“O rei e o menino”: a beleza da vocação

Como já vimos de outras vezes, Dr. Plinio servia-se amiúde de metáforas para explicar a seus jovens ouvintes as realidades profundas da vida do católico, à luz das verdades da Fé. Através da parábola narrada a seguir, faz-nos ele compreender a importância de um dos momentos mais decisivos na existência do homem sobre a Terra: aquele em que recebe o chamado de Deus, a vocação. Acompanhemos a linguagem clara e simples de Dr. Plinio descortinando o fascinante tema da voz divina a ressoar nas almas, convidando-as a seguir um caminho sublime e, não raro, semeado de provações…

 

Imaginemos um monarca que passeia de automóvel pela capital de seu reino. Viúvo, cujo filho único e herdeiro morreu ainda criança, o resto de sua família se extinguiu sem descendência e, portanto, não há quem dê continuidade à dinastia. Entretanto, por uma dessas coincidências existentes na natureza, reside na mesma cidade um menino que, embora de traços fisionômicos semelhantes aos do falecido príncipe, não tem com a casa real nenhum parentesco.

O encontro com outro possível herdeiro

Quando o carro do soberano se detém num cruzamento, os olhos dele recaem sobre aquele menino a atravessar a rua, e o rei, impressionado pela semelhança com o ex-herdeiro, manda chamá-lo. O garoto, ao mesmo tempo surpreso e maravilhado, aproxima-se timidamente e pergunta:

— Majestade: em que posso servi-lo?

— Sente-se ao meu lado, quero conversar com você.

O trânsito engarrafado não permite que o automóvel se desloque. O rei indaga do menino sobre seus estudos, sua família, trabalhos. Durante esse tempo, o menino não pensa em si, mas apenas no soberano. Este não observa o movimento das ruas e presta atenção somente no menino. Percebe que ele inspira boas esperanças e poderia ser adotado como seu filho.

Despedindo-se do jovem, o monarca lhe diz:

— Esteja às tantas horas no meu palácio com seus pais. Desejo conversar com os três.

O menino é adotado pelo rei

No momento aprazado, os três comparecem. São pessoas modestas, maravilhadas diante dos esplendores da residência palacial, entre as quais transitam com encanto e receio. Pisam sobre um tapete persa, e o marido diz à mulher:

— Que tapete magnífico! Parece até com o da casa do subprefeito de nosso distrito, que pertenceu ao xá da Pérsia e foi comprado num antiquário…

Após vários deslumbramentos, chegam à presença do rei. Este os recebe com extrema bondade, põem-se a conversar, e à certa altura o soberano diz:

— Desejo que este menino seja meu herdeiro. Se consentirem, eu o adotarei como filho e o educarei para as funções régias. Quando eu morrer, será o novo monarca, e vocês terão a honra que jamais imaginaram: tornar-se-ão pais do rei.

O casal possuía uma prole numerosa, e já não sabiam o que fazer com tanta criança dentro de casa. Estupefatos com a proposta do rei, pensam:

“Teremos um filho tão bem instalado! Que alto negócio! Depois, receberemos torrentes de dinheiro para educar de modo conveniente os outros e assim todos farão carreira promissora. Além disso, ganharemos um prestígio sem nome no bairro onde moramos. Ao chegarmos em casa e nos perguntarem pelo menino, poderemos responder:

“— Está no Palácio real. Ele agora é filho do rei.

“— Como?! Filho do rei?!

“E contaremos toda a história. Que ótimo negócio!”

Contentíssimos, aceitam a proposta do soberano e se retiram.

Sinceridade e gratidão submetidas à prova

Sobrevém a noite e o rei ordena aos seus mordomos:

— Levem o menino para o quarto de dormir de meu falecido filho. Está tudo preparado, vistam-no com aquelas roupas, ofereçam-lhe os alimentos que desejar, sirvam-no como o faziam ao príncipe. Quero que ele seja beneficiado com toda a largueza da munificência real.

O menino vai sendo educado, torna-se moço e convive de modo perfeito com o rei. Tudo corre com normalidade, porém no espírito do monarca nasce uma interrogação: “Esse menino me quererá verdadeiramente bem? Ser-me-á agradecido pelo que recebe de mim? Tornar-se-á digno de um dia dirigir meu reino? Ou é um ingrato que me agrada por interesse momentâneo, e, no fundo, não me tem sincera amizade? Para conhecer as respostas a essas indagações, vou submetê-lo a uma dura prova, pois se não o fizer, minha generosidade pode significar grande estultice. Mas, se corresponder às esperanças nele depositadas, dar-lhe-ei coisas ainda melhores e mais abundantes”.

O rei chama o jovem e lhe diz:

— Nossa situação parece maravilhosa. Você tem a certeza de herdar um trono. Portanto, posição magnífica o aguarda. Porém, precisa se preparar, pois a vida é feita de surpresas, e a História apresenta vários exemplos de reis que foram inesperadamente depostos do poder. Eis aqui um livro sobre monarcas destronados. Estude-o para conhecer o papel da traição na queda dos reis e aprender como a condição de soberano, embora firme na aparência, é de fato instável e mutável. Após esse estudo, você será examinado. Veja a vida em cor séria e compreenda o esforço necessário para se manter como rei. Se for mole, o monarca perde o trono e o poder.

Exerço a realeza há muitos anos. O povo me obedece, é verdade, mas que vigilância preciso ter! As coisas não são fáceis. Se o encargo de rei lhe parecer por demais árduo, dar-lhe-ei dinheiro para você seguir a profissão de seu pai, montar uma lavanderia maior e prosseguir na existência tranquila de um qualquer. Porém, não será rei, nem desfrutará das honras e glórias da condição régia. Você se enfurnará no anonimato. O anônimo: que homem feliz! A quem ninguém ama nem odeia. Possui dinheiro para subsistir e leva uma vida sossegada.

Você já pensou nas vantagens do anonimato? Passeie um pouco pelas ruas, observe os moços de sua idade, felizes nos seus automóveis, levando a existência agradável e sem incômodos dos homens abastados e desconhecidos.

Você, não! É um príncipe, e deve proceder como tal, em quaisquer circunstâncias. Os olhos de todos estão voltados para sua pessoa. Ainda ontem o criticavam pelo simples fato de brincar com os dedos enquanto conversava. Não é atitude permitida ao herdeiro do trono. Já pensou na vida dura que terá?

Meça o peso do fardo que cairá em suas costas. Receberá honras e riquezas, mas utilizá-las com desapego é como carregar um rochedo pela vida inteira. É o meu caso.

O menino pensa um pouco e responde:

— Obrigado! Vou ler o livro…

A resposta errada

Terminado o prazo estipulado para o estudo, o rei manda chamar o menino e lhe pergunta:

— Leu a obra?

— Sim, li.

— E a que conclusão chegou?

— Não pensei que exercer a realeza fosse tão difícil, pois conhecia apenas uma faceta dela. Porém, acredito que, sendo tantas as vantagens, vale a pena carregar o fardo. No total, prefiro herdar o trono. Desejo ser rei!

O monarca diz:

— Não é a resposta correta que esperava de você. Dou-lhe mais um prazo para pensar. Se, por fim, responder como deve, merece reinar. Do contrário, perderá seus direitos, porque ficaria demonstrado a nulidade de tudo que fiz por você.

Tendo acabado de declarar sua intenção de ser rei, o jovem vê seus planos caírem subitamente por terra. Como poderia encontrar a resposta adequada, sozinho, pois que lhe estava vedado consultar qualquer pessoa?

— Nesse período — dissera-lhe o rei — você estará proibido de conversar com quem quer que seja, assim como de se ausentar do palácio. Descubra a resposta correta. Quero ver que espécie de sentimento você guarda no fundo da alma.

A resposta perfeita

Estaria o monarca agindo bem, ao tratar o jovem dessa forma?

Sim, seria o normal. Ponha-se cada um na posição do rapaz. O que responderia ao rei?

A resposta perfeita seria a seguinte:

— Meu senhor e meu pai. Não me importa saber o que acho agradável e sim como vos poderei retribuir por tudo o que fizestes por mim. Se vos ampararei na vossa velhice; se, quando assumir o trono, terei bastante amor à altivez, à glória, à elevação dos princípios, à civilização cristã, a Nosso Senhor Jesus Cristo e à Santíssima Virgem, de maneira que eu faça do meu “métier” de rei um serviço de Deus. Houve tantos santos entre vossos antepassados! A capela do palácio é consagrada a São Luís IX. Nesta sala tendes uma imagem de Santo Henrique, imperador do Sacro Império e também vosso ascendente. Tudo isto ameaça se extinguir em vós porque vosso único filho faleceu. Cabe a mim a glória de dar continuidade a essa linhagem e não permitir que o fio se interrompa.

Meu pai e meu senhor: não me interessa saber se levarei uma vida gostosa e sim se estarei à altura dessa missão. Ensinai-me a ser cada vez mais piedoso, mais dedicado a vós, que sois a mão de Deus para mim. Quero a felicidade, mas sobretudo para o momento em que eu expirar e, comparecendo diante do Altíssimo, puder exclamar: “Senhor, vós me destes o ser e um pai adotivo me outorgou a realeza a qual aceitei para vossa glória. Dediquei-me totalmente a ele, pois assim o fiz por Vós, Criador de todas as coisas. Não temo encontrá-lo na vossa corte celestial, aonde ele me precedeu, porque sei que, pousando sobre mim seu olhar amoroso, dirá: ‘Meu filho, agora mais filho meu do que nunca, senta-te à minha direita! Vamos contemplar juntos a Deus, o Senhor dos senhores, o Rei dos reis, que domina todos aqueles que exercem domínio’”.

E o jovem, correspondendo às expectativas do monarca, deveria acrescentar:

— Posso sofrer muito, ser mal compreendido, perseguido, destronado. Posso, pelo contrário, ser glorificado, aclamado, tornar-me célebre. Pouco importa! O caminho que devo trilhar é o do dever, da gratidão a vós e do serviço de Deus.

Após dar essa resposta, o moço se retira da sala e o rei diz a si mesmo: “Minha dinastia renasceu!”

Segunda provação: a indiferença real

Prosseguindo em nossa metáfora, imaginemos que em determinado momento o rei decide sujeitar este filho a outra prova. Passa a fingir que já não lhe demonstra a mesma amizade, não o compreende bem. Olha-o com indiferença, até com certa distância. Concede-lhe audiências curtas, presta-lhe pouca atenção, evita-o em favor de outras coisas menos importantes. Chega a ponto de conversar com terceiros, na presença dele, sobre reis viúvos e sem filhos que casaram novamente, tiveram prole e asseguram sua descendência. “Quem sabe eu sigo o exemplo deles, contraio outras núpcias e tenho um herdeiro do meu próprio sangue?”

O menino adotado sente-se rejeitado, mas pensa:

— Recebi tanto dele! Ainda que me tire tudo, eu o servirei a vida inteira!

E ele passaria por essa segunda prova, ainda mais cruel que a anterior.

Terceira e última provação

Contudo, o soberano precisava de uma derradeira demonstração de fidelidade da parte do menino. Certa madrugada, manda acordá-lo e trazê-lo à sua presença:

— Preciso incumbi-lo de uma missão perigosa e confidencial. Em país distante há um preso que espera essa mensagem minha. Você terá de viajar para lá, dizer que é meu filho, deixar-se prender e, conduzido ao mesmo cárcere, transmitir o meu recado à pessoa em questão.

O jovem, embora surpreso, não hesita em responder:

— Meu senhor e meu pai. Se me permitirdes de vos tratar ainda dessa maneira, minha vida é vossa!

O rei então acrescenta:

— Não sei quanto tempo o manterão encarcerado. Pode levar anos. Se, estando lá, ouvir dizer que me casei e tive um filho, reze por mim e por este, pois será o sucessor do trono.

O rapaz diz:

— Meu senhor e pai, farei isso com todo o empenho. A que horas devo partir, com quem devo falar? Dai-me vossas ordens.

Responde-lhe o rei:

— Você tem uma hora e meia para estar pronto e sair. Já tratei muito com você e o conheço bem. Diga-me rapidamente até logo e vá embora!

O rapaz se inclina e se retira.

Na hora exata, ele se apresenta disfarçado diante dos guardas do palácio, pois, conforme as instruções do soberano, ninguém deveria saber de sua partida. Mas, para a surpresa do jovem, os sentinelas o impedem de sair, dizendo-lhe: “O rei ordena que volte para seu quarto!”

Ele retorna e o monarca o acolhe com transbordamentos de agrado.

Estava assegurada a sucessão do trono nesse reino mítico e maravilhoso…

Analogias com a vocação

Essa metáfora se aplica à história de cada um de nós que recebeu o chamado para seguir as vias de uma determinada vocação. Por exemplo, à do nosso movimento. Não nos convidou a ele um simples rei, mas alguém com brilho insondavelmente maior: Maria Santíssima, Rainha do Céu e da Terra. De modo semelhante ao do rei imaginado, por vontade divina Ela nos escolheu para servi-La de maneira muito especial.

Qual era a vida de cada um de meus ouvintes antes de pertencer à nossa família de almas?

 Fomos chamados em circunstâncias as mais diversas. Se procedemos de um ambiente que preparou nossa vocação, quanta graça a Providência nos concedeu nesse sentido, dispondo que tudo favorecesse a aceitarmos esse convite. Se, pelo contrário, viemos de um meio adverso, quanta misericórdia do Criador, ao olhar para o lugar em que crescemos e dizer: “Aqui escolherei um filho, um príncipe!”

