Inocência e admiração desinteressada – I

Tecendo considerações a respeito da inocência, Dr. Plinio mostra como ela nos incita a admirar tudo quanto é superior a nós, sem procurar nenhuma vantagem pessoal. E para ilustrar seu pensamento, comenta um filme sobre a cerimônia de casamento do Príncipe Charles com a Princesa Diana.

 

O  lado bom da alma pode ser desenvolvido à maneira de uma bobina, de um carretel que é desenrolado, cujo ponto de partida é a inocência. Quer dizer, colocada diante daquilo que Deus fez maior do que nós, a alma inocente se sente integrada. Isto lhe vem com a própria noção do ser, está colado, desdobra-se imediatamente da noção do ser; não é, portanto, uma ideia inata. A noção do ser é inata no homem, mas as outras são deduzidas, chameiam, chispam de dentro da noção do ser.

O homem existe para algo maior do que ele

Uma das noções mais imediatas é a do universo. Ou seja, cada um de nós está relacionado com uma porção de outros seres que formam um todo, e existimos de algum modo para o todo; como também, de certa maneira, existimos para algo que não é esse todo.

E realmente o homem é assim. Ele, de imediato, sente que existe para si, mas, logo no movimento seguinte, percebe — confusamente; só quando ele maturar conseguirá formular — que existe para algo muito maior do que ele: o universo.

Então, quando o homem vê algo tão maior do que ele, com o qual sente não ter proporção, ele se rejubila, de um júbilo análogo ao bem-estar que os pulmões têm quando entra ar fresco. Quer dizer, o bem próprio dos pulmões é receber aquele ar e impregnar o sangue com oxigênio, que se difunde para o corpo. Assim também é o homem: ao perceber algo maior do que ele, o homem todo é levado por um “élan” para aquilo, como quem diz: “Mas esse todo, essa ordem do ser na qual vivo, confere coisas magníficas, e sou maior do que eu suspeitava, vendo que isso é tão grande!”

A criança inocente não age por egoísmo

Considerem uma criancinha deitada no berço e que está apenas tomando os primeiros conhecimentos do mundo externo. Vem alguém e agita diante dela uma esferazinha de vidro com uma cor brilhante, dourada, por exemplo. A criança bate as mãos e, sem pensar ainda, estende os braços.

Por que ela faz isso? Porque a criança sente que ela tem um nexo com aquilo, o qual a enriquece e completa de algum modo; então, ela tende para aquilo.

Aqui está o ponto de partida da inocência, a qual leva a criança a se rejubilar com o que é insignemente maior do que ela. Daí a admiração pelos pais, pelos mais velhos que ela vai conhecendo, pois a criança vê que são uma ampliação dela mesma. E também a admiração por toda forma de maravilhoso, que se põe diante da criança. Mas essa admiração não é egoística; é uma alegria porque aquilo é daquele jeito, e uma consonância: “Como é bom, como me rejubila que haja algo maior do que eu! Eu encontro, na contemplação daquilo, algo que me repousa, me enche de ar!”

O que ela encontra? Alguém dirá: “A vantagem própria”. Afirmo: “Não. É uma coisa muito mais alta: seu fim!”

Aqui está a específica noção que é preciso tomar em consideração. Aplicando o que foi dito a mim mesmo, não é por egoísmo, por vantagem pessoal, que eu vejo aquilo que é meu fim, mas é por mera veneração, por mero entusiasmo.

Porque atingi o meu fim, é claro que me realizo, sou coberto de recompensas, mas há algo de desinteressado, de puro, que vai além do amor que uma pessoa deve ter por si mesma, e nisso está o ponto, digamos, o polo de atração da inocência. É o por onde o homem sente e sabe que não é o fim de si mesmo, mas que ele existe para estar em nexo, em veneração e a serviço de algo maior.

O desejo do gozo

Há na criança outro movimento, que é horizontal: o encanto com as coisas que têm proporção com ela. É um movimento legítimo, mas, integrando-se naquele conjunto, a ideia de fim lhe aparece menos clara do que na consideração do que é mais alto; e a ideia dela mesma surge mais clara: eu, eu, eu. E na relação horizontal a criança começa a querer ter uma série de coisas do seu tamanho, de sua proporção. Por exemplo, não podendo ser dona de uma pessoa, quer ser dona de uma boneca; não sendo possível ter um automóvel, que ela vê passar na rua, a criança quer possuir um automovelzinho. Ela quer ter um mundinho em miniatura com o qual mexa, se entretenha em certas horas, sobretudo deseja ter muitíssimo mais relações com as outras crianças do que com os mais velhos. E acaba havendo uma fase da evolução da criança em que os da mesma idade têm muito mais influência, peso, atrativo do que os pais, os avós, os tios que ficam para o fundo da cena.

Nesse horizontal, a abnegação aparece muito menos, e a criança se dá conta de que, se alguns deleites conduzem à admiração desinteressada, há outros prazeres que levam ao gostoso. E aí muito facilmente — se a primeira parte não está profundamente vincada na alma — a criança começa a conceber a vida como uma sucessão de deleites, e ela só procura prazeres.

A partir deste momento a inocência começou a minguar, a procura do verdadeiro fim desaparece. E o fim passa a ser gozar; a vida é uma oportunidade para gozar.

Alguém lhe dirá:

— Mas você não sabe que um dia vai morrer?

— É verdade, porém leva tanto tempo para eu morrer, que cuidarei disso mais tarde.

— Olhe, você pode falecer de repente!

— São tão poucos, que é melhor deixar isto de lado.

Ela quer gozar, gozar, gozar…

Na bitola do gozo desaparece a inocência, e o gozo traz essa atitude de alma, que Mitterrand(1) assim descreve: “Quero tudo, já e para sempre!” Resultado: começa a inveja e o pesar de que um outro tem o que ela não possui.

Cerimônia de casamento do Príncipe Charles; dois estados de espírito opostos

Todos viram ontem as cenas ocorridas no Buckingam Palace(2), e puderam observar o estado de espírito de entusiasmo que dominava a multidão.

Qual seria o estado de espírito de um revolucionário no meio da multidão? E haveria muitos deles que lá estavam para assistir… Seria o oposto: “Por que eu não estou sendo objeto dessas homenagens? Por que não sou o Charles?” E uma moça revolucionária pensaria: “Por que eu não sou a Diana?”

Porque os revolucionários querem ter aquele gozo só para si e, não sendo isso possível, eles desejam que ninguém tenha. São horizontalizantes. A inveja nasceu do desejo do gozo.

Pelo contrário, os que estão ali aclamando o Charles, a Diana e os outros personagens que estão no balcão do Palácio, pensam de outra maneira: “Como eles são maiores do que nós e simbolizam esse todo que é a Inglaterra! Como é magnífico haver uma nação que se exprime nesses símbolos! Como é magnífico pertencer a essa grande nação! Oh, que alegria! Encontramos algo de mais alto, mas queremos tudo isso já e eternamente!”

Esse sentimento só se justifica diante da ideia de que há um outro Ser, muito acima daquelas pessoas que estão no alto do balcão, e que nos dá tudo que nossa alma ambiciona. Gostaríamos que fosse já, quer dizer, tendo a certeza de que nós cumpriremos nesta vida a nossa missão, que os Céus se abram e desça para a Terra o que esperamos. O maravilhamento dos pastores na noite de Natal, quando apareceram os Anjos, nos dá a ideia dos Céus abertos e desse fim eterno que fala a nós.

Esta é uma festa da tradição. Quantos reis se sucederam; como passam esses homens! Os avós dos reis de hoje foram aclamados pelos meus avós, mas os meus décimos avós — digamos, no século XVI — aclamaram os décimos avós deles. E mais e mais para trás, chega-se ao momento em que eu tenho que imaginar a Inglaterra, ilha onde não morava ninguém, e chegaram os primeiros bretões, os primeiros celtas, e começaram a ocupá-la. E recuando ainda mais, posso pensar naqueles reis primeiros da Bretanha grande, em oposição à Bretanha pequena, reis de clareiras, de bosques, sentados num trono de madeira, presidindo as reuniões de uma tribozinha com cem pessoas no máximo, e venerados como monarcas. Todos eles morreram, meus antepassados morreram; nós que estamos aqui neste auditório morreremos, e também todos os homens.

Em que sentido queremos tudo, já e para sempre?

Mas Deus é eterno; tendo a Ele, eu tenho tudo. O Criador se dá todo a mim, como se só eu existisse. Nesse sentido, queremos tudo, tanto quanto possível já, e eternamente; para lá rumam as nossas almas.

Vê-se que entre a autoridade suprema na ordem temporal e na ordem espiritual, e Deus há uma distância infinita, e essas autoridades apenas educam, ajudam a alma a tender para o que a criança admirou, na inocência primeva, quando pela primeira vez esteve diante de uma bolinha dourada, abriu os braços e sorriu. E quando a pessoa, na hora da morte, fizer seu ato de Fé e se recomendar a Nossa Senhora, terá a certeza de possuir tudo, já e eternamente.

O afundar dentro da morte é o entrar no Céu.

Vistas as coisas com esse estado de espírito, compreendemos que não seja só na Inglaterra — com toda a riqueza, todo o fausto, todo o esplendor, toda a grandeza da cerimônia a cujo filme assistimos ontem — que os súditos sintam isso, mas até nos menores países, e mesmo nas formas de governo mais diversas.  v

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira(Extraído de conferência de 2/10/1981)

Revista Dr Plinio 182 (Maio de 2013)

 

1) François Maurice Adrien Marie Mitterrand (* 1916 – † 1996). Foi um dos presidentes da República da França.

2) Dr. Plinio se refere a cenas da cerimônia de casamento do Príncipe Charles com a Princesa Diana, realizada em 29 de julho de 1981.

Os Anjos, o natural e o sobrenatural

No homem, na História, na cultura dos povos, na arte e até mesmo nos panoramas, Dr. Plinio discernia a ação angélica, como se comprova nesta conferência. Fazendo explicitações luminosas sobre os Anjos, ele apresenta exemplos concretos que nos ajudam a compreender esse tema fundamental, bem como seu relacionamento com a Revolução e a Contra-Revolução.

 

Ao criar os Anjos, Deus os dotou de uma capacidade de ação própria à natureza angélica, distinta da capacidade de ação sobrenatural, correspondente aos dons sobrenaturais que Ele haveria de lhes dar, como um acréscimo que teriam futuramente, num outro plano.

