Sabedoria e sacralidade – I

A visão sacral do universo, haurida no Sagrado Coração de Jesus por meio da Santa Igreja Católica, levava Dr. Plinio a tudo analisar sob este prisma e a discernir o cunho dessacralizante da Revolução.

 

Em menino, recebi a influência altamente benéfica dos jesuítas em minha formação. Assim, graças a Nossa Senhora, vincou-se muitíssimo no meu espírito a noção de que, por cima de tudo aquilo que eu vinha considerando e admirando nas etapas anteriores, pairava a autoridade doutrinária da Igreja, e o que havia na minha alma de bom, de belo, eu o tinha porque era católico e o recebia de minha comunicação espiritual, sobrenatural e religiosa com a Igreja Católica.

A Igreja, fonte de todo o bem

Os jesuítas não insistiam sobre a metáfora do Corpo Místico, mas a doutrina eles davam. Naturalmente, prestei
muita atenção nela e se cravou muito em meu espírito a ideia de que a Igreja era a própria fonte de onde vinha tudo quanto havia de bom em mim. Ou seja, o Sagrado Coração de Jesus, por meio do Coração Imaculado de Maria. Essa noção era muito vivaz, mas foi “doutrinalizada” só mais tarde quando li São Luís Grignion de Montfort.

Tudo quanto era de Jesus Cristo, para mim vinha por meio da Igreja, a concha na qual pousavam todos os benefícios d’Ele para todos os homens. Eu me entregava àquilo e hauria tudo dali.

Mas a Igreja era a minha mestra e corrigiria os desvios eventuais a que meu espírito estava sujeito. Eu me sentia capaz de erro, pelo lapso da inteligência, pela tendência ao mal, mas também enormemente protegido pela ideia da infalibilidade da Esposa de Cristo.

Eu percebia a impossibilidade de fazer todos os homens pensarem do mesmo modo. Ou havia uma autoridade infalível que ensinava a todos, ou não existiria possibilidade de pensarem da mesma forma. Enquanto isso não se desse, a vida seria um caos, indigna de ser vivida.

Daí uma veneração enorme pelo Papado. E depois, correspondentemente, pelo Episcopado e pelos outros graus da Hierarquia.

Jardim protegido pelas muralhas do dogma e da lei

Juntamente com tudo isso, também uma ideia do poder governativo da Igreja.

Em primeiro lugar, as leis feitas por Deus, sacratíssimas, venerabilíssimas, mas obrigando como a lei obriga. Depois, as leis da Igreja, complementação das leis de Deus, obrigando também com uma autoridade divina.

Portanto, a noção do dogma, do preceito, da necessidade de obedecer — sobretudo em matéria religiosa — se vincou em meu espírito a fundo. E quem não obedecesse teria que cumprir uma pena. Eu tinha entusiasmo pela aplicação efetiva da penalidade, e repulsa em relação às autoridades que aplicam de um modo dorminhoco, negligente a lei, que velam com mão mole sobre o dogma.

Tudo isso formou uma vertente do meu espírito, como fruto das etapas anteriores. Não como uma etapa nova, mas uma complementação a uma coisa já existente.

E a inocência era para mim como um jardim magnífico, mas protegido pelas muralhas do dogma e da lei. Um jardim fortificado.

Há em certo lugar da Escritura uma referência ao “hortus conclusus”(1) — jardim fechado —, que a Igreja aplica a Nossa Senhora. A Igreja me parecia um horto fortificado, cheio de maravilhas no interior, mas do lado de fora preparado, ajustado e assestado para o combate. A ideia da fortaleza era um complemento.

Ordem do universo e combates sacrais

Do choque com a Revolução vinha a ideia de que a ordem do universo pedia que fosse possível haver combates sacrais. Porque seria necessário que, em homenagem aos mais altos valores, houvesse os mais elevados sacrifícios, os heroísmos mais extremos, os sacrifícios mais terríveis, as abnegações mais cruciantes. Portanto, o sacral de si era belígero, no sentido de que a presença dele na Terra, ao mesmo tempo, atraía e repelia, criava uma divisão. E essa divisão provocava a luta.

A luta, de vez em quando, daria na guerra. E esta guerra, em certo sentido, completava a ordem do universo, porque era a efetivação do holocausto com sangue à sacralidade, que o homem deveria pagar.

De maneira que o pacifismo exagerado e o laicismo sempre me pareceram coisas correlatas, não na primeira superfície, mas no fundo.

Eu ainda não conhecia o ecumenismo falso, inteiramente diferente do ecumenismo verdadeiro. Podem calcular quando conheci esse falso ecumenismo, que sabor desagradável me produziu na boca…

Sempre me pareceu que esses utopismos não queriam considerar que, sendo o mundo um vale de lágrimas, de vez em quando era necessário que nele aparecessem lutas, conflitos, os quais levassem até esse ponto.

Era uma necessidade deplorável, fruto do pecado original e dos outros pecados dos homens, mas de uma natureza tal que seria ainda mais deplorável se não houvesse. Porque até mesmo o homem concebido sem pecado original ficaria amputado e deformado se ele não tivesse a possibilidade, às vezes, de levar a luta pelo sacral ao extremo de todas as dedicações.

Holocausto sublime que dá beleza à vida

Nesse sentido, a guerra legítima me aparecia como uma nota da sacralidade. Porque é um holocausto praticado pelo homem que vai à batalha, mesmo quando esta não tem motivo religioso, mas é uma questão de fronteiras ou algo assim. Neste caso, o combatente defenderá o direito de seu país por uma razão moral. Ele, católico, vai à luta porque um Mandamento de Deus o obriga a ir. Nesse sentido, para ele é uma “guerra santa”. Não santa na sua meta imediata, mas na sua meta última de cumprir o dever para com seu país.

De onde, então, em toda guerra justa, exatamente nos seus horrores, aparecer um sentido de holocausto sublime que dá uma beleza à vida, indispensável para compor os aspectos da existência, tal como ela é em consequência do pecado original e dos pecados atuais.

Alguém, para fazer chicana, perguntaria: “Você não deseja uma era de paz? Veja na Escritura tudo quanto se diz a respeito da paz, da beleza dela, como se deve querer uma paz eterna que nunca mais tenha fim. Você não deseja isso? E fica como uma hiena, um chacal à espera da efusão do sangue? E você se diz católico?!”

Como as doenças que nunca desaparecerão…

A resposta é muito simples. Aplica-se aqui tudo quanto sabemos a respeito da necessidade da doença. Não há quem possa, em certo sentido da palavra, gostar que haja enfermidades na Terra. Mas, de outro lado, ninguém pode imaginar até onde o mundo cairia se não houvesse doenças.

Então, o homem deve fazer o possível para diminuir o número de enfermidades, bem certo de que Deus nunca permitirá que elas desapareçam. E, pelo contrário, pode Ele dispor que, na medida em que o homem vá vencendo na luta contra as doenças, vão aparecendo enfermidades, menos numerosas é verdade, entretanto mais cruéis. Por quê? Porque Ele não quer que a dor desapareça dentre os homens.

A própria Igreja, que tanto fez para diminuir os sofrimentos do homem doente — com os bens do espírito e do corpo, incitando, estimulando e consolando —, entretanto sabe que a doença é de uma grande utilidade. Faz o possível para evitá-la, mas o faz tranquilamente porque tem ciência de que jamais desaparecerá de modo completo, e que, portanto, nunca faltarão doenças nesta Terra.

Assim também é a guerra.

Sacralidade e luta

Então, a esse senso de sacralidade se acrescentou um colorido militante, pelo qual a minha alma ansiava, e que se representava pouco nas expressões religiosas que eu conhecia até essa época.

Lembro-me de que quando os jesuítas falavam de Santo Inácio como grande combatente no cerco de Pamplona — eles ressaltavam muito isso —, eu ficava encantado, embora visse bem que a guerra, dentro da qual a batalha de Pamplona era um episódio, referia-se a questões de limites da França com a Espanha e, mais remotamente, com o Sacro Império; portanto, uma guerra temporal. Mas era um herói! Quando contavam que Santo Inácio ficava entusiasmado em ler os romances de Cavalaria, eu me regozijava.

Quando vi aquele livrinho de Carlos Magno(2), a minha alma teve uma sensação de algo de completo, que se lhe acrescentava com a consideração desse maravilhoso.

Por quê? Precisamente porque o sacral sem a luta não me parecia completo. E, pelo contrário, a fina ponta da sacralidade parecia simbolizar-se para mim muito bem na fina ponta de uma espada.

O Protestantismo e a Revolução Francesa são dessacralizantes

Mais tarde, entrou a ideia da sacralidade ligada à questão da Revolução.

Eu tinha noções esparsas sobre protestantismo e o detestava, possuindo em relação a ele um horror intuitivo e muito profundo.

Lembro-me de que, em certa ocasião, a Fräulein Mathilde(3) precisou falar com alguém dentro de um templo não sei de que seita protestante construído numa rua não muito distante de minha casa. Ela entrou levando Rosée por uma das mãos e a mim pela outra.

Quando me pilhei dentro daquele recinto e percebi que era uma igreja protestante, sentia horror até de respirar, por se tratar de uma coisa que não era católica, contrária à Igreja Católica. E toda a semente protestante se afigurava ao meu espírito como sendo um horror, algo satânico, nojento.

Depois, comecei a ler algumas coisas sobre a Revolução Francesa. No fundo, embora não se explicitasse isso no meu espírito, eu via bem que havia um elemento comum entre as duas Revoluções; não só o que está em meu livro Revolução e Contra-Revolução, mas algo que, quando o escrevi, estava no fundo de minha alma, mas ainda não chegara a explicitar inteiramente: é que ambas essas Revoluções são dessacralizantes.

As igrejas ou as seitas nascidas do protestantismo têm doses diferentes de restos de uma sacralidade envenenada, conspurcada. São restos de bom vinho misturado com pus e, portanto, falso, adulterado, asqueroso.

O protestantismo é todo ele um resto de sacralidade dado para tranquilizar as pessoas que, colocadas entre a negação ou a aceitação completa da sacralidade, acabariam por optar pela Santa Igreja Católica. Então os protestantes ofereciam, como uma espécie de mal menor, o pão feito sei lá de que farinha “leprosa”, que era o pão da doutrina protestante, em vez da Doutrina Católica, o mais puro dos pães.

Daí, por exemplo, eles não usarem batina, e uma porção de outras coisas que a Igreja Católica põe por inteiro. Eles não colocavam por não terem o estofo do sagrado, que só a Igreja Católica possui.

E onde havia dessacralização eu me sentia exilado, expatriado e inimigo de morte!

Na Revolução Francesa também. A sociedade do “Ancien Régime”(4), com os defeitos que eu percebia bem, era ainda toda feita de um respeito sacral para com pessoas que, se fossem como as aparências pediam, deveriam se apresentar de um modo profundamente sacral: protocolo, etiqueta, maneiras, decoração, etc.

Em relação à Idade Média eu ainda não tinha feito a comparação, mas, vistas do tempo em que eu vivia então — os anos 20, com a influência laicista do cinema de Hollywood —, as coisas do “Ancien Régime” eram sacralizantes. Em graus diferentes, mas ao menos comportavam a sacralidade. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Continua no próximo número)

(Extraído de conferência de 14/4/1989)

Revista Dr Plinio Abril de 2015

1) Ct 4, 12.

2 ) Dr. Plinio se refere ao episódio ocorrido na Estação da Luz em São Paulo, quando, ainda menino, tomou conhecimento pela primeira vez da existência de Carlos Magno, ao se deparar com um livro popular que narrava a história deste Imperador e de seus pares. Ver Dr. Plinio, n. 8, p. 4-5.

3) Srta. Mathilde Heldmann, preceptora alemã contratada por Dona Lucilia.

4) Sistema social e político aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.

A longa demora permitida por Deus

Embora a Igreja Católica nunca irá morrer, por vezes, parece ter sido colocada num sepulcro. Entretanto, assim como Nossa Senhora tinha certeza de que Nosso Senhor Jesus Cristo ressurgiria, também nós devemos estar convictos de que a Igreja emergirá milagrosamente dessa espécie de morte aparente, e acreditar na realização das profecias, na vitória e no Reino de Maria.

 

Quando se chegou ao auge da Idade Média, pela ideia da Civilização Cristã que se afirmava, da Igreja que chegava àquela plenitude, acentuou-se nos medievais a devoção a Cristo Ressurrecto, e o número de igrejas consagradas a essa invocação aumentou consideravelmente, o que é muito bonito.

