Grandeza e bondade de Deus

Há belezas da natureza cuja formação desenrolou-se tão somente na presença de Deus, mas que eram destinadas por Ele para dar ao homem uma ideia do Céu, onde os legítimos anseios de grandeza, isolamento e convívio são plenamente atendidos.

 

Essa é uma lindíssima fotografia dos Alpes, tirada a partir de um avião. Talvez fosse interessante mostrar o contraste desse panorama com outros aos quais estamos habituados.

Grandeza e isolamento num píncaro nevado

Neva em pouquíssimos lugares do território brasileiro. Alguma coisa em Santa Catarina. Em Campos de Jordão não me consta que caia neve, mas de vez em quando forma-se uma espécie de geada muito grossa, a qual dá um pouco a impressão de neve.

Nessa fotografia temos caracterizada a paisagem coberta de neve, com toda a poesia e até magnificência que ela traz consigo.

Entretanto, confesso que o mais bonito do panorama, a meu ver, não é a neve, mas a configuração desse monte, com essa crista que chega bem no alto e, depois, levanta-se mais outra crista. O bloco onde está esse monte me sugere a ideia de uma fortaleza medieval. Nota-se ser ele cercado de uma muralha natural. Sua forma vagamente circular imita a de muitas fortalezas medievais. No centro da área fortificada se encontraria o castelo, e ali, como se fosse uma torre prodigiosa, esse outro píncaro mais alto.

O homem não pode olhar para uma paisagem como essa sem se imaginar a si próprio nesses píncaros, e que sensação ele teria se estivesse lá no alto. Se ele tivesse, por exemplo, meios financeiros e técnicos para construir uma fortificação naquele mais alto píncaro, o que sentiria? Tal pergunta não é a de um sonhador imbecil, mas é um modo de degustar melhor um panorama.

Esse homem teria a sensação de estar colocado no alto de uma grandeza colossal. Se possuísse um castelo cobrindo aquele píncaro, sentir-se-ia o castelão dos castelões, alguém que está numa altura fantástica a partir da qual ele domina, pelo olhar e pelo pensamento, tudo quanto de contemporâneo se desenvolve aos seus pés.

Mas ele sentiria, em compensação, um isolamento tremendo, porque a neve não é o seu “hábitat” natural. O homem não foi feito para viver na neve, e sim para morar em lugares onde de vez em quando neva. É verdade que os esquimós e outras populações conseguem viver num panorama nevado assim, mas em condições de vida inteiramente primitivas e com um desenvolvimento cultural dos mais elementares.

Céu: píncaro onde se unem as alegrias do isolamento e do convívio

A neve vista assim dá a impressão de um panorama no qual o homem está tão isolado como se estivesse na Lua, separado de seus contemporâneos, de todo mundo, incompreensível para todos, dominando tudo do alto, mas sofrendo daquilo que Deus diz no Gênesis, antes de criar Eva: “Não é bom que o homem esteja só” (Gn 2, 18). O isolamento, sobretudo quando é tornado mais imponente e esmagador pela grandeza, é uma coisa que pesa enormemente.

Um castelão morando nesse castelo imaginário, acompanhado apenas de dois ou três serviçais, vendo os dias se sucederem às noites e as noites aos dias, as tempestades de neve ou as nuvens que cercam de todos os lados, dando a impressão de o castelo estar voando, sentirá em determinadas horas um tal isolamento que poderá tornar-se angustiante.

Por outro lado, para quem não vive na neve, mas na trivialidade do dia a dia, há uma vontade de sair da banalidade, um desejo de voar para dentro dos horizontes da grandeza.

O ser humano é de maneira tal que, se tem elevação de alma e se encontra, por exemplo, na Praça do Patriarca no centro de São Paulo, vendo esse panorama, poderia pensar: “Mas como seria bom eu estar lá no alto!” Entretanto, quem estivesse no cume da montanha, se lhe mostrassem a Praça do Patriarca e lhe oferecessem descer, seria capaz de ter a fraqueza de dizer: “Então, vamos, porque lá é bem quentinho e gostosinho”.

Contudo, há um pouco de verdade em ambas as atitudes.

Considerando isso compreendemos melhor o Céu. Porque o Paraíso é de uma elevação, de uma altitude – não física, mas moral – incomparável. Mas, de outro lado, ali não se está só. O homem se encontra na presença d’Aquele que é sua finalidade, ele sente a companhia absoluta para a qual foi criado. Em presença de Deus ele está como que embriagado da alegria de ter contato e de conversar com Ele, Deus: infinitamente mais alto do que esse monte, mas ao mesmo tempo infinitamente mais condescendente, afável e amoroso do que as ideias que essa montanha sugere.

Ademais, no Céu a pessoa está inserida em toda a corte celeste, passa a ser príncipe dela. É a corte dos bem-aventurados, dos Santos e dos Anjos. Eles têm ali a felicidade completa que reúne as alegrias aparentemente contraditórias de fazer parte de uma multidão e de estar num píncaro sozinho. Ali se está no mais alto dos píncaros, cercado e num convívio idealmente afetuoso, respeitoso, amável, com a mais perfeita das multidões, que é a multidão imensa daqueles que se salvam.

Belezas que se desenrolaram aos olhos de Deus

Nessa outra fotografia vemos o céu azul, o dia límpido e podemos apreciar melhor a beleza, a magnificência dessa localização. Dir-se-ia que algo de semelhante aos contornos de uma fortaleza medieval ainda se torna mais claro do que na fotografia anterior, mas parecendo mais uma cratera de vulcão da qual saiu, em determinado momento, das entranhas mais quentes da terra uma matéria qualquer incandescente, levada por um jato enorme e que, quando chegou em cima, petrificou-se no frio e formou isso que vemos.

Não havia homens na Terra quando fatos geológicos assim deram origem aos panoramas que hoje existem. Mas que coisas lindas nessa ocasião se desenrolaram aos olhos de Deus! Através de paisagens como essa Ele nos faz suspeitar um pouco quais as belezas por Ele criadas antes de nós existirmos. Nesse sentido, quando milhares e milhares de anos antes dessas montanhas terem sido conhecidas pelo homem, Deus as modelou com a intenção principal de dar aos homens a oportunidade de fazer estas ou melhores reflexões a respeito da grandeza e da bondade d’Ele.               v

 

Plinio Correa de Oliveira, (Extraído de conferência de 21/12/1988)

 

Oração de uma esposa e mãe à Santíssima Virgem

Com particular elevação de espírito, colocava-se Dª Lucilia sob o amparo e proteção da Santíssima Virgem para o perfeito cumprimento de seus deveres de esposa e mãe. Pequeno testemunho de suas sublimes disposições nos dá esta oração, por ela copiada de próprio punho, numa época não muito posterior ao casamento. Habituou-se a rezá-la de memória, mantendo o manuscrito guardado em uma gaveta:

Oh! Maria, Virgem Puríssima e sem mácula, Casta Esposa de S. José, Mãe terníssima de Jesus, perfeito modelo das esposas e das mães, cheia de respeito e de confiança, a Vós recorro e com os sentimentos da veneração, a mais profunda, me prostro a vossos pés, e imploro o vosso socorro. Vede, oh Puríssima Maria, vede as minhas necessidades, e as da minha família, atendei aos desejos do meu coração, pois é ao vosso tão terno e tão bom, que os entrego.

