridade legítima enquanto tal é santa. Quer dizer, foi instituída por Deus para um fim santo. Posso falar da santidade de qualquer autoridade: por exemplo, de um professor dentro da sala de aula. Segundo a própria expressão da palavra “santo”, a autoridade do professor sobre os alunos decorre da ordem natural estabelecida por Deus. E enquanto querida pelo Criador para um fim bom aquela função é santa. Nesse sentido a função de rei é ainda mais santa, porque mais alta, mais nobre; é a mais alta de todas na esfera temporal, portanto enquanto tal ela é a mais santa de todas.

 O resultado disso é que se eu souber fazer uma boa interpretação do leão, nele deverei ver a majestade santa, portanto sabedoria santa pelo discernimento com que ele cumpre o seu papel; força santa porque colocada a serviço de quem precisa mandar e para o estabelecimento da ordem que deve reinar. O leão é um animal ordenador. O contrário de um chacal, por exemplo, que tira os cadáveres da tumba, os devora e deixa toda a sujeira sobre a terra.

Quem considera assim a figura de leão fica conhecendo o que é santidade, majestade e força.

A convergência da teoria com o concreto proporciona o conhecimento pleno

Alguém poderia objetar que esse é um modo medíocre de conhecer esses predicados. Melhor seria tomar um compêndio de Moral católica ou uma enciclopédia e ver a definição de majestade, santidade e força. Para que toda essa explicação sobre o leão? A definição abstrata é muito mais enriquecedora do que a noção de leão.

Eu digo: é preciso ter as duas coisas. Para um completo conhecimento do que é a santidade, a majestade e a força é necessário conhecer a definição e depois ir ao leão e verificar como essa definição se aplica a ele. A meu ver, quem se contenta com apenas uma dessas duas formas de conhecimento faz o papel de um homem que diz o seguinte: “Eu posso perfeitamente vender um olho para um transplante, porque com um olho só vejo bem. Basta-me ver com um olho só”.

Ora, embora se veja com um olho, a visão completa se obtém pela conjugação dos dois olhos. É aí que a noção completa da coisa se estabelece. A convergência da noção teórica com a coisa concreta bem analisada é que dá o conhecimento pleno. Nós não podemos nos contentar com uma coisa ou com outra. O espírito integralmente formado quer as duas coisas.

Um homem que tenha tido a oportunidade de ir a um parque de leões e analisar tal atributo em um leão, tal predicado em outro, tal atitude num terceiro, e depois considerar o leão heráldico como reunindo todas as características vistas nos vários leões, e só então conferir com a noção consignada no dicionário, ficará com a ideia completa e íntegra de santidade, majestade e força.

O Leão de Judá

Vendo as coisas assim, uma pessoa com a mentalidade bem constituída ficaria com a alma cheia de cogitações. Ao invés de pôr um ponto final no processo intelectual, começaria a levantar uma pergunta: Se a santidade e a majestade são qualidades tão belas, a santidade de uma função é algo tão bonito, se é tão esplêndida a força quando colocada a serviço da majestade, não haverá outros seres nos quais eu possa considerar, para nutrimento de minha alma, maior majestade, maior força, maior santidade? Minha alma já se extasia vendo esses atributos simbolizados no leão, mas eu quisera ver mais.

Vem, então, a conclusão: no homem precisa haver mais majestade. Devem existir homens que me deem essa ideia de um modo mais perfeito do que o leão. Que homens terão sido?

A pessoa passará, então, a estudar os homens que foram majestosos na Terra como, por exemplo, Carlos Magno, São Luís IX. E, de majestade em majestade, chegará Àquele que a Escritura qualificou de Leão de Judá: Nosso Senhor Jesus Cristo.

Contempla o Santo Sudário de Turim e diz: “Nenhuma majestade realizada por um filho de homem atingiu a daquele infortúnio, daquela dor, daquela certeza, daquela esperança e daquela recusa. Aquela é a majestade das majestades, a mais alta das majestades que a face humana possa exprimir!”

Então, na sua peregrinação pelas majestades, essa pessoa vai estudar a figura de Nosso Senhor Jesus Cristo no Evangelho. E, após ter considerado a própria humanidade do Redentor, dirá: “Nosso Senhor Jesus Cristo, na sua humanidade, é Corpo e Alma. Entretanto, eu vejo apenas os reflexos da Alma no Corpo, não vejo a Alma. Que feliz seria eu se contemplasse a Alma d’Ele diretamente! Como veria melhor a majestade e a santidade d’Ele se eu pudesse ver a Alma d’Ele, e não apenas a sua face divina!”