Relacionamento entre seres congêneres

O homem é tocável por essa ação natural dos Anjos, portanto tem um espírito sensível para entrar em comércio com eles dessa maneira. E precisaria ter isso porque, uma vez que Deus estabeleceu o universo, todos os seres mais ou menos congêneres, por causa da perfeição do universo, têm necessidade de poderem relacionar-se uns com os outros. Então, seria preciso que, independente de qualquer plano sobrenatural, houvesse toda uma ordem de relacionamento natural possível entre Anjos e homens, muito elevada, e atendendo a certas apetências naturais do homem, que não são iguais às apetências que ele tem do sobrenatural.

Em consequência, este mundo angélico natural teria que ser sensível ao homem. E o homem, com um certo discernimento dos espíritos, poderia até perceber quando está entrando uma ação de caráter angélico natural, e uma ação de caráter angélico sobrenatural. E tornar-se-ia capaz, em tese, com certo esforço, de imaginar como seria um mundo em que houvesse homens e Anjos, e não tivesse sido criado o sobrenatural. E distinguir isso de um mundo onde haja o sobrenatural, para efeito de ele compreender melhor tudo que o sobrenatural acrescentou à ordem natural.

Por isso, todas essas distinções e o estudo dessas correlações, embora possam parecer muito árduos e quase impossíveis de se fazer em tese, são necessários.

Notas angélicas nas culturas da Alemanha e da Áustria

Em certas obras de cultura europeias, sobretudo alemãs e francesas — naturalmente de modos diferentes na Alemanha e na França —, existe uma espécie de necessidade de, às vezes, apresentar um universo com uma perfeição angélica natural, e outras vezes com uma perfeição angélica, que eles podem dizer ou não dizer, mas é sobrenatural. E negar essa possibilidade de apresentar esse aspecto natural, é tapar a alma humana numa das suas manifestações.

Por exemplo, estou lendo o livro no qual uma professora inglesa, governanta da única filha do Kaiser Guilherme II, conta suas memórias da corte da Alemanha, reconhecendo muita coisa bonita, louvável. Percebe-se que, em todo o aparato da corte alemã, havia uma tendência a apresentar o universo com uma beleza grande, verdadeira, apetecível ao homem, mas com uma nota angélica natural na ponta; enquanto que na Áustria, uma nota sobrenatural.

E embora a “res austriaca” me pareça muito superior à “res germanica”(1), esta última tem sua razão de ser, e o meu espírito se alegra em poder contemplar uma coisa distinta da outra. Porque faz parte da perfeição de Deus, enquanto Criador, ter criado as duas coisas distintas.

Acho que era desígnio da Providência que certas partes da Alemanha, na linha da graça, fizessem sentir em harmonia com o sobrenatural um certo “tonus” natural. E que, no mundo germânico, o dom de fazer sentir o “tonus” sobrenatural fosse principalmente da Áustria. Donde as minhas mil predileções enlevadas pela Áustria. Mas um muito grande gosto da “res prussiana”.

As cataratas de Foz do Iguaçu

Andando por panoramas naturais, chega-se, às vezes, a lugares onde se tem a impressão de que aquilo tem uma perfeição muito grande, na ordem própria, evocando certos padrões de sublimidade, que levam o espírito humano quase até a ponta de si mesmo. Não são coisas propriamente sobrenaturais, mas que estão em harmonia com o sobrenatural.

É preciso ver bem o que se entende por sobrenatural aqui. As cataratas de Foz do Iguaçu, por exemplo, têm uma beleza natural própria. Mas nunca vi que alguém notasse ali algo de uma beleza que levasse o homem a dizer: “A graça de Deus está aqui!” A pessoa pode afirmar: “Deus está aqui”, mas “a graça de Deus está aqui” não pode dizer.

Deus está ali enquanto Criador, e um Anjo d’Ele pode estar presidindo aquilo, para manter a coisa em ordem, e deixar sentida a sua presença. Inclusive tenho impressão de que deve existir um Anjo que, por sua natureza espiritual, seja semelhante ao que as cataratas de Foz do Iguaçu são na ordem natural. De onde existe uma ação de presença dele particularmente intensa ali, por causa dessa semelhança. Chega-se lá, sente-se qualquer coisa assim de uma presença angélica, mas que ainda não é uma presença sobrenatural.

Esta eu a sinto muito mais nas coisas da arte do que nas da natureza. Então, por exemplo, na Sainte-Chapelle, Notre-Dame, ou, de um modo bem diverso, Genazzano; é uma presença diferente. Sente-se que alguma coisa, não na última linha do que podemos ver, mas superior a nós, rompe uma distância intransponível e se comunica conosco, elevando-nos ao que nunca poderíamos imaginar. Ali está o sobrenatural.

Muita gente confunde as coisas, e não seria capaz de estar em Foz do Iguaçu olhando o que a Providência quis que se visse, e adorando a Deus nessa perspectiva. Mas pensaria logo: “Renuncie às coisas desta Terra, feche os olhos para essa maravilha de Deus, porque o Céu é muito maior…” O Céu é muito maior, e fechar os olhos para as cataratas do Iguaçu pode ser a via espiritual para alguém. Mas a realidade é esta: um Anjo invisível está ali, e nos fala por sua natureza, não pelo sobrenatural que habita nele.

O Pampa e o panorama do Rio de Janeiro

Eu já notei, da parte de alguns argentinos, uma tentação de menosprezar o Pampa como meio monótono, raso, insípido, porque não acaba mais. Mas não é verdade. Isso significa não ter apanhado aquilo no ponto de vista em que deve ser considerado.

Certa vez, descendo de um avião num aeroportinho feito de terra, de repente encontrei o Pampa, e tive uma impressão de respeito religioso. Aquilo estava plantado, não de trigo, mas de vegetais altos, não sei o que eram, e em quantidade! Planície, planície, planície… com toda aquela vegetação da mesma altura, tudo igual, uma paz, uma tranquilidade! Não tem nenhuma montanha, tudo normal, direito.

Tive vontade de dizer, como São Pedro: “Façamos três tendas, uma para Ti, outra para Moisés e outra para Elias…”(2). Desejei ficar sozinho olhando aquilo.

O panorama do Rio tem muito disso. Mas são desígnios da Providência: no meu modo de sentir, há uns reluzimentos sobrenaturais no píncaro do bonito, do natural. É um natural tão, tão bonito, que extravasa da linha do natural. Percebe-se, de vez em quando, uns reluzimentos divinos.

Meta a ser atingida pela arte

Uma meta a ser atingida pela arte seria de fazer com que, na coisa natural, aparecesse tanto quanto possível a presença do espírito humano. Depois, num segundo grau, surgisse, tanto quanto possível o que há de angélico natural naquilo, e posteriormente o sobrenatural angélico. Esses vários graus de intensidade da natureza, do universo que Deus criou, seriam sucessivos degraus que a arte deveria saber apresentar.

Creio mesmo que na Idade Média quase todas as instituições eram dotadas de uma certa presença angélica, ora natural, ora sobrenatural, que foi se deteriorando no decurso dos tempos modernos. E que a Revolução Francesa quis expulsar completamente, e em parte conseguiu; foi a revolta contra um ambiente todo ele carregado de conotações místicas, ora naturais, ora sobrenaturais, que ajudavam muito a ver a realidade natural e a compreender seu último sentido.

Quando eu vejo uma flor, e sou levado a imaginar o arquétipo dela, não é propriamente um desejo que tenho de conhecê-la melhor, mas sim conhecer, na ordem do possível, uma coisa que seja essa flor na sua perfeição. Ou seja, algo que é meio parecido com a ordem paradisíaca que o homem perdeu, e que, entretanto, o seu senso do ser pede e ele procura quando olha as coisas desta Terra. Esse é, a meu ver, o elemento motor primeiro da arte.

A procura de arquétipos

A procura dessa perfeição leva também o homem a querer conhecer o santo. Porque este é na ordem moral — a que mais importa — o arquétipo do homem. Mas leva a desejar conhecer também um grande homem.

Vou dar um exemplo. Li uma descrição da viagem que o zepelim fez, conduzindo seu inventor, o velho Conde Ferdinand von Zeppelin, para se encontrar com o Kaiser. Eu tinha muita curiosidade de ver como o autor dessas memórias descrevia pormenorizadamente o encontro do Kaiser com o Zeppelin.

Não sei se percebem que se trata de um patamar de relacionamento que não existe mais hoje. É um estilo de vida, uma corte, um balão zepelim que voa, cujo inventor, um grande cientista, vai encontrar-se com o Kaiser. O zepelim pousa, de dentro desce um velhinho prussiano, todo teso, que cumprimenta o Kaiser, os dois se olham nos olhos, sorriem. Depois o Kaiser faz uma saudação militar, ambos se retiram, e o povo todo dando vivas, agitando bandeirolas, etc. Uma espécie de apoteose da Ciência, do êxito do homem que conseguiu voar. E o povo presta homenagem ao Kaiser, referendando o soberano supremo de um grande poder militar.

São valores supremos, quase arquétipos, que se encontram e como que se osculam, num ambiente quase paradisíaco para quem está habituado à vida de hoje. É uma procura de arquétipos que está atrás disso, uma coisa ligada ao senso do ser.

O homem tem saudades do Paraíso que não conheceu

Tenho a impressão de que se a sociedade fosse bem constituída, uma pessoa educada como deve ser — não digo educação no sentido de boas maneiras, mas formação total do ser — desenvolveria uma certa tendência que existe no homem para uma vida terrena de um nível muito superior ao que ele conhece, mas que não é para ele viver dentro dela por vaidade, mas pelo senso do ser que o leva a desejar conhecer até que ponto a vida humana é extensível.

Assim, sem deixar de ser o homem comum, ele tem uma certa participação nessas elevações. E o desejo contínuo de grandes elevações em toda a vida da sociedade, leva-o a querer coisas assim e a sonhar com flores, aves, céus extraordinários etc., porque ele foi criado para o Paraíso, e está exilado. E, sem saber, o homem tem saudades daquele Paraíso que ele não conheceu, mas que está proporcionado à sua natureza.

Essa sensação do exilado que tem vontade de voltar para o lugar que ele não chegou a conhecer, e, portanto, uma espécie de procura do paradisíaco a ser fabricado na Terra — para tanto quanto possível substituir o palácio de que ele foi expulso potencialmente na pessoa dos seus pais — faz dele um ente especial, cujo senso do ser não o leva a procurar apenas a perfeição no Céu e nas coisas sobrenaturais, mas uma perfeição de uma ordem natural, que não o cerca, mas da qual ele tem saudades. E que o homem procura realizar do melhor modo possível na Terra, como meio para chegar mais alto, à experiência mística e ao Céu.