Espero que, pela vossa intercessão, alcançarei de Jesus a graça de cumprir, como devo, as obrigações de esposa e de mãe. Alcançai-me o santo temor de Deus, o amor do trabalho e das boas obras, das coisas santas e da oração, a doçura, a paciência, a sabedoria, enfim todas as virtudes que o Apóstolo recomenda às mulheres cristãs, e que fazem a felicidade e ornamento das famílias.

Ensinai-me a honrar meu marido, como Vós honrastes a São José, e como a Igreja honra a Jesus Cristo; que ele ache em mim a esposa segundo o seu coração; que a união santa, que contraímos  sobre a terra, subsista eternamente no Céu. Protegei meu marido, dirigi-o no caminho do bem e da justiça; pois tão cara como a minha me é a sua felicidade.

Encomendo também ao vosso  materno coração os meus pobres filhos. Sede a sua Mãe, inclinai o seu coração à piedade; não permitais que se afastem do caminho da virtude, tornai-os felizes, e fazei com que depois da nossa morte se lembrem de seu pai e de sua mãe e roguem a Deus por eles; honrando a sua memória com as suas virtudes. Terna Mãe, tornai-os piedosos, caritativos e sempre bons cristãos; para que a  sua vida, cheia de boas obras, seja coroada por uma santa morte.

Fazei, oh Maria! com que um dia nos achemos reunidos no Céu, e ali possamos contemplar a vossa glória, celebrar os vossos benefícios, gozar de vosso amor e louvar eternamente o vosso amado Filho, Jesus Cristo, Senhor nosso. Amém.

Como os encantos do mar…

O mar… Objeto perpétuo de meu enlevo, meu encanto, meu entusiasmo! Eu seria capaz de passar uma  tarde inteira sozinho olhando para o mar, quieto, inteiramente entretido, sem nenhuma outra preocupação que me distraísse desse convívio com as águas do imenso oceano!

No mar sempre me chamou muito a atenção o fato de ele se apresentar variando entre dois pontos  extremos, com todas as gamas intermediárias. É agradável considerar tantas formas de belezas postas por Deus na Criação.

E a magnificência do Altíssimo se reflete de modo especial nessa capacidade que foi dada ao mar de passar do auge da serenidade para o auge da impetuosidade, através de etapas. Se, de repente, a sequência desse processo fosse bruscamente interrompida, saltando de um lado para outro, levaríamos um susto.

O ordenado e o bonito daquelas imensas ondas que avançam em ofensiva para a terra, sem se mostrarem descabeladas nem fazendo tumulto, evocam um ataque em regra de uma cavalaria nobre.

Já a maré montante de certos dias, que vai cobrindo a praia, tem seu esplendor próprio, lembrando uma “bataille rangée”, em fileiras.

É linda, igualmente, a variedade das ondas, porque às vezes algumas não chegam a rebentar: apenas formam aquelas eminências e vão adiante. Outras, pelo contrário, arrebentam e há um gáudio de gotas pelo ar que depois caem e seguem na sua ofensiva, detendo-se um pouco antes de atingir a praia, saltitando, porque vão se entranhar nas profundidades das areias, e terão de esperar um longo tempo até se tornarem água de novo. Elas então bailam pelo ar, jubilosamente, como guerreiros que, antes de desferir o ataque definitivo, entregam-se à dança da vitória.

Agrada-me também considerar o mar quando se acha calmo, quase imóvel. Dir-se-ia que está de tal maneira absorto na contemplação do firmamento, que nem pensa em si. De súbito, percebe-se que de um lugar qualquer virá uma surpresa. Algo começa a se mover, e dentro em pouco forma-se um vagalhão; é uma bagunça aquática, um assalto contra a terra em que os vários elementos do mar não vêm em “bataille rangée”, mas parecem se empurrarem uns aos outros para tomar a dianteira, a fim de conquistar a costa mais depressa. É o esplendor da variedade, do inesperado, do quase susto, do imprevisto, que tem seu encanto próprio. E a sucessão desses aspectos torna o mar muitíssimo entretido.

Esses diversos modos do movimento das águas têm “pulchrum”, porque é belo o mar. Se este fosse feio, suas variações também o seriam. Imagine-se um espetáculo em que aparecesse uma dançarina feia dançando bem. Ninguém quereria assisti-lo, porque a dança é bela quando é belo quem a executa.

Afigurem-se um exército que avança. Será muito bonito quando composto de homens fortes, robustos. Se, pelo contrário, formado de capengas a se arrastarem em certa ordem, não valerá coisa alguma.

Assim também o mar: é belo e a sua movimentação está à altura dele.

Esplendor do Brasil colonial

Creio que mais de um de meus conterrâneos, assim como eu, saciados das largas e movimentadas avenidas, dos viadutos e metrôs que cortam as grandes cidades, sentem uma espécie de nostalgia de antigos tempos, nos quais eles mesmos não viveram, mas onde cresciam, aqui e ali, pequenas cidades com suas ruazinhas estreitas e irregulares, com seus casarios familiarmente abraçados uns aos outros. E para que não fossem apenas conhecidas por sua pequenez, na praça central se erguiam belas construções, já edifícios sacros e eclesiásticos, já prédios consagrados a fins temporais, muitos deles autênticos monumentos, obras-primas de artistas cujo talento ainda estava por ser celebrado.

É o que encontramos, por exemplo, em Ouro Preto, cidade colonial de Minas Gerais. Ruelas e ladeiras povoadas de casas com suas fachadas dos séculos XVII e XVIII, umas mais estreitas, outras mais generosas; essas rústicas, aquelas adornadas, mas todas sérias, como que meditativas, refletindo pensamento, e não uma qualquer coisa do fútil e do leviano próprios a certas produções barrocas.

Dobra-se uma esquina e surge à nossa frente uma igreja de proporções imponentes, traçado majestoso, pórtico emoldurado por esculturas do Aleijadinho, e acolhendo no seu interior uma profusão de imagens e peças artísticas muito valiosas.

As ruazinhas convergem para a praça central, com o feitio característico das praças do Brasil colônia: vasta, ostentando sobras de espaço, rodeada de casarões, casas e casinholas típicas do tempo. No chão estende-se um pavimento de pedras que vão sendo polidas ao trotar das carruagens, das carroças, e sob o vaivém do povo que o palmilha.

No fundo dessa praça se ergue o prédio que eu reputo o mais lindo edifício temporal do Brasil. Enquanto proporções e linhas arquitetônicas, sua beleza é indiscutível.

Outrora sede da Câmara Municipal de Ouro Preto, é uma grande construção baseada nos moldes dos edifícios portugueses daquela época, com sua fachada cortada ao meio pela torre que abriga no alto um campanário. A parte central, revestida de pedra, é arejada por duas janelas no andar de cima, e por duas portas no primeiro piso. De cada lado deste corpo central se vêem, em cima, três janelas com balcões, e embaixo outras tantas.

Todo o esplendor desse monumento reside na proporção entre o prédio e a torre. Trata-se de algo mais ou menos indefinível: a torre possui o grau de saliência perfeito que deve ter em relação ao fundo do edifício; tem a altura exata, que corresponde de modo agradável, sem ser provocante, ao tamanho de cada uma das metades que ela divide. É uma altura normal, comum, e constitui com o conjunto uma harmonia meio inefável, não se tem palavras para explicá-la, mas sabe-se que é de uma extraordinária beleza.

Nesse edifício podemos admirar uma ordenação, seriedade e idoneidade que nos falam da sociedade orgânica existente em alguma medida no Brasil colonial. Nele tudo é tão direito, tão proporcionado, tão conforme à ordem natural criada por Deus, que não será exagero afirmar que a civilização cristã da época se refletia nas suas linhas, paredes e adornos. E ele, reciprocamente, refletia-se na sociedade, salientando o que esta possuía de bom.