A graça passou a latejar em nós

Sem sabermos, iniciaram-se movimentos no interior de nossas almas. Um senso moral mais vivo nos fez estranhar os procedimentos pouco recomendáveis que presenciamos neste ou naquele ambiente, e passamos a desejar as atitudes virtuosas contrárias ao que nos aborrecia. A graça latejava em nossos corações, dizendo-nos: “Que coisa péssima! E que linda, tal outra! Como são belos tais monumentos da Cristandade, tal música, tal época do passado! Como seria bom se o que há de errado no mundo moderno se consertasse!”

Começou a surgir em nossa alma a oposição ao mal.

Assim, cada um de nós foi chamado. Em diferentes cidades, Estados, condições de vida e, às vezes, até no fundo de uma queda moral. Caiu… e em determinado momento teve horror de si mesmo. Era Deus falando no interior da sua alma, chamado-o para amá-Lo. 

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Continua em próximo número.)

Revista Dr Plinio 96 (Março de 2006)

 

A ordem natural e os Dez Mandamentos

Resumindo toda a ordem natural em apenas dez princípios sublimíssimos, no alto do Sinai, em meio aos raios e toques de trombetas angélicas, Deus entregou as tábuas da Lei a Moisés.

 

Muitas pessoas queixam-se: “Oh, vida dura! Oh, vida complicada! Oh, vida difícil!” Até certo ponto — e eu diria que em larga medida — elas têm razão, porque nossa existência transcorre num vale de lágrimas. Chora-se porque se sofre.

Mas é verdade também que a vida oferece suaves e doces compensações, desde que se saiba procurá-las onde realmente estão. Assim, aprende-se a ver nela determinados aspectos que compensam sua dureza, dando-lhe um sentido e um bem-estar interior que o homem moderno não conhece.

Pela bondade de Nossa Senhora, um dos lenitivos que encontrei ao longo de minha vida foi o Tratado de Direito Natural, de Taparelli d’Azeglio

O homem: ápice e rei da criação material

Lendo tal Tratado, encontrei explicação para algo que eu nunca conseguira explicitar adequadamente: a razão de ser dos Mandamentos.

Eles me pareciam resplandecentes, fulgurantes; mas, por que razão eles se me apresentavam tão belos? Eu percebia ser lindo proceder de acordo com a Lei estabelecida por Deus, mas isto não me satisfazia. Sendo tão bonitos, era impossível não possuírem um fundamento racional, cognoscível ao homem. Qual era sua razão mais profunda? Deus poderia ter estabelecido outros Mandamentos? Terá, então, Deus agido arbitrariamente, promulgando estes e não outros?

Ora, Deus criou o Céu e a Terra; os animais, os vegetais e os minerais; os anjos e os homens. A cada um destes seres Ele deu uma natureza própria, colocando-os em movimento em perfeita colaboração com a ordem do universo.

Os animais e os vegetais, por exemplo, são de tal maneira ordenados que uns e outros se desenvolvem sem trazer dano para outras espécies. Mesmo quando uma fera devora outra — algo que até parece uma agressão selvagem —, vê-se que isto está na ordem da natureza. É a boa ordenação posta por Deus em todas as coisas.

No ápice e na realeza da Criação material Deus colocou o homem. Adão tinha de tal maneira o conhecimento e o poder sobre a natureza que, quando foi criado, todos os animais desfilaram diante dele. Imaginemos a beleza desse desfile: os animais passam e recebem de Adão o nome mais adequado segundo a sua espécie. Deus o colocou como o seu lugar-tenente, seu representante na Terra.

Estando no ápice da Criação, Adão tinha obrigação de agir de acordo com a sua própria natureza, de modo que a ordenação estabelecida pelo Criador se verificasse nele com mais perfeição do que em todas as outras criaturas visíveis.

Assim, ele atuaria conforme a natureza de todos os seres e poria em funcionamento essa imensa perfeição que vem a ser a Criação. Pacífica, tranquila, facilmente ele governaria toda a Terra, como príncipe herdeiro de Deus.

Pecado, a violação da ordem natural

Porém, Adão violou a ordem natural de relações entre o Criador e ele, cometendo o que se chama pecado. Agiu em desacordo com sua natureza criada e, sobretudo, com a natureza de Deus. Conhecendo-O e tendo d’Ele recebido inúmeras provas de bondade, Adão, entretanto, pecou contra Deus!

O que é então o pecado? É um ato de revolta contra Deus, que o homem praticou violando a ordem por Ele instituída.

Examinando então os Dez Mandamentos, numa rápida inspeção de horizontes, percebemos o que eles têm de profundo: são conseqüência da ordem natural das coisas posta por Deus.

Os Dez Mandamentos

A Lei imposta por Deus é bela e ordenada. Ela compreende dois grupos de Mandamentos: os que dizem respeito ao relacionamento do homem com Deus e os que tratam das relações dos homens entre si. Três Mandamentos pertencem ao primeiro grupo, sete ao ­segundo.

Quanto ao primeiro grupo, analisando-o, facilmente conclui-se sua objetividade: sendo o Criador infinitamente superior aos homens, devemos amá-Lo sobre todas as coisas, não tomar o seu Santo Nome em vão e guardar os dias a Ele consagrados; estes são exatamente os três Mandamentos que se referem ao primeiro grupo.

Analisemos alguns dos Mandamentos de ambos os grupos.

Não tomar seu Santo Nome em vão

O que quer dizer “não tomar o seu Santo Nome em vão”?

Significa nunca pronunciar o Nome de Deus, a não ser havendo uma razão à altura. Então, nunca blasfemar — é o arquétipo de tomar o Nome de Deus erradamente — nem empregar seu Nome numa conversa sem que seja razoável, porque Ele é tão supremo e sagrado, que usá-Lo sem necessidade já significa faltar-Lhe com o respeito.

Este preceito também se refere de algum modo àqueles que têm uma particular relação com o Altíssimo e, por causa disso, também às coisas sagradas as quais não podemos mencionar em vão, nem fazer brincadeiras, gracejos, porque elas participam de certa forma da dignidade de ­Deus.

Antes de tudo, o mais suave e santo dos nomes, usado pelo Homem-Deus: o Santíssimo Nome de Jesus! E depois, o mais doce e acessível dos nomes utilizado pela mais sublime das meras criaturas: o dulcíssimo Nome de Maria. São nomes que não podem ser empregados em vão. É preciso haver uma razão para usá-Los com respeito porque, do contrário, peca-se.

E, por conexão, também os nomes de pessoas, de instituições que merecem o devido respeito. Entre nós é costume, sempre que se fala de uma pessoa eclesiástica, mencionar o título antes de indicar o nome: Padre, Cônego, Monsenhor, Dom, Cardeal. Porque o nome da pessoa, pela função sagrada por ela exercida, se tornou tão respeitável que não deve ser usado sem o respectivo título.

É mais ou menos como numa família bem constituída: quando os filhos falam do pai, da mãe, não dizem o fulano ou a fulana, mas papai ou mamãe. E, referindo-se a um tio ou uma tia, tio Fulano ou tia Fulana, pelo respeito especial que lhes devem.

Terceiro Mandamento: Guardar os dias de festa

Acho o terceiro Mandamento uma linda coisa, uma espécie de imposto que Deus cobra dos homens. O Criador quer que o homem Lhe consagre um dia por semana, ou seja, nesse dia, não cuide de ganhar dinheiro.

O que há de Sabedoria dentro disso é verdadeiramente extraordinário! Não cuidar de ganhar dinheiro e não pensar no dinheiro que vai obter no dia seguinte. Nosso Senhor Jesus Cristo diria mais tarde: “Olhai os lírios dos campos, que não tecem nem fiam, entretanto nem Salomão em toda a sua glória se vestiu como eles!”(1)

Consideremos a bondade de Deus. Ele tira da vida limitada do homem um sétimo dia, mas precisamente isso Ele lhe dá sob a forma de repouso… É bem à maneira divina! No momento mesmo em que faz a pessoa dar-Lhe algo, Deus põe na mão dela algo muito maior do que aquilo por ela doado: é o descanso, a distensão, o dia do Senhor. Como que lhe dizendo: “Pare, reze, eleve o seu espírito.”

Quantas pessoas há que, no domingo, preocupam-se apenas em conservar sua saúde com a distensão própria deste dia!

Enquanto o Criador lhe cobra, o homem se vê inundado por um novo dom de Deus. Já imaginaram a tristeza de uma vida em que nunca houvesse domingos?

Estes são dias que vêm acompanhados de uma bênção, de qualquer coisa de festivo, fazendo com que já no sábado se comece a respirar uma atmosfera especial. E aos domingos de manhã, quando se acorda, tem-se uma impressão de certa clemência de Deus, de uma distensão: “Agora chegou a sua vez de descansar; pare, não tenha preocupações…” É a bondade de Deus pairando sobre cada ser, fazendo-lhe sentir que Ele é Pai. Quanta beleza há nisso!

 É conforme a ordem natural das coisas que Deus possa cobrar do homem esse dia. Está na ordem da bondade de Deus que Ele “pague” desse modo maravilhoso o que o homem dá.

Honrar pai e mãe!

Está na natureza das coisas o seguinte: nossa alma é criada diretamente por Deus e insuflada por Ele no corpo que nossos pais geraram. A ação principal é de Deus. Nossos pais, quando nos geraram, cumpriram a intenção que está na ordem natural, tendo um filho. E se eu não posso, de nenhum modo, ofender a Deus, que criou minha alma, por uma razão menor, mas quão verdadeira, não devo ofender os meus pais que geraram meu corpo.

Lembro-me de que um livro de piedade apresenta um exemplo muito bem calculado, de um artista que esculpisse uma figura em pedra; e no momento em que a estátua estivesse concluída, ela desse uma bofetada no escultor. Este se sentiria ultrajado. É natural, pois ele é a causa da estátua. Ora, o filho é muito mais feito pelos pais do que uma estátua por um escultor. Então, “honrarás pai e mãe”.

E o pátrio poder é um padrão de todos os poderes que há na Terra, os quais, quando bem compreendidos e bem exercidos, têm algo de paterno. Quem exerce o poder deve governar paternalmente o súdito, e este precisa obedecer filialmente. Razão pela qual se deve prestar toda a honra àqueles que estão constituídos em poder. Do contrário, se transgride o Mandamento: “honrarás pai e mãe”.

Honrar pai e mãe não significa apenas obedecer, mas prestar respeito. Merecem respeito também os que estão constituídos em dignidade: o superior de uma ordem religiosa, o chefe de um exército, o reitor de uma universidade, quem dirige qualquer espécie de organização. 

Não matarás!

Quinto Mandamento: Não matarás!

Quem não percebe que o homem não tem o direito de matar outro homem? Quem tira a vida de outro abusa de sua própria natureza e atenta contra a natureza do outro. Caim quando matou Abel, vendo-o morto, saiu correndo e por toda parte aonde ia, sentia o castigo de Deus pesar sobre ele. Por quê? Matou seu irmão, matou outro homem.

O homem não tem o direito de matar aquele que é semelhante a ele. Matando uma pessoa, o assassino presumiu ser o que ele não é. Além disso, cometeu outro mal: tirou a vida que está na natureza da vítima possuí-la. Se espancar um outro, o indivíduo comete um pecado que está nas encostas do “não matarás”.

Não pecar contra a castidade; não cobiçar a mulher do próximo!

Sexto e nono Mandamentos: Não pecar contra a castidade; não cobiçar a mulher do próximo.

O que é a castidade? Como se prova que ela não deve ser violada? O que isto tem a ver com a ordem natural das coisas?

A castidade tem dois graus: a matrimonial e a castidade perfeita.

A castidade matrimonial é a daqueles que contraem casamento, e desta maneira assumem o encargo de multiplicar a espécie humana e de educar os seus próprios filhos. Esta é a obrigação inerente ao casamento. A castidade perfeita é própria aos que não são casados.

Mas o fim de ter filhos traz consigo a obrigação de educá-los. Realmente a Providência dotou os pais de recursos incomparáveis para educar os seus próprios filhos. O senso psicológico das mães, por exemplo, é uma coisa extraordinária… A mãe mais analfabeta, devido a seu instinto materno, conhece regras de pedagogia que os técnicos de repartições não conhecem. Porém, a educação dos filhos somente é bem feita em conjunto, pelo pai e pela mãe. Aqueles precisam ser conduzidos pela doçura da mãe e pela severidade do pai.

 Para exercerem bem essa tarefa, eles não podem separar-se. Portanto, o casamento deve ser monogâmico e indissolúvel. 

Castidade perfeita até ao casamento, fidelidade conjugal são princípios contidos no “não pecarás contra a castidade”. E mais ainda no preceito especial “não cobiçarás a mulher do próximo”, que é o nono Mandamento.

O nono Mandamento, por sua vez, enfatiza um ponto: não se pode nem pensar em ter a mulher do próximo. Quer dizer, em assunto de pureza, como, aliás, em todas as matérias, não se deve nem cogitar em pecar. Quem pensa em pecar, já pecou!

Não furtarás; não cobiçaras as coisas alheias

O homem é dono de si mesmo. Sendo dono de si mesmo, ele é dono de sua capacidade de trabalho. Sendo dono de sua capacidade de trabalho, ele é dono do fruto de seu trabalho.