Nesta época de Revolução, é absolutamente necessário para nossa formação proporcionar às pessoas cenas maravilhosas da História, apoiadas por uma ação angélica, de maneira a dar-lhes o desejo do mais alto, que as torna propriamente contrarrevolucionárias.

Porque se não há a inconformidade com a banalidade contemporânea, e o desejo de algo mais alto que o passado conheceu — e que devemos conhecer para depois engendrar um futuro a essa altura —, tenho a impressão de que a nossa própria formação fica padecendo.

Luta contra o mundanismo

Um dos defeitos contra os quais lutamos tanto — e sem o êxito desejado, por não irmos até o fundo do problema —, está exatamente nisto: mundanismo.

Nós batalhamos muito contra o mundanismo. Mas se não tivermos uma formação que nos faça querer um maravilhoso incomparavelmente diferente e maior do que esse mundanismo que está por aí — e perto do qual este último é pé-rapado, casca-grossa —, às vezes, pela própria elevação que possa haver em nossa alma, o indivíduo tem uma escapada da banalidade da vida para dentro do mundanismo, vendo neste uma realização mais alta de alguma coisa que lhe falta.

E o modo de combater esse desvio é precisamente, a meu ver, apresentar como algo foi no passado, mostrando como isto que existe no mundo de hoje é uma revolta, um álibi para não se atingir o que no passado se conseguiu. E criar a nostalgia, não de sermos personagens do passado, mas espectadores admirativos do passado, faz de nós homens capazes de lutar para que o passado seja de novo!

E seria preciso justificar isso na nossa formação, por uma ação angélica natural, e depois por toda a vida sobrenatural.

Convívio entre os Anjos e os homens

A ação angélica natural tem o pressuposto de que há um contato — e um convívio, portanto — normal do Anjo com o homem, que não é o aparecer, nem o conversar com o Anjo como estamos conversando aqui, mas uma ação dele sobre nós, e de algum modo nossa reação pró ou contra, aceitando ou rejeitando, fazendo com que normalmente nós estejamos também em contato com eles. Mas a ideia errada que se nos dá a respeito disso é a seguinte: a ação do Anjo sobre o homem só e unicamente ocorre quando o Anjo aparece para o homem; ou, então, que o Anjo da Guarda pode favorecer o homem em ocasiões muito excepcionais, sem o homem perceber. De maneira que Anjo entra no excepcional, e não no normal, da vida do homem.

Ora, eu considero — salvo melhor juízo, e submetendo-me, é claro, ao ensinamento da Igreja —, que em nossas reuniões, por exemplo, pelo próprio fato da vivacidade, da vida que elas têm, pode-se e deve-se ver uma ação angélica habitual. Entretanto, ninguém a sente. Sente-se uma certa vitalidade, e se percebe que esta não tem uma razão de ser e uma origem exclusivamente natural em nós, nada mais além disso. Mas se fôssemos afirmar ser um Anjo, muita gente se assustaria, pensando haver uma espécie de alumbramento. Isso não tem nada de alumbramento. É a impostação teológica séria e normal das coisas.

Ademais, pode acontecer que uma pessoa seja veículo de graças sobrenaturais específicas, para as quais não é preciso se excogitar uma ação angélica. E pode suceder que a presença de uma pessoa seja ocasião para a presença de um Anjo, que desenvolva uma ação natural angélica. É preciso aí distinguir as várias hipóteses possíveis.

Teoricamente falando, eu penso que o ser humano é capaz de alguns movimentos de alma rumo à arquetipia, que são da natureza dele. Mas acho que esses movimentos seriam inteiramente frustros e de nenhum modo atingiriam o que o homem quer, se não fosse a ajuda dos Anjos.

Arte e arquetipia

Poder-se-ia levantar a seguinte objeção: “O senhor então acha que toda a arte só é digna desse nome quando se constituiu com a ajuda angélica?”

Eu respondo: É preciso não correr. Porque há uma diferença entre arte e arquetipia. Na arte, o homem, muitas vezes, é guiado pelo senso de um prazer hedonista, que não é propriamente o gáudio metafísico que lhe dá a procura da arquetipia. E por causa desse senso hedonista, ele é capaz de fazer alguma coisa acertada, mas que não se encontra numa linha onde entra verdadeiramente o Anjo, ou seja, o desejo de arquetipia.

Considerem, por exemplo, aquele tapete persa que temos na “Sala do Reino de Maria”(3). Eu compreendo que um artista, com a forma de talento necessária para fazer isso, tenha sabido misturar cores, e fazendo coisas que lhe deram um gosto perfeito, onde sua alma não andou à procura de algo arquetípico, mas simplesmente de um deleite excelente dos olhos, o que é diferente.

A Basílica de Santa Sofia — hoje uma mesquita com minaretes —, colocada no Bósforo, de si é um pastelão, e os minaretes têm um formato esguio, leve, distintíssimo, quase que descansa a pessoa do peso da Basílica. Por outro lado, a Basílica torna mais verossímeis os minaretes, que pareceriam quase fumaça de cigarro que se elevou num ambiente onde não há vento.

A justaposição dos minaretes com a Basílica, no quadro do Bósforo, forma uma coisa difícil de imaginar, na qual se pergunta se há uma coincidência, ou realmente um desejo de arquetipia, e se nesse desejo de arquetipia entrou uma ação angélica, quando se tratava de obra de maometanos. É uma questão delicada, e eu mesmo precisaria pensar para dar-lhe uma resposta.

Na arte japonesa, chinesa, e em geral nas artes orientais, chama a atenção que os artistas as realizam à procura do belo, mas essa procura, em certo momento, dá origem ao aparecimento de monstros. Às vezes monstros com caras horríveis, mas com uns fios de barba lindos, e uns dragões que têm umas orelhas de ouro fantásticas! Mas são monstros.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 4 e 11/2/1990)

1) Do latim: coisa austríaca e coisa germânica. Aqui Dr. Plinio se refere ao conjunto de predicados dessas nações.
2) Lc 9, 33.
3) Sala nobre da sede social do Movimento fundado por Dr. Plinio.

Majestade multissecular de um palácio

Analisando a Praça do Campidoglio, Dr. Plinio aponta graves defeitos na urbanização de grandes cidades brasileiras.

 

Esta é a bonita Igreja de Trinità dei Monti, construída em louvor da Santíssima Trindade.

Agradável contraste entre três palácios

Nota-se uma elevação de terreno e, em baixo, um ajardinamento e uma escada muito bonita que, através de vários lances desde a igreja, desce até uma praça onde se ergue uma coluna no alto da qual está a Imagem da Imaculada Conceição, construída no tempo de Pio IX para celebrar a promulgação do dogma da Imaculada Conceição.

Em outra foto, vemos uma das coisas mais bonitas que conheci em minha vida: a Praça do Campidoglio, em Roma, no centro da qual se encontra uma estátua do Imperador Marco Aurélio. Trata-se de uma réplica, pois a figura original estava se deteriorando por causa da poluição; então, fizeram esta cópia e puseram a escultura original numa sala, onde não sofresse a deterioração.

Três palácios circundam a praça: um ao fundo e dois frente a frente. Há um contraste agradabilíssimo entre esses palácios, pois o do fundo, com um aspecto completamente distinto dos outros, forma uma dissonância harmônica com a perfeita identidade dos dois palácios laterais.

Considerando este palácio do fundo, vemos como ele é de uma altura muito formosa. A proporção das janelas e das portas é também muito bonita. O palácio é de uma cor um tanto avermelhada e tem no alto uma balaustrada branca. Ao fundo vê-se uma torre e um relógio.

Considerem a distinção e — eu não recuo diante da palavra — a majestade multissecular desse palácio! É uma verdadeira beleza, e pode-se ficar aqui horas contemplando.

Vejam os bonitos desenhos do chão, a aplicação de pedra sobre pedra, sem o que esse espaço, permanecendo de uma só cor, ficaria vazio e a harmonia da praça desapareceria.

Chamo a atenção para o fato de que, por toda parte, o europeu se empenha em plantar bonitas árvores e colocar fontes, o que não é tão frequente encontrarmos em grandes cidades brasileiras, como São Paulo, por exemplo.

Síntese entre a cidade e o mato

Por que faço comparações como essa? Não é antipático? Não se diria que essas comparações, necessariamente desfavoráveis a nós, melhor seria que não fossem feitas? Quem levantasse tal objeção diria uma coisa caracteristicamente desprovida de inteligência, porque a pessoa criteriosa quer conhecer os seus defeitos para corrigi-los. E se foram cometidos erros no urbanismo de São Paulo, como no de outras grandes cidades do Brasil, é preciso conhecê-los e criar um estado de espírito por onde esses erros não se repitam.

Assim, a perpétua linha reta que não acaba mais; a ausência de arborização, ou uma arborização raquítica, pobre, retorcida, que se prefere nem ver, são defeitos gravíssimos que a cidade apresenta, e contra os quais quase ninguém faz objeções, porque não há muita apetência de nosso povo por essas coisas.

Talvez isto se deva, um pouco, à fobia do mato, própria ao desbravador. Este chega onde há mato e tem uma enorme vontade de estar na cidade; então procura, dentro do mato, construir a cidade. E como, segundo uma concepção simplista, o mato é o contrário da cidade, a primeira providência para urbanizar é derrubar as árvores. Ora, é propriamente uma síntese entre a cidade e o mato que convém fazer! As grandes capitais da Europa são construídas com essa ideia.            v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/11/1988)

Revista Dr Plinio 218 (Maio de 2016)

Castidade e coragem

O homem casto é forte e corajoso. Mas aquele que brinca com a tentação, começa a subir em seu interior — turva, mole, viscosa — a sensualidade, e ele cai. Essa queda introduz nele uma moleza, que o conduzirá à covardia na hora do perigo.

 

A Ordem do Templo nasceu em Jerusalém, em 1118, do desejo de um piedoso cavaleiro de Champagne, Hugues de Payens, a fim de proporcionar ajuda e proteção aos peregrinos que afluíam de toda a Europa para o Santo Sepulcro de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Os “Pobres Cavaleiros de Cristo”

A primeira Cruzada não lhes abriu caminho de facilidades. Eles eram continuamente atacados pelos turcos, destroçados, extorquidos, escravizados ou mortos. Os cruzados que se estabeleceram no país constituíram, no próprio reino franco do Oriente, colônias que era necessário proteger. Faltava-lhes uma proteção armada, porque as tropas do reino franco não eram suficientes.