Donde, por exemplo, quem conversasse à sombra daquele prédio, sentir-se-ia enriquecido em dignidade, e tonificado no seu próprio espírito com elevadas disposições para considerar as infinitas belezas do Criador. Algo bem diverso do que se experimenta numa grande e agitada cidade moderna…

 

 (Extraído de conferências em 13/3/88 e 26/9/90)

 

Aquela pedra heroica…

Gosto extremamente do Pão de Açúcar; acho-o muito bonito. Tenho por ele uma predileção e uma espécie de simpatia pessoal veemente. Desde que o vi pela primeira vez, quando era pequeno, extasiei-me! E este impacto não desapareceu. Até hoje tenho entusiasmo pelo Pão de Açúcar e pela vista que se tem dele.

Não tenho muito entusiasmo pelo Corcovado, mas o Pão de Açúcar eu acho um colosso. A meu ver, cometeram um erro em colocar o Cristo Redentor no Corcovado. Ele deveria ter sido posto no Pão de Açúcar. Sei perfeitamente que o Corcovado é mais alto do que o Pão de Açúcar — tem o dobro da altura —, mas, enquanto domínio dos mares, o Cristo Redentor ali teria outra perspectiva.

O Pão de Açúcar tem um ar de busto aristocrático dominando a natureza: ele domina com majestade as suas cercanias. E a imagem do Cristo Redentor ali em cima estaria no seu pedestal, comunicaria uma irradiação sacral vinda das graças que a imagem difunde, e se coadunaria perfeitamente com a forma e o estilo do Pão de Açúcar; assim se faria que uma grandeza natural servisse de pedestal para uma grandeza sobrenatural análoga, com uma ordenação muito bonita.

Aquela pedra heroica combina bem com o temperamento do brasileiro? É uma pergunta delicada, mas se poderia dizer o seguinte: se o Pão de Açúcar não reflete o que o brasileiro é, reflete o que ele deveria ser.

Ele tem qualquer coisa de contemplativo. Do alto do Pão de Açúcar vê-se o mar imenso que entra através daquelas ilhas; ele já fica meio à saída e não no fundo da baía, e olha para aquilo tudo de cima, como se fosse feito para ter uma contemplação muito elevada, muito silenciosa das coisas, levando o espírito a considerações tão extraordinárias que só podem ser contadas a poucas pessoas.

O Pão de Açúcar tem qualquer coisa de confidencial, como se ele, nos seus mistérios, estivesse pensando em coisas que são para ser conversadas com Deus. E são coisas colossais.

Por outro lado, ele possui algo de dominador. Porque ele domina toda aquela paisagem pelo seu peso. Tem-se a impressão de que ele tem garras invisíveis com que segura aquilo tudo: “Nada nem ninguém se mexa sem que eu queira, porque tudo depende de mim, e eu dependo do meu pensamento. Estou envolto em considerações com que vocês da planície não entendem. Mas nem foram feitos para me entender… Vocês devem entender meus pés; eu entendo minha cabeça”.

Desse modo sinto o Pão de Açúcar, e assim eu quereria que o brasileiro fosse.  v

 

(Extraído de conferências de 19/12/1988, 3/6/1989 e 7/12/1993)

 

Como nasceu a aristocracia?

Vivendo numa época onde, praticamente, não há mais tradições aristocráticas, o homem contemporâneo não percebe quanto o desaparecimento dos títulos de nobreza concorreu para a banalização do mundo moderno.

 

Nos países da Europa, a aristocracia nasceu da ordem natural dos fatos e depois veio a florescer sem nenhum programa, sem nenhuma intenção, também conforme à ordem natural, como uma planta que nasce da terra: da raiz brota um cabo, deste um bulbo, o  qual dá origem às flores das quais surgem as frutas que serão depois aproveitadas pelos homens.

Desordens morais existentes no Império Romano do Ocidente

A imoralidade produziu estragos incalculáveis entre os romanos. Por isso o castigo de Deus desabou sobre Roma, que foi atacada ao mesmo tempo — como pelos grampos de uma pinça monstruosamente grande — por dois inimigos: os bárbaros, os quais vinham dos territórios que mais ou menos abrangem hoje a Alemanha, a Suíça, a Áustria, a Hungria, e o que fica ao Oriente da Europa; e pelos maometanos, que procediam do sul.

No dia em que os muçulmanos encontrassem os bárbaros, eles teriam achatado o que restava do Império Romano, bem como a Igreja Católica; com isso o mundo civilizado estaria liquidado. Era o castigo completo da Providência sobre aquela humanidade.

Aconteceu, entretanto, que Nossa Senhora teve pena dos restantes deste império em franca degringolada.

Bárbaros e maometanos matavam os católicos

Os bárbaros sentiam muito o frio da Alemanha, então tinham tendência para ir descendo cada vez mais, porque compreenderam que, dirigindo-se para o sul, encontravam clima mais quente; portanto, podiam levar uma vida mais suave. E eles se estabeleceram na Itália, França, Espanha e numa parte de Portugal.

Eles eram tão selvagens que sucedia o seguinte: habitavam as florestas e durante o dia entravam nas cidades para comer, se divertir, ver como eram as coisas, porque tudo lhes parecia novo; e para matar gente, enfim, para encher a vida como faz um bárbaro.

Mas, quando chegava a noite, eles iam dormir no mato, porque diziam que sentiam falta de ar nas cidades, mesmo nas praças públicas, onde naturalmente há mais ar do que nas ruas.

Os maometanos atacavam mais os campos do que as cidades, mas a situação era a mesma. Pois, quando penetravam nas cidades, fechavam as igrejas católicas, perseguiam e matavam os fiéis, mais ou menos como faziam os bárbaros. E o que restava da Igreja estava completamente torcido, esmagado.

Quando os bárbaros ou os maometanos invadiam as cidades, as autoridades civis fugiam e se dirigiam geralmente para a Itália, cujo clima é mais ameno e onde eles esperavam ainda encontrar restos do Império Romano para poder ali viver. Fugindo, eles deixavam o povo abandonado; assim, cada um poderia fazer o que quisesse.

Mas os Papas deram ordem a todos os Bispos e padres para não fugirem e permanecerem nos lugares onde estavam, e procurassem evangelizar o povo. Esse foi o segredo da vitória da Igreja Católica.

Porque dessa forma eles acabaram tomando certo contato com os bárbaros, ensinando-lhes uma espécie de rudimento da Religião, quais eram seus deveres, quem é Jesus Cristo, Nosso Senhor; e assim os bárbaros amansaram um pouco.

Com os árabes foi mais difícil porque eles já tinham uma religião, a maometana, inimicíssima da Religião Católica; os maometanos não queriam abandonar essa religião e nas cidades esmagavam os católicos. Havia uma série de católicos que não lutavam contra os maometanos e se comprometiam a não fazer conversões para a Igreja Católica. A esses os maometanos tratavam mal, mas se criava uma situação onde ainda se podia respirar.

Os católicos que não queriam aceitar isto e realizavam um trabalho para converter os maometanos eram barbaramente trucidados. Então as populações do campo — as da cidade não tinham o que fazer — começaram a usar um sistema que deu origem à nobreza.