Se alguém, por exemplo, que se põe a vaguear por um sertão qualquer, encontra frutas pendentes de várias árvores que não pertencem a ninguém, colhe um bom número delas e faz para si uma matalotagem, ele se torna dono desta, pois é fruto de seu trabalho. Porque as frutas pendentes da árvore sem dono estão postas lá por Deus para que alguém delas se aproprie. Uma pessoa por ali passou, se apropriou e realizou trabalho, que é uma razão a mais, além dessa destinação primeira. Aquilo ficou dela porque é dona de si mesma. E ninguém tem o direito de tirar para si algo de que o outro se apropriou, pois seria um furto.

Recentemente eu estava lendo num livro de Elaine Sanceau(2) uma descrição muito divertida da chegada dos portugueses a uma ilha, onde havia índios. Para alegrar os nativos eles distribuíam gorros vermelhos. O que um índio fazia com um gorro vermelho, não compreendo… Enfim, havia outras coisas engraçadíssimas. Quando foram embora da ilha, eles colocaram uma Cruz enorme, e aos pés da Cruz as armas do rei de Portugal. Aquela terra não tinha dono, porque índio no estado selvagem tem uma capacidade de possuir limitada — o que se poderia provar numa outra longa demonstração. Chega uma nação civilizada, Portugal, e coloca ali uma Cruz: é de Jesus Cristo! E as armas de Portugal: é do rei de Portugal! É inteiramente normal. Este nosso país estava como um fruto pendente; passou por cá Pedro Álvares Cabral e o colheu… É verdade que colheu um fruto enorme… Viva Portugal!

Além de proibir o roubo, Deus ordena não cobiçarmos os bens alheios. 

Por exemplo, estando diante de uma loja onde se vende água-de-colônia, e vendo aproximar-se um homem que compra um frasco, quem fica com vontade excessiva de possuir este objeto, sem ter condições financeiras para tal, e o cobiça, peca contra o décimo mandamento. Mas se ele tiver dinheiro para comprar, não comete pecado.

Quando se procede mal, então, cobiçando os bens do próximo? Quando se vê alguém ter bens que não se pode adquirir, e fica-se com raiva do próximo porque ele os tem.

Oitavo mandamento

Não levantar falso testemunho! A razão desse preceito entra pelos olhos de tal maneira que não precisamos justificá-lo. Se uma pessoa se comunica com outra, é para dizer a verdade. A voz foi dada para dizer a verdade, e a mentira é contrária à ordem natural. Portanto, deturpa a finalidade da palavra quem mente: não se pode levantar falso testemunho.

***

Eis aí uma exposição abreviada sobre a relação entre a ordem natural e os Dez Mandamentos. Assim compreendemos o pensamento de Santo Agostinho: “Um Estado onde todas as pessoas observassem os Dez Mandamentos chegaria ao seu fastígio, porque a ordem da natureza feita à imagem de Deus, expressão de sua vontade, sua sabedoria, foi obedecida e tudo prospera.” v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/3/1984)

Revista Dr Plinio 144 (Março de 2010)

 

 

1) Lc. 12,27

2) Elaine Sanceau. Historiadora de origem francesa, porém, nascida na Inglaterra. Em 1930 passou a residir em Portugal e lá escreveu inúmeras obras que narram as aventuras portuguesas em além-mar. (1896-1978)

Corpo, Sangue, Alma e Divindade…

Nosso Senhor Jesus Cristo, realmente presente na Sagrada Eucaristia, entra em contato conosco de um modo todo especial: de alma a alma! Cristo vem a nós quando comungamos. Nas páginas a seguir, Dr. Plinio nos sugere um modo eficaz e piedoso para bem aproveitarmos as graças que recebemos neste divino convívio.

 

Quando eu era menino, nas aulas de catecismo perguntava-se à criança se ela cria que Nosso Senhor Jesus Cristo estava realmente presente na Sagrada Eucaristia. Ela deveria dar uma resposta que me ficou até hoje nos ouvidos, muito bonita, como eram as respostas do catecismo: “Creio que Ele está presente em Corpo, Sangue, Alma e Divindade”.

Nosso Senhor Jesus Cristo não possui corpo humano e alma divina: sua Alma é humana como a nossa. Se Ele não tivesse alma humana, não seria verdadeiramente homem. Ele é Homem-Deus, com duas naturezas, a humana e a divina, estando a humana hipostaticamente unida à Segunda Pessoa da Santíssima Trindade.

Para bem comungarmos, devemos ter presente a seguinte verdade: não vemos Nosso Senhor Jesus Cristo, mas Ele está presente na Sagrada Eucaristia como esteve na Casa de Nazaré, em Betânia — com Marta e Maria —, nos braços sagrados da Santíssima Virgem, na Cruz.

E na Comunhão Nosso Senhor Jesus Cristo penetra em nós.

“Caro Christi, caro Mariæ”

Qual é a força da presença de Nosso Senhor Jesus Cristo em nós quando comungamos?

Imaginemos Nosso Senhor no seio imaculado e puríssimo de Nossa Senhora. A Santíssima Virgem, pelo fenômeno natural da geração, foi Lhe dando elementos para que seu Corpo se constituísse. Sendo Deus, desde o primeiro instante de sua Encarnação Ele possuía inteligência, mantinha comunicação direta, altíssima e insondável com a Santíssima Trindade, e recebia continuamente o culto de Nossa Senhora, a qual sabia que o Redentor estava presente n’Ela. Durante os meses da gestação, Nossa Senhora ia formando o Corpo de Jesus e fazia atos de adoração, de amor, cada vez maiores, porque conhecia o processo pelo qual Ele estava passando.

A Carne e o Sangue Sagrados d’Ele eram carne e sangue imaculados de Maria Santíssima.

“Caro Christi, caro Mariæ”, dizem os teólogos: a Carne de Jesus Cristo é a carne de Maria. A presença física de Nosso Senhor no claustro imaculado da Santíssima Virgem era tão íntima, interna, que determinava como que uma interpenetração das almas, assim como havia uma interpenetração dos corpos. E isso tornava a presença d’Ele extraordinariamente fecunda para sustentar ainda mais aquela montanha luminosa e cristalina de santidade que foi Nossa Senhora.

Cristo presente em nós pela Sagrada Eucaristia

Através da analogia com a presença de Nosso Senhor Jesus Cristo no claustro de Maria Santíssima, podemos, então, compreender o que é a presença eucarística em nós.

Ele entra em nós e, enquanto permanece, há uma ação d’Ele sobre todo o nosso ser. E como o nosso ser é composto de corpo e alma, Ele misteriosamente entra em contato santificante com nossa alma. E sendo nossa alma o que temos de mais alto, mais nobre, mais essencial, essa é a bem-aventurança extraordinária que cada um de nós recebe no momento em que comunga.

Durante o período em que as sagradas espécies ficam em nós sem se corromperem pelo fenômeno da digestão, temos Nosso Senhor presente em nós, agindo misteriosamente em nossa alma. Para compreendermos a ação de Nosso Senhor sobre nossa alma durante a Comunhão, recordo um fato muito bonito, narrado pelo Evangelho(1).

Jesus estava andando, e uma mulher enferma que queria ser curada por Ele, vendo aquela turbamulta em torno do Divino Mestre, desejosa de ouvi-Lo e vê-Lo ou ficar livre de alguma doença, não pôde chegar pela frente. Então, ela, por detrás tocou na túnica sagrada d’Ele. Nesse momento, Jesus voltou-se e perguntou: “Quem tocou em Mim?”, porque — diz o Evangelho — sentiu que uma virtude tinha saído d’Ele e passado para outra pessoa.

Quer dizer, Ele percebia que uma força — nesse caso, evidentemente, tratava-se de uma força vital — que saía d’Ele e, transmitida para aquela mulher, curou-a.

Ora, se uma pessoa com Fé, tocando em Sua túnica podia ser curada, o que significa recebê-Lo inteiro dentro de nós? É uma graça que não se pode medir.

Contato de alma a alma

Imaginemos uma pessoa que vai todos os dias à casa de alguém e com ele conversa. Se for uma pessoa distinta, preclara, eminente, santa, honrará a casa. Muito mais importante do que isso será o convívio de alma a alma. Conversam, e alguma coisa do talento, da nobreza, da excelência, das virtudes ou da santidade da alma do visitante é comunicada ao visitado.

Em grau imensamente maior, a Sagrada Comunhão nos proporciona esses bens, porque Nosso Senhor tem um contato conosco muito mais íntimo do que um visitante em nossa casa. Entrar no nosso corpo e ter ali esse contato de alma é como que uma interpenetração.

Suponhamos que Nosso Senhor Jesus Cristo entrasse agora neste auditório. Teríamos a reação a mais viva possível: todos nós nos prosternaríamos para dar passagem a Ele!

O Evangelho nos fala das várias atitudes de Nosso Senhor. Aquelas que mais me tocam são de duas espécies. Uma é quando Ele se dirige ao Padre Eterno; suas palavras são lindíssimas, humílimas. Ele é Deus, mas também Homem. E se víssemos um homem como nós rezar a Deus daquele modo, com aquela humildade, mas ao mesmo tempo com aquela intimidade, nos sentiríamos nesse sulco de luz, quase que transportados para o interior da Santíssima Trindade. Imaginemos que Ele ficasse aqui sobre o estrado deste auditório e, como diz o Evangelho, postos os olhos no céu, elevasse a voz dizendo: “Meu Pai…” e começasse a rezar…

Para mim, as orações de Nosso Senhor são mais bonitas do que seus sermões e de tudo quanto Ele fez. É natural, pois falando com o Pai Eterno, Ele diria coisas mais belas do que para nós, a quem Jesus disse palavras tão admiráveis que até o fim do mundo não se terá acabado de estudá-las.

Suponhamos ainda que, além de rezar, Ele olhasse e dirigisse palavras a Nossa Senhora — para mim é a segunda coisa mais tocante. O último olhar do Redentor para Ela do alto da Cruz, que coisa maravilhosa! Eles se entreolharam e disseram, um para o outro, coisas indicativas do máximo do respectivo convívio. Nunca se saberá até o fim do mundo qual foi o esplendor dessa troca de olhares!

Se víssemos aqui Nosso Senhor falar com o Padre Eterno e depois com Nossa Senhora, faríamos deste local uma capela.

Eu dizia ser necessário considerarmos Quem vamos receber e a imensa honra, o benefício incalculável a nós concedido por Aquele que assim entra em nós e se digna de estabelecer conosco aquela união.

Bondosa visita

Não devemos ter apenas a sensação da honra, mas também da bondade. Nosso Senhor, na Sagrada Eucaristia, fica horas e horas sozinho, trancado num tabernáculo, isolado, numa capela onde apenas arde a lamparina do Santíssimo Sacramento. Muitas vezes as pessoas passam diante do templo e ninguém para para rezar, e Ele está ali à espera de alguém que venha comungar. O Redentor, então, se dá a qualquer um, entra em seu corpo e toma contato com sua alma para fazer-lhe o bem.

São Pedro disse a respeito de Nosso Senhor esta frase que me pareceu muito bonita, de uma simplicidade e profundidade assombrosas: “Pertransiit benefaciendum — Ele passou fazendo por toda parte o bem”(2). Nos lugares aonde ia, as pessoas mais pecadoras eram por Ele recebidas com bondade. Assim, durante a Comunhão devemos ter confiança de que Ele não é um juiz severo, mas um pai bondoso, um médico infinitamente poderoso e desejoso de nos perdoar.

Agirá de acordo com a condição de escravo de Nossa Senhora, segundo a espiritualidade de São Luís Maria Grignion de Montfort, quem se preparar para a Comunhão em união com Ela, pedindo-Lhe as graças necessárias. É assim que eu me preparo, dizendo à Santíssima Virgem: “Minha Mãe, preparai-me Vós para esta Comunhão, pondo-me na alma todas as boas idéias, todos os bons impulsos, para eu ter presente o que vai acontecer de extraordinário e a imensa honra que receberei. Porque rezastes, vosso Filho virá a mim”.

Em união com Nossa Senhora tudo se consegue.

Consideremos agora a entrada de Nosso Senhor em nós.

Antes da comunhão, se diz: “Senhor, eu não sou digno de que entreis em minha morada, mas dizei uma palavra e serei salvo”. Quer dizer, sou indigno de comungar, mas sede Vós o ornato da casa onde deveis entrar, enchei-a das luzes dignas de Vos receber. Recebida a partícula em nossa língua, fazemos um ato de adoração e imediatamente a deglutimos.

Métodos para bem aproveitar a Comunhão

Há, entre outros, dois métodos de comungar. Um deles consiste em ter algum pensamento que nos tomou o espírito, nos interessou tanto que, durante o tempo de ação de graças, continuamos a desenvolvê-lo(3).

Existe outro método que eu, por cautela, sempre emprego quando sigo o primeiro. Às vezes, preparo-me para a Comunhão muito rapidamente, porque há tanto tempo comungo diariamente que essas idéias facilmente se me tornam presentes. Ao receber a hóstia, mesmo tendo o pensamento focalizado em algum ponto relacionado com a Sagrada Eucaristia, faço os atos que a seguir explicarei.

Filosoficamente, os atos de culto que um homem pode prestar a Deus são: adoração, ação de graças, reparação e petição. Ainda que sumariamente, devemos realizar esses quatro atos por meio de Nossa Senhora, quer dizer, pedir-Lhe que os faça conosco.

Adoração

Por exemplo, quanto à adoração: “Minha Mãe, sei que minha adoração não é nada em comparação com a vossa. Adorai Nosso Senhor junto comigo!”

Maria Santíssima atende meu pedido. Então, devo imaginar como Ela, no Céu, está adorando a Ele presente em mim. Mas não se trata de uma imaginação; é uma coisa real que devo tornar presente ao meu espírito.