Foi com essa intenção que Hugues de Payens congregou um punhado de homens. Não eram mais do que nove no início, dos quais não conhecemos os nomes, e que se agruparam sob o título de “Pobres Cavaleiros de Cristo”. Foi por causa deles que se reuniu, em 1128, o Concílio de Troyes, onde os “Pobres Cavaleiros de Cristo” receberam de São Bernardo, na presença do Legado Pontifício, de dois arcebispos e dez bispos, suas cartas de Cavalaria.

O novo Rei de Jerusalém, Balduíno II, os alojou em seu palácio, perto do Templo de Salomão, de onde o seu nome. Com suas cartas de Cavalaria, eles recebiam também sua Regra, pois se comprometeram pelos votos a observar a pobreza, a obediência e a castidade, sem a qual não teria existido a Ordem do Templo. “Castidade é a segurança da coragem”, lê-se na Regra.

Não citarei senão a página(1) que me pareceu mais bela, porque ela contém toda a renúncia que a Ordem exigia e a grandeza que ela dava em troca. Os que desejassem ser cavaleiros, no dia em que seriam revestidos, viam entreabrir-se diante deles a porta do Templo.

Eis um trecho da Regra:

Vós renunciareis — dizia-lhes o mestre — a vossas próprias vontades e ao serviço do rei, pela salvação de vossas almas e para rezar, segundo o estabelecido pelas regras e o costume dos mestres reconhecidos na cidade santa de Jerusalém. Em troca, Deus será vosso, se prometeis desprezar o mundo enganador, pelo amor eterno de Deus, e desprezar todos os tormentos de vossos corações. Fartos pelo alimento de Deus, embriagados pelos mandamentos de Nosso Senhor, não recearemos ir à batalha, pois é ir em direção à coroa.

Coragem: firmeza de princípios e o ardor de ideais

Destacamos deste histórico alguns pensamentos, dos quais o primeiro é este: “A castidade é a segurança da coragem”. O que está afirmado aqui é que o homem casto tem uma força e coragem que o homem não casto não possui.

Quase se diria que isso é mentira, porque o mundo de hoje costuma afirmar e proclamar o oposto: que o homem casto é medroso, enquanto, pelo contrário, o que não tem pureza atira-se a todas as aventuras e por essa razão é propriamente o homem forte. Então, trata-se de provar que essa segunda opinião — que é a opinião pagã — é falsa, e que a primeira é a verdadeira.

Como se prova que a primeira opinião é a verdadeira? A prova é simples. O que vem a ser, em última análise, a coragem? É a firmeza de princípios e o ardor de ideais pelos quais nós freamos o medo e sacrificamos nossa integridade física, nossa vida, e corremos qualquer outro perigo, de ordem intelectual ou moral, em benefício de nossos ideais.

Em termos mais simples: se uma pessoa tem um determinado ideal, com princípios bastante firmes para estar convencida dele de fato, e o tem como verdadeiro, ela possui uma vontade ardorosa, por onde ama esse ideal mais do que sua própria vida. Se isso se dá, na hora em que a pessoa sentir medo de ser morta, ferida, caluniada, desprezada, perseguida, etc., ela é capaz de frear esse medo em holocausto a seus ideais.

Quer dizer, fundamentalmente, a coragem se define como uma firmeza no pensar, no querer, no frear.

A castidade é por excelência uma firmeza; a impureza, uma covardia

Ora, a castidade é por excelência uma firmeza. É exatamente aquele alto grau de firmeza e de coragem por onde, quando está convicto de que deve ser puro, o homem compreende a beleza e a nobreza incomparáveis do ideal de pureza. Quando ele compreende ser essa a vontade de Deus, e que assim deve ser; quando tem amor a essa pureza por amor à vontade do Criador, ainda que seja tentado, ele recusa a sugestão da tentação e se mantém puro. O ato de fidelidade na pureza é, por definição e na sua substância, um ato de coragem. De maneira que o puro é um corajoso, o corajoso é um puro. As duas coisas são reversíveis como uma parte num todo e um todo na parte.

Pelo contrário, imaginemos o indivíduo que cede aos instintos da carne. Aparece a ocasião, ele fica aliciado por aquilo; embora sua consciência lhe diga que é mau, e na sua vontade haja algo que rejeita aquilo, ele começa a brincar com a tentação: pensa, não pensa; olha, não olha; aceita, não aceita. Começa, então, a subir dentro dele — turva, mole, viscosa por natureza e por definição — a sensualidade. Finalmente ele cai. Essa queda não prepara nele uma moleza? E essa moleza não preparará outra moleza na hora do perigo? É evidente que sim.

De maneira que o homem puro é o verdadeiro corajoso. O homem impuro tem na impureza um fator para não ser corajoso, um elemento de covardia, de medo.

Alguém dirá: nós vemos na História legiões inteiras de homens impuros que se portam com muita coragem.

Quando constatamos, numa narração histórica, por exemplo, que mil, dois mil maometanos se atiraram contra católicos para derrotá-los, é bem verdade que os mouros avançam com verdadeira coragem? São fanáticos. Eles avançam num torvelinho de indignação e de fúria que, de momento, sobe neles. São naturalmente muito inflamáveis.

Mas quando passa o ímpeto, aquele impulso, e começa a reflexão, então é a hora da coragem. Porque não é verdadeira coragem a do indivíduo que ataca cego de furor, sem medir sequer seus atos. Esse é um estourado, um louco, que perdeu o senso de conservação, um imbecil, não um corajoso. Ele faz isso como qualquer briguento na rua poderia fazer; como um bêbado, por exemplo, pode provocar alguém e até arriscar a vida. Mas não é a verdadeira coragem, que consiste em uma diretriz, um freio, uma norma. É apenas um extravasamento irregular e inconstante, como todos os extravasamentos.

Essa é uma das razões pelas quais, nas guerras da Reconquista, os católicos de Portugal e da Espanha acabaram vencendo os mouros: exatamente porque eram puros e corajosos. Os mouros eram muito mais numerosos; os nossos tiveram, durante quase todo o tempo, tropas muito superiores para enfrentar. E os maometanos foram recuando porque vinham naquele furor, mas se não quebrassem o ímpeto do católico fugiam. Eles não tinham o estofo necessário para uma prolongada resistência.

A castidade é uma dedicação…

Outro objetará: “Mas eu conheço muitos puros que são medrosos”.

Isso pode acontecer. É um puro que não levou a sua pureza até às últimas consequências. Porém, de si, a pureza tende a fazer do homem um corajoso. O mesmo homem que tem uma coragem igual a cinco e é puro, se fosse inteiramente puro teria uma coragem igual a dez; e se ele fosse impuro, teria uma coragem igual a zero. De si, uma virtude convida a outra.

Portanto, a Regra dos Templários dizia uma coisa perfeitamente verdadeira: a pureza é a guarda da coragem. O verdadeiro cavaleiro tem de ser casto.

Isso tem uma aplicação eminente para nós, porque se desejamos ser verdadeiros cavaleiros, se queremos enfrentar todos os riscos inerentes a quem se mete na nossa grande luta pela Civilização Cristã, devemos ser castos e puros. Precisamos recear não termos a inteira coragem por não possuirmos a plena castidade.

Ademais, Deus abençoa o varão casto e está com ele. O auxílio para o varão casto em toda espécie de luta é a proteção de Deus, que ama o casto de modo especial.

Da castidade não há louvor que não se possa fazer. Ela é por excelência uma dedicação, porque um homem verdadeiramente casto renuncia a uma porção de coisas a fim de viver para um ideal mais alto. Um ideal que tem isso de específico: não nos dá recompensas na Terra, mas sim no Céu, e por isso é o auge da dedicação voltada propriamente para Deus, porque o ideal católico é o mais puro, o mais próximo reflexo de Deus.

…e uma grandeza por excelência

A castidade é uma grandeza? A meu ver, é a grandeza por excelência. Entre um rei não casto e o último lixeiro casto, é mais o lixeiro casto do que o rei não casto.

É a virtude que acentua mais no homem a nota espiritual. Ora, como o homem é espírito e matéria, e a grandeza dele consiste principalmente no espírito, quanto mais ele for puro, mais nele o fator espírito domina e mais ele se eleva com a verdadeira e pura grandeza do homem. A castidade é, portanto, uma grandeza.

Outro ensinamento que haurimos do trecho lido acima está expresso nesta ideia: se o Templário se dedica inteiramente, receberá como prêmio a grandeza.

O mundo pensa o contrário: aqueles que se dedicam são pequenos; grandes são aqueles que recebem a dedicação. Por exemplo, um discípulo que se dedica ao seu mestre. O discípulo é menor do que o mestre. Então, é desprezível ser dedicado, e extraordinário ser objeto de uma dedicação. O homem verdadeiramente grande não se dedica, ele desperta dedicação. A imagem do ditador é esta: um homem levando atrás de si milhares que se dedicam a ele, mas ele não se dedica a ninguém.

A Doutrina Católica ensina o contrário. A razão de ser dos grandes está em serem dedicados, pois sem a dedicação não existe verdadeira grandeza. Todo homem constituído numa situação elevada, seja qual for, está posto ali para se dedicar. Ele é o pai, o pastor e deve, portanto, dar a sua vida por todos. Precisa exercer todos os seus atos para o bem daqueles em quem ele manda. Ele não foi feito para tirar vantagens do cargo, mas para servir. Foi o que disse Nosso Senhor: “O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar sua vida como resgate por muitos” (Mt 20, 28).

Admiração e grandeza

Esta verdade tem, à maneira de uma medalha, o seu reverso: Aquele que é pequeno e serve com satisfação recebe a grandeza.

Admirar consiste em olhar para algo com entusiasmo, entendendo a grandeza daquilo e amando-a. Quando compreendemos e amamos a grandeza de alguém, tendemos normalmente a nos dedicar a ele, a servi-lo. Portanto, as almas capazes de admirar são também capazes de se dedicar e de servir.