Muralhas, portas fortificadas, torres

Em todas as terras cultivadas havia fazendas. Ou seja, uma terra mais ou menos extensa na qual um determinado proprietário plantou, cultivou para produzir certos bens. Nessa terra onde exerciam seus serviços, os trabalhadores manuais naturalmente ganhavam o necessário para viver e, como estavam longe das cidades, gozavam de certa paz, tranquilidade.

Quando os bárbaros ou os maometanos invadiam essas terras, os trabalhadores manuais eram reduzidos a escravos; por isso eles tinham muito medo. Então, quando os adversários começavam a avançar, eles pediam ao patrão para recebê-los em sua casa. E os patrões, de pena deles e achando que era justo protegê-los, pois eram católicos que deveriam ser amparados contra os inimigos, fizeram o seguinte: começaram a construir em torno de suas casas um recinto muito grande, todo cercado de muralhas de pedra, e sobre elas um passadiço por onde os guerreiros podiam ficar andando para ver de longe se os atacantes estavam se aproximando, ou não. Se os avistassem, com muita antecedência eles batiam um sino e todos os homens vinham guarnecer a parte alta das muralhas, as quais às vezes eram tão grossas, que sobre elas dois ou três homens podiam circular ao mesmo tempo.

Do alto das muralhas, eles ou lançavam flechas sobre os atacantes — e eram bons atiradores! — ou esperavam que subissem em escadas. Quando estas estavam cheias de atacantes, eles empurravam as pontas das escadas que estavam apoiadas na muralha; todos naturalmente caíam e muitos se machucavam.

Os defensores tinham também no alto das muralhas água fervente, que jogavam sobre os atacantes. Era uma coisa terrível uma pessoa que estivesse com couraça receber água fervente, porque a água entrava pelo corpo e o queimava; e se tornava muito difícil retirar a couraça, pois ela feria mais o corpo; era um verdadeiro horror.

E os patrões, aos poucos, foram construindo portas fortificadas e torres. As torres eram para se ver mais longe, para saber se o adversário se aproximava. E também para de mais alto jogarem as flechas a fim de atacar os inimigos muito antes de estes chegarem ao pé da muralha.

E as portas eram especialmente preparadas: feitas de pranchas de madeira ligadas entre si por placas de metal parafusadas, de maneira que não pudessem se desconjuntar. E no teto acima das portas, que eram muito grossas, faziam frestas sobre as quais colocavam tachos com óleo ardente; quando os invasores começavam a entrar, dessas frestas caía óleo em ebulição que queimava muito mais do que água fervente; assim eles continham a invasão.

Ao cabo de algum tempo, os patrões construíram grades atrás das portas, que eles faziam descer por máquinas. Os atacantes precisavam serrar, limar as grades para poderem entrar. Mas fazer isto enquanto caía óleo ardente era impraticável, quer dizer, em última análise, a casa do senhor ficava fortificada.

Qual era o interesse dos camponeses e pequenos proprietários de terra com isso?

Patrões e empregados se relacionavam como pais e filhos

Eles tinham um vivo senso dos interesses comuns. Assim, os trabalhadores manuais conseguiram que os patrões fizessem recintos enormes em torno das casas destes últimos, de maneira que, quando viam de longe chegarem os bárbaros ou os mouros, os trabalhadores mandavam trazer rapidamente de suas casas as famílias, o gado, os móveis que eles mais prezavam, e colocavam tudo isto dentro do recinto dos patrões. Dessa forma, quando eles tivessem rechaçado o invasor, o gado, que constituía a fortuna deles, e os móveis, que eram as condições para poderem morar, estavam intactos.

A casa do patrão deixou de ser exclusivamente dele para tornar-se um enorme braço paterno, segurando em torno de si toda a população local.

Evidentemente, para fazer tudo isso era preciso uma cabeça. Quem dirigia a defesa eram os patrões, os quais eram homens de combate, porque em época de paz matavam as feras existentes no mato, para que os camponeses pudessem trabalhar livremente.

Enquanto os patrões viviam em luta contra os javalis e outros animais selvagens, que havia nas florestas profundas da Europa, os empregados não eram homens de guerra, mas de trabalho. E no tempo de guerra os patrões comandavam os empregados, porque aqueles sabiam como dirigir uma guerra e estes não sabiam. Assim, as relações entre patrões e empregados acabaram sendo de pais e filhos. 

Na propriedade do patrão havia a casa dele, armazéns para guardarem as coisas que os empregados traziam e, no centro dessas construções, existiam a joia e o tesouro daquele conjunto: uma capela, onde um capelão e, às vezes, mais dois ou três sacerdotes celebravam Missa todos os dias e davam Comunhão aos que queriam; junto à capela havia uns quartinhos para eles pousarem.

Quando investiam contra os inimigos, os padres não podiam atacar, porque, de acordo com a missão deles, não deviam usar armas, mas estavam junto aos atacantes incitando-os: “Coragem, vamos salvar a Cruz, Deus o quer!”; mostravam um Crucifixo e iam para a frente, seguidos por todos os homens do povo. O senhor feudal, com espada, couraça, elmo, montando um cavalo, ia à dianteira; ele era o chefe e o pai daquele povo.

Assim nasceu a maior parte dos castelos da Europa

Alguém fez um bonito plano para que isso nascesse? Não. Surgiu naturalmente, as circunstâncias obrigaram a que isso fosse assim e dessa forma nasceu a maior parte dos castelos que existem na Europa. Castelos cujos perfis todos conhecem: altas torres e muralhas, lindas portas; no centro do castelo a torre de menagem, mais alta do que todas as outras, de onde podiam soltar pombos-correio para avisar aos aliados: “Estamos sitiados, venham nos ajudar!”

E da torre de menagem partiam túneis subterrâneos para lugares onde os donos e os empregados podiam fugir, caso estivessem perdendo a batalha em cima, porque os túneis percorriam uma zona grande e iam abrir bem longe onde o adversário nem imaginava. Os castelos eram super bem defendidos, tornando-se muito difícil conquistá-los. E os empregados deviam essa defesa aos patrões.

Havia uma coisa mais tremenda: as falsas fugas.

Às vezes os patrões faziam um túnel mais ou menos longo, que acabava dando no mar. Não tinha porta. De maneira que, se os atacantes por ali entrassem, ao final do percurso chegariam a areias lindas, julgando se engajar numa situação cômoda. Mas era uma fraude, um artifício, porque aquele corredor dava em areias movediças, ou seja, que não têm chão firme; o indivíduo que nelas penetra, andando ou parado começa a atolar e não tem saída. Então os adversários que entravam na areia movediça estavam liquidados. O dono do castelo nem mais precisava se preocupar com aqueles inimigos, porque o solo iria comê-los.

Origem da nobreza europeia

Tudo isso fez com que houvesse uma mudança radical nas relações dos patrões com os empregados. Antes das invasões, essas relações eram mais ou menos parecidas com as existentes hoje. Um homem tem a terra, as sementes, sabe plantar. O outro não tem capital, ou seja, a terra, as sementes e nem sabe plantar; ele precisa de alguém que o dirija. Estão aí caracterizados o patrão e o empregado.

Mas quando começaram as invasões, a situação mudou. Porque os empregados ficaram dependendo da direção do patrão para poderem mover uma defesa eficaz. E o patrão ficou conhecendo que ele era o chefe militar e não apenas o chefe econômico daquele grupo e, portanto, muito mais admirado, mais respeitado do que se fosse um simples chefe civil; passou a ser o governador do lugar, quer dizer, em termos mais concretos, tornou-se uma espécie de reizinho, o senhor feudal.