A Igreja está numa aparente morte

Eu não vi tratar desse tema em livros de piedade, mas um aspecto no qual se deveria fixar a atenção é a devoção de Nossa Senhora nos três dias em que Jesus esteve na sepultura. Porque existe uma analogia entre a situação da Igreja hoje em dia e Nosso Senhor no sepulcro.

A Igreja Católica não está morta, mas por vezes as aparências são de que ela foi posta num sepulcro. Ela não vai ressurgir porque não morreu, mas dessa espécie de morte aparente ela emergirá milagrosamente. Então, nós estamos nesses três dias – número historicamente real, mas de valor simbólico – de Nosso Senhor na sepultura.

Para a Santíssima Virgem era tremendo pelas saudades que sentia d’Ele. Analogamente, são as nossas saudades da Igreja como ela foi e, sobretudo, como nós não alcançamos. Essas saudades devem nos ser pungentes neste período.

Assim como Nossa Senhora tinha certeza de que Nosso Senhor Jesus Cristo ressurgiria, também nós devemos estar convictos de que a Igreja não morreu, e passar por esta provação: acreditar na realização das profecias feitas em Fátima, na vitória e no Reino de Maria.

Nossa Senhora adorava o cadáver de seu Divino Filho em união hipostática imutável com a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, mas que, entretanto, estava morto. Porém, o auge da devoção d’Ela era já adorá-Lo ressurrecto.

Também nós devemos amar a Santa Igreja nessa aparente morte em que está, mas tomando em consideração nossa certeza de que ela “ressurgirá”, amá-la desde já como ela será no futuro; ideias, esperanças, vislumbres do Reino de Maria devem nos alimentar e nos preparar para o dia da ressurreição.

Esta consideração eu gostaria de fazer por ocasião da Quaresma e da Semana Santa.

Um dos elementos de deterioração do homem

É uma coisa curiosa, mas o triunfo deteriora quem não conserve na boca ou na memória a amargura da derrota anterior. Isso é sistematicamente assim. Um dos elementos de deterioração do homem é quando ele julga que aquilo de bom – e, por vezes até esplendidamente bom – que possui não é senão o normal, e todos os inferiores em relação a ele são uns infelizes, pois não têm senão aquilo que a vida deve dar. Quando o indivíduo forma esta noção da existência, ele começa a se deteriorar.

O ponto de referência é outro. Ele deve achar que o comum neste vale de lágrimas é o estado de mendigo, e qualquer coisa que esteja acima da mendicância já apresenta uma certa vantagem. De tal maneira que, quando na mendicância lhe dão um pão, ele já deve dar graças a Deus. E se ele tem um pouquinho além da mendicância, pode desejar mais, mas nunca maldizendo aquele pouco, jamais deixando de reconhecer que esse pouco é alguma coisa que deve alegrá-lo.

Às vezes, aqueles cujos pais são muito importantes, ou muito nobres, ou muito sábios, ou muito qualquer coisa, por terem nascido nessa situação, julgam um absurdo que não tivessem determinadas regalias, e ainda mais do que aquilo. Então começam a amolecer, a se deteriorar e a apodrecer.

Nós também, para não apodrecermos no Reino de Maria, teremos de conservar a recordação das torrentes nas quais bebemos pelo caminho. Para quando levantarmos a cabeça compreendermos o favor que Deus está nos fazendo e, mesmo no auge de nossa glória, não acharmos isso normal. Do contrário, ao cabo de uns cinco anos, estaremos tão amolecidos que se fosse preciso voltar atrás já não teríamos coragem. É o efeito do pecado original. Essa é a vida.

Li nas memórias de uma governanta das filhas de Nicolau II que quando o Czar ia a Paris, em viagem oficial, levava a família toda. Enquanto ele e a Czarina estavam participando das recepções oficiais, as meninas levavam uma vida à parte. Então, iam para as lojas de brinquedo, que já estavam avisadas da visita das grã-duquesas e punham à mostra os brinquedos mais caros e os melhores vendedores à disposição para atender a criançada.

As crianças nem perguntavam o preço, pois não lhes interessava. Elas apenas diziam: “Eu quero isso, aquilo e também aquilo outro…” Nicolau II, por sua vez, recebia a conta e pagava, também sem questionar. Ora, isso deteriora uma criança a mais não poder.

Segundo os costumes antigos, o primogênito herdava todo o patrimônio da família e ficava com a obrigação de administrá-lo. Os outros filhos, ou se jogavam na aventura, ou caiam no zero. Estes, entretanto, não reputavam isso uma infelicidade. Ao contrário, consideravam uma desventura o destino do primogênito que continuava amarrado ao seu castelinho, sem poder correr a aventura fabulosa que eles tinham diante deles.

D’Artagnan foi isso. Segundo a legenda, ele morreu na hora de receber o bastão de Marechal de França. E morria com a ideia de ter realizado uma fábula. Mas ele teve que dar duro…

Nós tivemos no Brasil um sistema parecido. Os descendentes que não pertenciam ao ramo primogênito recebiam terras colossais para desbravar no franco mato, e passavam os melhores anos da vida, desde o dia do casamento até mais ou menos 45 anos de idade, dando duro, plantando, enfrentando bandidos, porque era “Far West”. Quando a fazenda estava formada, eles voltavam para a capital e iam periodicamente administrar a propriedade. Para isso construíam casas na fazenda onde passavam temporadas. Mas era uma batalha para conseguir alguma coisa. Isso é altamente formativo.

Na longa demora que suportamos, devemos viver com ascese

Exemplos como esses servem para compreendermos as humilhações e tantos outros sofrimentos pelos quais passamos agora e, assim, quando chegar o Reino de Maria não nos apodrecermos na glória, mas darmos o devido valor ao fato de termos subido com sacrifício, reconhecermos o quanto devemos a Nossa Senhora por causa disso, e conservarmos a seguinte ideia retrospectiva: Se eu for capaz de voltar à estaca zero e beber da torrente novamente, porque assim Nossa Senhora quis a meu respeito, não terei apodrecido. Se eu não for capaz, posso estar certo de que apodreci, abusei do dom de Deus.

Tenho a impressão de que essa longa demora que suportamos seja permitida pela Providência a fim de nos preparar para uma imensa glória, dentro da qual deveremos viver com ascese. Alguém poderá me objetar: “Mas isso eu não quero, porque se até nessa hora é preciso viver com ascese, então não é vida.” Eu digo: “Meu caro, você apodreceu antes de subir. Enquanto estava embaixo, você acalentou sonhos podres e imaginou uma vida sem a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.”

Há uma ideia, com a qual muitos de nós fomos educados, de que se deve evitar olhar até o fundo os aborrecimentos que a vida traz, considerando-os superficialmente para não os sentir. E, para isso, cercar a vida dos maiores deleites e divertimentos que se possa, de maneira a estes cobrirem, tanto quanto possível, os aspectos dolorosos que a pessoa não deve ver.

Ora, esta é uma impostação errada. Diante de uma coisa dolorosa apresentada pela vida, a pessoa deve vê-la por inteiro. Porque isso é assim na vida de todo mundo e não adianta fugir da verdade. Não há quem não tenha sofrimentos muito pesados na vida, mesmo quando surjam verdadeiramente rutilâncias muito atraentes e agradáveis. Ainda assim a existência apresenta grandes padecimentos que devemos enxergar de frente, até onde foram e até onde podem ir, preparando a alma para aguentá-los.

Essa postura dá à alma uma espécie de sacralidade, de nobreza, de força para considerar que, ainda que a vida seja assim, ela é digna de ser vivida. Não porque dá saldo positivo, mas é porque a alma cresce muito quando toma a sua dor assim, de frente, como Nosso Senhor Jesus Cristo tomou a d’Ele no Horto das Oliveiras.

Quando se nos apresenta a cruz, devemos abrir os olhos e os braços inteiros

Minha devoção a Nosso Senhor no Horto das Oliveiras é mais acentuada até do que a própria Crucifixão. Não porque eu não saiba que a Paixão d’Ele chegou ao auge com a Crucifixão, mas é que essa meditação puramente espiritual da dor, antes mesmo de ela chegar, a previsão e essa impostação para que a alma receba essa dor vista até o fim, parece-me fundamental na alma católica.

Aliás, por incrível que pareça, é isso que torna interessante a alma com a qual se trata. Quando uma alma procura não ver a dor, ela não fica interessante. Ao contrário, quando ela vê a dor até o fim se assemelha a um instrumento de música afinado, com as cordas em ordem. Isso dá a tudo quanto ela diz uma ressonância, uma vida, porque está afinada em ordem à dor.

É, de fato, a Cruz de Nosso Senhor. Porque a palavra “dor” sem a Cruz dá lugar a toda espécie de desequilíbrio possível. A vida humana é inexplicável e insuportável sem Nosso Senhor Jesus Cristo. Daí São Paulo dizer que só sabia pregar a Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado (cf. 1 Cor 2, 2).

Há místicos que viram Nosso Senhor recebendo a Cruz e osculando-a. Quer dizer, manifestando carinho para com ela. Eu acho isso uma coisa absolutamente de primeira ordem. Ora, o que significa para nós o carinho para com uma cruz imaterial? É aceitá-la lealmente, abrindo os olhos e os braços inteiros!

Por exemplo, a cruz de ser menosprezado. É melhor descer o vale desse menosprezo até o fim. Não exagerar, imaginando ser maior do que é, mas tomá-lo em todo o seu tamanho. “Está bem, eu aceito! Sentei-me no banco dos desprezados como se fosse um trono, e ali fiquei. Aconteceu assim, vamos para a frente!”

Se soubéssemos as aflições que nós evitamos para a nossa alma quando procedemos assim… Porque a realidade é esta: o sujeito não aceita e começa a tomar toda e qualquer dor que lhe venha como sendo um absurdo. Assim não há como evitar uma torcida enorme para não acontecer aquilo. E na torcida a pessoa sofre muito mais do que na aceitação franca, leal. Esta dá uma calma, uma estabilidade, uma força que realmente correspondem aos desígnios de Deus, a uma aceitação humilde do que Nosso Senhor quis para nós.

Sofrer em união com Nosso Senhor Jesus Cristo

Há, portanto, duas atitudes integrantes da virtude da temperança. Uma consiste em entender que a vida é um vale de lágrimas, e saber saborear como um presente de Deus qualquer pequena alegria como enviada por Ele para nos aliviar. O auge da alegria não está no tamanho, mas sim na qualidade dela. Portanto, saber degustar as pequenas alegrias da vida, e não as imaginar maiores do que são na realidade, compreendendo que são transitórias, e saber vê-las até o fim é um elemento indispensável para a pessoa não se deteriorar, não apodrecer. Porque, se não se faz assim, a pessoa imagina que o normal é levar uma vida na qual tudo vai de acordo com os seus desejos, e o que não for isso é uma desgraça. Esse fica muito mais infeliz do que o primeiro.

Outro elemento da temperança é compreender que o normal dessa vida é sofrer, e muito, e que a pessoa deve padecer em união com Nosso Senhor Jesus Cristo, considerando o sofrimento em seu aspecto sobrenatural, sem o qual tudo isso não tem sentido. Assim, vindo um revés por cima de nós, olhá-lo com força, de frente, medir em toda a extensão o que ele traz de sofrimento e dizer: “Eu aguento, aceito e vou tocar para a frente.”

É o exemplo que nos deu Nosso Senhor na sua Paixão. Na Agonia do Horto Ele previu tudo. Não bancou o imprevidente. Foi revelado à sua natureza humana tudo quanto Ele sofreria em seu Corpo. Além disso, todas as dores de Alma, as ingratidões, etc. Aliás, com os Apóstolos Ele tomou a experiência ali mesmo. Tudo isso Ele viu e não fechou os olhos. Sofreu até o fim a visão do que vinha. Sentiu a sua vontade perfeitíssima não aguentar e pediu que fosse afastado o sofrimento. Mas vejam o equilíbrio perfeito: “Se for possível, afaste. Se não for possível, faça-se a vossa vontade e não a minha” (cf. Mt 26, 39).