A admiração é a porta de toda grandeza e é impossível eu admirar algo sem que a grandeza daquilo que admirei, de algum modo, penetre em mim. Por isso, a grandeza é dada aos que admiram e se dedicam ao objeto de sua admiração. Aqueles que são grandes, esses devem ser dedicados. Neste sentido poder-se-ia interpretar o versículo do Magnificat que diz “Depôs os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes” (Lc 1, 52) como um convite feito aos poderosos para descerem de sua sede e servirem os pequenos; e a estes a se elevarem pela admiração e se encherem da grandeza dos poderosos. Temos, assim, a admirável harmonia do universo, onde grandes e pequenos coexistem uns para os outros, segundo a Doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Isso deve incutir em nós uma admiração cada vez maior pela Civilização Cristã com sua ordem, sua sabedoria profunda, sua harmonia extraordinária, seu espírito intrínseca e substancialmente anti-igualitário, que nos mostra a desigualdade como uma coisa digna de amor, de entusiasmo.

De outro lado, deve nos inspirar a ideia de que a Civilização Cristã, tão alta e extraordinária, precisa ser defendida com toda a coragem, e que essa coragem terão os puros.

“Bem-aventurados os puros de coração porque verão a Deus” (Mt 5, 8). Esses não verão a Deus apenas no Céu. Os puros têm o olhar límpido para ver, nesta Terra, a conformidade das coisas boas com Deus, e ser corajosos para lutar até a última gota de seu sangue em defesa daquilo que é segundo Deus.

Compreendemos melhor, assim, as molas profundas da coragem dos Templários. Esses cavaleiros, que na sua época de ouro foram extraordinários e serviram de muralha para a Civilização Cristã, definiram o tipo perfeito do cavaleiro católico.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/2/1973)

Revista Dr Plinio 218 (Maio de 2016)

 

1) Não temos indicação da obra na qual Dr. Plinio se baseou.

 

As maiores perspectivas históricas

As revelações de Fátima não são apenas um aviso de castigos vindouros, mas uma graça de Nossa Senhora com vistas a criar na Cristandade um determinado espírito característico dos verdadeiros Santos.

 

Hoje se comemora o aniversário da primeira aparição da Bem-aventurada Virgem Maria do Rosário de Fátima. Aparecendo várias vezes a três pastorinhos na Cova da Iria, a Virgem Santíssima, recomendando oração e penitência, predisse a perseguição que sofreriam os bons, os erros que a Rússia espalharia pelo mundo e o triunfo de seu Imaculado Coração.

Nos ambientes católicos, tristeza por causa dos progressos da Revolução

O pensamento mariano que está escolhido para o dia de hoje é: “Quão felizes aqueles que têm dentro do coração o amor de Maria e A servem fielmente!” É uma frase de São Boaventura. O Doutor Seráfico ressalta assim, mais uma vez, a importância da devoção a Nossa Senhora.

A respeito da festa de Nossa Senhora de Fátima haveria um comentário especial a fazer e que diz respeito ao seguinte:

Se considerarmos o ambiente eclesiástico próprio às igrejas constituídas segundo a Tradição, notamos, sobretudo se são de épocas posteriores ao início da Revolução, estarem elas impregnadas de uma certa tristeza.

Por exemplo, a Igreja do Coração de Jesus, em São Paulo é muito recolhida, elevada, serena, mas há nela certa nota de tristeza resignada. Assim também outras igrejas construídas no século XIX.

As músicas religiosas desse período, mesmo quando não se trata de música sacra propriamente dita – o cantochão ou o polifônico –, são sempre melodias impregnadas dessa nota de uma tristeza muito temperante, digna, elevada, eu diria mesmo uma tristeza sobrenatural.

Essa tristeza decorre exatamente do ambiente de desolação e melancolia introduzido nos meios católicos pelos progressos da Revolução. A nota dominante do ambiente católico de então era de pesar, por causa do rumo que o mundo ia tomando, da maré montante dos pecados.

A devoção ao Sagrado Coração de Jesus e o maravilhoso corolário dela que é a devoção ao Imaculado Coração de Maria contribuíram muito para acentuar esta nota de tristeza. Porque em todas as suas revelações a Santa Margarida Maria Alacoque – depois tão repetidas e comentadas por todo o orbe católico, tão difundidas por essa imensa organização que foi o Apostolado da Oração –, o Sagrado Coração de Jesus Se apresentava triste, conturbado, lamentando as ofensas feitas pelos homens e pedindo que se rezasse a fim de evitar para o mundo grandes catástrofes.

Otimismo que fecha os olhos para a paixão da Igreja 

Essa nota de tristeza tornou-se ainda mais aguda nas aparições de Nossa Senhora. O maior ciclo de aparições marianas da História foi, sem dúvida, o das iniciadas no século XIX com La Salette e que terminaram no século XX com Fátima; ou, se preferirem, mais recentemente, com o milagre de Siracusa(1). Em todas essas manifestações, Maria Santíssima aparece chorando, lamentando, deplorando a maré montante das ofensas feitas pelos homens a Deus, e advertindo: convertam-se, façam penitência, mudem de vida, castigos enormes estão para vir.

Isso tudo repercutia numa tristeza, numa prostração nos ambientes de piedade que, muito digna e adequadamente associando-se à tristeza da Igreja, fazia como as santas mulheres que se uniam ao sofrimento de Nosso Senhor no alto da Cruz. Por essa razão, volto a dizer, uma atmosfera de tristeza impregnava essas igrejas antigas. Notei isso no Brasil, em igrejas da Europa, da Argentina, todas elas com uma nota de gravidade melancólica. 

O contrário disso é a atmosfera resultante de certas mudanças que introduziram nas cerimônias litúrgicas cançonetas representando uma alegria inexpressiva, a qual insinuava estar tudo indo muito bem: “Veja o progresso, o mundo, a evolução, como aquele “bon sauvage”(2) agora está se convertendo!” Quer dizer, um otimismo idiota que fecha os olhos para a paixão da Igreja, procura afirmar que ela não está sendo perseguida e que o mundo moderno não é construído contra a Esposa de Cristo e, portanto, não existe uma incompatibilidade entre ambos. Por causa disso, visa criar nos homens um horror à cruz, ao sofrimento, e uma verdadeira indiferença para com o pecado. Tudo é alegre e bem instalado no mundo.

Encontramos aqui uma das rejeições – não é a única – que o mundo moderno fez das revelações de Fátima.

Seriedade, objetividade, combatividade

Do ponto de vista temperamental, há um número enorme de pessoas com birra das revelações de Fátima porque elas abrem os olhos para uma realidade séria, mostram essa realidade como trágica até, preveem castigos e orientam os espíritos para a ideia do Coração de Jesus ultrajado, ofendido, do Imaculado Coração de Maria alanceado de dor pelos fatos que agora se presenciam, se patenteiam.

Por causa disso, convidando os fiéis à penitência, à reparação, à emenda da vida. Mantendo, portanto, aquele clima de seriedade e de tristeza grave e nobre, decorrente da época das revelações do Sagrado Coração de Jesus, e que era a atitude normal perante a Revolução, e contrária aos espíritos formados em ambientes relaxados nos quais a piada é cultivada como a única forma de espírito e de popularidade, onde se leva tudo dentro da brincadeira, trivialidade, superficialidade, sem prestar atenção em nada de sério, não querendo ver de frente nenhum problema, com um recuo constante diante da realidade objetiva para se poder levar uma vida divertida.

Evidentemente, as revelações de Fátima, opostas a esse espírito, encontram uma predisposição temperamental para serem recusadas e se aplaudir toda sabotagem que delas se faça. Porque o homem estulto, sem seriedade, sem elevação de espírito, que gosta de estar rindo sempre, tem que detestar as profecias e tudo quanto é sublime, nobre, elevado; precisa, portanto, ser favorável a que se fechem os olhos e os ouvidos a tudo quanto está escrito e dito a respeito das revelações de Fátima.

Vistas debaixo dessa luz, as revelações de Fátima não são apenas um aviso de castigos, mas uma tentativa, uma graça de Nossa Senhora que pretende criar na Cristandade um espírito de seriedade, de objetividade, de combatividade, como um meio para a regeneração do mundo, como quem considera que a humanidade não se regenera fora desse espírito, e que na perpétua piada, na contínua brincadeira, na despreocupação, na superficialidade crônica não pode haver salvação para o mundo.

Espírito contrarrevolucionário nobre, augusto e majestoso

É por isso que as mais altas perspectivas históricas se resumem nas revelações de Fátima e tocam francamente no sublime. Por que razão, por exemplo, Nossa Senhora apareceu ora com a indumentária própria a essa nova devoção, ora como sendo o Imaculado Coração de Maria, ora como Nossa Senhora do Carmo? Ela mostrou-Se como o Imaculado Coração, dando a entender bem o que era o reino do amor que Ela profetiza e vai realizar sobre a Terra. Portanto, uma profecia para os próximos acontecimentos, para o Reino d’Ela. Ela apareceu sob a invocação de Nossa Senhora do Carmo como uma evidente alusão ao Profeta Elias, fundador da Ordem do Carmo e primeiro grande servo e filho d’Ela, e que virá no fim do mundo para lutar ainda contra o Anticristo. Quer dizer, são as maiores perspectivas históricas que com isso se desvendam.

Então, precisamos tirar disso um fruto para nós. Não devemos ver nessas aparições apenas o aviso de um fato que se dará, mas a recomendação de um espírito, de uma posição psicológica, de uma atitude temperamental em conexão com esse aviso. A devoção à Virgem de Fátima é um convite para vivermos meditando, dia e noite, nas perspectivas enormes diante das quais atuamos em nosso apostolado, embora a trivialidade do mundo contemporâneo não tome isso em consideração; para não darmos importância a nada do que é terreno, meramente humano e nos preocuparmos exclusivamente com nossa vocação. Este é o convite que a festa de Nossa Senhora de Fátima significa para nós.

Alguém poderia pensar: “Eu estou em dia com Nossa Senhora de Fátima, porque acredito em tudo quanto Ela profetizou”.

A esse, eu teria vontade de dizer: “Meu caro, você poderá estar em dia enquanto acreditando, mas não está se não cultiva em sua alma a seriedade, a gravidade, a ruptura com este século corrupto de hoje, o espírito contrarrevolucionário, nobre, augusto, majestoso próprio àqueles que querem servir a Nossa Senhora na Contra-Revolução”.

Eis o que devemos pedir a Maria Santíssima neste dia: esta grande seriedade, grande elevação de alma que caracteriza todos os Santos e é a condição para que realmente nós estejamos à altura de nossa grande vocação.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/5/1966)

Revista Dr Plinio 230 (Maio de 2017)

 

1) Em 1953, na cidade de Siracusa, Itália, uma imagem de Maria Santíssima verteu lágrimas milagrosamente durante 75 horas. As análises bioquímicas comprovaram serem lágrimas de origem humana. Os bispos da Sicília reconheceram o milagre e autorizaram o culto à “Virgem das Lágrimas”.