Consideremos agora algo um tanto mais complicado, mas que espero tornar claro. Há vários modos de compreender esta adoração. Um deles pode ser assim formulado: Nossa Senhora é a síntese das santidades de todas as pessoas boas que houve, há e haverá na Terra até o fim do mundo. Ou seja, a forma de santidade de cada uma, Ela possui de um modo excelso, inimaginável. Cada pessoa é diferente da outra, e uma alma que se salvou, em algo dará glória a Deus como ninguém o fez antes, durante, nem depois da vida dela. Cada um dos que estão neste auditório, desde o mais jovenzinho até eu que sou o mais velho, é capaz de adorar a Deus, fazer ação de graças, reparação e petição de um modo como só ele realizaria. E Nossa Senhora possui, à maneira d’Ela, todos esses modos.

Podemos, então, fazer-Lhe um pedido assim:

“Minha Mãe, entre vossas excelsitudes incontáveis há uma perfeição por onde fazeis de modo sublimíssimo aquilo que especificamente eu realizo. E no vosso modo de adorar a Deus existe um filão que é a arqui perfeição do meu modo de fazê-lo.

“Então, eu me uno a Vós para adorar vosso Divino Filho, como se eu estivesse falando ao Redentor com um alto-falante celeste. Ainda que fosse gago e rouco, minha voz se tornaria encantadora porque passou a ser vossa voz, ó minha Mãe.

“Vou agora adorá-Lo, e Vós, ao mesmo tempo, o fareis de modo insondavelmente perfeito.”

Podemos, durante a Comunhão, adorar Nosso Senhor em algum dos aspectos de sua vida terrena. Admiro e adoro, de modo especial, o mistério da agonia no Horto das Oliveiras, quando houve a crucifixão de sua Alma sagrada.

Então, adoremos a Nosso Senhor, lembrando-nos, por exemplo, de sua agonia no Horto ou nos braços de Nossa Senhora, ou simplesmente enquanto Ele tendo a bondade de vir visitar-me. Eu O adoro em união com a Santíssima Virgem, a qual, em certo sentido, é arqui-eu mesmo.

Há uma outra maneira de fazer adoração, considerando como Nossa Senhora adora o Divino Salvador de um modo insondável, como nenhuma pessoa foi capaz de fazê-lo.

Podemos, então, dizer: “Meu Deus, eu quereria Vos adorar como Nossa Senhora Vos adora. Aceitai minha boa vontade. Ofereço-Vos toda a adoração que Ela tem por Vós”.

Repetindo. No primeiro modo, referi-me a Nossa Senhora adorando o Divino Salvador exatamente — se assim se pode dizer — na linha em que eu adoro.

Mas Ela não se limita a isso, pois contém todas as adorações do presente, do passado e do futuro da humanidade, inclusive as adorações dos que pecaram e não adoraram. Assim, posso pedir à Santíssima Virgem que não ofereça a Ele apenas o meu modo, mas o d’Ela de adorar, dizendo a Nosso Senhor:

“Senhor, Vós vindes agora à minha casa. Muito mais do que a mim mesmo, tenho uma boa surpresa para Vos oferecer. Aqui está vossa Mãe, adorando-Vos não do único modo como sei adorar, mas de todos os modos de adorações, em todos os tempos e lugares, inclusive das que não foram feitas, as quais estão Vos sendo apresentadas por Ela em meu nome. Ó meu Senhor, é um presente verdadeiramente régio!”

São dois modos, como a face e o reverso de uma medalha.

É possível que, pela graça obtida por Nossa Senhora, o que estou dizendo lhes toque a alma. Porém, não se trata de meras expansões sentimentais, mas tudo é raciocinado como os elos de uma cadeia. E se não fosse raciocinado, para mim não haveria beleza. Explicações onde não entra o raciocínio claro, certo, controlado, sério, afinado com a doutrina da Igreja, à qual nos entregamos com toda a alma, não valem nada. Devem elas estar conformes à razão controlada pela Fé. Se for puro sentimento, não admito.

De fato, estou desenvolvendo aqui uma tese.

 

Continua no próximo número…

(Extraído de conferência de 16/7/1977)

 

1) Mc 5, 30.
2) At 10, 38.
3) Conferir Dr. Plinio, nº 143, página 17.

Retidão: limpa como uma paisagem alpina!

Hoje, indo para uma das sedes de nosso Movimento, vi ao longe uma pessoa sentada num caminhão, a qual estava com uma roupa de uma cor tão pouco cuidada que fiquei espantado.

Na realidade, seu traje era um pano imundo. Não sei há quanto tempo a pessoa não o lavava; e ela parecia sentir-se, dentro daquela sujeira, perfeitamente bem. Veio-me então à cabeça o seguinte pensamento: “Se esse homem lavasse sua roupa, ela ainda seria aproveitável?” E imaginei o aguaceiro imundo que sairia dela. Depois pensei com os meus botões: “Se fosse lavada uma vez, ter-se-ia que passar para outra pia, porque a primeira deveria ser lavada só porque nela foi lavada aquela roupa. Mas, se, de tanto lavar, o traje acabasse ficando inteiramente limpo, eu me pergunto se aquela pessoa, vestindo-o, não sentiria um bem-estar diferente desse bem-estar de deboche, de sujeira e de desordem que ela está sentindo agora”. E cheguei à conclusão: sentiria.

Depois veio ao meu espírito esta ideia: “Assim é a alma que chegou a se lavar inteira, porque viu totalmente a sua sujeira e não se contentou enquanto não se lavou por completo”. A alma, quando se lava a si própria e tem a sua túnica limpa, sente um bem-estar que nenhuma outra forma de conforto dá. Por causa disso, se um homem nesta Terra quer a verdadeira felicidade, deve ir à busca da retidão. Porque não há nada comparável ao bem-estar interior que a retidão proporciona.

Portanto, se alguém quer levar uma vida agradável e depois ir para Céu, seja reto! Vai ser duro, mas magnífico, porque ele se sentirá mais ou menos como quem escalou montanhas vertiginosas e vê depois panoramas extraordinários. Embaixo pode haver até poeira levantada pelo vento, mas na altura em que ele está o pó não chega; tudo ali está limpo.

Ainda há pouco eu estava vendo uma paisagem alpina. Que limpeza! A alma de um santo seria dessa maneira. É esta felicidade que cada um deveria desejar para si.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/11/1978)

Paixão – O mais doloroso adeus

Quando Maria Santíssima levou o Menino Jesus ao Templo a fim de apresentá-lo ao Senhor, Simeão, dirigindo-se a Ela, profetizou que um gládio de dor Lhe transpassaria a alma.
Ao meditar na Paixão de Cristo, Dr. Plinio contempla o cumprimento deste prenúncio e a extrema angústia de Maria ao ver o padecimento de seu Divino Filho.

 

A Lei do Antigo Testamento estabelecia que, completados quarenta dias do nascimento de um filho primogênito, este deveria ser levado ao Templo a fim de ser resgatado; também a mãe da criança deveria ser purificada na mesma ocasião.

Apesar de ser Mãe do Homem-Deus e concebida sem o pecado original — portanto, isenta de tal obrigação —, Nossa Senhora, por respeito à Lei e à tradição, desejou apresentar a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade no Templo de Jerusalém.

A apresentação do Menino Jesus no Templo

Lá se deu o episódio mais marcante da história do Templo: o próprio Deus encarnado visita aquele ambiente de oração e recolhimento. Naquele instante, os anjos, cheios de alegria, pervadiram o edifício sagrado.

Porém, Nossa Senhora ali entrou sem que ninguém notasse tão grande presença.

Simeão, o Profeta escolhido por Deus para esta ocasião, recebendo o Menino nos braços, louvou a Deus, dizendo: “Agora, Senhor, deixai o vosso servo ir em paz, segundo a vossa palavra. Porque os meus olhos viram a vossa salvação que preparastes diante de todos os povos”.

Maria Santíssima ouvia as palavras daquele ancião que, profetizando o futuro do Menino, acrescentou: “Eis que este menino está destinado a ser uma causa de queda e de soerguimento para muitos homens em Israel, e a ser um sinal que provocará contradições, a fim de serem revelados os pensamentos de muitos corações. E uma espada transpassará a tua alma”.

Também Ana, a Profetisa, cantara as glórias do Divino-Menino. Por inspiração, ambos souberam o que somente São José e a Virgem Maria sabiam: o Menino era o Filho de Deus.

Coração de Maria, transpassado por um gládio de dor!

Pois bem, passaram-se os anos e o cumprimento da profecia de Simeão se aproximava — “uma espada transpassará a tua alma”…

Chegou, enfim, o momento em que Ele — já homem maduro, aos trinta anos de idade — despediu-se de sua Mãe e partiu para pregar a bondade, maravilhar os homens, e… por eles ser crucificado! Era o doloroso adeus!

Pode-se imaginar o que foi esse adeus: Nossa Senhora, indo à porta da casa e fitando-O; com o olhar, Ela acompanha seu Filho afastar-Se pela estrada.

A partir daquele instante Ela permaneceu sozinha. Para consolá-La, os anjos cantavam. Mas, de que valiam essas canções em comparação com um olhar ou uma manifestação do carinho de Jesus por sua Mãe? Ouvir o eco de seus pés divinos sobre o pobre assoalho da casa santa enchia a alma de Maria de contentamento mais do que qualquer concerto angélico!

Quem haveria de remediar essa ausência?

A criatura zelando pelo Criador

Outro episódio doloroso ainda se daria: o encontro de Maria com Jesus no caminho do Calvário. Apesar de não ser narrado pelos Evangelistas, creio ser o mais pungente que houve na Terra! A vocação de ser a Mãe do Verbo encarnado, pedia de Nossa Senhora uma perfeita aceitação das dores e angústias como as que Ela sofreu nesse doloroso encontro.

Maria Santíssima recebeu do Padre Eterno a missão de conceber o Verbo de Deus — o que Ela realizou esplendidamente. Porém, a missão de concebê-Lo compreendia também a de gestá-Lo. E grande foi o cuidado que Ela dispensou a seu Divino Filho, para que tudo se realizasse de forma adequada, conveniente e santa.

Pode-se imaginar o gáudio de Maria Santíssima ao sentir em Si mesma o Filho de Deus que se movimentava ainda antes de nascer; a santa comunicação existente entre ambos realizava-se através das inúmeras orações e meditações feitas por Ela, incessantemente. Nosso Senhor estava no interior d’Ela assim como está em alguém que O recebe condignamente no Santíssimo Sacramento.

O período iniciado pela primeira reflexão de Nossa Senhora a respeito do Salvador, chegou a seu termo no momento em que Ele nasceu e, pela primeira vez, os olhares d’Eles se cruzaram. O rosto d’Ele era ainda pequeno, cheio de inocência, mas já com semblante de Rei e Mestre. Tal era a intensidade de sobrenatural que se irradiava ao seu redor, que à sua proximidade qualquer enfermo de corpo ou de alma poderia sanar-se imediatamente.

Quando Adão e Eva pecaram, comendo o fruto proibido, seus olhos se abriram e Deus teve de confeccionar para eles os primeiros trajes. Entretanto, quando o Menino Jesus nasceu, Maria Santíssima vestiu o Criador: agora, era a criatura humana quem vestia o próprio Deus!

Por que me abandonaste?

Após o nascimento do Menino-Deus, Nossa Senhora tinha como missão educá-Lo e formá-Lo até que Ele chegasse à maturidade. Mas isto não bastava: quando Jesus atingiu a idade perfeita, Ela teve de acompanhá-Lo ao Calvário para, aos pés da Cruz, receber o último olhar d’Ele.

Ao cabo dos trinta e três anos de maravilhamento de Maria por seu Divino Filho, e de adoração cada vez mais ardorosa e incessante, tudo desfechou na paixão e morte d’Ele.

No momento em que Nosso Senhor rendeu seu espírito ao Padre Eterno, dizendo “meus Deus, meus Deus, por que me abandonaste?”, Maria, estando presente, certamente O ouviu. Qual não terá sido a repercussão desse sofrimento no coração de uma mãe? Sobretudo, d’Aquela Mãe para com Aquele Filho. Momentos depois, Ele inclinou a cabeça e rendeu seu espírito.

Nossa Senhora viu o Corpo de seu Filho repleto de feridas, já não mais trajando aquela túnica inocentíssima — que se diria feita de raios de luz — que Ela mesma confeccionara. Imaginemos a dor da Mãe contemplando o Filho que sofria tão grande despojamento!

Enquanto José de Arimateia e Nicodemos preparavam os bálsamos para cobrir as feridas do Divino Mestre, Maria Santíssima O sustentava em seus braços virginais.

Paz em meio à amargura

Ela viu a realização do desejo de Jesus de entregar a última gota de seu Sangue pela humanidade, quando a lança de Longinos penetrou o lado do Salvador. Nossa Senhora contemplou aquele flanco ferido e, certamente, rezou: “Coração de Jesus perfurado pela lança, tende piedade e nós!”

Como era costume entre os judeus, envolveram o Corpo Sagrado de Jesus num sudário. Finda a preparação do cadáver, aquele divino Corpo foi depositado na sepultura. Rolaram a lápide que fechava a sepultura; tudo estava acabado, a morte reinava!

Após esses momentos de extrema dor, Nossa Senhora voltou para casa acompanhada por seu novo filho, o Apóstolo virgem. As santas mulheres que A seguiam não se continham em prantos, e Ela, ao invés de ser consolada, precisava consolá-las.