E é natural que o senhor feudal do lugar se traje melhor, adquira uma melhor educação, coma melhor, enfim, se esplendorize e enriqueça. Por essa razão ele passou a ser o lord, o nobre, enquanto que o operário, o trabalhador manual, era o plebeu. A diferença entre as duas classes se fez normalmente.

E alguns nobres se tornaram mais aristocráticos. A pessoa mais pobre, menos capaz, fica com uma educação menos fina, um conhecimento menos aberto; enquanto que o nobre, quando teve mais educação, aprendeu mais trato, tomou ares que eram muito mais finos do que os ares do homem do povo, e a esses ares se chamava nobreza. Quer dizer, o nobre era produto de toda uma germinação local que deu origem à nobreza europeia.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 1/4/1995)
Revista Dr Plino 170 (Maio de 2012)

 

Divinamente admirável, supremamente admirador!

Nosso Senhor Jesus Cristo deixou-nos, em sua vida terrena, incontáveis exemplos acerca da admiração: repleto de enlevo por seu Divino Pai, Ele também soube admirar, com respeito e ternura, tudo quanto Lhe era inferior.

 

Outro dia, subitamente durante uma reunião, eu tive uma impressão sobre a admiração relacionada com a Pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo. Para o meu foro interno, pelo menos, foi uma impressão magnífica que tentarei, de modo improvisado, expor nesta conferência.

Ao analisar certos fatos narrados no Evangelho — os quais têm por característica produzir encanto em todo o mundo —, eu me empolguei pela pessoa de Jesus.

Superior a qualquer cogitação, Nosso Senhor surpreende-nos constantemente por ter feito com simplicidade, dignidade e sobranceria, coisas inimagináveis. Tais são a força e a bondade expressas em suas ações, que o único comentário pertinente cabe em quatro letras: “D”, “E”, “U”, “S”.

Entretanto, eu tinha a sensação de faltar algo; havia alguma coisa que eu não estava conseguindo exprimir bem, e era necessário pô-la à luz para se compreender melhor o Admirável por excelência, o qual era também o Admirador por excelência.

Então, como detectar esse elemento novo que me faltava compreender?

Os reflexos de Nosso Senhor em sua Mãe Santíssima 

Tantas vezes eu tenho falado de castelos refletidos na água; o reflexo é mais belo do que o próprio castelo.

Porém, imaginemos Nosso Senhor refletido nas águas do lago de Tiberíades: Ele era infinitamente mais belo do que o reflexo! Creio que isso aconteceria se Jesus se refletisse em quaisquer águas do mundo, com exceção apenas de um mar, superior a todos os mares da Terra: Maria.

Porque quando Ele olhava para sua Mãe Santíssima, coisas que só Ela compreendia n’Ele se refletiam no rosto d’Ela. E quem olhasse para o celeste rosto de Nossa Senhora teria uma espécie de porta de acesso de ouro para compreender os mistérios da Sagrada Face de Nosso Senhor.

Reportemo-nos à cena da transmutação da água em vinho nas bodas de Caná.

Todos estão encantados com Aquele convidado único que passou a ser a festa de toda a festa quando o arquitriclínio procura o noivo e diz: “Acabou o vinho.”

Empolgados com Nosso Senhor, todos tinham se esquecido de seus próprios egoísmos. Entretanto, alguém não se olvidara daquelas pessoas: com olhar de Mãe, Nossa Senhora velava por todos; ao mesmo tempo em que Ela admirava a Jesus, tinha amor materno por cada um, a ponto de perceber que o vinho acabara.

Jesus olha para sua Mãe e vê nela aquela expressão que procura estimular n’Ele a compaixão. Podemos conceber a compaixão de Nosso Senhor olhando compassivo para Nossa Senhora, e Ela refletindo a Ele em seu sorriso?

Quem seria capaz de compreender, sem olhar para o sorriso de Maria, o que se tinha passado na Alma santíssima de Jesus naquele momento? Absolutamente ninguém. Neste reflexo, de certo modo com lente de aumento e luz incomparável, aparecia mais claramente o Redentor. Ele escolheu as melhores manifestações de Si mesmo para refleti-las na face sagrada de sua Mãe.

Para levar tudo ao último extremo, podemos imaginar a dor de Nossa Senhora vendo a dor de Jesus? E o que São João Evangelista, as santas mulheres, Longinus e outros poucos viram na face d’Ela, no momento em que Ele bradou: “Consummatum est”? A Alma saiu do Corpo, dilacerou-se a humanidade santíssima de Jesus, e Maria Santíssima pôde medir inteiramente o mistério terrível da morte e a coisa tremenda: um Deus que morre!

Se até a natureza material foi sensível a isso, o que pensou Maria! Como era esse reflexo da dor d’Ele n’Ela? O pináculo da tristeza do Calvário podia ser mais bem compreendido olhando-se para Maria, a fim de entender como Jesus sofria.

O esplendor de Jesus refletido no lago de Genesaré

Volto a considerar Nosso Senhor caminhando sobre as águas do lago de Genesaré. Águas que estremeciam inteiras ao serem tocadas pelos divinos pés d’Ele, como se elas não se contivessem de delícia por receberem o peso tão leve daqueles pés sagrados.

Ele ia andando, passo a passo, e dir-se-ia que o lago se tornava vivo; os peixes faziam figuras geométricas, guirlandas, algo de cerimonial, de tal maneira as cerimônias agradam ao Autor de toda beleza.

O ar, completamente diferente e cheio de suavidade, mais do que nunca irmão da água; e nos pontos onde um e outro se tocavam davam a impressão de que um contava para o outro as delícias que possuíam, formando uma espécie de lâmina fina de confidências. O que a água contava se evolava como luz pelo ar, e o que o ar narrava enchia de aroma a água.

Assim Nosso Senhor caminhava sobre as águas.

Ele devia estar inteiramente cônscio de seu próprio esplendor, de sua própria grandeza. De sua pessoa talvez saíssem miríades de virtudes para encherem o ar e a água, a fim de ser visto pelos Apóstolos que lá estavam para terem um tremor de emoção, uma plenitude incalculável de admiração, de veneração, de ternura; algo que a mente humana não sabe exprimir, mas que o Espírito Santo soube descrever.

O Admirado por excelência também admirava

Lembremo-nos d’Ele sentado sobre o monte dizendo: “Bem-aventurados os puros, porque verão a Deus!” Sentimos o timbre de voz e todos os apelos para a pureza existentes em nós fazerem como as águas do lago de Genesaré. Tem-se vontade de ser puro porque Ele disse: “Bem-aventurados os puros, porque verão a Deus!”

E assim, todas as palavras do sermão das bem-aventuranças causam a impressão de que até os passarinhos paravam no ar para ouvir melhor uma música cujo sentido não entendiam!

Vendo outro dia um lírio, lembrei-me da frase “Olhai os lírios do campo…” e percebi, de repente, que Nosso Senhor, quando falava do lírio, o admirava.

Observá-Lo admirar e cantar a glória do menor do que Ele, quando Jesus diz: “Olhai os lírios do campo, eles não tecem nem fiam, entretanto nem Salomão em toda sua glória se vestiu como eles!” A infinitude d’Ele se debruça sobre uma flor. Como seria belo vê-Lo ao pronunciar essas palavras, pegar uma pétala de um lírio e passar seus dedos sobre ela!