Aplicando isso a nós, devemos ter a coragem de ver a nossa situação como é, inteiramente e o quanto ela pode ser irremediável. Porque se o único “remédio” for apostatarmos, esse “remédio” nós não consideramos nem de longe, pois a partir do momento em que um de nós considere isto uma hipótese, começou a discutir o valor das trinta moedas… Então, esta não é uma hipótese válida. Logo, é preciso aguentar a situação assim, não tem conversa.

Ver a realidade de frente é absolutamente indispensável

Suportado o sofrimento com esta força, a pessoa chega até o fim com calma, com paz, com dignidade. E nisto viveu a sua vida. Então são estes os dois aspectos da temperança: saber saborear as coisas que Deus manda, e amar a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, como destinada a todos os homens.

Às vezes encontramos pessoas realmente felizes, mas que não querem olhar para a possibilidade de um infortúnio. A certa altura, levam cada susto! Porque, de repente, o infortúnio lhes explode debaixo dos pés.

Imaginemos um filho que ama enternecidamente seus pais. De repente, percebe que os pais por quem ele se sacrifica, e que o consideram muito bom, de fato não o amam como ele os ama. E isso se externa, por exemplo, pela atitude deles para com outro filho que não é bom, pelo qual eles têm uma predileção estulta, embora esse filho esbanje o dinheiro deles e “pinte o caneco”. E isso apenas por ser um filho mais ornamental ou parecido com eles, qualquer coisa deste gênero…

Então, o primeiro não deixa de ser bom filho, não cai no desânimo, não fica azedo, mas constata: “Meus pais são assim.” Não se trata, portanto, de pensar o seguinte: “Eu vou rever meu procedimento. Vale a pena continuar a dar a eles essa quota de dedicação ou não vale? Posso reduzi-la, porque serei um imbecil se tratá-los como pais perfeitos quando não o são.” Pelo contrário: “São meus pais e, enquanto tais, têm direito à minha dedicação.” Entretanto, esta situação pode criar graus diferentes de infortúnio. É preciso ver de frente!

Em certa ocasião, vi um exemplo doloroso disso. Era uma reportagem a respeito de uma família muito nobre da França. A fotografia mostrava o pai e a mãe ainda jovens, muito bem-apessoados e já rodeados de um bando de filhos, todos muito saudáveis, permanentemente alegres, dando ideia da própria felicidade do casal. Via-se aquela alegria despreocupada, otimista, da qual fazia parte uma borrifadazinha de Religião pelo meio – pois é certo que todos tiveram aulas de Catecismo, fizeram a Primeira Comunhão, por ocasião da qual estavam elegantes e até mesmo piedosos –, porém não lhes fora ensinado o que estou dizendo aqui.

Pensei: “Ou todo o meu modo de ver a Religião e a vida é errado, ou essa família tem que dar num estouro do outro mundo!” Resultado, deu num bando de facínoras. Quanto ao marido, chegou a publicar na mesma revista, na qual saiu a referida reportagem, que há muito tempo ele não tinha temas a conversar com sua esposa, mesmo no auge de seu casamento, pois ela era completamente vazia e não tinha o que dizer a ele. Podemos imaginar o que significa para uma mulher, que tinha a ilusão de ser amada por seu marido, ler isso e dar-se conta de que ele não só não gostava mais dela, mas não gostara jamais? Pois bem, ver isso de frente é absolutamente indispensável e faz parte dos tais elementos da temperança que a pessoa deve ter.

Conheço uma pessoa que no começo de sua adolescência me externou esta sua reflexão: “Eu sei que fui chamado a servir Nossa Senhora. Mas não me consolo de Deus ter me chamado para isso. Por que Ele escolheu a mim, quando podia ter escolhido outro para padecer esse mundo de sofrimentos inerentes a uma vocação, deixando-me sossegado na minha vida?”

De fato, ele sofreu muito pelo que devia fazer e fez, e pelo que não devia fazer, mas fez. Atualmente é um muito bom filho de Nossa Senhora. Mas eu queria analisar esse estado de espírito que em determinado momento foi o dele.

Esse rapaz deve ter recebido graças muito boas no período da infância e adolescência. Entretanto saboreando ao mesmo tempo, intensamente e sem nexo com essas graças, circunstâncias materiais próprias a fazê-lo levar uma vida feliz. Isso amesquinhou o horizonte dele, de maneira tal que, ao invés de considerar o enorme panorama de quem é chamado por Deus a um alto ideal, ele se alegrava mais com o horizonte pequeno, com o prédio de teto baixo da vidinha que tinha diante de si, a qual provavelmente aparecia-lhe como sendo uma existência ideal.

O gáudio dos grandes horizontes

Ora, é uma coisa curiosa, mas o gáudio dos grandes horizontes meio tristonho. Traz, entretanto, um bem-estar e uma satisfação que o horizonte estreito, o prédio de teto baixo nunca dá.

Chateaubriand1 faz uma descrição magnífica de uma noite no Castelo de Combourg. Ele tinha uma irmã chamada Lucille, de quem gostava muito. Sua mãe, a Mme. Chateaubriand, ele apresenta como pessoa muito boa, mas com a saúde precária, tendo que se cuidar. E o pai, uma espécie de leão na jaula, uma fera. Então, ele descreve um final de dia na residência da família, um castelo gótico com um pé-direito muito alto, salas grandes onde punham uma mesa para eles jantarem. Comiam em silêncio porque o pai estava pensando continuamente em outras coisas e metia medo. A mãe tinha medo do pai também e ficava quieta; apenas suspirava docemente, às vezes, e continuava a jantar.

Terminada a refeição, começava o “entretenimento” familiar. Levantavam-se e iam para um salão enorme, vizinho à sala de jantar, onde por falta de dinheiro havia só uma luz acesa perto da mãe. Esta sentava-se numa cadeira mais cômoda, enquanto o pai ficava andando, de maneira que, conforme se aproximasse ou se afastasse, sua sombra na parede ia crescendo ou diminuindo. Assim, ouviam-se os passos do velho visconde a caminhar, preocupado, sobre o chão de pedra. De vez em quando, ele parava diante das crianças, que num canto estavam cochichando, olhava fixamente para elas e lhes perguntava: “O que vocês estão falando?” Um pouco como quem quer entreter a conversa, mas ele não compreendia que, com isso, gelava as crianças… Nesse ambiente, o teto alto aumentava a melancolia e a desolação. Compreende-se que isso parecesse para Chateaubriand imensamente triste e até soturno.

Chegada a hora de se recolher, o menino Chateaubriand ia dormir sozinho numa torre. Metia-se numa cama com aqueles clássicos cortinados, e todos os ventos do mar sopravam em cima da torre, uivavam, assobiavam, com o Chevalier de Chateaubriand apavorado dentro das cobertas, até que o sono viesse. Tenho a impressão de que, pela manhã, ele se levantava despreocupado, ia até o mar para a brincadeira com os meninos da zona e já era outra coisa.

Quando uma alma tem um lado voltado para a vidinha e outro para os grandes ideais, estes fazem um pouco o papel do teto alto do Castelo de Combourg. O indivíduo gostaria de fugir para uma coisa mais aconchegada, mais direitinha, mais arranjada, para ter, afinal de contas, a alegria de ser pequeno.

Assim, pode haver dois modos de considerar o chamado de Deus: um é ao estilo da torre que uiva e essas coisas todas; outro é a grande alma de um cruzado, de um homem que aceitou a cruz e tem nisto uma consonância com o Divino Crucificado.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/8/1988)

Revista Dr Plinio 253, pp. 11-15.

 

1) François-René Auguste de Chateaubriand. Escritor, ensaísta, diplomata e político francês (*1768 – †1848).

 

A procura do absoluto e o perfeito convívio – I

A perfeição do relacionamento humano está profundamente condicionada à capacidade que as almas tenham de transcender à fruição meramente material e elevar-se a uma esfera metafísica e sobrenatural.

 

O maravilhoso na ordem temporal tem como desfecho a tendência para o Céu empíreo.

Deleitar-se com os bens temporais à procura do absoluto é um ato de natureza espiritual

Normalmente, para o comum dos homens — não para um com vocação especial —, o maravilhoso, o religioso, não podem ser vistos a não ser numa orientação análoga com o temporal. Portanto, o grande comprazimento com a coisa temporal não se confunde com o ato de volúpia, mas é um ato de natureza espiritual quando se procura nele o absoluto. Toda a teoria da procura do absoluto em função das coisas temporais é o que leva ao Céu empíreo. Porque no Céu empíreo a coisa sensível é dada ao homem para ajudar a sua integração na visão beatífica.

Em mim, a problemática metafísica foi modelada pela influência da Fräulein Mathilde, porque um mundo de coisas da mentalidade, da educação das crianças alemãs é embebido da ideia de que certas coisas têm valor metafísico. Mas não vão mais adiante e não relacionam este valor metafísico com Deus.

Então, por mil aspectos, minha alma aderia muito a isso. E eu percebia que a procura do absoluto me conduzia à Igreja, me completava como católico e, portanto, eu deveria estimulá-la. Porque dia viria em que as coisas se conectariam. Eu notava a dissonância entre a posição que eu tomava e a de outras pessoas, e percebia com todas as luzes que a atitude delas não podia ser a católica.

Do lado brasileiro, ajudou-me nisto também a vida tranquila e, até certo ponto, regalada existente na São Paulo de meu tempo, onde uma série de deleites era concebida ainda dentro da ordem tradicional, e eu percebia que esses prazeres tinham uma coerência com os princípios católicos e, portanto, a questão não consistia em largar esses deleites retos, mas em ensinar as pessoas a conservá-los.

Um exemplo característico tão frisante, quase infantil: a árvore de Natal. Uma criança muito virtuosa diante de uma árvore de Natal tinha dois caminhos: por penitência, comer coisas de que não gosta e torturar o seu Natal, ou, por outro lado, gozar o seu Natal. Ora, embora compreenda em tese que, a uma alma chamada de modo muito especial, Deus possa exigir o sacrifício do Natal, para mim, teria dado uma asfixia do outro mundo!

O gáudio reto, santo, inocente do Natal me enchia de amor a Deus. E também com uma série de outras coisas, por exemplo, a vida um tanto cerimoniosa que se levava no meu ambiente. Isso dava propriamente em uma vida com bons regalos. Essa teoria do regalo santificante não poderia deixar de desfechar numa teoria do Céu empíreo. Donde durante décadas eu insistir, de um ou de outro modo, sobre o regalo bom santificante. Em certo momento, caiu-me nas mãos esse material sobre o Céu empíreo, do Cornélio a Lápide(1).

Duas escolas espirituais diante dos deleites legítimos

Segundo certa escola espiritual, uma pessoa virtuosa, na hora de colher morangos nos bosques, diria: “Ó, fujamos disto! Não vos esqueçais de que hoje é sexta-feira e Nosso Senhor padeceu por nós.” É uma consideração muito santa, muito direita para certo filão de almas. Para outro filão: “Vá pegar morango no bosque, passe pela capela, pela paróquia que está aberta, faça uma Via-Sacra, porque é sexta-feira, Nosso Senhor morreu nesse dia”. Está muito bem.

Eu estou vendo que uma pessoa poderia me dizer desde logo: “Ofereça esse pequeno sacrifício e renuncie a esse regalo, porque isto é grato a Deus”. Eu digo: Desde logo ponho em dúvida o que você diz. Há certos casos em que é, há certos casos em que não é.

Certa vez, uma pessoa me disse: “Você quer passar um dia de virtude? Faça o seguinte: o tempo inteiro quando você quiser esticar as pernas, você cruze; quando quiser cruzá-las, faça o contrário, e assim por diante, o contrário do que você quer. Você à noite terá uma tonelada de méritos”.

Pensei comigo: “Eu não vou desencorajar essa boa alma, mas tenho um abismo de mal-estar e de perplexidade com isso”.

Alternativa em face da fruição e o risco de abandonar a “transesfera”

Quando a pessoa está na fase anterior às provas, o deleite é quase sempre santificante. Entretanto, há um determinado momento na evolução de uma pessoa em que o deleite da coisa pela coisa se diferencia saudavelmente do deleite por causa daquilo que ela significa. Então, por exemplo, o deleite físico de mexer com esta pedra, que adorna minha mesa, e o deleite espiritual de contemplar as ranhuras que há nela diferenciam-se um do outro, mais ou menos como de dentro da haste de uma flor se diferenciam as pétalas.

E, em consequência, começa a aparecer um apego a isto, que já não é concomitante com o deleite espiritual, mas é autônomo. E que nasce de uma profundeza da alma, como o deleite espiritual nasce também.