Imagino que, acompanhados por Nossa Senhora, os Apóstolos e discípulos dirigiram-se para o cenáculo. Lá rezavam e choravam. Maria Santíssima deve ter permanecido em silêncio, pacífica e serenamente lembrando-se dos fatos ocorridos. Assim se cumpriam as palavras proféticas do livro de Isaías: “Ecce in pace amaritudo mea amaríssima — Eis na paz a minha amargura enormemente amarga”.

Comparados com o tamanho da amargura de Maria, os oceanos são pequenos, o suficiente para caberem na concha de uma mão!

Para que se faça a vossa Vontade

Em meio a tantas dores pelas quais Ela passava, havia uma consolação: Quem obteve a redenção para o gênero humano senão o Filho que Ela concebeu? Ele — o Redentor e fonte de toda Graça — caso não tivesse morrido na Cruz, não redimiria a pobre humanidade pecadora.

Essa torrente de Graças que jorra sobre a humanidade abriu-se para os homens a partir do momento em que Ela disse: “Fiat mihi secundum verbum tuum!”; e abundou sobre o mundo quando Maria deu seu consentimento a fim de que Nosso Senhor Jesus Cristo morresse na Cruz.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/2/1985)

Revista Dr Plinio (Março de 2010)

 

Nós também

Em nosso último artigo, mostramos que as meditações que tão freqüentemente se fazem a respeito da ingratidão, da covardia e da cegueira dos Apóstolos, durante a Paixão, não devem ter, para  nós, interesse meramente especulativo. Também nós temos, para com Nosso Senhor, ingratidões, covardias e cegueiras muito parecidas com as dos Apóstolos, e seria ridículo pensar apenas nos  defeitos deles, sem tomarmos também em consideração a “trave que está em nosso próprio olho”. Ninguém se santifica pela meditação sobre as virtudes ou defeitos alheios, se não o fizer de modo   a acrescer suas próprias virtudes, ou combater seus próprios defeitos.

Assim, pois, olhos postos na Paixão de Nosso Senhor, não devemos por isto nos esquecer de nós mesmos, pois que Nosso Senhor nos pede, não tanto que choremos com Nossa Senhora os  padecimentos do Cordeiro de Deus, mas que cuidemos de não transformar nossa própria alma em uma segunda edição dos que O imolaram. Essa reflexão, absolutamente verdadeira no que diz respeito às suaves tristezas da Semana Santa, também se aplica, ponto por ponto, às austeras alegrias da Ressurreição.

Tanta gente se admira e se indigna com a perturbação cheia de abatimento, e a vacilação de espírito manifestada depois da morte de Nosso Senhor, pelos Apóstolos, a propósito da Ressurreição. O  Redentor tinha predito de modo positivo que ressurgiria dos mortos.

Entretanto, tendo Ele expirado na cruz, os Apóstolos se deixaram dominar por um abatimento que fazia transparecer claramente toda a vacilação que lhes ia na alma. E São Tomé quis tocar com os dedos o Salvador, para crer na objetividade da Ressurreição.

Ora, a realidade é que também nós estamos sujeitos à mesma fraqueza e não raramente ela vence em nós, contando com nosso próprio consentimento. Certamente, todos nós cremos, graças a  Deus, com toda a firmeza e sem a menor vacilação, na objetividade da Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas há uma outra verdade, que sem dúvida admitimos, mas que admitimos às  vezes com tanto temor, que lhe damos um  sentido quase puramente especulativo e tão restrito, que nos tornamos perfeitamente merecedores da censura do Espírito Santo: “Estão diminuídas as  verdades entre os filhos dos homens”. Não se trata de uma verdade posta em dúvida, mas sobre a qual temos, em nosso espírito, uma noção diminuída. Entretanto, quantos e quantos erros daí  decorrem!

Essa verdade que Nosso Senhor afirmou de modo insofismável, e a respeito da qual sua palavra não é menos infalível do que quando predisse sua ressurreição, é a fecundidade sobrenatural da  Santa Igreja Católica Apostólica Romana, que permanecerá de pé, sobranceira em relação às investidas de todos os seus inimigos, até a consumação dos séculos, sempre capaz de atrair pela graça   os homens de boa vontade.

Todos os católicos, evidentemente, estão obrigados a crer nessa verdade. A Igreja jamais perderá esse dom de atrair as almas. Negá-lo implica em negar que Jesus Cristo é Deus, ou que os  Evangelhos são livros inspirados. Negá-lo é, pois, negar a própria Religião. Mas essa verdade, que todos aceitam, todos a possuem em igual extensão? Todos vêem com igual clareza? Todos tiram dela as mesmas conclusões?

Nos dias torvos que atravessamos, quando vemos a heresia se dilatar por toda a Europa, e ameaçar o mundo inteiro, quanta gente há que julga a Igreja tão ameaçada, que se sente inclinada a  concessões doutrinárias perante os atuais dominadores do mundo? Hoje em dia, a paganização geral dos costumes penetrou em todas as esferas da sociedade, e cavou um abismo que se vai tornando cada vez mais profundo, entre o espírito da Igreja e o espírito da época. À vista disto, quanta gente aconselha concessões morais capazes de a reconciliar com esta sociedade sem cujo  apoio se receia, no mundo, que ela venha a sofrer um colapso que, se não fosse a morte, seria ao menos um prolongado desmaio? À vista da formação de correntes pseudo-científicas cada vez mais  contrárias aos ensinamentos infalíveis da Igreja, quanta gente desejaria que a Igreja, se não alterasse as verdades já definidas, ao menos não explicitasse sua doutrina em pontos ainda controversíveis, em que qualquer definição por parte do Catolicismo poderia tornar as divergências com a nossa época ainda maiores?

Evidentemente, todos estes erros procedem de um temor mais ou menos inconsciente quanto à fecundidade da Igreja.

De fato, o que é a doutrina católica? É um conjunto de verdades. Desde que, nesse conjunto, uma só verdade fosse adulterada, a doutrina católica já não seria ela mesma. Assim, tentar acomodá-la, adaptá-la, ajeitá-la, é trabalhar para que ela perca sua identidade consigo mesma: em outros termos, é tentar matá-la. E achar que o apostolado não é possível sem essa adaptação é achar que a  Igreja só pode vencer morrendo!

Evidentemente, essa vacilação, em um verdadeiro católico, não se pode referir a certas verdades já irretorquivelmente definidas pela Igreja. Mas há um sem número de aplicações práticas de  princípios, ou de deduções doutrinárias a respeito de princípios já definidos, em que essa fraqueza se manifesta. Em lugar de se procurar, na utilização doutrinária ou prática dos princípios, a  verdade, toda a verdade, e só a verdade, as reflexões feitas a este respeito se deixam imbuir mais ou menos pela preocupação de condescender com os erros do século. E, assim, em vez de procurar  tirar do tesouro das verdades católicas todos os frutos de ordem intelectual e moral que contêm, procura-se saber mais o que pode ser rotulado como discutível, e portanto como matéria livre, do  que o que pode ser rotulado como verdadeiro, e portanto como matéria certa.

Em outros termos, a mania invariável de condescender leva muita gente a procurar dilatar os espaços intelectuais reservados à dúvida. Em presença de uma afirmação deduzida da doutrina  católica, a pergunta deveria ser esta: posso incorporar mais esta riqueza ao patrimônio de minhas convicções? Mas, em geral é esta outra: que razões posso descobrir, para duvidar também disto?

Pio XI, recebendo em audiência o Exmo. Revmo. Sr. Arcebispo de Cuiabá, lhe deu como palavra de ordem para os jornalistas católicos do Brasil: “Dilatate spatia veritatis”. [Dilatai os espaços da  verdade.] Muita gente gosta de fazer o contrário: em lugar de se esforçar por descobrir novas verdades doutrinárias deduzidas das já conhecidas, ou de estender o mais possível a aplicação dessas  verdades na prática, todo seu esforço vai em negar o mais possível qualquer coisa de positivo que se faça neste caminho. Em suma, isto é exatamente o oposto do verdadeiro espírito construtivo, é  dilatar espaços, não da verdade, mas da dúvida.

Se a Revelação é um tesouro, e a difusão do Evangelho um bem, quanto mais esse tesouro se espalha e esse bem se distribui, tanto mais contentes devemos ficar. Muita gente, entretanto, acha que  é o contrário.

Quanto mais se ocultam os desdobramentos lógicos da Revelação e se encurtam as conseqüências do que está no Evangelho, tanto mais caridoso se é! Como Deus teria sido caridoso, se tivesse   imposto uma moral menos severa! Por que não previu Ele que no século XX, essa moral seria um trambolho indifusível? Corrijamos a obra de Deus: encurtemos o que na sua obra está por demais  longo, empanemos a luz do que brilha demais, e assim teremos beneficiado largamente a humanidade. Quanta gente, na prática, raciocina assim!

Ora, proceder assim não reflete o receio de que a Igreja já não conte com o apoio de Deus, e, se não se baratear, já não possa arrastar as turbas? E essa dúvida  sobre o auxílio sobrenatural que  Deus dá à Igreja, não se parece muito com a dúvida que, antes da Ressurreição, se sentiu a respeito deste fato? Reflitamos nisto. E peçamos a Nosso Senhor que, fazendo ressuscitar em nós os  tesouros das graças que rejeitamos, voltemos novamente àquela ortodoxia virginal da Fé, e àquela perfeição de vida, que talvez o pecado, por nossa máxima culpa, nos tenha roubado.

Plinio Corrêa de Oliveira (Publicado no “Legionário”, nº 448, 13/4/1941)

A Eucaristia, eixo da piedade católica

Quão sensível era Dr. Plinio à ideia de um universo aberto, no qual a Igreja Triunfante e a Penitente se unem à Militante! Entusiasmava-o considerar a ação da graça divina, dispensada a rogos de Maria em favor de todos, e impetrada pelos méritos infinitos do Santo Sacrifício de Jesus, renovado nos altares do mundo inteiro.

 

Vós falastes sobre a tríplice devoção ao Santíssimo Sacramento, a Nossa Senhora e ao Papa. Monsenhor Segur, prelado francês do século XIX, chamava essas três devoções de “rosas dos bem-aventurados”. Podemos dizer que são as três rosas dos contrarrevolucionários. Vós pedistes que se destacasse, na exposição de hoje, a parte referente à Sagrada Eucaristia. Este é um dos temas a respeito do qual mais gosto de tratar.

Embora todos compreendam uma mesma verdade objetiva, cada um deita a tônica da atenção num determinado ponto

Uma vez que me pediram para tratar da devoção ao Santíssimo Sacramento enquanto vivida por mim, eu gostaria de começar por ressaltar o seguinte:
Todo ato de piedade tem a sua justificação teológica; se não deitar raiz na Doutrina Católica de nada vale. Mas não basta ter fundamento na Doutrina Católica, porque nossas almas não são como páginas em branco de um livro, nas quais se pode escrever livremente. São almas vivas, que recebem as coisas e vivem em relação a estas. Todas as pessoas compreendem uma mesma verdade objetiva, mas cada uma deita a tônica da atenção num determinado ponto, de modo diferente das demais pessoas.

E um dos encantos do convívio humano consiste nisto: comunicar o que, entretanto, não se pode dizer. Vendo o outro que está ao nosso lado, percebemos que ele notou alguma coisa que não chamou tanto a nossa atenção; houve uma repercussão na alma dele, diferente da nossa; não sabemos exprimir, mas algo nós sentimos.

Uma das coisas que tornam a companhia de uma pessoa mais agradável ocorre quando, por exemplo, visitando um museu, apreciando uma cena humana, considerando um panorama, essa pessoa deixa entrever o que cogita, mas não diz.

Embora pouco se fale sobre esse assunto, isto se aplica às verdades da Fé.

A ação de Nossa Senhora se adapta a cada alma

Quando conhecemos uma verdade da Fé, sentimos em nossa alma uma repercussão que, embora não consigamos exprimir, é o melhor do que degustamos.

Por exemplo, analisemos o modo de nossas almas reagirem diante da imagem de Nossa Senhora que se encontra neste auditório(1). É impossível olhá-la sem sorrir; é impossível olhá-la sem que uma forma de otimismo da Fé sopre em nossa alma.

A ação de Nossa Senhora sobre cada alma se adapta de acordo com seu caráter único, de tal modo que é irrepetível. E na história de todas as graças concedidas por Maria Santíssima — no Céu isso se verá —, há incontáveis reações possíveis à vista dessa pequena imagem, indicando as inúmeras modalidades de Nossa Senhora ser graciosa.

Todos aqui estão prestando atenção na reunião, mas, às vezes, pelo movimento natural da cabeça, do corpo, dos olhos, olham para a imagem. E notam que ela reluz em sorrisos, como as pedrazinhas da imagem reluzem também. Conforme o lugar em que a pessoa está sentada, pequenas pedras se acendem em cor verde, vermelha, ou azul. A pessoa, então, se contenta e diz: “Oh! Nossa Senhora!”

É um carinho único que Ela tem para cada um de nós. Porque cada um é o filho único de Maria Santíssima. Ela é tão completa e tão perfeita como Mãe, que, a bem dizer, é como uma pessoa para cada filho. Nossa Senhora é Mãe do Unigênito, do Filho por excelência, e São Luís Grignion de Montfort gosta muito de considerar uma frase da Escritura: “Homo et homo natus est in Ea”(2). Ou seja, uma sucessão indefinida de homens nascerão d’Ela; gerando a Nosso Senhor Jesus Cristo, a Santíssima Virgem gerou para a vida espiritual todos os homens.