Uma cena extraordinária, repleta de lições para nós, diante da qual não temos palavras para qualificar! Vamos procurar os termos, mas o vocabulário estala e ficamos com vontade de apenas dizer: “Onde está esse lírio para eu ficar junto dele até morrer, repetindo ‘olhai os lírios do campo, não tecem nem fiam, entretanto nem Salomão…’”

Mas, se quando o Redentor disse “olhai os lírios do campo…” se aproximasse o Lírio do Céu, que era Nossa Senhora, como Ele daria esse lírio para Ela? E como Ela o receberia? O olhar d’Ele daria a entender: “Como Vós sois mais magnífica do que esse lírio!”

E Maria Santíssima, naquele olhar de Jesus, contemplaria um “pulchrum” ainda desconhecido, e exclamaria: “Este lírio eu guardo porque é um reflexo do Lírio dos lírios; é o meu Filho virginal, meu Filho unigênito, o Primogênito de Deus em todo o gênero humano!”

Da admiração de Jesus, nascem os guerreiros da Fé

Percebemos, assim, como da análise admirativa de algo pequeno, coisas imensas podem nascer. E como completa o ciclo de Deus Filho admirando o Padre Eterno, Nossa Senhora, os outros homens, enquanto iguais a Ele na natureza humana, mas depois se debruçando sobre os pequenos e olhando as crianças; então se compreende a frase: “Deixai vir a Mim os pequeninos, porque deles é o reino dos Céus!”

Jesus diria isso não só com o sentido de proteção, mas também de respeito, de dedicação, de admiração. “Que alma limpa! Que alma pura! Eu, Deus, autor e foco de toda a pureza Me contemplo vendo este menino. E vejo nele um reflexo criado de Mim mesmo. Eu o criei para Me olhar e Me amar.”

O mártir que eu, por feitio pessoal, mais admiro é o grande Santo Inácio de Antioquia. No momento de ser triturado pelos leões, ele exclamou, diante do imperador e da sociedade romana pagã: “Que venham a mim os leões e me triturem a carne como a pedra do moinho tritura o trigo para fazer farinha, na qual depois se possa operar a Transubstanciação e seja o Corpo e Sangue de Cristo. Assim também, eu quero ser triturado, quero ser um mártir de Cristo!”

Alguns autores dizem que aquele menino contemplado por Nosso Senhor, cuja alma puríssima chegou a este píncaro de heroísmo na inocência, foi depois Santo Inácio de Antioquia. A mão divina tinha pousado sobre ele; e, quando disse “deixai vir a Mim os pequeninos”, Jesus o aproximou de Si.

Se o lago de Genesaré estremecia, se o ar se enchia de perfumes, de brisas e de luzes, o que dizer da alma de um menino fiel que Nosso Senhor aproxima de Si?

E Ele, de outro lado, sabia que esse menino seria o grande Inácio de Antioquia. De dentro dessa cena encantadora nós vemos emergir, ensopadas de sangue, duas figuras trágicas: Jesus, o Cordeiro de Deus coberto de sangue, de escarros, alvo de bofetadas, de injúrias durante a Paixão; e o cadáver de Santo Inácio de Antioquia estraçalhado pelas feras! Mas desse sangue, depois, sai um incenso mil vezes mais grato a Deus do que o exalado do sacrifício de Abel. Pelo seu Sangue, Jesus reconciliou Deus com os homens no alto da Cruz, fazendo nascer mártires e guerreiros até o fim da história dos homens.

As Cruzadas não foram senão o mais belo reflexo dos martírios, os quais nasceram — em certo sentido da palavra — de um menino a quem Nosso Senhor agradou numa cena encantadora, dizendo: “Deixai vir a Mim os pequeninos, porque deles é o Reino dos Céus”. E com quanta admiração Ele, nessa hora, olhava para Inácio, tão pequeno, mas no qual o Divino Salvador via o atleta da fidelidade até o fim!

Exercício de maravilhamento

A alma admirativa não se contenta em admirar só o que é superior, mas sabe voltar-se também para o inferior, tomá-lo com respeito e ternura, sem igualitarismo, ver uma figura de Deus nas menores coisas e dar glória a Ele por manifestar-Se nelas.

Era isto propriamente que faltava para eu compreender a admiração. Então, agora eu contemplo Nosso Senhor andando sobre as águas e admirando a água, o ar e sentindo-Se refletido neles, dizendo: “Imita a minha magnificência; como é bela esta água, como é belo este ar que Eu criei!”

Compreendemos assim como o ciclo da admiração se perfaz, e o que é a alma verdadeiramente admirativa.

Imaginemos uma rainha prodigiosamente rica. Ela vê, de repente, rolando sobre uma mesa de seu régio palácio, uma moeda, que é a menor das moedas em circulação no seu reino. Digamos que seja uma moeda de cobre, quer dizer, de um metal não nobre; ou então de níquel. A rainha pega a moedinha, vê nela a efígie de seu filho, o rei, e diz: “Meu filho!”

Admiração e Redenção 

A própria Redenção, vista sob esta perspectiva, ganha em compreensão, pois como poderia haver imolação se não houvesse admiração? Uma pessoa pode ter maior admiração por algo do que resolvendo morrer para salvar esse algo?

Nosso Senhor conheceu individualmente a cada um de nós e, tendo em consideração o que podíamos ter sido, ou poderíamos ser, ou poderemos ser pelos rogos da Mãe d’Ele, nos admirou. E olhando em torno de nós, compreendemos que Deus nos admira, não pelos defeitos que carregamos, mas pelas nossas potencialidades. Entendemos, então, o que há de extraordinário no interior da alma de cada homem e o que é verdadeiramente o apostolado. A conquista das almas para Deus é a grande alegria d’Ele, e eu afirmaria que o Criador tem gratidão quando alguém traz uma pessoa e diz: “Meu Senhor, pelos rogos de vossa Mãe, esta pessoa agora é vossa”. Podemos ter ideia da sublimidade disso?

Através do maravilhamento podemos imaginar as belezas do Paraíso

Entendemos também que o Criador nos pôs numa terra de exílio onde não vemos as belezas que contemplaríamos no Paraíso, mas Ele nos deu imaginação para concebermos como as coisas seriam se fossem paradisíacas. E proporcionou-nos até o meio de conceber como elas seriam no Céu empíreo, porque todas essas coisas de algum modo se refletem na matéria do Céu empíreo, que, por sua vez, não é senão reflexo d’Ele.

Deus quer que imaginemos o maravilhoso, o admirável, a partir das coisas que vemos, mais ou menos como um cego que nunca viu um rosto, mas passa a mão pelo rosto de alguém e recompõe os traços da fisionomia. Assim, nós não vemos o Paraíso, mas dedilhamos o Paraíso, e com o espírito construímos uma imagem dessa realidade. Deus pôs em nós a tendência para nos maravilharmos com tudo aquilo com que tomamos contato. Tudo quanto vemos é, portanto, motivo para exercício de maravilhamento, que em francês se diz “émerveillement”.

Através do exercício de “émerveillement”, o homem é levado a não só imaginar como uma coisa seria no Paraíso, mas imaginar também como ela seria num mundo irreal que Deus não criou, mas gostaria que existisse.

Através da heráldica, de algum modo o homem imita a Deus

Daí vem, por exemplo, a heráldica. As figuras da heráldica não existem daquele modo na natureza, mas formam uma espécie de universo criado pela cultura medieval; pode-se dizer que o homem, pela heráldica, de algum modo até imita a Deus Criador.