E depois dirá mais ainda: “A Alma d’Ele é humana, e tudo quanto é humano é limitado. Deve haver algo infinitamente maior do que a Alma humana d’Ele, e que tem uma majestade, uma santidade e uma força que, estas sim, concebidas em último grau, enchem completamente a minha alma. Para contemplá-las eu serei capaz de todos os esforços, todas as renúncias, todos os sacrifícios. É a natureza divina d’Ele. Porque Deus é infinito, supremo, perfeito, Ele tem tudo. Há, portanto, um Ser incriado que foi o ponto de partida de todas as coisas, e que possui num grau infinito aquilo que eu comecei a considerar no leão de um modo finito”.

Meditação com seu périplo total

Neste ponto os olhos se voltam novamente para o leão e a pessoa passa a ver nele, em todos os seus movimentos, em toda a sua sublimidade, reflexos criados da natureza divina; um espelho de perfeições inexcogitáveis e infinitas de Deus das quais, entretanto, a cada movimento do leão pode-se ter uma certa ideia. Porque, ao contemplar aquilo e perguntar-se como seria em ponto infinito, fica no fundo da alma algo de indizível, objeto de uma meditação propriamente religiosa e que lhe dá a verdadeira apetência do Céu.

Esta é a fase religiosa e final da meditação. É um tipo de meditação caracteristicamente da quarta via de São Tomás de Aquino(1) que, através de um ente criado, nos eleva até o Céu, mas depois nos faz voltar aos entes criados para ir degustando-os como prelibações do Paraíso, ocasiões de sentirmos um antegozo do Céu. Assim levamos a vida cercados de coisas palpáveis e visíveis, sempre considerando as coisas impalpáveis, supremas e invisíveis que elas representam.

Então eu tenho o leão, acima dele o rei, acima do rei os Anjos, acima dos Anjos Nossa Senhora, infinitamente acima de Nossa Senhora, Nosso Senhor Jesus Cristo, e em Nosso Senhor Jesus Cristo tenho o próprio Deus.

Quer dizer, por esta forma eu faço todo um circuito. E compreendo perfeitamente que no Reino de Maria houvesse, por exemplo, uma igreja consagrada a Nosso Senhor Jesus Cristo, onde existisse, quiçá do lado de fora, na praça pública, um leão heráldico, escultura talvez fundida em ouro, na base da qual estivesse escrito “Imagem do Leão de Judá”. Sei que essa escultura deixaria muita gente furiosa, mas isso seria exatamente fazer uma meditação com seu périplo total.

A graça de ver os imponderáveis da Criação

É próprio à natureza humana desejar levar uma vida agradável sobre a Terra. Eu lhes posso garantir que nada, no sentido mais estrito da palavra, torna a vida tão agradável e interessante quanto vivê-la assim. Um homem que não vive desse modo está para quem vive pior do que um cego em relação a quem enxerga normalmente. Mas muito pior, não há comparação.

Poderíamos encerrar estas considerações com a seguinte súplica a Nossa Senhora:

Ó Maria, Esposa Imaculada do Espírito Santo, dai-me a graça de ver os imponderáveis da Criação, de me enlevar por eles e de ser impelido assim, por um amor desinteressado, à contemplação das perfeições que a alma humana possui pela natureza e pela graça.

Fazei-me subir dessa consideração à da natureza angélica, puramente espiritual e, por fim, à de vosso Divino Filho que na sua humanidade santíssima é o ápice e a síntese de toda a Criação. Fazei-me em seguida, por um voo ainda mais possante de desinteresse e enlevo, fixar a minha mente na consideração da própria essência divina, da qual toda a Criação é imagem ou semelhança, de maneira que, analisando depois as criaturas, possa antegozar o Céu, preparando-me assim para entrar nele e lá Vos louvar por toda a eternidade.          v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/1/1973)

Revista Dr Plinio 252 (Março de 2019)

 

 

1) Cf. Suma Teológica I, q. 2, a. 3.

 

Chambord – magnifico crepúsculo da Idade Média

Expressiva característica das grandes construções medievais é o fato de elas solicitarem, de quem as contempla, o tributo de um eminente e abnegado amor, estimando-as mais do que a si próprio.