2) Do francês: bom selvagem. Referência feita ao mito de Rousseau, segundo o qual o homem é bom em sua natureza, mas a civilização o corrompe.

A maior tentação da História

A Revolução da Sorbonne, iniciada em maio de 1968, proclamou a liberação de todos os instintos, ou seja, os homens possuem o direito de realizar toda espécie de mal, porque isso se dá em virtude dos impulsos que provêm da natureza afetada pelo pecado original. Com essa Revolução, a humanidade se encontra diante da tentação de abandonar toda ideia de ordem e de moral, que é a maior tentação da História. Nunca houve tentação mais radical, porque não é feita para um homem, e sim para todo o gênero humano. A máquina montada para que essa tentação seja eficaz é fantástica.

 

Quanto aos objetivos do movimento operário-estudantil eclodido na França, são eles, a um tempo, muito radicais e inteiramente imprecisos. Por mais que essas duas notas sejam contraditórias entre si, entretanto, elas coexistem.

“Civilização do instinto”

No caso concreto, o movimento é muito radical devido à transformação imensa que ele tem em vista e, por outro lado, pela radicalidade nos métodos empregados. Contudo, apesar de ser radical nos seus propósitos e métodos, não sabe bem o que quer. Está em desacordo com o partido comunista, querem algo diferente e muito mais radical do que esse partido.

Percebe-se que essa coisa desejada por esse movimento é um impulso e não uma convicção. Trata-se, assim, de um elemento que está germinando neles, cuja meta é a igualdade completa, mas que não se apresenta como uma convicção doutrinária. É um impulso que nasce com esta característica: universal, sacode a mocidade inteira. Surge, então, uma era histórica nova: o homem que renuncia à razão, à ascese e espera de um instinto a ordem de coisas futura.

Assim como um vulcão em erupção, por exemplo, sofre uma explosão que, entretanto, tem uma ordem interna, pois todos aqueles gases caminham na mesma direção; ou a detonação de uma bomba atômica, em forma de cogumelo, que também tem certa ordem interna, embora seja uma explosão, assim também os instintos soltos possuem certa ordem interna, que a nós – por obscurantismo, dizem os revolucionários – parece desordem, mas é verdadeira ordem.

Então nós temos a “civilização do instinto” – se é que se pode chamar civilização – a qual se opõe à moribunda civilização da razão, da inteligência e da vontade. Esta “civilização do instinto” é evidentemente a glorificação do pecado original.

Portanto, a revolução desses moços é um movimento instintivo que proclamará como filosofia básica da ordem de coisas, não um sistema doutrinário, mas o instinto: “Deixe que as apetências, os impulsos, os movimentos que estão latejando nesse tumor explodam, e daí escorrerá seu pus imundo, e ninguém o limpará. Daí nascerá uma infecção, e ninguém a combaterá”.

Não se pode fazer uma negação maior da verdade, nem uma revolução mais profunda do que essa.

Eles prometem uma situação que nós qualificamos de desordem caótica, mas eles consideram um sadio terremoto rumo à ordenação. É preciso libertar. Libertando o impulso alcançam uma ordem, mas que não é mais a nossa ordem. É a ordem deles…

Primeira gota de uma chuva que acabará sendo uma tempestade

Por ocasião dessa revolução anarquista em Paris, as notícias provenientes da Sorbonne eram as mais horríveis que se possam imaginar, apresentando aquilo como um antro de imoralidade, de sujeira, uma sordície. Essa era a primeira figura da revolução anárquica, mas evidentemente não podia ser a figura definitiva. Depois de se ter apresentado como um caos, ela haveria de começar a soltar o seu próprio segredo, que era a ideia nova, espantosa, única, de que de dentro do caos podia aparecer a ordem.

Precisamente quando atingido o total desse caos, nasce a ordem nova. Então, se ideias dessas se multiplicarem e se sucederem, veremos o burguês de hoje aterrorizado que se prepara para se distender com o seguinte raciocínio: “Nós não vamos para um caos tremendo, mas é um caos fecundo que gera uma ordem superior à que conhecemos. Rumemos para o abismo de olhos fechados, para o paraíso anárquico”.

Isso é, provavelmente, a primeira gota de uma chuva que virá, primeiro como um chuvisco, depois como torrente, e acabará sendo uma tempestade, uma coisa enorme.

A humanidade se encontra, assim, diante da tentação de abandonar toda ideia de ordem e moral, e proclamar o oposto da ordem e da moral; ou seja, está na presença da maior tentação da História. Nunca houve tentação mais radical, porque não é feita para um homem, e sim para todo o gênero humano. Por sua universalidade, ela é prodigiosa. A máquina montada para que essa tentação seja eficaz é fantástica. Esse movimento universal, estamos vendo, é o leviatã, propriamente o elemento de sedução, o demônio do meio-dia que aparece para tentar os homens.

Essa tentação é universal no seu pior sentido, porque engloba todas as tentações possíveis. Quem capitulou diante dela cometeu uma ação pecaminosa. Ela se põe na raiz de todos os pecados, pois comete pecado contra o Espírito Santo, o mais radical que pode haver. Então, por sua universalidade, seu poder e radicalismo, é a maior tentação da História.

Uma revolução satânica

Se uma pessoa proclama que todos os instintos estão soltos, ela prega o direito a se realizar toda espécie de mal, porque isso se dá em virtude dos impulsos que provêm da natureza afetada pelo pecado original. Proclama-se, assim, que a razão e a vontade não têm mais o que fazer, e com isso procura-se cortar a raiz última de toda a moralidade.

Sem dúvida, se uma pessoa se deixa tentar por isso, tudo quanto há nela de ruim corre naquela direção e ela, portanto, é tomada inteiramente por esse pecado. Porque afirmar não haver bem nem mal é um pecado imenso, no qual estão contidos todos os outros pecados que o homem possa cometer.

Mas se essa é a maior tentação natural da História, é também a maior tentação preternatural da História. O Inferno inteiro está trabalhando para que aquilo chegue ao estado de pecado total. A partir do momento em que esse estado de pecado global esteja generalizado, eu pergunto: que obstáculo pode haver para o demônio se manifestar?

Portanto, isso traz consigo o prenúncio de uma invasão diabólica, de um reino de violência, porque gente assim quer reinar pela violência. Uma violência omnímoda, recíproca, geral, sob o sopro de um leviatã, de uma espécie de monstro que se agiganta e tenta devorar o universo para levá-lo à pior forma de mal possível. Quer dizer, essa é uma revolução satânica.

É uma “ordem” já preternatural, dentro da qual depois poderá haver outros paroxismos. É o clarim do reino do demônio.

Historicamente falando, com a Revolução da Sorbonne um meridiano foi transposto. Essas coisas que eram venenos imundos cultivados em pequenos cenáculos universitários, e que não saíam à rua, arrancaram a máscara, criando uma dessas situações irreversíveis à proclamação do reino do demônio. Porque o reino do instinto é o reino do pecado; e o reino do pecado é o reino do demônio.

Comunismo anárquico

Evidentemente, não se trata de afirmar que os instintos humanos são um mal em si. Desde que se deixem governar pela razão esclarecida pela Fé e pela vontade confirmada e fortalecida pela graça, os instintos são auxiliares preciosos do homem.

No caso dessa Revolução, quando se fala do instinto, entende-se o instinto desgovernado que sucumbiu habitualmente, e não uma vez ou outra, à pressão das tentações, tomando o hábito inveterado de viver no pecado.

Pode até acontecer como na maré montante: ela sobe, desce um pouco, depois vem outro vagalhão, sobe mais… Embora haja o vaivém da maré, trata-se de uma maré montante.

Um otimista, a cada retrocesso da maré, dirá: “Olha lá! Eu já estava vendo, isso está diminuindo”. Depois, quando a maré avança mais, ele diz: “Não é desta vez…” Até que a maré tenha acabado de subir e tomado conta de tudo. Assim também, esse arrancar de máscara proclamando o reino do demônio é irreversível.

A agitação universitária na França foi uma espécie de chama na qual culminou uma série de agitações anteriores, e que parecia propagá-las para o mundo inteiro. Na França, a revolução universitária caiu e se espatifou, e mais ou menos por toda parte ela começou a ficar no vácuo, a viver isolada. Entretanto, artificial como seja, ela continua a ser mantida e, por toda parte, vai crepitando de um comunismo que não visa mais um estado ditatorial arqui-organizado, que seria a ditadura do proletariado, mas uma ordem de coisas anárquica ainda misteriosa, a qual pressupõe uma transformação do homem também misteriosa, e que é a grande incógnita do mundo moderno.

Os teóricos do comunismo sempre afirmaram que o ponto terminal do processo – até onde chegava o horizonte deles – era a anarquia; e que a ditadura do proletariado era uma situação intermediária para chegar até essa anarquia.

O advento de um comunismo anárquico como força mais nova, mais dinâmica do que o comunismo ditatorial, burocrático, organizado, representa exatamente a aurora do fim do processo, devorando a penúltima etapa, como sempre acontece nesse processo: assim como a república comunista devorou a república burguesa, e esta já havia devorado a monarquia constitucional, o comunismo anárquico devora o comunismo estatal, organizado.

Nós temos, portanto, o alvorecer de uma era que começa já a se delinear, apontada como sendo da mocidade de amanhã.

Super-tirania num mundo tribalizado

Todos os acontecimentos estão centrados sobre esse plano de fazer vencer o comunismo anárquico, a proclamação da república universal não como um super-Estado, mas uma situação de coisas que é a fraternidade universal anárquica, sonhada como o fim do horizonte do mundo revolucionário. Vemos que tudo tem que correr para favorecer isto.

Não se trata mais de um Estado, e sim de uma super-tirania sobre tribos num mundo tribalizado, exercida por meios inteiramente desconhecidos, mas já não burocráticos e estatais. O mundo da economia, das universidades, da técnica, da organização e da ciência será desfeito para criar uma economia primária num estado anárquico.

A economia hoje existente é o fruto das universidades, com sua técnica, sua organização, sua ciência, produzindo homens capazes de tomar a produção econômica do mundo, racionalizá-la e montar uma máquina que se poderia chamar a indústria universal e o comércio universal.

A partir do momento em que a universidade se anarquize e tudo isso deixe de existir, tem que haver uma catástrofe da economia burocratizada e de uma sociedade desigual para passar para a economia primária do Estado anárquico, de uma “ordem” de coisas anárquica. Evidentemente, a agitação da Sorbonne é um primeiro estalido nesse sentido.