É comum encontrarmos certas almofadas estampadas com uma torre dourada sobre um fundo vermelho. Tal vermelho não existe na natureza, como fundo de torre. Nesta nossa pobre Terra, toda torre leva poeira, se encarde e por mais altaneira que ela seja — até a Torre de Belém — tem uma moldura que não vale a torre. O homem imagina um mundo onde há um rubro por detrás de uma torre dourada, e faz na heráldica essa torre.

Deus admira isso. Ao dizer “olhai os lírios do campo; eles não tecem nem fiam…”, Jesus manifestava quanto amará aquilo que o homem compôs num “élan” de alma e no fundo se volta para Ele, porque, de maravilha em maravilha, no alto está Deus! Compreendemos, então, facilmente como esse exemplo de Nosso Senhor admirando as coisas, até as pequenas, e amando-as com uma ternura especial, é uma lição para nós termos a alma propensa à admiração.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/9/1980)

Revista Dr Plinio 170 (Maio de 2012)

Meu primeiro olhar para a Igreja

Desde a infância, Dr. Plinio começou a formar uma ideia da Igreja, vislumbrando sua sublimidade perfeita, que reúne em si todas as qualidades, contém uma dignidade insondável, ao lado de uma Cátedra infalível, bem como sua fortaleza e amor extraordinário à paz. E ele tinha a sensação de que a Igreja o olhava e o analisava.

 

Há um aspecto da alma humana pelo qual o ato de vontade é imediatamente consecutivo ao ato de inteligência e, mais ainda, o ato de vontade ajuda a inteligir, e o ato de inteligência ajuda a querer, que para nós, internamente, são como se fossem uma só coisa.

Interação entre vontade e inteligência

Imaginemos, por exemplo, uma pessoa que nunca tenha ouvido coisa alguma. Eu conheci uma moça completamente surda, e que nunca na vida tinha escutado som nenhum. De repente, apareceram em São Paulo esses aparelhos de audição. O pai dela fez um esforço — porque esses aparelhos no começo eram caríssimos — e comprou um para a filha. Lembro-me dela contar para mim o maravilhamento que teve ao ouvir os primeiros sons; e uma das primeiras coisas que a maravilharam foi quando ela, tendo posto o aparelho nos ouvidos, abriu fortuitamente uma torneira e viu que, ao cair, a água fazia barulho. Ela ficou encantada com o barulho da água, e procurava imitar o ruído.

Suponhamos que ela ouvisse música pela primeira vez e, portanto, se abrisse ao mundo da música. Sua inteligência compreenderia aquilo, mas poderia ser que já nos primeiros acordes, o “dó, mi, sol”, no primeiro toque de órgão ou outro instrumento, ela tivesse um incêndio da vontade, um entusiasmo pela música e se lançasse nesse campo. Quer dizer, a inteligência viu apenas uma pontinha, mas a vontade entrou inteira e impeliu a inteligência a atuar. O ato de vontade ajudou a inteligência a fixar-se e, em certo sentido, até a entender.

Existe algo disso entre nós e a Igreja Católica, em virtude do dom da Fé. Podemos nos dar conta disso ou não, mas somos convidados, em nossos primeiros lances, a ver a Igreja com ênfase: “Então, é isto!” Esta ênfase varia muito de acordo com a pessoa, depende do modo de ser de cada um. Por exemplo, minhas ênfases calmas não são vibráteis e de grande vitalidade. Mas esta ênfase primeira nos é dada junto com a Fé.

Um conjunto de sublimidades perfeitas

Quando comecei a me aproximar e a formar uma ideia da Igreja — eu tinha uns sete ou oito anos de idade —, dizia de mim para comigo o seguinte: “Há aqui um conjunto de sublimidades perfeitas que é o tom de tudo. E a verdade total está nisso. E esse tipo de sublimidade perfeita reúne em si todas as qualidades e contém uma dignidade insondável, inimaginável, ao lado de uma Cátedra infalível, de uma fortaleza inefável, mas de um amor extraordinário à paz”.

Isso tudo está contido nesse primeiro momento em que olhamos a Igreja e temos a impressão de que ela nos olha. Naquela ocasião não formei essa ideia, mas hoje, lembrando-me daquilo, noto que eu tinha a sensação de que a Igreja me olhava, e eu sentia o olhar dela pairando sobre mim, analisando-me. E estava no direito dela… Se a Igreja fosse redutível a uma pessoa, esta como que se perguntaria: “O que vai sair disto: uma via de júbilo ou uma via de dores? De qualquer maneira, vou dar-me inteira a ele”. E eu, submisso, não cabendo em mim de entrega, de entusiasmo, de fervor!

União autêntica nascida do primeiro olhar

Tudo quanto eu via da Revolução e da Contra-Revolução era derivado do fato de ter no fundo da minha alma esse olhar primeiro. E eu quereria que a Igreja recriminasse os erros da Revolução e me repreendesse pelos meus defeitos. Uma Igreja mãe de misericórdia, como Nossa Senhora, mas que soubesse me dizer as verdades.

E pensava: “Analisando a Igreja, vejo que isto está nesse algo celeste que eu vi. É apenas um raio do sol dentro do sol. Não está incidindo no momento, mas tem que ser assim”. E cheguei a explicitar verdades que eu nunca tinha ouvido: “É preciso ser combativo, pois a combatividade é uma virtude católica”. Só muito depois vim a descobrir a virtude da fortaleza. Na época em que eu era menino, a fortaleza era apresentada numa tal banha de modorra e de sono, que não me dei conta do significado dessa virtude.

Vejam o lado interessante: eu não falava em nome da Igreja, mas, baseado na doutrina dela, fazia afirmações que possuíam fundamentos escritos para comprová-las.

E aqui está o que me interessa mostrar: esta forma de união proporcionada por essa espécie de olhar. E, sem ler o que os autores diziam, deduzir. Mas deduzir a partir de um estado de espírito e de uma virtude que eu tinha notado e me encantaram. Isso é realmente uma forma muito autêntica de união. Não quero dizer que seja uma forma excelsa, superexcelente de união, mas é uma forma de união muito autêntica.

No que consistiu esse olhar primeiro? É claro que a palavra “olhar” vai aqui entre aspas; trata-se de uma metáfora. Esse discernimento primeiro, em que consiste e que profundidades ele pode atingir? Nenhuma comparação é inteiramente precisa. Os latinos diziam: “omnia comparatio claudicat”, toda comparação claudica, um pouco ou muito. Eu compreendo que se poderia objetar contra o que estou dizendo, mas seria uma objeção desprovida de sentido, pois a ambição de uma comparação não visa dar uma definição, mas apenas ajudar a esclarecer um tema.

Foco divino da inteligência da Igreja: o Espírito Santo

Podemos demonstrar que a Igreja Católica é a verdadeira Igreja de Deus, através da razão apoiada pela graça. Mas há alguma pessoa que tenha feito, passo a passo, este itinerário inteiro, antes de crer: “Pois bem, depois de dez anos de estudo, está provado que a Revelação é verdadeira e que Nosso Senhor Jesus Cristo foi Homem-Deus. Entretanto, qual das igrejas cristãs é a verdadeira?” Para proceder racionalmente é preciso coletar todos os pontos de divergência, que existem e que existiram, e estudar cada um desses pontos.

Esse olhar primeiro e essa graça nos tocam e nos convencem. Depois, a razão, de cá, de lá, de acolá, de vez em quando faz uma pergunta, e nós, sem duvidar, podemos prestar atenção no que responde a Apologética; e isso nos satisfaz. 