Exemplo disso é a belíssima Catedral de Notre-Dame de Paris, que manifesta, ante os que dela se aproximam, perene convite para essa superior dileção. O mesmo pedido nos é feito, à maneira de sussurro, por outra preciosa joia de arquitetura, esta já não medieval, mas que conserva algo de medievalizante: o castelo de Chambord.

Quando o visitei, em fins de 1988, tive ocasião de ali perceber restos da graça que soprou sobre a Europa e deu origem à Idade Média, pondo-se séculos depois, lentamente, como um sol  esplendoroso.

Chambord é uma das irradiações desse ocaso da Cristandade medieval, mas um ocaso magnífico, como magnífica é também a Cristandade.

Durante minha visita, voltei a vista continuamente para esta consideração: cada detalhe do castelo espelha de modo esplêndido o espírito católico, ainda que sob a forma de um glorioso crepúsculo. No fundo, eu contemplava em Chambord cintilações da Santa Igreja Católica, à qual amamos de um amor tão imenso, que este amor se torna a razão e o fundamento de todas as nossas demais benquerenças.

E é porque a alma católica me encanta, é porque nela discirno o reluzimento do Divino Espírito Santo, que me apraz admirar Chambord. Nesse castelo, tudo é amabilidade, harmonia, leveza, elegância, força e coragem. Ora, é a graça de  Deus que concede aos homens a possibilidade de serem assim e de imprimirem nas suas obras reflexos desses predicados. E a graça lhes vem através da Igreja Católica, de seus ensinamentos, de seu apostolado e maternal influência. Graças e influxo materno que, em Chambord, tocaram profundamente minha sensibilidade.

Essa maravilha que eu sonhava em conhecer, achava-se fechada aos turistas na tarde em que ali cheguei. Sozinha, silenciosa, envolta nas  discretas penumbras do pré-anoitecer que começava. O conjunto refletia aquela espécie de poesia, de tristeza e de beleza especiais das coisas abandonadas. Separava-me do castelo um terreno coberto por uma erva que nasceu de modo mais ou menos fortuito, mas que adquiriu extraordinário encanto, realçado aqui e ali por graciosas florzinhas brancas surgindo inocentemente da relva.

À direita, destacava-se uma capelinha de gótico “flamboyant”, do século passado, em perfeita harmonia com o estilo de Chambord. A floresta, sobre a qual incidia uma luminosidade amena, pareceu-me de rara beleza, imersa em suave e discreta melancolia. Contemplando aquelas árvores, tinha-se a impressão de ver um mundo de personagens que participaram de toda a existência áurea de Chambord, e que agora se encontravam para além do rio que nos separa da eternidade, considerando com certo pesar a derrota de tudo quanto eles conheceram e representaram.

Já o castelo, com sua imensa beleza, altivez e fantasia, erguia-se à maneira de um “grand-seigneur “passeando por seus domínios. Hierático, algum tanto distante do mundo ao seu redor, um “grand-seigneur” que, no mesmo dia, pela manhã tomou parte numa batalha, à tarde recebeu convidados para uma festa na qual dançou, e no fim da noite se pôs a caminhar sozinho pela floresta.

E leva consigo alguma coisa da batalha, da dança e do mato. O que tem o castelo? Proporções muito bonitas e um universo de chaminés de tamanhos variegados, surdindo como “champignons” por toda parte, numa verdadeira feeria de pequenas cúpulas e torres, algumas maiores, outras menores, causando a impressão de que um certo húmus passou do solo para o castelo, e deste para o ar.

Esse húmus, indescritível, é o responsável pela grande fantasia que existe em Chambord, emoldurada por uma regra, uma linha e uma harmonia que nos deixam encantados. De vez em quando, o silêncio daqueles instantes era interrompido por diferentes piados de pássaros. Ora era um longo trinado, como se do fundo dos séculos algo dissesse: “Eu ainda vivo!” Ora era uma ave que, perseguida por outra, exalava um grito de desespero, atraindo nossa atenção para uma espécie de pungente e oculto drama que se desenrolava no meio daquele arvoredo.

Dali a pouco os pássaros emudeciam, o silêncio se recompunha em torno do castelo, e Chambord continuava seu velho sonho, triste, digno, seguro de si mesmo e abandonado. E as penumbras do entardecer, e as derradeiras incidências de um lindo crepúsculo, tremeluzindo sobre um extenso gramado de relva selvagem, mal plantada mas que deveria ser assim — tudo se tornava úmido de absoluto, impregnado de graças celestiais.