Vamos dizer, banho de mar. Ele pode dar toda espécie de deleites físicos e espirituais ao mesmo tempo. Mas há um momento em que o deleite puramente físico do banho de mar, da respiração cutânea, enfim, do movimento, da aventura nas ondas, do “pulchrum” do mar se apresentam já eles mesmos diferenciados daquilo que seria o trans-esférico(2), que a atenção ora vai para uma coisa, ora vai para outra. Quando isto se dá, o amor pelo trans-esférico começa a ser provado, porque a alma não pode prestar atenção em duas coisas ao mesmo tempo. Ela não pode pensar como seria o mar trans-esférico e fruir com toda a alma daquele mar concreto. E a provação começa.

Dá-se uma espécie de alternativa onde ainda não entra diretamente, muito de imediato, a tentação para o mal, mas ela está a um milímetro daí. A pessoa pode ser mais arrastada pela fruição do mar, enquanto mar sensível, do que pelo mar trans-esférico, pelo simples fato de que essa fruição do mar sensível tem qualquer coisa de absoluto, de imperativo, de arrebatador, que é uma coisa tremenda. E com isso ela é colocada diante de uma opção: “Qual das duas é melhor?”

Para a maior parte das pessoas, essa escolha se passa nos lindes da semiconsciência: a pessoa vê bem pela inteligência que um é mais nobre, que corresponde mais à sua estatura inteira, que o outro apresenta uma fruição da parte. De um modo mais ou menos implícito, é positivo que vê.

A alma pode começar a optar por um dos dois polos e, portanto, entrar pelo caminho de Esaú ou de Jacó. Quando a alma está nesse estado, a parte fruitiva baixa começa a se deformar, e constituem-se ansiedades, apegos, tormentos, reações próprias do pavor de perder aquele prazer. E o metafísico começa a empalidecer porque não concorre em nada, ou em muito pouco; aquela fruição lota o horizonte. Aí entra uma espécie de opção que vai pela vida afora.

Se uma pessoa, diante dessa fruição, disser: “Eu não te quero assim, vou te conter, limitar-te, reduzir-te à devida proporção e, se for o caso, eu te elimino, porque não quero ser infiel”. Então há um sacrifício que vale muito mais do que o amor inocente não sacrificado dos primeiros anos. Entra a Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Porém, se a pessoa tiver uma fruição desvinculada disso, ela erra completamente.

Do amor a uma ordem superior nasce o perfeito relacionamento entre os homens

Esses problemas da vida relacionam-se cronologicamente segundo uma maturação prevista pela Providência: na criança, com o amor primeiro não provado, ela não tem dificuldades de relacionamento com os seus, e aquilo é manso, “mar azul”. A mãe, o pai, os irmãos, a parentela toda, aquilo tudo é uma maravilha. Depois começam a aparecer as diferenças e as decepções, como também os atos de justiça em relação a esses e àqueles, e o mundo familiar vai se rasgando.

Há rasgões externos como internos, apresentam-se os deveres que a pessoa segue ou não, juntamente com várias provações simultâneas, e a puberdade, cedo ou tarde, irrompe dentro disto e a pessoa vai entrando na batalha.

Se imaginarmos almas numa posição inteiramente reta a respeito deste assunto, as relações entre elas serão fundamentalmente diferentes. Porque essas almas amam principalmente a ordem trans-esférica, mística, sobrenatural para a qual elas vivem, e por causa disso o relacionamento com outras almas análogas em função desta ordem é reputado por elas um bem mais precioso do que o trato baseado em outros valores.

Tomemos como exemplo dois bons irmãos que se estimam, se prezam e têm relações de alma completamente corretas neste ponto. Aparece entre eles uma questão de divisão de uma herança paterna. Ela se faz amistosamente, sem nenhuma dificuldade, porque, por esta sua retidão neste patamar superior, eles são parecidos e, portanto, têm facilidade de se entender e fazer a justa divisão. Mas também porque se um notar uma pequena fraqueza ou um pequeno apego que possa prejudicar o superior relacionamento entre ambos, o irmão bom facilmente desiste da vantagem material para conservar um convívio mais elevado.

O episódio bíblico ocorrido com Abrão e Ló é característico. Abrão diz: “Aqui estão as terras, pega a parte que tu queres, eu fico com a outra”(3). Esta é a atitude de uma pessoa que preza o relacionamento bom, muito mais do que a terra.

Mas se a pessoa cedeu ao desejo do bem material, inferior, da fruição não metafísica, não religiosa, facilmente entra em briga. Porque quando não apreciam aquele bom relacionamento e o viverem juntos para uma esfera mais alta, dividem-se miseravelmente a respeito de ninharias. Seriam capazes até de fazer o seguinte: “Tal ponto não fica nem teu nem meu. Construamos ali um altar, um templo, mas teu não fica!”

Os vínculos na Cristandade medieval eram baseados no amor ao transcendente

Assim, todas as relações humanas de ordem política, social, familiar, econômica são completamente diferentes num mundo onde haja esta boa ordenação. Do ponto de vista humano, formas de governo, estruturas, leis, simplesmente não pegam, na medida em que esse relacionamento superior não exista.

A lealdade, por exemplo, provém propriamente do fato de alguém ter verazmente em relação a outrem essa disposição de alma. Tê-la e saber torná-la notória, isto é a lealdade que permite funcionarem direito vínculos como os da sociedade feudal.

O ponto de partida está em que as almas não sejam apegadas às coisas de modo fruitivo e amem o transcendente.

Esse amor ao transcendente, a Cristandade medieval conheceu a fundo, embora não soubesse explicar. Todos os vínculos da ordem social eram vínculos de amor baseados nesse vínculo das almas pelo lado superior.

(Continua no próximo número)

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 11/3/1982)

Revista Dr Plinio 217 (Abril de 2016)

 

 

1) Jesuíta e exegeta flamengo (* 1567 – † 1637).

2) Relativo a “transesfera”: termo criado por Dr. Plinio para significar que, acima das realidades visíveis, existem as invisíveis. As primeiras constituem a esfera, ou seja, o universo material; e as invisíveis, a transesfera.

3) Cf. Gn 13, 8-9.

Santidade e personalidade – I

A Doutrina Católica visa que cada homem aprimore sua personalidade, caminhando rumo à santidade. Assim são criadas as condições para a constituição de uma civilização perfeita.

Todos ouviram falar vagamente, com certeza, do panteísmo, e da diferença entre este e o ateísmo. E depois, sobre a crença em Deus.

Noção de pessoa

De acordo com o ensinamento da Igreja infalível, existe um só Deus em três Pessoas realmente distintas. Mas esse Deus é pessoal. O que é uma pessoa? Chama-se “pessoa” um ser que pensa a respeito de si mesmo e forma, portanto, um circuito fechado. Um bicho, uma planta, uma pedra não são pessoas, e sim indivíduos. Por quê? Porque eles não pensam, não têm consciência de que existem, de um mundo interno e de um mundo externo. Nós, pelo contrário, temos essa consciência, e por causa disso somos pessoas.

Deus é Pessoa porque Ele tem consciência de Si próprio, daquilo que Ele criou. E de tal maneira é Pessoa que, na sua unidade — porque é um só Deus —, há três Pessoas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. O que constitui o mistério da Santíssima Trindade.

Tendo criado o universo, o qual, sendo necessariamente um reflexo d’Ele, Deus quereria refletir no universo o fato de que Ele é Pessoa. E, portanto, haveria de criar o universo constituído por pessoas; e por isso, criou os anjos e os homens, que são os elementos essenciais do universo. Os animais, as plantas e os minerais estão a serviço do homem, e são para o universo mais ou menos como a franja é para o tapete. Ninguém iria pôr em casa um tapete só feito de franja. Não seria tapete. Pelo contrário, há tapetes muito finos que não têm franja. A franja do tapete é uma coisa que faz parte dele, mas não é de nenhum modo a sua essência.

Assim também os animais, as plantas e os minerais são como as franjas do universo. Deus criou o universo para as pessoas, que são os anjos e os homens. E é em cada uma dessas pessoas que Deus encontra a sua imagem.

Com essa noção, compreende-se fazer parte da Doutrina Católica que cada pessoa se personifique cada vez mais. Quer dizer, Deus criou cada um de nós com determinadas características, as quais são agrupadas em torno daquilo que nós chamamos a “luz primordial”. Se a pessoa corresponde à graça, de fato se santifica, a sua personalidade toma um realce extraordinário, e tudo quanto ela tem de bom e característico fica ultra-característico. Tudo o que ela possui de mau é posto de lado.

Deus é eminentemente personificante

Em qualquer santo isso é ultra-característico. Todos são muito parecidos entre si, mas ao mesmo tempo enormemente diversos uns dos outros. O que São Paulo prefigurou de modo magnífico, dizendo: “Stella differt stella”(1).

Olhem para o céu onde há uma porção de estrelas. Uma criança diria que são iguais. Mas na realidade nestas miríades de estrelas não há nenhuma igual à outra. Assim são os homens.

Mais ainda, todos os homens que houve, há e haverá no plano de Deus formam uma coleção. E essa coleção deve de algum modo, no seu conjunto, espelhar o que o Criador é no seu conjunto. Quer dizer, assim como Deus é imenso, infinito, e tem todas as qualidades possíveis, isto se reproduz no conjunto dos homens. Cada um com sua tônica, tomando essas tônicas no conjunto se obtém uma espécie de mapa de Deus, de conjunto constituído por Deus. De maneira que nós não temos consciência, mas somos peças de uma coleção; peças super-individuais, peças pessoais de uma coleção, e cada um de nós, se corresponder à sua luz primordial, é de um jeito que faz parte da coleção de Deus. E para que esta tenha toda beleza, todo colorido, todo vigor, é necessário que cada uma dessas peças possua toda a sua personalidade. Deus é eminentemente personificante. Quer dizer, Ele dá à pessoa a sua personalidade. Por quê? Porque Ele é Pessoa.

Um extremo oposto disso é o panteísmo. O panteísmo sustenta que há um deus, mas esse deus não é pessoa, é um ente sem pensamento, sem conhecimento de si próprio; que vive, portanto, no eterno sono do bicho, da planta e da pedra. Quer dizer, não conhece nem entende nada, e que todos os seres que existem saíram desse deus, como moléculas saem de um determinado corpo.

A Doutrina Católica ensina o contrário: nós não saímos de Deus; fomos criados por Deus.

Mas, para o panteísmo, ser uma pessoa é uma desgraça; porque para ser uma pessoa é preciso sofrer, e sofrer é uma desgraça. Então, a finalidade da religião é que a pessoa vá se preparando para, morrendo, desaparecer, fundir-se de novo nesse ser sem raciocínio, sem consistência pessoal, que é deus.

Assim, dizem os panteístas, deus é a natureza. O que querem dizer com isto? Que deus é uma força a qual está presente em tudo, e que não tem consciência de si. Se quiserem, deus é a vida. A vida está nos presentes neste auditório, está em mim, nos bichos, nas plantas. A vida não tem consciência de si, nem é uma só vida. O panteísmo apresenta isso como um só fluido presente em todo mundo. Este fluido, esta vida, tem como objetivo despersonificar, liquidar as pessoas, para elas se prepararem a sumir quando elas morrerem. Desaparecerem dentro deste grande conjunto sem pensamento que é chamado “deus”.

Civilização cristã e cortesia

Daí decorre uma ideia da civilização católica, e outra ideia da civilização pagã, panteísta. Para a civilização católica trata-se de, nessa vida, a pessoa se personificar cada vez mais e depois adorar, no Céu, as três Pessoas da Santíssima Trindade. Para o panteísta trata-se de diluir a personalidade.

A civilização católica faz da vida, sobretudo, uma relação de pessoa para pessoa, e concebe a formação de maneira que cada pessoa é ela mesma e depois respeite a personalidade do outro, sinta as afinidades e as diferenças. Tenha cortesia.

O que é a cortesia? É a perfeita afinidade de pessoas distintas umas das outras. Há então um abismo que separa uma pessoa da outra. Eu sou eu, sou um circuito fechado em mim. Cada um dos que aqui se encontram é um circuito fechado em si. De outro lado, nós temos relações, porque somos todos homens.