No Céu, isso poderá ser visto, e creio que quase se poderia fazer uma invocação especial de Nossa Senhora, ou até muitas invocações, para cada ser. Penso até que todos os seres no Paraíso cantam as invocações da Santíssima Virgem que lhe são próprias, as quais são as invocações da Igreja, mas com acento próprio de cada ser, e esse conjunto forma a harmonia dos coros celestes.

O assunto está preparado — dessa vez a preparação foi longa — para tratarmos da Sagrada Eucaristia.

O ato de piedade máximo — a recepção da Comunhão — deve repercutir, especialmente, em nossa alma

Se isto é assim com todos os atos da piedade católica, claro está que o será com o ato de piedade máximo: a participação da Santa Missa e a recepção da Comunhão.

A Missa é a renovação incruenta do Santo Sacrifício do Calvário, em que Nosso Senhor Jesus Cristo Se ofereceu como vítima expiatória por todos os homens; Ele, o Homem-Deus, Inocente, na sua natureza humana passou pelo castigo que Adão nos mereceu, e resgatou todos os homens.

No momento em que o sacerdote pronuncia as palavras da Consagração, a hóstia é consagrada, transubstanciando-se no Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo. Da renovação deste sacrifício do Divino Redentor resulta esse dom inapreciável: a visita d’Ele às nossas almas.

O inefável da Sagrada Eucaristia sentido pela alma católica

Se Ele estivesse sensivelmente presente — realmente presente está —, e eu pudesse ver, por exemplo, um pequeno movimento de sua mão divina, e observar seu pulso, considerando que ali pulsa o Sagrado Coração de Jesus, uma vez que a pulsação do Coração se reflete nessas veias! Dessas pulsações divinas vive tudo quanto tem vida na ordem espiritual das coisas. Que respeito!

Se eu conseguisse, além disso, apalpar a orla de seu manto como aquela mulher que ficou curada ao tocá-la(3)! E se pudesse com esse ato atingir, num só momento, o grau de santidade que quereria obter, não era natural que eu rejubilasse inteiramente?

Recordo-me das palavras de um salmo e que acho uma beleza: “…se regozijarão os meus ossos humilhados”(4). Um indivíduo está reduzido a ossos, a uma caveira; pode ele estar numa situação mais baixa? Mas é dita uma palavra por Nosso Senhor e a caveira se refaz, ressuscita de júbilo!

As palavras d’Ele são de vida eterna. Ouvir uma palavra de Jesus! Ele está na Hóstia; eu não O vejo, mas creio.

Chega a hora de eu comungar, e Nosso Senhor vai estar realmente em mim.

Será que Ele não vai me dizer nada?

Sim, no interior de nossas almas, Ele dirá:
— Meu filho, quando dois estão juntos, um sente o outro. Será que quando Eu estou em ti não sentes nada? Ouve a linguagem silenciosa de minha presença, que não te fala aos ouvidos.

Às vezes, o silêncio diz de uma pessoa o que a expressão da fisionomia, as maneiras ou modo de ser, ou a palavra, não chegam a exprimir.

“Meu filho, tu sabes disso? Presta atenção em Mim! Eu estou em ti, a graça te fala. Tu não sentes nada?”

Assim é o inefável da Sagrada Eucaristia que a alma católica sente.

Posso dizer o que sinto.

É algo que comunica luz, amor, força. E permanece em nossa alma, embora para muitos pareça ser passageiro.

Então, pela Sagrada Comunhão, para os assuntos da Fé a inteligência fica mais perspicaz; quanto ao amor, torna-se mais aberto para tudo quanto é virtude; em relação à força fica-se mais pronto para tudo quanto é sacrifício, e a vontade de lutar se multiplica por si mesma.

Como uma Missa celebrada na Terra repercutirá no Céu?

Essa é uma hora de grande solenidade, para a qual devemos impostar a alma numa posição de veneração, gravidade e seriedade.

Eu não posso deixar de pensar, quando vai se aproximando a hora da Consagração, no que estará se passando de soleníssimo, festivo, vitorioso e grandioso no Céu neste momento. Que alegria e glória para Deus! Ainda que o Céu e a Terra tivessem sido criados para que houvesse uma só Missa, estava tudo justificado.

Ao se iniciar uma Missa, não estarão os Anjos — empregando uma linguagem antropomórfica — solenemente se preparando? Eu imagino que, nesse momento, o Céu deva estar como uma corte quando vai se realizar um ato mais grave e mais augusto do que a coroação de um rei.

Pouco depois do tilintar das campainhas, termina a Consagração, o Céu reluzirá de glórias.

A Santa Missa causa terror nos demônios!

Falei da comunicação das almas entre si na Terra. E também a respeito da comunicação mais perfeita das almas no Céu, bem como da visão beatífica. Entretanto, essas considerações ficariam incompletas se eu não acrescentasse o seguinte: embora, de certo modo, toda a Criação tenha sido considerada sumariamente, falta algo: o inferno.

Quando a Consagração se aproxima, eu imagino que o inferno fique aterrorizado, ele deve rugir de ódio e gostaria de fazer explodir o mundo para evitar que se celebrasse uma Missa. Ele sabe a derrota renovada que sofrerá.

A celebração eucarística relembra para Satanás o momento de sua derrota

A derrota dele se deu no momento em que Nosso Senhor Jesus Cristo morreu e o gênero humano foi resgatado. Houve um sabá horrível lá embaixo, em que todos se agatanharam e se atormentaram em termos indizíveis.

A Missa é a renovação incruenta do Santo Sacrifício. E todas essas vergonhas para o demônio se acumulam.

A Alma santíssima de Nosso Senhor Jesus Cristo, não abandonando jamais a união hipostática, foi ao limbo — com alegria prodigiosa de todos os justos, a começar por Adão e a coroar-se por São José — e levou todos para o Céu.

Podemos imaginar Jesus que, chegando ao limbo, falou para todos sobre a Redenção. Adão e Eva, que estavam esperando a milhares de anos… Santo Adão, Santa Eva aguardavam o momento em que aclamariam o Filho deles. Eles, pecadores, aclamando o Filho Redentor.

A Missa é a renovação incruenta do Santo Sacrifício. E todas essas vergonhas para o demônio se acumulam.

Quando a pessoa comunga, o demônio recua

Quando estivermos no Céu, talvez tenhamos algum conhecimento — que não nos molestará em nada — dos rugidos do inferno, e veremos o negrume hediondo, horrível, do mal; e então cantaremos com redobrado vigor porque estaremos esmagando os demônios.

O maligno faz tantas infiltrações nas almas, e as remexe sadicamente, porcamente, criminosamente. Quando a pessoa comunga, cresce nela essa luz do senso católico, essa força, esse amor; o demônio recua e fica torturado.

Ao se aproximar o momento de receber a Sagrada Eucaristia, podemos dizer contra o demônio: “Recuarás agora, bandido! Eu vou comungar!” De recuo em recuo, depois das expulsões provisórias chegará à expulsão total.

Aí estão as considerações que povoam a minha alma por ocasião da Comunhão.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de Conferência de 13/11/1982)

1) As conferências de Dr. Plinio davam-se, normalmente, com a presença de uma imagem de Nossa Senhora de Fátima.
2) Sl 86,5.
3) Cfr. Mc 5,25-31.
4) Sl 50,10.

Sobre o Tratado

A Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, ensinada por São Luís Maria Grignion de Montfort, é uma “bomba atômica”, feita não para destruir, mas para dar vida. Deus a pôs nas mãos da Igreja em previsão das amarguras de nossa época.

Essa devoção — diz o Santo —, unindo o mundo a Nossa Senhora, une-o a Deus. No dia em que os homens conhecerem, apreciarem, viverem essa devoção, Nossa Senhora reinará em todos os corações e a face da terra será renovada.

Assim, confiamos imensamente mais na bomba atômica de Grignion de Montfort, e em seu poder, do que receamos a ação devastadora de todas as forças desencadeadas por mãos humanas!

Um reto caminho para a santidade…

A retidão está no âmago de todas as outras virtudes; sem ela,  pequenos defeitos tornam-se monstros gigantescos.

 

Para entendermos o que é a retidão, comecemos tratando a respeito do contrário dela: a falsidade. A falsidade do homem para consigo mesmo, para com os outros e para com Deus, de si, é repelente.

Por falta de retidão, um pequeno problema pode tornar-se gigante

Quando uma alma recebe graças de Nossa Senhora, ela é muitas vezes tocada tão a fundo que o demônio fica impossibilitado de agir sobre ela. Quando este percebe tal impossibilidade, ele propõe, então, a falta de retidão. Quer dizer, um compromisso, um arranjo, um meio-termo, em função do qual a alma, sem abandonar aquilo que amou, passa a amar aquilo que abandonou. Não há aí um jogo de palavras; vou dar um exemplo, para que o tema seja bem entendido.

Uma pessoa tem um problema que não quer ver nem explicitar para si mesma; e isto lhe dá um misto de prazer e sofrimento, no qual ela se deixa refocilar, pelo gosto de ter uma encrenca, pela satisfação da coisa mal explicada dentro da alma. E, por falta de retidão, o micróbio que ela possui na própria alma se transforma numa cobra, a qual pode vir a ser uma sucuri. Ao cabo de um, dois, cinco anos ela está numa crise, e numa crise enorme. Qual foi a origem dessa crise?

Quem desvia os passos do caminho reto é levado para onde não quer ir…

O ponto inicial foi um problema para o qual a pessoa não quis abrir os olhos; a respeito do qual ela não quis abrir-se para alguém, nem ouvir um conselho ou receber uma refutação. Ela desviou seus passos do caminho reto, o qual seria o seguinte:

Primeiro, reconhecer: “Tal ponto constitui em mim uma dificuldade”. Segundo: “Não posso continuar assim. Tenho que me abrir com alguém, e rezar a Nossa Senhora para ver claro”. Terceiro: “Ainda que eu não veja claro, minha fidelidade em nada se abala, porque quanto mais demorar, tanto mais claramente eu verei um dia. Debaixo deste cupim colocado no chão, onde eu não consigo ver nada, um sol está nascendo para me iluminar no futuro”.

Mas se a pessoa sai da verdadeira via, ela começa a andar no oblíquo, e do oblíquo ela derrapa para longe. Se o demônio a tivesse tentado num ponto onde ela adere muito, a pessoa teria rejeitado; entretanto, ele a tenta num ponto pequeno e inicia-se assim o caminho oblíquo. Não é o caminho para baixo, direto para o inferno, mas oblíquo intencionalmente: cada passo a afasta mais um pouco; ao cabo de algum tempo, a pessoa foi levada longe, aonde não queria. Por que ela foi levada longe? Porque lhe faltou a retidão.

Assim somos nós com quase todos os nossos defeitos. Para dizer pouco, não gostamos de olhá-los de frente e, quando os analisamos, só reconhecemos os que saltam aos olhos e não podem ser negados. Entretanto, não abrimos inteiramente o mapa de nossa mentalidade; não temos a coragem de nos censurar de frente e totalmente, procurando as agravantes, ponto por ponto, implacavelmente.

A retidão de uma alma que reconheceu suas faltas

Um famoso escritor francês do século XIX, Louis Veuillot, escreveu um livro com o título “Le parfum de Rome — O perfume de Roma”. Referia-se à Roma pré-garibaldina, anterior aos Saboias; a Roma magnífica do tempo em que os Papas eram reis da Cidade Eterna e de uma província vizinha que formavam os Estados Pontifícios.

Conta Veuillot que, em Roma, ele visitou uma velha basílica a qual o encantou; percorreu-a por dentro e por fora. Passando detrás do templo, numa pedra que fazia parte do fundamento de seu muro externo, ele notou que alguma coisa estava escrita.

Então ele se agachou para olhar e verificou que estava escrito o seguinte: “No dia tal de tal ano pequei! Meu Deus, tenha pena de mim! No dia tal pequei de novo! Meu Deus, tenha pena de mim! Dia tal não pequei, graças a Deus!” Assim, caindo em pecado ou se mantendo em estado de graça, essa alma tinha escrito o seu diário espiritual.

E, um belo dia, ela anotou o seguinte: “Meu Deus, há tanto tempo — digamos seis meses, um ano — eu não peco! “Gloria in excelsis Deo” — Glória a Deus no mais alto dos Céus!” Louis Veuillot fez, a este propósito, um comentário magnífico, dizendo que se ele tivesse encontrado sangue de mártires naquela pedra, não a teria venerado mais do que o fez ao ver esse itinerário que exprimia o sacrifício de uma alma para se libertar de um pecado e readquirir o estado de graça.

Humildade e admiração: frutos da retidão

Isso nos mostra exatamente o que é a retidão. Trata-se de uma alma que o tempo inteiro analisou-se como era e se increpou como merecia. E teve humildade: “Como eu sou torto e errado! Minha Mãe, que estais no mais alto dos Céus, bem junto a Deus, como Vós sois diferente de mim!” Nesse abismo de diferença, ergue-se uma coluna de incenso, de encanto e de admiração.

Quando sabemos increpar os nossos próprios defeitos, nos tornamos capazes de admirar. Porque, quando vemos o mal que há em nós, podemos admirar o bem que não há em nós; assim nós temos admiração sem inveja. Então, do fundo da nossa miséria, sobe aquela coluna de incenso: “Minha Mãe, eu me dobro diante de Vós, não só por execração aos meus defeitos, mas por um corolário necessário dessa execração: a admiração de vossas qualidades”.