Sim, mais uma vez é a graça que nos faz admirar em Chambord o que, sem o auxílio dela, não nos seria perceptível. São expressões do castelo, são impressões e sentimentos que ele só transmite a quem é favorecido com essa assistência sobrenatural.

E deixamos o tempo transcorrer ali com a intenção de vislumbrar a graça como uma luz acesa no interior de Chambord. O próprio castelo seria o “abat-jour”, esplendoroso, extraordinário, porém o  mais aprazível era considerar essa luz celeste que acentua sua inenarrável beleza, sua tranqüilidade recolhida, sua majestade.

Era impossível que Chambord fosse tão belo, tão perfeito, e que Deus não estivesse presente ali. Era impossível que aquele castelo possuísse essa perfeição e essa beleza, se estas não fossem fruto das lágrimas de Maria e do preciosíssimo sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Plinio Corrêa de Oliveira

Parece um conto de fadas!

A Torre de Belém dá a impressão de ser um castelo completo e não apenas uma torre. Ela tem a pompa, a imponência, o entretenimento de uma fortificação. Suas pedras brancas ao Sol possuem  particular encanto, parecendo um conto de fadas. Já a Catedral de Sevilha é uma fortaleza meio eclesiástica e uma igreja meio fortaleza.

 

A simples vista da Torre de Belém sempre me produziu uma impressão parecida, na ordem natural, com o que seria um êxtase na ordem sobrenatural. Êxtase é uma atitude da alma quando há  uma comunicação de Deus para com ela, que a faz ficar fora de si. Há coisas que na ordem natural podem produzir êxtases. Essa torre me produziu sempre um êxtase.

Pompa, imponência e entretenimento de um castelo

Quando fui a Lisboa, visitei-a detida, prolongada e embevecidamente, mas não realizei o programa que tinha a respeito dela. Quem sabe se Nossa Senhora me dará a oportunidade de fazer isso  algum dia: ir até lá à noite, inteiramente só, dar várias voltas à torre. Mais ainda, ter uma lancha à minha disposição, de maneira a poder contemplá-la a várias distâncias no Tejo.

Isso para me  fazer a ideia de qual era a atitude de alma de um missionário ou de um navegante português quando saía em direção ao Atlântico e via a Torre de Belém ficando menor… que saudades e  embevecimento ela lhe causaria. E quando voltava e a observava ficar cada vez maior, que impressão ele experimentava.

Esse edifício dá de tal maneira a impressão de ser um castelo inteiro, e não uma simples torre, que nos perguntamos como uma torre pode ser tão bela. Ela tem a pompa, a imponência, o  entretenimento de um castelo, com isso de lindo: parece um conto de fadas! Sensação causada pela pedra branca com que é construída, e cujo brilho ao Sol tem um particular encanto, mas  também por um predicado que se encontra em várias obras de arte portuguesas, e me agrada muito: o contraste entre o liso e o sobrecarregado.

Notamos que as paredes da torre são inteiramente lisas, e sua monotonia é remediada, com vantagem, apenas pelo seguinte: de alto a baixo, uma linha constituída de uma primeira janela, depois  dois pequenos arcos geminados e divididos por uma coluna graciosa, formando uma só janela.

Em seguida, um terraço com dossel e dois pequenos arcos que repetem os de cima. Esse terraço é intensamente ornamentado e muito bonito. Temos então, reunidos numa superfície pequena,  uma sobrecarga de ornatos que seria quase uma caixa de joias, um escrínio e não um terraço.

Beleza artística e utilidade militar

Logo abaixo temos a unidade assegurada pela última janela, muito simples, que repete a primeira. Assim, o  epílogo lembra o início. São Tomás dizia que o círculo é uma figura perfeita porque  volta à sua origem, pois tudo quanto retorna ao seu ponto de partida é perfeito. É bonito que o ponto de chegada desta linha perpendicular seja tão semelhante ao ponto de partida, pois essas duas janelas – a primeira e a última – são iguais.

Notem também, para quebrar a monotonia, essas guaritas colocadas simetricamente bem nos ângulos da torre, todas com as mesmas características: o teto muito sobrecarregado, constituído de  vários gomos e encimado por um cone, no alto do qual encontra-se uma esfera.