A cortesia é a perfeita relação que passa por cima deste abismo existente de homem para homem. A força que liga este abismo chama-se amor fraterno católico. A cortesia é o laço cheio de respeito, de distinção, de afeto que prende as pessoas diferentes e as coloca numa relação, como notas de uma música. Dir-se-ia que as notas de uma música estão em estado de cortesia umas com as outras.

Imaginem uma pessoa irrefletida que, por exemplo, passa diante de um piano que está com a tampa aberta, escorrega e se apoia sobre o piano para não cair; sai um som horroroso parecido com uma descortesia. Por quê? É que não há harmonia.

A cortesia é a musicalidade das relações humanas. Mas nessa musicalidade cada homem constitui sua personalidade apoiado pelo outro, e todos crescem, todos brilham, cada um com a luz de sua personalidade própria.

Daí partem inúmeras consequências. Uma delas é que, na civilização medieval, a lei tomava em linha de conta direitos e deveres, o que a lei contemporânea não toma mais em consideração.

Por exemplo, o dever entre benfeitor e beneficiado é de gratidão. Na lei de hoje quase não há resquícios desse dever. Na lei da Idade Média o dever de gratidão era enorme. Daí nasceu o feudalismo, que é uma concatenação de gratidões. O rei dava terras a um suserano, que ficava vassalo do rei. O suserano concedia terras ao nobre menor, o qual se tornava vassalo desse suserano. Esse nobre menor dava terras a um plebeu, que ficava vassalo desse nobre menor. Cada um que deu ficava obrigado à proteção daquele que tinha recebido, para tudo. E cada um que recebeu ficava obrigado a obedecer e a apoiar aquele que tinha sido seu benfeitor. E esta era a concatenação das relações pessoais.

O nobre e o burguês, na Idade Média e no “Ancien Régime”

Na Idade Média, os direitos eram mais sobre as pessoas do que sobre as coisas. Havia direito sobre as coisas também, mas o direito sobre as pessoas se considerava muito mais do que o direito sobre as coisas.

Querem ver um exemplo curioso disso? Na Idade Média o que era mais: um riquíssimo burguês, ou um nobre, senhor de um castelinho com uma aldeia? Era o nobre. Mas o burguês não era muito mais rico, mais poderoso? A resposta que um medieval daria era é a seguinte: “Não vem ao caso. O nobre governa pessoas; o burguês governa matéria, governa ouro. É muito mais governar homens do que ouro. De maneira que é uma riqueza metafísica maior ser senhor de uma pequena aldeia do que dono de uma grande fortuna”.

Não sei se percebem o respeito ao homem que entra dentro disso. E por essa razão se, por exemplo, entrasse numa cidade um senhor feudal num cavalinho rapado, vestido ele mesmo meio apertadamente, porque suas terras produziam pouco, com um escudeiro que ia a pé, porque não tinha cavalo; o senhor portando uma espada com o forro meio gasto, e um chapéu com uma pluma que já tomou muita chuva…

Passando ele diante de um burguês, médio, vestido de veludo, usando um chapéu magnífico com pedras preciosas, e não uma pluma, mas uma cauda de pássaro no chapéu, o burguês se descobria, dando um passo à frente, e o nobre correspondia amavelmente, mas de cima.

Alguém diria: “Incompreensível, orgulho”. Não. É o contrário. O nobre afirmava aí o maior valor dos seus vassalos, porque eram homens, sobre o ouro do burguês. Isto não se encontra em nenhum manual de História, mas é o modo do medieval conceber as relações.

Terminada a Idade Média, o feudalismo foi acabando, mas muitos restos dele ficaram na sociedade do “Ancien Régime”(2). A sociedade se transformou, mas isso ainda existia.

Considerem, por exemplo, um nobre do “Ancien Régime” e um burguês riquíssimo. Por que aquele era nobre? Porque ele era de uma classe social que tinha obrigação de ir à guerra e derramar o sangue pelo rei. Enquanto o burguês não podia ser convocado para o serviço militar; fazia serviço militar se quisesse.

O nobre tinha essa excelência de alma de aceitar ser da classe que é obrigada a ir morrer pela pátria, ainda que não quisesse — quer dizer, era crime não ir. Como a dedicação vale mais do que o ouro, porque a dedicação é uma qualidade do homem, e o homem vale mais do que o metal, por causa disso o nobre valia mais do que o plebeu. Não sei se estão percebendo a ação contínua da pessoa humana.

“E se um plebeu ou um burguês quisesse ir para a guerra?” Ah! Se fosse para a guerra e se tornasse um herói era frequentemente elevado ao cargo, à condição de nobre. Mas aí ele se engajava num outro circuito. Acabou a vida cômoda, terminaram os verões despreocupados e com passeio, acabou a agradável contagem do dinheiro por detrás dos guichês da loja. Porque, habitualmente, chegando a primavera e o verão, começava a guerra e os nobres todos tinham que partir. Se o plebeu ficasse nobre, ele tinha que ir para a guerra também.

Compreende-se que o número de candidatos para nobre era bem menor, do que se podia imaginar à primeira vista.

Como se explica isto? É a prevalência do homem sobre a matéria, das qualidades humanas sobre as qualidades materiais.

O burguês tinha uma vida muito mais confortável do que o nobre. Tomem gravuras daquele tempo, representando o interior das casas burguesas: são residências agradáveis, aconchegadas, confortáveis, com tudo abundante, etc., feitas para as pessoas se regalarem.

Observem as gravuras representando os palácios: são lindos, de alto luxo, não são cômodos. Basta ver os móveis que restaram. Se um indivíduo sentar-se irrefletidamente numa daquelas cadeiras, ele cai com a cadeira. Aqueles móveis exigem que a pessoa esteja continuamente numa atitude de grande dignidade, de grande distinção. Aquele modo de falar todo trabalhado exige uma atenção contínua na língua que se usa, nas fórmulas de cortesia, nas etiquetas, para estar à altura da situação. Que cultura era preciso ter para sustentar aquelas grandes conversas…

Para considerar simplesmente isto: como entrava uma jovem nobre em sociedade? 

(Continua no próximo número)

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/6/1974)

Revista Dr Plinio 217 (Abril de 2016)

 

1) Do latim: Há diferença de estrela para estrela (1Cor 15,41).

2) Do francês: Antigo Regime. Sistema social e político aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.

Na extrema aflição, a hora da Providência

Incutir em seus filhos espirituais a mesma confiança sem limites em Deus e na Santíssima Virgem que o animava, era este um dos cuidados constantes de Dr. Plinio. Ótima oportunidade para isto foi-lhe oferecida por uma maravilhosa narração do livro do Conde de Montalembert, “Les Moines d’Occident”, comentada por ele numa das conferências denominadas “Santo do dia”.

O Conde Raul de Chester voltava da Cruzada, na qual havia se coberto de glórias tomando Damieta [no Egito], quando uma violenta tempestade caiu sobre o navio em que viajava.

Eram já dez horas da noite. Como o perigo aumentava a cada instante, o conde exortou, pois, os viajantes a redobrar os esforços [para estabilizar a embarcação] por mais um minuto, prometendo que a tormenta passaria logo. Ele próprio se pôs a manobrar e a trabalhar mais do que os outros. O vento parou dentro em pouco, o mar serenou e, quando o piloto perguntou a Raul porque ele lhe tinha ordenado trabalhar apenas um minuto a mais, o nobre respondeu: “Porque, a partir dessa hora, os monges e outros religiosos que meus ancestrais e eu estabelecemos em vários lugares se preparavam para cantar o Ofício. Sabendo que nesse momento eles estariam rezando, eu esperava do Céu que, graças às orações deles, cessasse a tempestade”.

Embora não falte quem julgue controvertida a autenticidade histórica de acontecimentos como este, é muito provável que as coisas se tenham passado assim como narra o autor, não havendo, portanto, nenhuma razão especial para duvidarmos de sua veracidade. Para os que não têm espírito cético nem incréu, esse é um lindíssimo episódio que indica um igualmente belo princípio da doutrina católica.

Deus, o “vértice” para o qual olham os que oram e os que se afligem

O fato nos apresenta a imagem poética de um grupo de cruzados singrando o Mediterrâneo, numa época em que os meios de navegação eram ainda tão insuficientes que atravessar esse mar constituía uma façanha náutica.

Não é difícil imaginar o aperto da situação: uma forte tempestade que sopra, a nau repleta de combatentes extenuados, alguns feridos, cheia de pesadas armas das quais não podiam se desfazer, atirando-as às águas, pois sempre havia a possibilidade de, ao abordarem em terra firme, necessitarem delas para se defender de algum ataque. É noite, uma noite escura, sinistra, o mar povoado de incógnitas, e a tormenta que uiva e cai sobre os homens, deixando-os apavorados. É uma cena que evoca em algo o episódio da tempestade no Lago de Generazé, quando os Apóstolos se tomaram de medo e foram despertar Jesus, que dormia tranquilamente na barca.

No navio dos cruzados não estava Nosso Senhor, mas “christianus alter Christus”: encontrava-se ali presente um homem de fé, o Conde Raul de Chester. Ele sabe que a gratidão dos verdadeiros religiosos jamais se desmente e que, portanto, pode contar com as orações dos monges que viviam nas numerosas abadias fundadas por seus ancestrais. Ele tem a firme confiança de que, na hora costumeira, começará o Ofício Divino rezado naqueles mosteiros. E tem a certeza de que, desde as primeiras palavras recitadas, essas preces seriam feitas também nas intenções dos nobres fundadores e dos seus descendentes. Logo, nas intenções dele, Raul de Chester, provavelmente o primogênito na linha de descendência.

Então ele pede apenas mais um minuto de atenção, mais um minuto de paciência, de perseverança. Ele luta, mas roga que esperem ainda um pouco, porque a tempestade não demoraria em amainar. A tormenta cessa, e ele diz: “Os monges começaram a recitar o Ofício”. O Mar Mediterrâneo cede.

É o poder da prece, que ignora as distâncias. Naquele tempo de primitivos meios de locomoção, era muito longo o caminho por terra que ia do Mediterrâneo à Inglaterra. Devia ser percorrido devagar, atravessando regiões habitadas por povos muito diferentes e com estradas incertas. Por isso, no episódio do qual tratamos, a extensão que se interpunha entre o cenário da tragédia iminente o mar e os locais onde a salvação devia se operar, isto é, as abadias inglesas, era bastante considerável, física e psicologicamente.

Os monges não sabiam que os descendentes de seus benfeitores estavam em perigo. Tudo os separava, exceto um traço de união, o vértice para o qual as duas partes se voltavam: Deus Nosso Senhor. Os religiosos olham para Deus, ao recitar o Ofício nas intenções de seus fundadores; os cruzados olham para Deus, ao implorar o seu onipotente socorro. Em Deus se encontram a oração daquele que pede e a necessidade do que dela carece. E a prece de uns liberta os outros.

De passagem, é interessante notar uma circunstância que confere ainda maior beleza a esse episódio. A se tomar a narração ao pé-da-letra, é provável que os monges ingleses

 não estavam começando a cantar o Ofício no exato momento em que o imaginava o Conde Raul, devido à diferença dos fusos horários. Ou seja, a hora não podia ser a mesma no relógio (ou outro mecanismo para determinar o tempo) do navio e nos das abadias.

Contudo, Deus, que não se atrapalha com a ciência nem se deixa prender por esses pormenores, quis fazer jogar algo à maneira de uma coincidência de horários na realidade, inexistente e operou essa maravilha cuja narração nos enche de entusiasmo, e da qual podemos tirar algumas lições.

Prevalência da oração sobre todos os recursos humanos

A primeira delas, e a mais importante, é ficar compreendendo a prevalência da oração sobre todos os outros recursos humanos.

O Papa Leão XIII, ao redigir um de seus célebres documentos, escreveu umas frases que nunca mais me saíram do espírito. Dizia ele que, no tempo de seu pontificado, havia muitos homens que agiam para promover a causa católica, porém trabalhavam mais do que rezavam. Ora, afirmava o Pontífice, se esses homens rezassem tanto quanto agiam, obteriam eles resultados maiores do que os alcançados simplesmente pela ação. Porque o grande meio de vitória do homem é a prece. É um meio impreterível e supereminente em relação à ação: ele não a dispensa, ele a prepara e a torna fecunda.