Mas quando uma pessoa não tem a coragem de olhar de frente para seu próprio defeito, ela não é capaz de admirar. E o defeito pelo qual não se olha bem a própria alma chama-se falta de retidão. A virtude pela qual nós nos vemos como somos, e admiramos quem não é como nós, chama-se retidão.

A retidão do Imaculado Coração de Maria

A retidão é a integridade por onde a alma realiza tudo quanto deve, e como deve, sem delongas, sem tapeação, sem protelação; e o faz total e inteiramente, ainda que, devido à fraqueza humana, caindo, mas pedindo perdão e se levantando, dizendo a verdade para si mesma. Desta virtude da retidão nascem as famílias de alma retas, das quais surgem as grandes correntes de retidão dentro da História; tudo isso é um reflexo do Sapiencial e Imaculado Coração de Maria, eu diria, do retíssimo Coração de Maria.

Alguém perguntará: “Mas haverá um símbolo que fale da retidão do Imaculado Coração de Maria?” Sim. É o Coração da Virgem transpassado por sete espadas, representando suas sete dores, que poderiam ser chamadas as sete retidões.

Sete é um número simbólico na Escritura, que indica totalidade. “As Sete Dores de Nossa Senhora” simbolizam as principais, não as únicas.

Assim também podemos dizer que cada espada retilínea foi uma posição firme e reta que Ela tomou diante de tudo. De todas as suas “retilineidades” veio toda a sua dor. E toda a sua dor Lhe veio porque tinha retidão. Maria Santíssima olhou tudo de frente, sofreu e foi até o fim!

Para sermos retos, não devemos olhar para nossas qualidades

O que se passa com os nossos defeitos que não queremos ver de frente, ocorre também com os nossos sofrimentos.

Poucas pessoas têm a coragem de pôr diante de si a ideia seguinte: a vida é um vale de lágrimas, para usar uma expressão mais rigorosa, um campo de batalha. Portanto, só vive uma vida digna de ser vivida quem luta contra o mal, a favor do bem, e se expõe a todos os sofrimentos inerentes à luta! E, então, observa as coisas como o guerreiro dirige seu olhar para o adversário: olha de frente e desfere o golpe.

Outra condição para possuir a virtude da retidão é não olhar para as próprias qualidades. Olhando-as, a pessoa as perde. O melhor meio de perder uma qualidade é olhar para ela. O melhor meio de perder um defeito é olhar para ele.

Por falta de retidão, as pessoas formam uma ideia falsa a seu próprio respeito

A maior parte das pessoas tem preguiça de pensar, e, por causa disso, não prestam real atenção em si mesmas. Fazem, então, uma análise incompleta de si. E a análise incompleta de si própria tem dois aspectos: a pessoa não olha inteiramente seus defeitos e, por causa disso, cai num outro erro, também por falta de retidão: ela começa a imaginar que tem qualidades que não possui. Porque quem não quer ver os defeitos que tem, imagina possuir qualidades que não tem. É forçoso.

A partir desse momento, ela forma uma ideia falsa a seu próprio respeito. Formando uma ideia falsa de sua pessoa, segue um itinerário errado na vida. Quem, por exemplo, está andando de bicicleta e imagina-se num automóvel, não pode chegar ao termo da viagem. Quem tem automóvel e pensa que este é um tanque de guerra, dirige-o de tal maneira que ele se espandonga inteiramente. Nós somos o veículo de nós mesmos ao longo da vida, e se cada um não sabe que tipo de veículo é, como pode bem dirigir-se a si próprio, de maneira a chegar até ao fim da vida?

As frustrações de quem vive um sonho

Por causa disso o indivíduo cai num erro pior do que os outros: começa a viver uma vida que não era para ele. Então dá tudo errado. O indivíduo sonha ter uma vida que não é para ele; e vive a vida que ele não sonhou, porque nessa situação ninguém realiza o próprio sonho. Nota que está tudo torto dentro de si, porque percebe que ele é outro. E tem frustrações horrorosas.

Lembro-me de um velho senhor que conheci, o qual era muito distinto de maneiras e agradável de trato. Eu o vi, num dia de calor, sentado junto a uma mesa, com o aspecto mais emburrado e desagradado que possa haver. De vez em quando, ele retirava seu relógio do bolso, o olhava e o guardava novamente. Eu francamente fiquei com medo de que ele quisesse se suicidar. Então, com o desejo de ser-lhe útil e para aliviar um pouco sua vida, me aproximei dele e perguntei:

— O senhor precisaria de alguma coisa?
Ele levantou a cabeça e me disse:
— Você não sabe o que é a vida.
Eu era muito mais moço que ele; tinha uns vinte e dois anos.
— Você pensa que sabe o que é a vida, mas você não sabe. Cada vez que eu tiro o relógio, não consigo ver o quadrante dele, porque aos meus olhos se apresenta a figura de algo de irreal que sonhei.

E quando eu vou verificar a hora, consulto as velhas reminiscências dos meus sonhos que não se realizaram, e por causa disso me desespero dessa maneira.

Achei aquilo uma coisa terrível. Era o horror da falta de retidão.

Duas reações diante de tal problema

Diante do que estou dizendo, alguém poderia ter a seguinte reação: “Isto mexe tanto com os fundos de minha moleza e do meu amor-próprio, que eu não tenho nenhuma coragem de fazer o que Dr. Plinio está recomendando. Portanto, eu ouço o que ele diz, não contesto, mas, sobretudo, não adiro; e saio daqui como entrei”.

Essa pessoa, máxime depois do que estou explicando, compreende que se pede pouco para ela. É que ela acuse a si mesma, eventualmente em Confissão — mas não se trata aqui de questão de Confissão —, acuse a si mesma o defeito que vê, com todas as agravantes. Não estou pedindo que ela olhe desde logo até o fundo de sua alma, mas observe o que está ao alcance de seu olhar, e o descreva para si mesma com clareza. De camada em camada, de defeito em defeito ela chegará até a profundidade e acabará vendo-se totalmente.

A Providência se serve de modos variados para fazer cessar os nossos defeitos. Às vezes, eles cessam como não imaginávamos. Desde que peçamos, conseguimos, por assim dizer, o absurdo. E se não corrigimos os nossos defeitos é porque, no fundo, não temos retidão.

Para reparar seus pecados, Santo Agostinho escreve as “Confissões”

Em suas “Confissões”, Santo Agostinho narra que, em certa ocasião, estava sozinho e angustiado. Ele era gnóstico, corrupto, tinha um filho ilegítimo. Era, portanto, herege e impuro. De repente, ele ouve uma voz interior que lhe diz: “Tolle lege! tolle lege! — Toma e lê! Toma e lê!” Era a voz de Deus mandando que ele lesse, se não me engano, um livro da Escritura. Ele faz a leitura e encontra um trecho que resolvia o seu problema. A partir daquele momento ele se converteu, e depois se tornou o grande Doutor da Igreja.

Esse Doutor da Igreja, para castigar-se dos pecados que cometeu, escreveu essa biografia à qual deu o título de “Confissões”, para se confessar a si próprio diante do mundo inteiro pelos seus defeitos. E a morte dele foi a mais bela morte de penitente, que se possa imaginar. Elevado a Bispo da cidade de Hipona, ele foi um luminar na Igreja Católica.

Hipona, situada no Norte da África, era uma cidade de cultura e língua romanas, que estava cercada pelos vândalos, os quais vieram da Germânia, atravessaram a França, a Espanha e desceram pela África, e sitiaram várias cidades que encontravam pelo caminho. Hipona ia ser tomada por eles, e Santo Agostinho, moribundo, provavelmente já com a vista enfraquecida, mandou que os Salmos Penitenciais fossem escritos numa parede diante do seu leito, em letras bem grandes, para ele poder ler. E ele, então, no fim de sua vida, lia os Salmos pedindo perdão, para ser recebido por Nossa Senhora.

Foi uma alma que com muita retidão e lealdade se examinou a si mesma, e confiou na misericórdia de Maria Santíssima. A essa alma as portas do Céu se abriram e ele entrou pelo eixo reto que conduz a Deus. Por quê? Porque ele tinha sido reto durante a vida.

A alma reta que comparece diante de Deus

Linda frase a respeito da retidão é a de São Paulo: “Bonum certamen certavi cursum consummavi fidem servavi — Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a Fé” (2 Tm 4, 7). Não pode haver coisa mais bonita do que um homem olhar para o decorrer de sua vida e dizer isto. Em latim, ao pé da letra, “bonum certamen certavi” não quer dizer “eu travei um bom combate”, mas “combati todo o bom combate que eu tinha que combater”. “Cursum consummavi” significa “percorri todo caminho longo e difícil que eu tinha que percorrer”; ou seja, “fui reto”. Combatendo, combateu tudo. Tendo que percorrer o caminho, percorreu-o inteiro. E com a calma, a paz de espírito dos retos, o Apóstolo se voltava para Deus e dizia: “Resta-me agora receber a coroa da justiça, que o Senhor, justo Juiz, me dará naquele dia” (2 Tm 4, 8). E o recebeu! Esse é o modo de expirar da alma reta. Ou é na penitência confiante de Santo Agostinho, ou nessa quase respeitosa cobrança de cheque de São Paulo: “Eu paguei, meu Deus! Chegou a hora dos vossos juros! Eu entro na eternidade”. É uma beleza!

Não se sabe qual é a mais bonita das duas formas de morte reta.

Nossa Senhora, exemplo de retidão

Consideremos também a retidão de Nossa Senhora, pura criatura concebida sem pecado original! Qual foi o primeiro momento em que Maria Santíssima soube que Jesus seria crucificado? Ela certamente o conheceu pelas Escrituras, porque possuía uma visão, um conhecimento lucidíssimo da Bíblia. E, como Esposa do Espírito Santo, Ela não se tornou Mestra infalível, mas era pessoalmente infalível, não caia mais em erro.

Ela acompanhava cada passo da vida de Jesus, ciente de todos os horrores que iriam acontecer até o momento da morte d’Ele na Cruz, em que o Padre Eterno pediu-Lhe, como Mãe e Senhora do Filho, que Ela consentisse na morte d’Ele. E Ela, no meio das agonias de Jesus, disse mais uma vez: “Faça-se n’Ele segundo a vossa palavra!” Quer dizer, Ela levou retilineamente o sacrifício até o fim.

Depois Nossa Senhora recebeu em suas mãos o cadáver d’Aquele que é a própria Retidão, o fruto do consentimento que Ela havia dado. Através da morte Ele nos deu a vida; era a vitória esplendorosa dentro do esmagamento completo.

Podemos, então, perceber e amar o “pulchrum” da retidão; e compreender como se consegue obtê-la. Dirijamos nossas orações desta noite a Nossa Senhora, pedindo que Ela nos obtenha a virtude da retidão.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/11/1978)

O mais belo mar! — III

Depois de nos fazer velejar pelos mares da Filosofia, Dr. Plinio chega ao auge de sua conferência. Ao concluí-la, ele descreve  as diversas espécies de raciocínio mostrando o papel da abstração  no conhecimento humano.

 

Dou tornar mais concreto o meu pensamento. Quando cogitamos em nosso pai Adão e em nossa mãe Eva, pensamos no pecado. Mas não devemos pensar neles só por ocasião do pecado, mas antes do pecado.

Adão e Eva: duas cordas de um alaúde

Adão e Eva continham todo o gênero humano, como a árvore contém os frutos. Por causa disso o pecado deles foi o pecado do gênero humano. Mais ou menos parecido ao que ocorre com uma árvore atingida por uma doença: adoecem os frutos que vão nascer. O fruto ainda não foi concebido na árvore, mas nasce doentio porque a árvore está enferma.

Devemos, então, imaginá-los como eles eram antes do pecado: inocentes e tinham em si, em gérmen, todas as qualidades que o gênero humano iria possuir, até o fim do mundo. Eles eram, portanto, inteligentíssimos, inocentíssimos, retíssimos, pulquérrimos, distintíssimos, nobilíssimos, autoritários, amenos e gentis.

Se cada homem conseguisse contemplar Adão e Eva na sua inocência, poderia, como que, reconhecer-se a si próprio em um veio da personalidade deles, levado a um grau de esplendor originário e extraordinário! Adão era como que o homem dos homens, no qual havia a raiz de todos os homens, daquele Homem que havia de superá-lo tanto: a humanidade de Nosso Senhor Jesus Cristo. E Eva, a mulher das mulheres, contendo em si todas as variedades possíveis de mulheres, com todos os seus charmes, mas, sobretudo, d’Aquela que por vontade de Deus a superaria tanto: Nossa Senhora.

Poder-se-ia dizer que Adão e Eva eram como duas cordas de um alaúde: Deus tocando a masculinidade emitiria o som “Jesus”, e tocando a feminilidade, o som “Maria”! O dedo de Deus tem incomparavelmente mais poder do que uma corda inerte ou tocada pelos ventos. É sabido que certas harpas se deixam tocar pelos ventos. Mas o dedo de Deus extrai de uma harpa uma harmonia que ninguém consegue tirar.

Para dar uma noção do que é ideia abstrata, digo que esta seria como que um Adão e uma Eva de todo o gênero. A ideia abstrata de navio, bem concebida, não se reduz ao seco que apresentei, mas à soma do seco que indiquei com aquilo que ficou no fundo de minha imaginação, quando virei todo o meu caleidoscópio a respeito dos navios.

Complemento cultural da abstração

Então nós agarramos a ideia abstrata e nos deleitamos.