O resto, simplicíssimo. Uma simples janela, como costumam ter as guaritas, cuja pobreza, nudez e singeleza lembram a primeira e última janelas acima comentadas. Considerem as ameias da  torre. É um alto terraço circular destinado, evidentemente, a verificar o que dia e noite se passa ao redor. A torre é concebida para se defender ela mesma contra um ataque do adversário.

Mostrarei, em breve, os aspectos militares da torre. No que seria o parapeito, a torre tem uma série de brasões das casas fidalgas ilustres de Portugal. Cada uma dessas pontas é um brasão,  lembrando as glórias das casas aristocráticas portuguesas. Uma porta dá  acesso para um salão interno, onde os guardas descansavam e tomavam refeição.

É muito bonita a altaneria e dignidade dessas várias divisas lembrando as glórias de Portugal. Assim, ao invés dos muros “dentados”, como costumam ser as edificações deste tipo da Idade Média,  os “dentes” são representados por esses emblemas. Reparem como eles têm uma dignidade, um peso, um tamanho e uma força extraordinários. No intervalo entre um brasão e outro, o  soldado   atirava setas e, mais raramente, projéteis de armas de fogo primitivas que, na época em que a torre foi construída, apenas começavam a ser usadas. Feito o disparo, os combatentes se escondiam  atrás dos brasões de pedra, de maneira a não serem facilmente apanhados.

Vemos, assim, como a beleza artística coincide com a utilidade militar. O fato mesmo de haver tão poucas janelas é para defesa, limitando a entrada na torre. Por isso também a janela de baixo é  muito simples e não tem terraço, para ninguém se pendurar e ficar atacando para dentro. Ademais, é janela com grade. Tudo com a preocupação de fazer da torre um uso militar.

O “unum” se perde no céu

No centro da torre ergue-se um torreão menor do que ela a fim de dar espaço para a ronda. Há, portanto, duas rondas: uma no alto, e outra embaixo. Há nisso uma razão militar muito boa, pois  amplia muito o campo de visão e a possibilidade do acerto nos disparos. Mas além da razão militar existe uma vantagem estética.

A torre assim como está impressiona muito, mas deixa na vista uma ilusão que resolve o seguinte problema: vemos a parte mais larga da torre e, acima dela, a mais estreita. Entretanto, em cima  não existe um “unum”. Ora, tudo nesse monumento pede que haja um “unum”; essas guaritas pedem um “unum”. Onde ele está?

A ideia é que o “unum” se perde no céu. É um “unum” meio imaginário, como seria e do cone do Fuji-Yama. Essa ideia é insinuada pela diferença da largura entre as duas partes da torre. A parte  menor cria na imaginação, subconscientemente, a ilusão de outras menores que se sucedem, perdendo-se no céu, o que tem, portanto, uma grande beleza.

Se considerarmos esse terraço na base da torre, que é a primeira linha da defesa dessa fortificação, percebemos mais uma vez os escudos e as guaritas repetindo o elemento ornamental de cima.  Embaixo vemos janelas gradeadas, que dão para o calabouço, pois no porão da torre existiam prisões.

É muito bonita a largura desse terraço, porque tem uma certa relação estética com a altura da torre, fazendo com que o todo pareça muito amplo, quando na realidade é simplesmente uma torre.  Essa torre está para o terraço mais ou menos como a rainha estaria para a cauda de seu vestido. O terraço é uma espécie de projeção, de cauda magnífica da torre. A rainha de pedra tem uma cauda também de pedra e olha altiva para a cidade, e dominadora para o mar. A posição é muito bonita.

Cabral e Dom João VI

Nesse terraço, quando partiam as esquadras portuguesas, às vezes o próprio rei vinha apreciar a partida da armada, acompanhado da rainha e outros membros da família real, com a corte,  prelados, guerreiros, magistrados, que enchiam as muralhas e janelas da torre com pessoas esplendidamente vestidas.

Desses terraços pendiam tapeçarias, e o colorido era magnífico. Podemos imaginar a beleza daqueles galeões avançando com o estandarte da Ordem de Cristo. Uma esquadra com cinco, oito navios, cânticos do lado de cá, cânticos do lado de lá. Quando as naus passavam diante do rei, reverência, com salvas de tiros no tempo das armas de fogo; e as naus desapareciam aos poucos no Atlântico.