Essa tese vem ilustrada de modo perfeito no episódio que acabamos de recordar. O Conde de Chester foi um cruzado. Atraído pela graça de Deus, ele se dirigiu até o Oriente. Ação. E uma forma de ação das mais belas e nobres, que é a luta por um ideal católico. Ele chega ao Oriente e arranca do poder dos maometanos uma cidade importante: Damieta. Êxito no seu empreendimento. Entretanto, logo se faz patente a necessidade da oração. O Conde tem a sua vida exposta a um perigo imenso, onde quase não lhe adiantaria nenhuma indústria humana: a tempestade açoitando o mar em cujas águas ele navegava de volta para casa.

Como se salvar? Oração. E a prece fervorosa assegura o regresso de Raul à terra de seus ancestrais, a preservação da sua própria vida e a dos seus bravos. Porém, muito mais do que isso, dá um exemplo de como Deus atende as nossas súplicas, e como Ele vela por aqueles que confiam na oração dos outros. Mostra-nos o dogma da Comunhão dos Santos, por assim dizer, funcionando e fazendo com que essas duas formas de heroísmo se encontrem: o heroísmo do cruzado no alto mar, e o do monge pontual na igreja de sua abadia, rezando com fé por aqueles que estão expostos a riscos.

Daí podemos deduzir como é importante nossa vida de oração, como tem um peso inestimável a reza diária do Rosário ou do Terço, e de nossas demais práticas de piedade, desde que imbuídos da certeza e da fé de que, para o êxito da causa católica, esse esforço de oração encerra um valor maior do que o próprio esforço nobre e indispensável da ação. Mesmo quando se trata de grandes guerreiros, que empreenderam feitos extraordinários e conquistaram magníficas vitórias e vantagens para a Igreja, o papel da oração ainda é preponderante. Essa é a principal nota que devemos tirar desse episódio.

Nas horas da extrema aflição, o sorriso de Nossa Senhora

Entretanto, outra lição há para se colher em tudo isso. Por que Deus permitiu que chegasse ao extremo de angústia a situação desses cruzados, para só então intervir?

Exatamente para provar a confiança n’Ele. As horas de extrema aflição são as horas da Providência, são as horas da misericórdia. O verdadeiro católico, quando sabe que tudo está perdido, reza e confia mais do que nunca, porque é a hora do sorriso de Maria Santíssima para ele, assim como o foi para aqueles valorosos guerreiros em meio à tempestade no Mediterrâneo. Quando já não havia mais esperanças nos recursos humanos, Nossa Senhora, a Estrela do Mar, interveio, libertou-os e resolveu a angustiante situação em que se encontravam.

Lembremo-nos sempre disso: nos momentos de nossas maiores provações e aflições, rezemos com redobrado fervor  e  confiança.  Nossa  Senhora  não  tardará  em  nos sorrir.

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 36 (Março de 2001)

CANDURA E AFABILIDADE MEDIEVAIS

No último artigo desta seção, vimos Dr. Plinio ressaltando a coragem e a Jé que caracterizaram a Idade Média. No de hoje, ele sublinha outras facetas dessa época áurea da Cristandade: a candura e a serenidade que permeavam as almas daqueles homens e mulheres de outrora, cuja mentalidade, pode-se dizer, era mais própria a habitantes do Paraíso do que aos desta terra de exílio.

Quando vemos nas pinturas e gravuras que retratam a idade média aqueles altos castelos com ameias, torres e barbacãs, o fosso com ponte levadiça, etc., concebemos a ideia de um edifício construído para a luta. E como o castelo é, junto com a igreja, o principal tipo de edificação que nos restou da época medieval, facilmente pensamos nesta como sendo uma época de extraordinária gravidade, de seriedade admirável, de compostura perfeita. Época onde todos se encontravam perpetuamente numa atitude tendente ao severo. E dessa concepção deduzimos que na Idade Média não cabia um sorriso, não cabiam a alegria nem as manifestações de contentamento; e que aquela magnífica apresentação hierática dir-se-ia decorativa dos seus personagens excluía uma certa intimidade, uma qualquer bondade e abertura de alma.

Alegria do cotidiano e das festas medievais

Nada mais falso. Quem conhece o bê-a-bá a respeito da Idade Média, tem noção dos grandes festins que a caracterizaram. Não só as celebrações aristocráticas nos castelos e residências reais, mas também as grandes festas populares, quando nas praças públicas de certas cidades as fontes jorravam vinho ou leite durante horas seguidas, por conta do rei ou do senhor feudal. Além da bebida copiosa, organizavam-se churrascos, com cantorias e danças em torno de fogueiras e dos espetos em que se assavam as carnes. Como término e ápice da festa, o senhor do lugar se aproximava e jogava peças de ouro a mancheias sobre o povo, para imenso regozijo de seus súditos.

Há mais, porém, do que essa marcante alegria das festas. Há um sorriso da vida de todos os dias, há uma beleza inocente e cândida do contato das almas nas ocasiões normais da existência, que podemos apreciar bem nas iluminuras e às vezes nos vitrais que, com suas magníficas policromias, nos apresentam as cenas mais diversas do cotidiano medieval. Por exemplo, um boi que vai puxando o arado e um camponês que vai jogando as sementes. Mais adiante, um grupo de mulheres que lavam roupa, esfregando-as em pedras junto ao rio. Noutro, um copista, homem do povo, sentado ao lado de uma janela cujos vidros “fundo de garrafa” coam uma luz irisada; perto dele, um pequeno vaso bem medieval, de onde surde uma única flor, enorme, colhida em algum jardim maravilhoso. Céus claros, azul anil, onde voam aves brancas ou de cores variadas, em vôos também bonitos. Modestas cercas de agricultura, fileiras de legumes, de outras plantações, tudo apresentado com um colorido tão lindo e tão real que se percebe a alma inocente do homem medievo.

Nas pompas litúrgicas, intimidade com Deus

O mesmo se dava com a piedade. A Igreja Católica já realizava naquele tempo cerimônias magníficas, de uma pompa extraordinária, em catedrais cujos interiores se iluminavam com as cores dos vitrais trespassados pelos raios do sol, enquanto a Missa se desenrolava no altar-mor, o órgão tocando, os paramentos sacerdotais reluzindo, o incenso perfumando o templo e o povo, todo de joelhos, acompanhando enlevada e devotamente o Santo Sacrifício. Dir-se-ia que nessa pompa não caberia intimidade. Mas é o contrário. Se houve época em que os homens sentiram a sua intimidade com Deus, experimentaram a misericórdia e a bondade divinas, bem como o convite da afabilidade para uma aproximação com o Criador, esta época foi a Idade Média.

Os contos medievais alguns floreados de fantasias, outros bastante verídicos no total celebram a extraordinária amenidade de Deus, de seus Anjos, de seus Santos, sobretudo de Nossa Senhora, Rainha de todas as virtudes, e portanto também Rainha da ternura para com seus fiéis.

Milagre da afabilidade divina

Nesse sentido, vem a propósito recordar aqui um episódio da Idade Média em que está envolvido Aquele que é o próprio símbolo da amenidade cristã: Nosso Senhor Jesus Cristo Menino. O fato é extraído de uma antiga tradução portuguesa da “Vie des Saints” (“Vida dos Santos”), da  Bonne Presse de Paris. Embora sempre pese a dúvida quanto à credibilidade de narrações como essa, não se pode negar que, segundo a doutrina católica, tal acontecimento poderia ter se verificado. Ou seja, nada nele contraria a ortodoxia cristã, e está na onipotência divina o realizar esplêndidos milagres como o do seguinte exemplo:

São Bernardo de Morlat, da Ordem dos Dominicanos, era sacristão no convento de Santarém, em Portugal. Tomara ele como discípulos dois meninos, filhos de um cavaleiro de Santarém, os quais receberam logo o hábito e a tonsura monástica, e daí por diante passavam os dias no convento, ajudando as Missas e estudando com Frei Bernardo.

A pedagogia antiga preceituava que as crianças se vestissem desde pequenas como pessoas adultas. Por isso vemos nas pinturas de pouco antes da Revolução Francesa as meninas com saia balão, os meninos com trajes de homens que poderiam se dirigir a uma reunião de negócios ou a um evento na Corte. Os trajes propriamente infantis foram introduzidos pelo Marquês de Girardin, no Jardim do Luxembourg, pouco antes da Revolução Francesa. Eram inspirados na moda inglesa e visavam não mais a apresentar a criança com a compostura e gravidade de um adulto, e sim como um ente que pula, salta e não se quebra. Então, as roupas triviais que hoje conhecemos.

A   Igreja,  porém, sempre mais conservadora do que a sociedade temporal, ainda preservou esse costume.  Não  posso  deixar de me lembrar de uma visita que fiz a um monge na austera e magnífica Abadia dos beneditinos, no Rio de Janeiro, quando presenciei esta cena que me pareceu uma visão de outros tempos: dois meninos de talvez 10 ou 11 anos, vestidos como monges e andando com toda gravidade pelo meio do claustro. Eles passaram conversando tão direitos e tão sérios, que eu tive a vaga impressão de que se tratava de uma aparição. Quando o religioso chegou, perguntei-lhe:

Dom Fulano, o que fazem esses meninos aqui, vestidos de monges?

Trata-se de um velho costume beneditino. Recebemos vocações da mais tenra idade e, para os meninos se adaptarem à vida religiosa, já vestem o hábito desde pequenos.

Assim, podemos também imaginar esses dois meninos da narração, recebidos na Ordem Dominicana e vestidos de “fradinhos”. É-nos familiar o hábito de São Domingos. Aliás, um dos predicados da Igreja é que ela sabe, como nenhuma outra instituição, a partir das coisas muito simples, produzir efeitos estéticos extraordinários. O hábito dominicano é uma túnica com escapulário brancos, cobertos por uma grande capa negra; por cima desta, sobressai o capuz branco do escapulário. É a simplicidade extrema da Igreja, aliada ao magnífico senso da beleza que ela coloca em tudo quanto faz.

O convite para um banquete no Céu

Prossegue a narração:

Todos os dias os dois meninos saíam bem cedo da casa de seus pais para se dirigirem ao convento, levando consigo a provisão diária. Uma manhã, com uma familiaridade toda infantil, sentaram-se aos pés de uma imagem de Nossa Senhora, que trazia ao colo o Menino Jesus, diante da qual sempre rezavam o Rosário, para em seguida tomarem o seu desjejum. Com a mesma candura, concertaram entre eles que não seria muito gentil comerem a refeição sem para ela convidarem o outro Menino ali presente. E, todas as vezes, o hóspede divino dignou-se aceitá-lo, até que se tornou desnecessário convidá-Lo. Mal os pequenos entravam na capela e abriam o embrulho de alimentos, o Menino Jesus lá estava entre eles. Isso tornou-se tão familiar que não só comiam juntos, mas também conversavam, e Jesus os ajudava nas dificuldades que tinham no estudo.

Apraz imaginar essas duas crianças fazendo toda sorte de perguntas, e Nosso Senhor que lhes responde, no aconchego de uma capelinha do interior de Portugal. Contudo, ao lado de tanta candura, não tarda em se manifestar o drama que freqüentemente aparece nas relações entre a criatura e o Criador: a miséria humana vai mostrar-se nesses meninos magníficos, do modo mais incoerente e mais inesperado. E nesse conto encantador, ouve-se de súbito o guizo da serpente, como no mais belo do Paraíso veio a tentação. Uma coisa somente surpreendia os dois inocentes: é que o Menino Jesus nunca trazia sua quota de comida, enquanto eles eram obrigados a conseguir mais alimentos, embora seus pais fossem muito pobres. “Não haverá muitas coisas boas no Paraíso?” perguntavam. A surpresa dos dois degenerou em murmúrios. E resolveram confiar a Frei Bernardo suas angústias. Esse, tendo examinado bem o relato, ficou tocado por tão grande prodígio. Rogou a Deus que o iluminasse e o fizesse conhecer seus desígnios sobre os meninos. Um dia, dirigindo-se aos pequenos discípulos, ele sugeriu: “Se o Menino Jesus continua não trazendo nenhuma provisão, não vos agradaria que Ele vos convidasse, ao

menos uma vez, à casa de seu pai?”

A saída do padre é muito inteligente. Não é pedir ao Menino Jesus que traga pão, que traga comida, mas rogar que os deixe ver o Céu.

“Oh, sim! gostaríamos muito”, responderam, “mas Ele nunca nos falou sobre isso”. Disse o frade: “É preciso que Lhe peçais. Se Ele atender vosso pedido, não tereis perdido nada, pois de um só convite d’Ele recebereis mil vezes mais do que Lhe destes”.