Seria como alguém que, vendo uma bolha de sabão na minha mão, não a furasse, mas me dissesse: “Dr. Plínio, sabe o que é essa bolha? É água cristalina de tal fonte, misturada com o melhor e o mais perfumado dos sabonetes: o “Pears” da Inglaterra!” Ele definiu a bolha sem estourá-la. E para o meu espírito foi um lucro saber o que era aquela bolha.

Não sei se estou conseguindo fazer andar esse barco complicado…

A bolha de sabão é feita de água e de sabão, dois elementos tão comuns que formam uma casca tão ligeira, uma esfera tão perfeita, maravilhosa. Ela como que se estende e constitui uma espécie de membrana tão delicada, que eu nunca pensei que dormisse na água a possibilidade de se deixar “membranar” assim por um pouquinho de sabão. “Ó cristal! Água, como eu te entendo melhor! Sabão, que benemérito!” E, sentindo um pouco do bom perfume do “Pears” inglês, eu digo: “Ah! Categoria! Classe!”

Sem estourar a bolha, eu lucrei. Então o que é o estourar?

Um indivíduo com espírito “ploc-ploc(1)” fura a bolha e diz: “Está vendo? Não era senão água e sabão! Quá-quá-quá”. Esse é um celerado porque destruiu uma coisa bela. Mas, sobretudo porque ele mentiu. Pois a bolha não se reduz a simples água e sabão; senão qualquer água com sabão, que está escorrendo dentro da pia, seria bolha.

A bolha é água com sabão mais certa relação de ambos, própria a sofrer do ar uma pressão por onde ela se mantém coesa em forma esférica. Eu dei a definição.

Mas não é apenas isto. A bolha é água com sabão mais algo.

Quanto à definição de barco que apresentei, a mentira está no seguinte: o barco se reduz àquela definição. Porque seria uma substância — vou usar uma expressão filosófica — sem acidentes, uma coisa sem predicados, sem qualidades. Nada existe sem qualidades.

Barco não é só isto! De fato, todas as espécies possíveis de barcos estão contidas na definição. É uma coisa diferente, um jogo diverso.

Então qual é a definição verdadeira? Eu completo agora a definição de barco com um pressuposto: é um veículo aquático destinado ao transporte de homens, mercadorias e, digamos, correspondência. Está bem! Eu acrescentaria algo que filosoficamente não é preciso, porque está subentendido; eu completaria dizendo o seguinte: variável indefinidamente, segundo as mentalidades e os lugares.

Assim, os que estão neste auditório estariam reconciliados com a definição. Ela não lhes pareceria mais “ploc-ploc”; sentiriam o Bucentauro pendurado no ponto final da frase.

Por que a definição não contém esse acréscimo? Porque está pressuposto! Tudo quanto existe nesta Terra fugidia é variável ao infinito, segundo as circunstâncias de tempo e de lugar. Então o barco não se reduz a isto, mas é isto com todas as suas variabilidades. Está pego algo, sem o qual uma pessoa não entenderia o que é barco.

Dessa forma, fica expresso qual é o complemento cultural da abstração. Com isso bem entendido, demos um passo no caminho da Metafísica.

O que é a Metafísica aqui? Notem que o conceito de barco contém, portanto, todos os graus de perfeição e de excelência que uma embarcação pode abranger, e se une à imagem do barco dos barcos.

Alguém dirá: “Mas Dr. Plinio, há também barcos furados, rachados, grotescos; por que tais barcos cheios de defeitos não estão contidos na definição?” Respondo: Porque não fazem parte da definição! O barco rachado, por exemplo, em algo escapa à categoria de barco. Quem fabricasse um barco rachado não poderia dizer que construiu um barco, porque não é destinado à navegação. Posto na água, ele vai ao fundo.

Quer dizer, os defeitos da coisa são o contrário da sua natureza; o que está conforme com a natureza de uma coisa são as qualidades dela.

O raciocínio é mais belo quando ele é rápido como um corisco

Será bem verdade que o conceito de barco nasceu em minha mente só depois de eu pensar numa porção deles? Eu apresentei assim, e é verdade. Mas a verdade é só essa? Vejo um barco e me encanto, depois observo outro e prefiro este ao primeiro; faço essa comparação porque, no fundo, já formei um conceito abstrato de barco. Se eu digo que um barco é melhor do que outro, é porque fiz antes uma ideia subconsciente de como é o barco teoricamente e comparei os dois com o barco teórico.

Ou seja, eu não seria capaz de comparar os dois barcos se, de um modo subconsciente, eu já não tivesse feito, no primeiro olhar, aquela ideia que vai aflorar ao final da minha longa elucubração explicitamente.

Rápido como um clarão; não percebi que raciocinei. No total, quando eu raciocinei talvez estivesse esfregando os olhos ou caçando um mosquito. Mas meu raciocínio pegou logo. Aliás, essa é uma das belezas do raciocínio.

O raciocínio é muito bonito quando sobe uma longa escada majestosa e chega até suas conclusões. Mas como é mais belo quando ele é como um corisco! A pessoa nem teve tempo de perceber os vários elementos que o constituíram, e chega à conclusão. Um fulgor!

Seres criados desde todo o sempre

Passemos para outro ponto.

A respeito de tudo que vejo na Terra, formo ideias abstratas: cadeira, mesa, barco, pão, homem, espada, lustre. Ao que me conduzem essas ideias?

Pela superposição das figuras do meu caleidoscópio, formei uma ideia de cadeira enquanto cadeira, mas é uma cadeira “cadeiríssima”, em comparação com a qual eu confiro todas as cadeiras que vejo. Analogamente, elaborei a ideia de espada “espadíssima”, que contém todas as qualidades imagináveis de uma espada; eu não a desenho, mas sou capaz de concebê-la. E assim vou concebendo com a abstração a ideia de outra ordem de seres que não existem, mas poderiam existir.

E, com uma perfeição incomparável, o Homem prototípico: A humanidade de Nosso Senhor Jesus Cristo! A mulher prototípica: Nossa Senhora! Jesus Cristo e Maria Santíssima, eu poderia imaginá-los na sua mera humanidade e, abstração feita do sobrenatural, numa ordem de coisas que também ainda não existiu.

São Tomás de Aquino nos ensina que, quando Deus criou as criaturas e elas começaram a se relacionar, iniciou o tempo. Vejam o livro do Gênesis: primeiro dia, Ele faz o primeiro ato criador e, como em roldana, começa a série de dias: entrou o tempo.

Mas São Tomás diz uma coisa curiosa: Deus poderia ter criado criaturas desde todo o sempre, fora do tempo, e que, naturalmente, seriam mais excelentes do que nós, que somos sujeitos a essas mudanças. Mais excelentes do que Adão e Eva e até mesmo do que os anjos! Porque os anjos não foram criados desde todo o sempre.

E nossa imaginação, nosso senso do ser, palpita com essa ideia de conhecer criaturas criadas desde todo o sempre. Se houvesse uma espada criada desde todo o sempre e reunindo em si todos os predicados de uma espada, na medida em que isso coubesse nas limitações da matéria; e se existisse também um puro espírito criado desde todo o sempre, e assim por diante, a ponta de nossa alma sente o mais alto frêmito da admiração, mas não consegue precisar nem definir.

É a ponta mais alcandorada da inocência que vibra sem sabermos como. É uma chispa que constitui em cada pessoa certo traço de genialidade, porque quando o homem chega a essa ponta, um pouco de genialidade que há nas mentes de homens comuns, e que existe às torrentes nas mentes dos gênios — São Tomás de Aquino, por exemplo —, essa ponta vibra com uma luz especial. Aí, temos o metafísico!

Termo último da Metafísica

E se nos voltarmos para esse mundo que não foi, mas poderia ter sido criado, mesmo assim nossa alma ainda não fica satisfeita. Porque se imagino um anjo criado desde todo o sempre, eu penso: “Do vale da Criação onde nasci, eu venero a tua culminância e te admiro, mas tu és para mim algo que revela e que vela. Revela porque no teu esplendor, para mim inimaginável, eu compreendo algo; vela porque, olhando-te, não posso ver o que está por detrás de ti. Anjo altíssimo, puríssimo, Alguém te deu o ser e tudo o que tens; foi teu Criador, logo há Alguém melhor do que tu. Tu és para mim uma imagem d’Ele, oh deleite! Mas tu não és senão imagem. Como será Ele?”

Aqui nós subimos ao ponto dos pontos, quer dizer, tudo que tem o anjo está para o Criador numa relação inferior àquela de uma árvore — que passasse mil anos dando constantemente frutas em todas as estações do ano — com uma só de suas frutas. Todas as frutas que a árvore produziu têm um fundamento no ser da árvore; senão não existiriam. Mas o Criador é eterno, Ele é absoluto, ninguém O criou. Tudo, para existir, tem um fundamento n’Ele. Logo, todas as belezas, perfeições, santidades, retidões têm um fundamento n’Ele, que é o padrão. Ele não é reto, mas a Retidão, não é santo, mas a Santidade!

De onde a santidade se identifica com o Ser d’Ele. Ele é suas qualidades, e suas qualidades são Ele. Ah! “Te Deum laudamus, Te Dominum confitemur…” Aqui é o caso de passar a palavra a Santo Ambrósio e Santo Agostinho.

Nossa admiração toca num Ser de uma densidade tal que Ele não é como as qualidades que nós temos. Como estas qualidades são efêmeras! Eu estou falando neste auditório não só com uma facilidade, mas, digamos, com um relativo desembaraço.

Estou com setenta anos, e devo fazer setenta e um no próximo mês. Sejamos muito otimistas, e otimistas até o delírio; daqui a trinta anos, se eu estivesse vivo, tudo se teria apagado! Aonde a facilidade de conjugar as palavras? De escolher a esmo os exemplos? Aonde a comunicação com o auditório? Uma voz hesitante, arrastante, um olhar vidrado…

Ou morto! Nós não nos identificamos com nossas qualidades. Nossas qualidades passam e nós ficamos. Nós as recebemos quando pequenos e as desenvolvemos a duras penas. E quando elas atingirem o apogeu, o ciclo de nossa vida está fechado; nós baixamos para a sepultura.

É verdade que nossa alma vai para o Céu, e no dia da ressurreição nossos corpos renascerão. Aí é a eternidade! Mas nessa vida, como tudo é instável, mutável! Lembro-me de uma frase de Bossuet, uma trilogia, num dos seus sermões sobre a Semana Santa. Falando a respeito de Nosso Senhor Jesus Cristo, ele faz uma linda conjugação de adjetivos, mandando os fiéis contemplarem “un Dieu brisé, rompu, anéanti”. Um Homem-Deus quebrado, roto, aniquilado, na sua humanidade.

Até a musicalidade é bonita: “brisé, rompu, anéanti”!

Tudo que está em nós é destinado a ser “brisé, rompu, anéanti”, porque tudo passa.

Porque nós não somos nossas qualidades. E Deus é tudo! Ele pode tudo, sabe tudo! Ele sobrepaira a todos! Puríssimo espírito! Ele cria ao infinito, sem o menor esforço, apenas para criar. Compreendemos assim o que é o termo último para onde a Metafísica se dirige.

Esses paradoxos, que são próprios à ordem do ser, ao menos para mim, dão certo repouso.

A beleza do movimento tem fundamento no Ser imutável

Encontro aí algo que talvez seja uma peculiaridade minha. Essa eterna mutabilidade das coisas me cansa. Por um lado, ela me deleita, pois se não houvesse mutabilidade também me cansaria. A imobilidade me cansa e a mobilidade também. Mas há alguns homens que se cansam mais com a imobilidade, e outros que se cansam mais com a mobilidade. Cada um dos presentes neste auditório se examine um pouco. É um ponto interessante para se definirem.

A mim a mobilidade cansa mais do que imobilidade. Eu posso ficar, no mesmo lugar, durante um ano sem me cansar. Enquanto que, ao cabo de uma hora de mobilidade, eu já estou aspirando à imobilidade. Assim sou eu.

Por isso, quando viajo de automóvel logo me pergunto quanto tempo vai demorar até chegar ao destino: “Acaba com esse perpétuo roda-roda! Vamos fazer uma coisa fixa em que se possa olhar e pensar!”

Gosto de sentar-me para analisar, refletir e distender-me. Há outros que são o contrário: quanto mais mobilidade, melhor.

Depois dessa longa caminhada, no decurso da qual eu colhi cada flor que fui capaz de ver, e comi cada fruto que consegui notar, tenho um alívio quando penso no Absoluto. Então, tudo isto para num Ser terminal e inicial supremo, fixo e eterno. Ele não muda nunca e a sucessão dos aspectos das coisas n’Ele está parada. E numa posição eterna! Riquíssima! Esplendorosa!

Imutável? Sim, mas com toda a força e a graça do motor primeiro, que move sem se mover e do qual todo movimento nasce. De maneira que a própria beleza do movimento tem seu fundamento nesse Ser imutável. E tudo que eu vejo de belo na mutabilidade, no Imutável com “I” maiúsculo existe também.

Repouso, afinal! Encontrei o que eu queria! A minha vida teve sua razão de ser. Adoremo-Lo e percamo-nos n’Ele.

O que eu fiz? Metafísica! Fazendo Metafísica, atendi ao pedido que me foi feito no início de nossa reunião.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/11/1979)

1) Expressão criada por Dr. Plinio para designar o defeito de certas pessoas que, desprovidas de intuição, minoram a importância dos símbolos e negam o valor da ação de presença. Querem tudo explicar por raciocínios desenvolvidos de modo lento e pesado, à maneira de um paralelepípedo que, ao ser girado sobre o solo, emite o ruído “ploc-ploc”.