Pela Torre de Belém passou a esquadra de Cabral que vinha introduzir no mundo essa realidade chamada Brasil. Por ali passou também – em condições quão diferentes, mas não despidas de  dignidade, nem de glória – a esquadra na qual Dom João VI vinha fugindo de Junot.

À última hora, quando estava tudo pronto para partir, deu-se um episódio pitoresco. Ouviu-se do cais: “Para! Para!” Era um homem que vinha trazendo mais uma escrivaninha preciosa, esquecida no palácio real.

Aliás, a partida de Dom João VI foi muito bem preparada. O monarca trouxe todo o ouro do tesouro de Portugal, o mobiliário dos palácios dele, obras de arte, joias, e até sardinhas, das quais ele  gostava muito e sabia não haver no Brasil. De maneira que quando comermos sardinhas frescas, lembremo-nos de que elas descendem das sardinhas trazidas por Dom João VI.

“Quem não viu Sevilha, não viu maravilha”

Consideremos um outro monumento, agora na Espanha: a Catedral de Sevilha. Ela nos lembra um antigo provérbio português: “Quem não viu Sevilha, não viu maravilha”. Encontramos nesse  edifício algo, mas muito pouco, do que elogiei na Torre de Belém. Essas duas torres laterais são muito ornadas. Entre elas, um espaço simples, com fundo claro e um gradeado muito bonito de ogivas e rosáceas, que fazem o contraste do simples com o muito embelezado.

Vê-se uma faixa grande e muito ornada com imagens de Santos encimados por dosséis. Por cima do fundo simples ao qual aludi, encontra-se o portal com um triângulo Gabriel magnífico, que é uma expressão da ogiva e, embaixo, uma porta ogival profunda. Em cima há algo parecido com aquela diminuição da Torre de Belém e, depois, também um terraço como no alto daquela torre.

Essas guaritas no canto lembram igualmente a Torre de Belém. Não creio que isso tenha sido inspirado nela, mas são afinidades de estilo, muito compreensíveis entre Espanha e Portugal. A meu  ver, o bonito dessa porta é que ela tem qualquer coisa de monumental. As torres têm uma altivez, levantam-se do chão com muita decisão e galhardia. Temos a impressão de que elas seguram o   chão como se fossem garras, e sobem ao céu com uma segurança, uma inteira despreocupação do perigo de cair, e que sustentam o peso em cima com uma completa facilidade. Mais ainda, tenho a impressão de que elas olham do alto de si mesmas para a terra e para os pobres transeuntes, de cima para baixo, numa atitude de desafio, quase como quem diz: “Se ousas, experimenta. Só pela  minha fisionomia, te afugento. É assim que eu sinto a terra”.

Modos inocentes de aproveitar a vida

Notem como esses arcos, que são arrimos das torres, foram transformados em verdadeiros ornatos pelos arquitetos muito artísticos do tempo. Há qualquer coisa de porta de fortaleza nesse magnífico portal. É uma característica muito sensível para mim, agrada-me muito essa fusão. Uma fortaleza meio eclesiástica e uma igreja meio fortaleza realizam a síntese de que eu gosto, isto é, os mais altos valores do espírito defendidos pela força e postos dentro da luta, com a entrega do homem e o risco da vida.

É, por exemplo, a guerra religiosa, a guerra das almas e dos corpos, com uma integridade que constitui sua beleza. Um minúsculo pormenor característico da Península Ibérica é a palmeirinha, tão presente no Sul da Itália, da Espanha, de Portugal, mais rara no restante da Europa, frequente no litoral da África do Norte, tão comum no Brasil.

Outra coisa também minúscula, mas que compõe o ambiente e o panorama: esse chafariz que provavelmente servia para os cavalos beberem água. Termino com um pequeno comentário a respeito as árvores. Em Granada se vê muito isso: no interior do Alhambra, aquelas partes muito bonitas, com os chafarizes cantando. Mais ainda: da fonte vêm sulcos para dentro dos quartos, com regozinhos que fazem com que a água brinque e corra em pequenos sulcos dentro do próprio quarto. Para um lugar quente, que maravilha! Esses  são modos inocentes de aproveitar a vida, que tiram a mania e a obsessão de impureza. Por causa disso a Revolução combate o quanto pode para fazer com que a vida virtuosa seja sem graça. Contra isso, devemos nos levantar.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 15/1/1977)