Note-se que o padre sentiu necessidade de pôr o argumento em termos um tanto comerciais, a fim de mover aquelas almas, entretanto tão cândidas, tão puras. Não nos façamos ilusão! Essa é a criatura humana e assim todos nos devemos olhar. Ou há muita vigilância sobre nossas más inclinações, ou saem misérias como essas.

E continuando a falar-lhes, Frei Bernardo fez entrever simbolicamente o palácio do Pai Celeste, com suas magnificências e delícias, e concluiu: “Quando o Menino  da capela vier novamente comer convosco, não vos esqueçais de pedir que vos convide, por sua vez. Mas dizei a Ele que quero também ser convidado. Não vos permito que vades sozinhos à festa. Eu vos acompanharei, ou tereis de recusar o convite, porque desejo muito ter parte neste festim.

“Nosso mestre gostaria de participar também da festa.

Jesus então lhes disse: “Dentro de três dias será a Ascensão. Haverá grande alegria na casa de meu Pai. Dizei a Frei Bernardo que Eu o convido convosco à minha mesa, onde estareis com os Anjos e os Santos”.

Contentíssimos, os dois correram para comunicar ao mestre a boa notícia. Ao chegarem a suas casas, avisaram aos pais que dentro de três dias iam participar de um banquete no Céu. Frei Bernardo comunicou o mesmo ao seu Diretor Espiritual. Durante os três dias, mestre e discípulos permaneceram em oração, ajoelhados ao pé do altar do Rosário. O frade explicou aos meninos o sentido do convite de Jesus e eles, abrasados de amor, não queriam outra coisa senão deixar este mundo e entrar sem tardança na verdadeira Pátria.

Chegou o dia da Ascensão. Todas as missas já haviam sido celebradas na aldeia. Enquanto os frades estavam no refeitório, Frei Bernardo dirigiu-se ao altar do Rosário, acompanhado por seus acólitos, e começou o Santo Sacrifício. Os dois discípulos receberam com grandíssima devoção, pela primeira vez, o Pão Eucarístico. Chegou a hora da ação de graças. Os três ajoelharam-se nos degraus do altar, aguardando com confiança o momento de partida para a morada celeste. Mais tarde, quando a comunidade voltou à igreja para a recitação das orações após a refeição, encontraram o frade e os dois acólitos imóveis, as mãos levantadas ao céu e os olhos fixos no Menino Jesus. Aproximaram-se deles e oh! morte preciosa e mil vezes digna de inveja! constataram que haviam trocado a vida terrestre pela bem-aventurança eterna.

Os seus corpos foram enterrados ao pé do altar. Em 1577, quando foi aberto o túmulo para a transladação das relíquias, os ossos sagrados exalavam um delicioso perfume. A imagem da Virgem com o Menino Jesus conserva-se até hoje num rico tabernáculo.

No dia 21 de Maio de 1227, segunda-feira das Rogações, o Menino Jesus desceu de novo para tomar o desjejum com as duas crianças. Terminada a refeição, antes que o Divino Infante se pusesse de pé sobre o pedestal de pedra para subir aos braços de Nossa Senhora, os dois pequenos expressaram timidamente o seu desejo:

“Não nos convidais também uma vez?” Jesus fez um sinal de afirmação, enquanto os pequenos acrescentavam:

Candura e amenidade, vigilância e holocausto

Aí temos a candura com seus dois contrafortes: a vigilância e o holocausto. Sem tais complementos, ela jamais é autêntica. O homem verdadeiramente cândido deve ter uma vigilância constante sobre si mesmo, noite e dia, uma vigilância infatigável, para não ceder aos maus impulsos inumeráveis que formigam no interior de cada alma. Este é um primeiro ponto a considerar.

Em segundo lugar, quando é genuína, a candura recebe o convite para o holocausto. Quer dizer, há um determinado momento em que a Providência pede a ela sua própria imolação. Donde vermos esses meninos, que tiveram seu mau momento, serem perdoados e, depois, convidados para o holocausto. Seguramente souberam que iam morrer. Foram consultados sobre se desejavam a morte e a aceitaram. Tiveram suas almas levadas para o Céu, envoltas na doçura e na suavidade dos que adormecem no Senhor.

Depois desse relato que tanto nos fala da inocência medieval, fica-nos muito menos a imagem das duas crianças ou a de Frei Bernardo, do que a figura do Menino Jesus, tão bondoso, tão misericordioso, tão capaz de condescender a todos os desejos dos homens e entrar com eles nessa familiaridade. D’Ele está dito na Escritura: “Minhas delícias consistem em estar com os filhos dos homens” (Pr. 8, 31). Ao mesmo tempo, entretanto, pedindo um preço, igual ao que Ele próprio pagou: o preço do holocausto. Em certo momento Ele nos convida ao sacrifício e é preciso aceitá-lo. Então a vida termina maravilhosamente bem.

Candura e amenidade, vigilância e conformidade com o sacrifício eram disposições de alma correntes na Idade Média, as quais merecem ser lembradas e imitadas pelos homens de hoje, assim como pelos das épocas vindouras.

 

Revista Dr Plinio 36 (Março de 2001)

 

Frutos esplendorosos do Sangue de Cristo

Segundo o ensinamento da Igreja, no Paraíso Celeste, além da visão beatífica que inunda de gáudio as almas dos justos, há também uma realidade material — o Céu Empíreo — onde Deus semeou maravilhas inimagináveis, para que os corpos ressurrectos vivam imersos num universo físico que lhes fale das grandezas de seu Criador.

Por essa disposição divina percebe-se quão necessário é ao homem alimentar o seu espírito, não só na consideração dos aspectos teóricos e doutrinários da Religião, mas igualmente através das coisas temporais que o façam desejar aquelas superiores belezas da bem-aventurança eterna.

Compreenderam-no muito bem os filhos da velha Europa, a Europa da Civilização Cristã, os quais corresponderam de modo único às graças que receberam da Providência, alcançando realizações magníficas nesta terra. Por isso, até hoje olha-se para os esplendores europeus como para uma espécie de mito que a Religião Católica elevou à condição de ante-câmara ou de “seminário” do Éden celestial.

Tempo houve, pois, em que todo o teor da vida era diverso do de nossos dias, num continente onde foi possível ao homem idealizar e construir um mundo de maravilhas, de coisas arquitetônicas e sapienciais capazes de nos falar do Céu e, ao mesmo tempo, deleitar de maneira virtuosa o “irmão corpo” de quem as contempla. São os símbolos excelentes e nobres daquelas magnificências que nos aguardam no Céu Empíreo.

Dado, porém, que o efeito é sempre menor que a causa, comprazo-me em salientar que a maior dessas pulcritudes da antiga Europa é precisamente o espírito daqueles que as conceberam, as almas sedentas das grandezas celestiais, os corações nos quais se sentia este anseio de modo mais intenso do que naquilo que produziram e legaram à posteridade.

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Pensa-se nisto, ao considerar uma Sainte Chapelle e o monarca que a construiu, São Luís IX; ao admirar um Eremo delle Carceri e seu mais ilustre habitante, São Francisco de Assis; ou ao examinar a pujança e beleza de formas de uma Torre de Belém, diante da qual poderia se  passar uma noite inteira, sob as refulgências do luar, meditando no heroísmo dos valorosos portugueses de que ela é portentosa expressão.

E por que não lembrar do palácio do Rei Sol, do Versailles de Luís XIV, cujas linhas e arquiteturas, no que têm de virtude e catolicidade, nasceram da Igreja e, a “fortiori”, estavam contidas na mentalidade e no modo de ser dos homens e instituições sagrados que incutiram nos seus artífices o espírito católico? Logo, num São Vicente de Paulo, por exemplo, insigne santo do tempo do pai de Luís XIV e que frequentava a corte, proporcionando uma abertura de alma para as virtudes que realizaram Versailles.

O mesmo se poderia dizer do Escorial, concebido por Felipe II de Espanha, o qual era mais “Escorial” que todo o seu famoso palácio. E como não imaginar a influência sobre essa idealização de uma alma que sobrepujava a do próprio Rei: a grande Santa Teresa de Jesus, ela mesma um “Escorial do Céu”?

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Portanto, na causa de tantas maravilhas que duram há séculos e que ainda hoje encantam o mundo, havia toda uma estrutura moral, virtudes e qualidades de alma, havia um portentoso vínculo entre Igreja, Religião e civilização, concorrendo para realizá-las.

Para se dizer tudo, havia o Sangue infinitamente precioso de Nosso Senhor Jesus Cristo e as lágrimas de Nossa Senhora, fontes de graças inapreciáveis que fecundaram e geraram um mundo inteiro posto na perspectiva das grandezas eternas, apetecendo-as e procurando espelhá-las do modo mais perfeito possível nesta terra de exílio.

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E assim são os esplendores da Europa cristã, da Europa sacrossanta, cujos passado e relíquias nos enchem do desejo de, ali chegando, oscular o solo em que primeiro pousam nossos pés. Porque, seja como for, é a parte do mundo por excelência onde os sofrimentos de Cristo e as dores de sua Mãe Santíssima engendraram uma grandiosa civilização, antecâmara do Paraíso Celeste.

Ardorosa certeza

Na hora trágica da dúvida e do abandono, enquanto o Corpo do Redentor jazia no sepulcro, para todos tudo parecia acabado. Todos, exceto Aquela em cuja alma a crença nas promessas divinas jamais vacilara. Como uma tocha de fé e de convicção, Maria Santíssima ardia na certeza de que Nosso Senhor ressuscitaria conforme dissera. Fé sem sombra de hesitações. Certeza absoluta. E uma expectativa imensamente dolorida (porque pensava nos cruéis padecimentos de seu Filho), mas imensamente calma, serena, porque confiante na vitória d’Ele que se aproximava.

“Durante a noite que é belo acreditar na luz”, escreveu o poeta. Na noite mais escura da história cristã, só a Virgem acreditou na luz. Por isso, foi esse um dos mais belos instantes de sua gloriosa existência…

Hosana

Passar por reveses, derrotas, angústias, ansiedades, ver-se à beira da extinção, diante de imensos perigos, enfrentar aparentes decadências e, entretanto, pela graça de Deus acabar vencendo — eis o sentido cristão da palavra “admirável”. Exemplo paradigmático, a vida de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Os maiores milagres, os maiores êxitos, uma verdadeira aclamação como Rei em Jerusalém no Domingo de Ramos, e uma súbita e inesperada derrocada que desfecharia nas dores e aflições da cruz. Pouco depois, o espetacular triunfo da Ressurreição. Isto é ser, na inteira força do termo, admirável!

 

Plinio Corrêa de Oliveira

A verdadeira devoção a Maria

Damos início neste número à publicação de alguns trechos dos comentários de Dr. Plinio ao “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem”, escrito por São Luís Maria Grignion de  Montfort. Conhecida por Dr. Plinio quando moço, esta obra era por ele considerada como um marco fundamental de sua espiritualidade.

 

São Luís Maria nos explica o motivo que o levou a escrever o Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem: “Meu coração ditou tudo o que acabo de escrever com especial alegria, para demonstrar que Maria Santíssima tem sido, até aqui, desconhecida, e que é esta uma das razões por que Jesus Cristo não é conhecido como deve ser” (nº 12). 

Eis a razão da introdução e de todo o livro. Maria Santíssima é desconhecida, e deve ser conhecida, pois assim virá o reino de Cristo. O livro se destina, portanto, a propagar a devoção a Nossa  Senhora para que venha o reino de Nosso Senhor. Por “desconhecida” entenda-se “muito menos conhecida do que sua excelência e seus admiráveis predicados exigem”. 

Trata-se, por conseguinte, de uma obra de larga visão e alcance histórico muito amplo, fixando-se no desejo de trazer o reino de Cristo para um mundo que não o possui, através da devoção a Maria Santíssima. 

O fundamento teológico, São Luís Grignion o coloca no tópico 1: “Foi por intermédio da Santíssima Virgem Maria que Jesus Cristo veio ao mundo”, isto é, se Maria Santíssima não tivesse existido, Jesus Cristo não teria vindo; “e é também por meio d’Ela que Ele deve reinar no mundo”, ou seja, a devoção a Jesus Cristo deve expandir-se a toda a humanidade por intermédio de Maria Santíssima. Difundir a devoção a Nossa Senhora é, pois, nesta perspectiva, de importância capital. O afervoramento da piedade: passo essencial Esse objetivo de São Luís Grignion se presta desde logo a um comentário. 