Na esperança dos evolucionistas está a possibilidade de uma “ordem” de coisas, onde haja um fator que permita a ilusão de que o desregramento dos instintos possibilite uma vida feliz nesta Terra.

Seria a ideia exatamente de uma “ordem” de coisas completamente anárquica, laica, sem sacralidade nenhuma, na qual, a título de religião, haveria uma religiosidade imanente, inteiramente desalienada, em que os homens viveriam numa sarabanda completa.

No outro extremo, o segredo de Maria

No extremo oposto nós temos o segredo de Maria. A esse respeito as coisas são muito misteriosas também. Lê-se em São Luís Grignion de Montfort que ele fala desse mistério, mas não o explica inteiramente.

A meu ver é uma forma mais generosa, mais ampla, muito mais fecunda de Nossa Senhora atuar nas almas do que anteriormente. De nenhum modo diminui o livre-arbítrio, mas o aumenta, porque o homem, quanto mais é assistido pela graça, mais livre é.

É uma coisa imponderável, mas a nossos olhos isso não nasceu ainda, ou surgiu de um modo tão incerto, tão indeciso, que um verdadeiro enlevo por Nossa Senhora nós ainda não temos. Ora, quando a devoção à Santíssima Virgem não é nessa base, não é completa; pode estar cheia de toda a Teologia que queiram, mas não é a perfeita devoção a Nossa Senhora.

É a mesma coisa que alguém viesse me dizer: “Eu conheço muito bem, segundo o direito natural, o que é uma mãe. E, portanto, trato bem a minha”. Assim não vai! Ou ele trata a mãe dele com um mundo de confiança, de ternura, com a certeza cega da bondade dela para com ele, um desejo, portanto, de servi-la por amor, ou a coisa não está feita.

Bondade e severidade sábia de Dona Lucilia

De tudo quanto minha mãe me legou, as duas coisas mais preciosas que conheço na ordem moral foram exatamente, de um lado, a bondade e, de outro, a severidade sábia. Mamãe era tão bondosa que eu não saberia dizer. Inclusive na hora de perdoar-me naquilo em que eu andava mal, era de uma indulgência, de uma suavidade… E nunca fazia uma reclamação porque algo tinha atingido a ela. Jamais entrava reivindicação de um direito dela.

Dona Lucilia possuía a cultura de uma senhora de antigamente e, embora pudesse às vezes não explicitar bem um princípio, tinha os princípios no espírito. Nunca o pito dela era por uma irritação pessoal, mas sempre por um princípio ofendido, inclusive o da autoridade materna. Porém, sempre com tanta bondade e com tanto perdão, tanta paciência no que dizia respeito a ela…! O que se fizesse a ela de pior, eu, em menino, ou que outras pessoas lhe faziam de horrível e que eu presenciava, enquanto algo que a atingia, ela engolia quietinha e não dizia uma palavra.

Como me lembro dos pitos dela… Que seriedade no olhar, que compenetração! Tratava-se de fazer prevalecer um princípio.

Havia em mamãe a convicção de que se eu não conformasse minha vida com aqueles princípios, para ela eu valeria muito menos; e ela mais via em mim o filho que precisava amar os princípios, do que o filho que deveria querer bem a ela.

Quanta sabedoria no que ela dizia! Que voz grave! Ao mesmo tempo a bondade não estava ausente.

A intransigência dela comigo chegava a este ponto: Certa vez, voltei do Colégio São Luís, da festa de distribuição de prêmios, com quatro medalhas no peito. Os meninos vinham à rua com medalhas, naqueles tempos ingênuos. Ainda me lembro, com roupa de marinheiro, e com quatro medalhas no peito.

Mamãe abriu a porta e me agradou, foi uma alegria.

No ano seguinte voltei com três medalhas. Ela abriu a porta, olhou e disse:

– Só três? Como é que você decaiu? Que aconteceu para você decair?

Mas isso misturado com tanto afeto, que posso dizer que me foi uma preparação para compreender o que é a misericórdia de Nossa Senhora.

Dou essas reminiscências para exemplificar um pouco o que estou pensando. Não sinto que nossa devoção à Santíssima Virgem seja inteiramente assim.

Então, voltando ao tema da revolução anárquica, vem-me a ideia de que haverá uma possessão do demônio, mas também uma influência de Nossa Senhora muito maior do que existe hoje em dia; e nós somos a larva que se vai arrastando no chão até o momento em que Maria Santíssima resolva nos transformar em crisálidas.     v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 3, 15 e 18/6/1968, 11/12/1968, 21/4/ 1969)

Revista Dr Plinio 242 (Maio de 2018)

A Igreja e a Contra-Revolução

Visando a completa subversão da ordem temporal e espiritual, a Revolução tem por seu grande alvo a Igreja, fundamento último de tais ordens. Por isso mesmo, a Esposa Mística de Cristo deve ser considerada a alma da Contra-Revolução, a força primeira que conduzirá esta à vitória e à edificação de uma nova Cristandade. Esclarecimentos de Dr. Plinio.

 

Como o embate Revolução e Contra-Revolução se enquadra na história da Igreja?

“A Revolução e a Contra‑Revolução são episódios importantíssimos da História da Igreja, pois constituem o próprio drama da apostasia e da conversão do Ocidente cristão. Mas, enfim, são meros episódios.”

Missão mais ampla e muito acima do confronto R-CR

“A missão da Igreja não se estende só ao Ocidente, nem se circunscreve cronologicamente na duração do processo revolucionário. “Alios ego vidi ventos; alias prospexi animo procellas”(1), poderia Ela dizer ufana e tranqüila em meio às tormentas por que passa hoje. A Igreja já lutou em outras terras, com adversários oriundos de outras gentes, e por certo enfrentará ainda, até o fim dos tempos, problemas e inimigos bem diversos dos de hoje.” (pp. 144-145)

Qual é o objetivo da Igreja?

“Seu objetivo consiste em exercer seu poder espiritual direto e seu poder temporal indireto, para a salvação das almas. A Revolução foi um obstáculo que se levantou contra o exercício dessa missão. A luta contra tal obstáculo concreto, entre tantos outros, não é para a Igreja senão um meio circunscrito às dimensões do obstáculo — meio importantíssimo, é claro, mas simples meio.

“Assim, ainda que a Revolução não existisse, a Igreja faria tudo quanto faz para a salvação das almas.” (p. 145).

Cite um exemplo histórico para esclarecer esse tema.

“Poderemos elucidar o assunto se compararmos a posição da Igreja, em face à Revolução e à Contra‑Revolução, com a de uma nação em guerra.

“Quando Aníbal(2) estava às portas de Roma, foi necessário levantar e dirigir contra ele todas as forças da República. Era uma reação vital contra o potentíssimo e quase vitorioso adversário. Roma era apenas a reação a Aníbal? Como pretendê‑lo?

“Igualmente absurdo seria imaginar que a Igreja é só a Contra‑Revolução.” (pp. 145-146)

Grande interesse no esmagamento da Revolução

Considerando a situação da Igreja, a Contra-Revolução deve salvá-la?

“Cumpre esclarecer que a Contra‑Revolução não é destinada a salvar a Esposa de Cristo. Apoiada na promessa de seu Fundador, não precisa Esta dos homens para sobreviver.

“Pelo contrário, a Igreja é que dá vida à Contra‑Revolução, que, sem Ela, nem seria exequível, nem sequer concebível.

“A Contra‑Revolução quer concorrer para que se salvem tantas almas ameaçadas pela Revolução, e para que se afastem os cataclismos que ameaçam a sociedade temporal. E para isto deve apoiar‑se na Igreja, e humildemente servi‑La, em lugar de imaginar orgulhosamente que A salva.” (p. 146).

A derrota da Revolução será útil para a Igreja?

“Se a Revolução existe, se ela é o que é, está na missão da Igreja, é do interesse da salvação das almas, é capital para a maior glória de Deus que a Revolução seja esmagada.” (p. 146).

Exaltação da Igreja: objetivo primeiro da Contra-Revolução

Portanto, a Igreja é uma força fundamentalmente contra-revolucionária?

“Tomado o vocábulo Revolução no sentido que lhe damos, a epígrafe é conclusão óbvia do que dissemos acima. Afirmar o contrário seria dizer que a Igreja não cumpre sua missão.” (p. 147).

A Igreja é a maior das forças contra-revolucionárias?

“A primazia da Igreja entre as forças contra‑revolucionárias é óbvia, se considerarmos o número dos católicos, sua unidade, sua influência no mundo. Mas esta legítima consideração de recursos naturais tem uma importância muito secundária. A verdadeira força da Igreja está em ser o Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo.” (p. 147).

Qual o ideal da Contra-Revolução?

É exaltar a Santa Igreja. “Se a Revolução é o contrário da Igreja, é impossível odiar a Revolução (considerada globalmente, e não em algum aspecto isolado) e combatê‑la, sem, “ipso facto” ter por ideal a exaltação da Igreja.” (p. 148) (3). v

 

1 ) “Vi outros ventos; divisei com coragem outras tempestades” (Cícero, Familiares, 12, 25, 5).

2 ) General cartaginês (247-183 a.C.).

3 ) Editora Retornarei, São Paulo, 2002.

Consonância e saudade…

Determinadas coisas há nesta vida as quais, quando vistas pelo homem, estabelecem com ele uma tão intensa consonância que permanecem para sempre vincadas no espírito e na lembrança de quem as contemplou.

Para lançar mão de um exemplo pessoal, recordo-me das ocasiões em que admirei certos castelos de Portugal, algo semelhantes aos de Espanha, e senti vivíssima consonância com aquelas belas expressões da alma lusitana. Falando-nos ao mesmo tempo de força e dignidade, sobranceria e arrojo, coragem e proteção, audácia e solidez. Tudo isso me causou impressão extraordinária, como se eu estivesse à procura de uma coisa bastante amada e desejada por mim, e que, encontrada, completou-me pela admiração que lhe votei.

Resultado: vez por outra, vem-me à memória a silhueta daquelas moles imponentes e bem assentadas nos seus alicerces de rocha e montanha.

Desse sentimento de consonância nasce a palavra portuguesa — e, portanto, brasileira —, intraduzível em outros idiomas: saudade…

Quando se tem saudade, é de algo com o qual estabelecemos muita consonância. Este não se encontra perto, e a sensação de afastamento é, naturalmente, penosa. Mas, sob certo ponto de vista, é também embebida de alegria. O castelo português está lá. Sei que poderei revê-lo a qualquer momento, se o permitirem minhas condições materiais. Enquanto não se verifica essa feliz circunstância, recordo-o em espírito, contemplo-o novamente na imaginação. Estamos distanciados, porém prelibamos continuamente o reencontro.

Esses sentimentos que se alternam constituem a harmonia e a graça da presença daqueles monumentos na minha vida afetiva e intelectual.

Corolário dessa verdade é o princípio superior de que, quando amamos a Santa Igreja e as obras de Deus, devemos sentir profunda consonância entre elas e nós. O que exprime a palavra “consonância”? É o som e o eco. O sino dobra e seu toque tem consonância com o eco por ele emitido; formam um todo.

Assim também, aquilo com o que sentimos consonância tece uma espécie de entrelaçamento especial com nossa alma, nos liga fortemente a quem ou ao que devemos amar. Antes e acima de tudo, a Santa Igreja Católica Apostólica Romana, a verdadeira Igreja do Deus verdadeiro. 

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 97 (Abril de 2006)

Como celebrar o mês de maio

Para ajudar nos a louvar devidamente a Mãe do Céu, no mês especialmente consagrado a Ela, Dr. Plinio nos sugere uma oração, diversas reflexões e uma conveniente atitude de alma.

 

Segundo a bela tradição católica, o mês de maio é dedicado a Nossa Senhora, e nada de mais próprio do que seus filhos e devotos festejarem-Na. É a ocasião de Lhe tributarem, de modo especial, toda a veneração, amor e carinho que lhes inunda o coração. É também a época de se solidarizarem de maneira mais profunda com Ela em suas apreensões de Mãe pela salvação das almas e pelo bem da Santa Igreja.

Provas de nosso amor

Para Lhe render essa homenagem, devemos começar por dizer a Nossa Senhora que reconhecemos ser Ela uma razão constante de alegria para os católicos, em todas as circunstâncias. Maria Santíssima é de tal maneira a “Causa nostrae laetitiae –  causa de nossa alegria”, como A invoca a Ladainha Lauretana -, que o foi até mesmo na mais triste das situações, ou seja, quando seu Divino Filho padeceu e morreu pela redenção do gênero humano. Durante a Paixão, a presença d’Ela era um elemento de alegria e de satisfação para nós.

Devemos compreender, além disso, que o nosso preito filial não pode consistir meramente em comemorar as alegrias que Nossa Senhora nos dá, mas tem de comportar igualmente a consideração do que Ela sente ao ver as almas em perigo, ao ver a imensidão dos pecados que se alastram sobre a face da terra, ao ver filhos que Ela tanto ama, extraviados nos caminhos da perdição. Daí a nossa repulsa vigorosa ao mal que A entristece, e o nosso desejo de repará-La, e a seu adorável Filho, ser o termômetro de nossa entranhada veneração a Ela.

Pedir as graças que os outros recusam

Se, porventura, tomamos consciência de que esse nosso amor mariano é débil e fraco, devemos fazer um pedido a Nossa Senhora.

Por sua onipotente intercessão, a Santíssima Virgem faz chover de modo contínuo sobre o mundo graças de devoção e de fidelidade a Ela, assim como graças de repúdio ao mal e às tentações do demônio. E, infelizmente, essas graças não são recolhidas nem correspondidas da maneira tão ampla como deveriam ser. Muitas delas caem em chão arenoso ou em pedras onde não desabrocham. Devemos, então, ser sensíveis a essa prodigalidade de dons celestiais, não permitir que se desperdicem, e dirigir a Nossa Senhora esta súplica:

“Ó minha Mãe, por vossa insondável misericórdia, concedei-me todas as graças que os outros não aproveitam. Enchei minha alma com as dádivas divinas que reservastes para terceiros e que foram recusadas. Desse modo, correspondendo eu, amparado por vosso maternal auxílio, poderei reparar em algo a tristeza que representa para Vós a visão dessa caudal de graças sem aproveitamento. E que assim, ao menos neste vosso mísero escravo, resplandeça o dom feito aos homens. Amém.”

É uma prece a ser feita em todos os dias do mês de maio, por aqueles que se sentirem movidos interiormente a isso. Por exemplo, ao recebermos a Sagrada Eucaristia, expressemos a Nosso Senhor, por meio de sua Mãe Santíssima, o nosso desejo de que essas graças se recolham em nossa alma, que sejamos tochas ardentes de amor a Eles, e o receptáculo de todo espírito de incompatibilidade com o pecado e o mal, que devem caracterizar o verdadeiro católico.

Maria jamais nos abandona

Para aproveitarmos de modo útil o mês de maio, além de conservar essas intenções, seria interessante dedicar cada dia a alguma reflexão sobre Nossa Senhora, que alimente nosso Rosário e nossa piedade.

Nesse sentido, evoco aqui um fato passado numa antiga cidade polonesa, na ocasião em que estava sendo invadida por cruéis inimigos da religião católica.

Não podendo mais resistir, os habitantes fugiram, abandonando tudo. Ali vivia São Jacinto, digno filho de São Domingos de Gusmão e ardentíssimo devoto de Nossa Senhora. Antes de escapar dos agressores, foi se despedir da Padroeira da cidade, uma bela imagem da Virgem Santíssima, talhada em alabastro. Enquanto se recomendava a ela, ouviu-a distintamente murmurar: “E eu? Tu me abandonas? Leva-me contigo!”

O santo não sabia o que fazer. A imagem era muito pesada, não a podia carregar sozinho. Porém, apenas a tentou tomar em seus braços, sentiu-a leve como uma pena. A imagem perdeu todo o seu peso, por um milagre da poderosíssima Mãe de Deus. Surpreso e admirado, São Jacinto a estreitou devotamente e tomou com ela o caminho da fuga.

Este episódio nos mostra como Nossa Senhora preza suas imagens, como se sente representada dignamente por elas, e como não deseja que se faça a elas o que não é respeitoso nem correto fazer a Ela mesma. Maria obrou um prodígio para que sua imagem fosse levada embora de um local onde provavelmente seria profanada pelos que ameaçavam a cidade.

Por outro lado, vemos como Nossa Senhora se compraz em nos acompanhar através de suas imagens, e quer que as imagens d’Ela nos acompanhem. E assim operou um verdadeiro milagre para que a Padroeira acompanhasse seus filhos ao longo do êxodo que se viram obrigados a empreender. Uma imagem de alabastro, pesadíssima, além de se fazer ouvir pelo santo, torna-se leve e facilmente transportável. É um modo de Nossa Senhora nos dar a entender como deseja estar presente no meio de seus filhos.

Que aplicação colhermos desse fato para a nossa vida cotidiana?

Manifestando esse desejo de que suas imagens sejam de seus filhos, Nossa Senhora quer fazer notar quanto nos acompanha em todas as vicissitudes e em todas as circunstâncias de nossa existência. Se um símbolo d’Ela não nos abandona, quanto menos nos abandonará a própria Simbolizada!

Quer dizer, em qualquer situação em que estejamos, em todas as latitudes, em todas as longitudes, nas maiores elevações como também nos períodos mais tristes de nossa vida espiritual, há um olhar de Nossa Senhora que nos segue. Há uma proteção e uma providência particular de Maria Santíssima que nunca nos perde de vista e jamais nos abandona.

E essa certeza nos deve dar exatamente uma sensação de tranqüilidade em relação às vicissitudes desta vida. E o pensamento que deve nortear nossos dias, especialmente ao longo do mês de maio, é este: Nossa Senhora é minha Mãe e não me deixará sozinho. Ela nunca desvia de mim seu olhar maternal, sobretudo naqueles momentos em que tanto preciso das graças que Ela alcança, para progredir ou para não regredir na minha piedade, ou para qualquer outra necessidade, seja espiritual, seja temporal.

Cumpre insistir, a Virgem jamais nos desampara. Pois se uma imagem de alabastro – que, afinal, não é senão alabastro – vai ao encalço dos devotos dela, mais ainda velará Maria, em pessoa, por todos e cada um de seus filhos. Nossa Senhora irá ao meu encalço como a divina Pastora que Ela é. E posso ter, portanto, essa serenidade e essa segurança no transcurso de minha vida: a todo instante pairam sobre mim a proteção e o olhar de nossa Mãe Santíssima.

Mistérios e encantos do passado…

Atrás de majestosos portais, escadas que ao subir se perdem na penumbra, no mistério. A escadaria cambaia e meio inclinada, cujos degraus cansados e enfraquecidos certamente rangem quando neles se pisa, a escadaria que há muito não vê vassoura e não recebe o adorno de uma prestigiosa passadeira vermelha, fala entretanto de um passado longínquo, lamenta saudosas glórias.

Tem-se a impressão de que, a qualquer momento, durante a noite, Igrejas-palácios, palácios-igrejas que conservam restos de dignidade e pulcritude; casas “delabrées”, escalavradas pelas injúrias do tempo, mas cujos antigos esplendores ainda se ufanam de se manifestar. Paredes que perderam o revestimento, velhos tijolos aparentes, emoldurados por colunas e esculturas que lhes emprestam uma nota de seriedade, de gravidade e de nobreza.

descerão por ela num conciliábulo profundo as pessoas que aí viviam, para saírem correndo e tomarem gôndolas, depois de transmitida uma palavra de ordem e de executada uma conspiração.

Nas entradas dos canais, gôndolas vazias parecem dormitar à espera de tripulação, amarradas a estacas de formas incertas, fincadas no fundo do mar raso, à maneira de uma floresta de linhas e silhuetas que querem exprimir não se sabe o quê. No topo de algumas delas vêem-se lampadários de vidros policromados, cintilantes durante a noite para sinalizar que não esbarrem, porque ali estão algumas das gôndolas de Veneza!

E as cúpulas da gloriosa Catedral de São Marcos, encimadas por cruzes de uma fantasia magnífica, leves e poéticas a ponto de darem a impressão de que, ao bater o vento, seus adereços de metal começarão a se agitar e a tocar música pelos ares!

E o célebre Palácio dos Doges, com seu estilo ogival caracteristicamente veneziano, apoiado sobre um leve rendilhado de pedras que confere ao conjunto um efeito de agradável distensão. Ele é frágil, delicado, maravilhoso, e pode perdurar pelos séculos afora, do mesmo modo como tem se sustentado há centenas e centenas de anos, sem o menor perigo.

Veneza, um extraordinário exemplo dos mistérios, atrativos e encantos do passado…