O Santo profeta se propõe a preparar o futuro reino de Cristo fazendo o que lhe parece ser o mais essencial,  importante, urgente, e que, na ordem concreta dos fatos, produzirá quase que automaticamente o resto: difundir a perfeita devoção a Maria. 

A derrota do espírito do mundo e a restauração da civilização baseada nos princípios da Igreja Católica não se começam, portanto, por meio da política, das obras, do talento ou da ciência.

Na época mesma de São Luís Grignion, Bossuet deslumbrava Versailles e Paris com seus sermões; entretanto, para evitar a derrocada religiosa da França, não foram decisivos. O começo da regeneração de todas as coisas está na piedade, no afervoramento da vida interior, nos fundamentos religiosos da vida de um povo. O apostolado essencial é de caráter estritamente religioso: afervorar, educar na piedade, formar caracteres; as outras coisas são conseqüências, complementos, importantes realmente, mas complementos.

Eis a grande lição que São Luís Maria Grignion de Montfort fixa já no início do Tratado, e depois desenvolve mais longamente: na formação dos caracteres a condição básica e indispensável é a devoção a Nossa Senhora. Possuindo-a de modo autêntico, as pessoas terão todos os meios sobrenaturais necessários para, com a correspondência da vontade, florescerem. Não se formando esta devoção, o próprio regime de expansão da graça na alma fica comprometido. Portanto, a devoção a Nossa Senhora é condição vital para tudo quanto diz respeito à salvação individual e da civilização, bem como à salvação eterna de todos quantos constituem, em dado momento, a Igreja militante. 

São Luís Grignion tinha, pois, em mente, com este livro, fazer uma obra da mais alta importância para a renovação dos séculos futuros. Cabe-nos, portanto, ser sôfregos em possuir esta devoção a Nossa Senhora por ele pregada. Em outros termos, fomos chamados pela Providência para uma obra definida, com objetivos definidos, e só a realizaremos se tivermos em nosso espírito esta devoção. Sendo ela, como vimos, indispensável para que o mundo se regenere em Nosso Senhor, se queremos com este escopo trabalhar, é necessário ir em busca desta devoção.

O Tratado não é, pois, um livro qualquer de piedade, apresentando uma devoção a algum santo, boa por certo, mas que se pode ou não ter, indiferentemente, “conditio sine qua non” para nosso trabalho. E só a atingiremos no mais alto grau, utilizando a forma com os fundamentos desenvolvidos por São Luís Grignion de Montfort;

Maria é a obra-prima do Altíssimo

Escreve o Santo: “Maria é a obra prima por excelência do Altíssimo, cujo conhecimento e domínio Ele reservou para Si” (nº 5).  Que belíssima noção! Maria Santíssima é tão grande que São Luís Grignion, sendo apenas um seu pequeno menestrel, é quase inesgotável quando fala d’Ela. Ele afirma ser Nossa Senhora tão extraordinária, colossal — pouco dizem estes adjetivos, aos quais de longe Ela transcende — que só Deus conhece em toda a extensão suas perfeições. Não podemos sequer ter uma pálida ideia disto. Há n’Ela belezas, culminâncias, encantos, perfeições, excelências 
que escapam e sempre escaparão completamente ao nosso olhar, e são somente por Deus contempladas. Imaginemos esses universos, essas constelações imensas de estrelas que o  homem não conhece e possivelmente jamais conhecerá, cujas maravilhas ficam reservadas à exclusiva contemplação de Deus:  assim é Maria Santíssima. 

N’Ela há esta nota de incognoscibilidade: paramos extasiados a seus pés, compreendendo que, após ter entendido muito, quase nada compreendemos. Estamos sempre no seu pórtico, que é para nós demasiadamente grande, tal a sua excelência.  

Ao olharmos uma noite de céu estrelado, em lugar de considerarmos apenas as grandezas de Deus — pensamento aliás muito louvável — sabemos contemplar também Maria Santíssima, incomparavelmente maior e mais formosa do que cada um dos astros do céu e do que todos eles no seu conjunto? Porque, sendo Ela a obra-prima da criação, toda a beleza, grandeza, excelência que Deus colocou no firmamento é pequena em relação às postas n’Ela pelo Criador; este céu não é senão uma imagem, uma figura da magnificência de Nossa Senhora. Apesar de ser mera criatura, tudo quanto n’Ela há, excede muito em perfeição todas as belezas criadas, de um modo inexprimível. Continua São Luís Grignion: “Maria é a Mãe admirável do Filho, a quem aprovou humilhá-La e ocultá-La durante a vida para Lhe favorecer a humildade, tratando-A de mulher — mulier — (Jo 2, 4; 19, 26), como a uma estrangeira, conquanto em seu coração A estimasse e amasse mais que a todos os anjos e homens” (nº 5). O Santo defende aqui a ideia de que, durante sua vida, também Nosso Senhor A manteve ignorada; apenas Ele A conhecia.

“Maria é a fonte selada (Ct 4, 12) e a esposa fiel do Espírito Santo, onde só Ele pode penetrar” (idem). É o retorno à ideia de Nossa Senhora como criatura reservada ao conhecimento de Deus.

“Maria é o santuário, o repouso da Santíssima Trindade, em que Deus está mais magnífica e divinamente que em qualquer outro lugar do universo, sem excetuar seu trono sobre os querubins e serafins…” Os anjos da guarda ocupam os graus inferiores na hierarquia celeste. 

Porém, tendo certa vez aparecido a uma santa o seu anjo da guarda, ela se ajoelhou, pensando estar na presença do Altíssimo. A grandeza dos anjos é tal que, no Antigo Testamento, em várias de suas aparições, os homens julgavam tratar-se do próprio Deus. E no Céu há miríades de anjos. Em que assombro ficaríamos se os víssemos todos e ao mesmo tempo! Nossa Senhora, contudo, está  acima de todos eles reunidos. Assim, diante de sua insondável alma, deparamo-nos novamente com termos de comparação, embora os melhores que possamos empregar, imperfeitos e totalmente insuficientes. 

“…e criatura alguma, pura que seja, pode aí penetrar sem um grande privilégio”. Existe, pois, uma categoria de criaturas privilegiadas que podem penetrar no conhecimento de Nossa Senhora. Tais criaturas, o Santo no-lo explica, são aquelas a quem Deus dá, por liberalidade, o dom que o comum das pessoas não têm, de conhecerem e praticarem a devoção a Nossa Senhora conforme o modo especial por ele ensinado. E os “apóstolos dos últimos tempos”, de que ele nos fala, possuirão este dom; por isso, serão terríveis no combate ao mal e eficacíssimos na defesa do bem. Serão almas elevadíssimas, que terão a graça de penetrar neste umbral da devoção a Nossa Senhora.

O paraíso do novo Adão

Continua São Luís Grignon: “Digo com os santos: Maria Santíssima é o paraíso terrestre do novo Adão…” 2 (nº 6). 

O paraíso terrestre era cheio de encantos, delícias, perfeições. São Luís Grignion diz que Nosso Senhor estava no ventre puríssimo de Maria Santíssima de modo análogo àquele — excelente e perfeito — com que Adão permanecia no Éden. Portanto, durante  gestação, Nossa Senhora era o paraíso do novo Adão, Jesus Cristo. Quando, na comunhão, recebemos este mesmo Jesus Cristo acostumado que está a tais paraísos, perguntamo-nos o que Ele achará da nossa hospitalidade? Oferecemos-Lhe ao menos, a Ele que condescende em descer à nossa choupana, o modestíssimo luxo de uma casa limpa? “… no qual Este se encarnou por  obra do Espírito Santo, para aí operar maravilhas incompreensíveis…” 

Nosso Senhor, durante sua vida em Maria Santíssima — e esta é uma belíssima ideia que São Luís Grignion desenvolverá mais tarde —, quando Ela era o tabernáculo no qual Ele habitava, já aí operou maravilhas. 

São Luís Grignion compôs inclusive uma oração dirigida a Nosso Senhor enquanto vivendo em Maria Santíssima — “O Jesu, vivens in Maria”… “É o grande, o divino mundo de Deus, onde há belezas e tesouros inefáveis. 

É a magnificência de Deus (Ricardo de S. Lourenço, De Laud. Virg., lib IV.), em que Ele escondeu, como em seu seio, seu Filho único, e n’Ele tudo que há de mais excelente e mais precioso. Oh! que grandes coisas e escondidas Deus todo-poderoso realizou nesta criatura admirável, di-lo Ela mesma, como obrigada, apesar de sua humildade profunda: ‘Fecit mihi magna qui potens est’” (Lc 1, 49).

O sentido inteiro do cântico do Magnificat só o entenderemos se considerarmos quem é Nossa Senhora. Realmente, é preciso nos lembrarmos do poder de Deus, para compreender que Ele possa ter operado essas maravilhas que n’Ela operou. “O mundo desconhece estas coisas porque é inapto e indigno”. Se antes o Santo nos falou que Deus concede a pessoas privilegiadas o favor único de poder penetrar nos umbrais desta devoção, agora se refere a uma geração (no sentido teológico e não biológico) que por sua maldade, impureza, indignidade, de detesta tudo isto. É o reverso da medalha. 

A devoção mariana é característica de todos os santos 

Afirma São Luís: “Os santos disseram coisas admiráveis desta cidade santa de Deus; e nunca foram tão eloquentes nem mais felizes — eles o confessam — que ao tomá-La como tema de suas palavras e de seus escritos” (nº 7). 

Esse trecho nos evidencia uma verdade muito importante. Não se deve pensar que a devoção a Nossa Senhora é um estilo de santidade inaugurado por São Luís Grignion, ou levado por ele ao último grau de intensidade. A devoção especialíssima e intensíssima a Nossa Senhora é característica de todos os santos. E, embora não se possa dizer que todos a tenham conduzido ao ponto levado por São Luís Maria, estudando a vida de piedade de qualquer deles notamos sempre uma devoção ardentíssima a Ela, a qual é a dominante logo abaixo do culto a Deus Nosso Senhor.

Essa devoção, contudo, se reveste em cada um de aspectos particulares. É raro, neste sentido, encontrar algum santo que não tenha cultivado um aspecto novo de piedade em relação à Nossa Senhora. E nenhum deles desconhece dever à intercessão d’Ela, não só seu progresso espiritual, mas até mesmo sua perseverança. 

Todos passaram por duras provas espirituais, das quais se viram livres por uma intervenção especial d’Ela. São Francisco de Sales, por exemplo, teve em sua juventude uma terrível crise, relativa ao problema de sua predestinação. Pensando no assunto, ficou quase tragado pelo abismo do tema e foi duramente assediado pelo demônio, o qual lhe insuflava que estava condenado. Isto lhe causou uma tremenda depressão. Começou a emagrecer, perder a saúde, nada havia que lhe restituísse a paz à alma. Certo dia, rezando diante de uma imagem de Nossa Senhora, pediu-Lhe, ainda que tivesse de ir para o inferno, lhe fosse dado não ofender a Deus na Terra — pois seu pavor do inferno não provinha do tormento, mas da ideia de ultrajar eternamente a Deus — e recitou a ração
“Memorare o piíssima Virgo Maria”, a qual estava escrita no pedestal da imagem. Ele mesmo nos conta que, logo após o término da oração, restabeleceu-se em sua alma uma paz admirável; percebeu então, claramente, o jogo do demônio de que estava sendo vítima, e recuperou aquela serenidade que viria a ser a nota dominante de sua vida espiritual.

Encontramos, assim, na existência de todos os santos, esta constante de uma particular devoção a Nossa Senhora. Ela é, pois, uma característica segura da verdadeira piedade, e devemos absolutamente duvidar da santidade de alguém que não a possua. Seria sofisma dizer: algo que é especial para todos não o será, por isso, para ninguém. A isto se pode responder: uma mãe com muitos filhos tem, para cada um deles, um carinho especial; e cada filho ama a própria mãe de um modo particular. Assim, cada um de nós deve amar Nossa Senhora de maneira inteiramente própria, especial e inconfundível. Ela, por sua vez, terá para conosco um carinho, que não será genérico, como de quem dissesse: “Eu amo toda aquela gente”; mas sim um afeto particular, que pousará sobre cada um de nós, individualmente considerados, como se só nós existíssemos na face da Terra.

Plinio Corrêa de Oliveira