Considerando a História da Igreja, desde a época primitiva até a queda do Império Romano do Ocidente, e detendo a atenção no estudo das heresias, das polêmicas internas — já no tempo das catacumbas e mais tarde —, aparecem os grandes homens daquele período.

Vemos então uma inteligência da Igreja por onde, por mais que apliquemos a nossa inteligência, sentimo-nos umas crianças em comparação com aqueles personagens. Não é apenas porque aqueles doutores tenham sido tão inteligentes. Sem dúvida o foram; contudo, o meu comentário não versa sobre isso, mas sobre outra coisa: o foco de onde tudo isso surgiu é superior a eles todos. E por mais que procuremos compreender esse foco, ele nos compreende, mas nós não o compreendemos. É o Divino Espírito Santo.  v

 

 

Plinio Corrêa de Olveira (Extraído de conferência  de 18/7/1981)

Revista Dr Plinio 182 (Maio de 2013)

O órgão, o vitral, a ogiva

Três luzes emanadas da Civilização Cristã que, sendo representações sensíveis de Deus, elevam as almas a uma atmosfera celestial.

 

O órgão tem esta coisa maravilhosa: é uma “penumbra sonora”, feita exatamente de som e silêncio. Porque, ainda que soe com todos os registros, o órgão tem dentro de si qualquer coisa de aveludado e silencioso, que é um dos seus melhores charmes, e que mais casam com a penumbra visível da Igreja. Assim é o misto de silêncio e som que há no órgão.

O instrumento de todas as inocências

Entretanto, o órgão quase não comporta a descontinuidade sonora total. Aquele som vai e vai… Sempre mantendo uma harmoniosa ligação com os sons anteriores.

A pessoa que, a partir de um instrumento rudimentar, deu ao órgão as características que conhecemos hoje, poderia ser chamada de “profeta” em matéria de música.

A meu ver, o órgão tem isto de fabuloso: há nele registros que remetem diretamente para o mais admirável da inocência e que fazem dele, quando bem tocado, o instrumento de todas as inocências.

Se fôssemos falar propriamente da inocência na sua maior abertura de asas, deveríamos imaginá-la como um órgão. Ela transforma a alma do homem num instrumento capaz de tocar todas as músicas, à maneira do órgão.

Assim, enquanto não conseguirmos fazer sair das profundidades de nosso ser, não a catedral “engloutie”(1), mas o órgão “englouti”, não teremos feito nada.

Toda alma tem, com variantes, um “órgão metafísico” para tocar em função do universo, e a descoberta desse “órgão” é o fim da nossa vida. Quando descobrirmos isso, estaremos prontos para o Céu. Isso se refere, inclusive, ao escopo da vida de piedade.

Representações sensíveis de Deus

A Santa Igreja tem algo por onde ela relaciona os homens à maneira dos tubos de um órgão. Por isso, a Igreja Católica, bem constituída e vista na sua inteira normalidade, pode ser comparada a um imenso órgão ou a um imenso vitral, porque o vitral faz com as cores o que o órgão realiza com os sons; é o mesmo princípio aplicado em matéria cromática.

Trata-se, portanto, de formar uma visão da ordem temporal sacral, dentro da ordem do universo na qual o homem se encaixa, iluminado por este “lumen uno” da Igreja, que ela soube exprimir através do órgão e do vitral, mas que é um estado de alma, uma supra virtude, uma superposição de temperamento, que eu tenho a impressão de que é uma das graças, das mais genuínas, do Espírito Santo.

Em Pentecostes uma chama baixou e depois se dividiu em várias línguas de fogo. Assim também, o “unum” dessa graça estaria nessa chama originária, que depois se transformou nos vários tubos de um órgão ou nas várias cores de um vitral. É a regra da reversibilidade entre unidade e variedade que está aqui refletida. Variedade levada até quase ao infinito, partindo de uma unidade que se desdobra em guirlandas sem se depauperar em nada.

E, a bem dizer, com uma semelhança estupenda com Deus, que sem Se empobrecer e sem Se cansar em nada, no fulgor de sua glória, cria. Também esse “unum” não se exaure, não empobrece, até se alegra em emitir de dentro de si as mais valiosas variedades, sem sofrer o menor abalo. Quase o motor imóvel de tudo o que ele mesmo pôs em movimento.

Este é o “unum” do órgão, que é o mesmo do vitral: são representações sensíveis de Deus, motor imóvel.

O órgão tem uma forma de beleza própria à polifonia, diversa da beleza austera do cantochão. Entretanto, o canto gregoriano e o órgão não se contradizem, ambos são sublimes. Enquanto o gregoriano afirma: “vaidade das vaidades, tudo não é senão vaidade”(2), o órgão parece dizer: “harmonia das harmonias, tudo não é senão harmonia”.

Por outro lado, vejo no órgão o mesmo que na ogiva e em outras coisas da Idade Média: uma ordem magnífica.

O sublime, o paradisíaco e o alcandorado

Nem tudo o que é humano, nesta Terra, é sublime, mas o órgão seleciona, dentre os sons humanos e terrenos, os sublimes, procurando elevá-los a um estado paradisíaco. O estilo gótico, por sua vez, busca o mesmo em matéria de arquitetura.

Poderíamos dizer que metade do espaço ocupado pelo gótico e pelo órgão é sublime, e a outra metade é paradisíaca. Na ponta transparece o alcandorado e a esperança do Reino de Maria.

Já a coexistência tão ordenada desses três valores — o sublime, o paradisíaco e o alcandorado — dá uma plenitude muito repousante e que prepara para o alcândor. O gótico é uma espécie de santa preparação para chegar ao alcândor. Reúne tudo quanto nossa natureza é capaz de pegar e vai ordenando para perceber a ponta do sublime, e é nisto que me parece estar o mais belo do gótico.

Vemos, assim, o equilíbrio com que devemos pensar no alcândor do Reino de Maria, que não desprezará nem o sublime nem o paradisíaco. Mas assim como Nosso Senhor subiu, caminhando com seus pés divinos, até o alto do Monte das Oliveiras para ali operar sua Ascensão aos céus(3), na qual já não necessitaria empregar a força de seus membros, também no Reino de Maria se ordenarão esses valores sublimes e paradisíacos para, a partir dessa elevação, ascender-se ao alcandorado.

Lembro-me da primeira vez em que eu vi uma ogiva em estilo gótico “flamboyant”. Exclamei: “Ah, que maravilha! Era o que faltava e que eu não tinha talento para imaginar. Que coisa estupenda, maravilhosa!”

Depois ouvi alguém criticá-la, mostrando o que ali havia de transição revolucionária para a Renascença. Pensei: “Lá vem o famoso mau espírito demolidor, a tal acusação seca e destruidora do bom espírito”. Mas depois compreendi que a pessoa tinha razão, pois no modo daquela chama se agitar já entrava algo da Renascença.

Porém, em si, o princípio de que a ogiva tão bonita floresceria numa ordem que a transcenderia, me encantou. Era algo que subia para o alcandorado, cujo voo a pré-Renascença desfigurava.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 6/4/1978 e 16/11/1979)

 

1) Do francês: submersa. Referência a uma lenda bretã segundo a qual os sinos de uma catedral submersa no mar faziam ouvir seu bimbalhar, em certas ocasiões, trazendo à tona a memória do magnífico templo e da belíssima cidade onde ele fora erigido.

2) Cf. Ecl 1, 2.

3) Cf. At 1, 12.

Fontainebleau: esplendor, riqueza e simplicidade – I

Dr. Plinio era muito sensível às cores. Comentando algumas fotografias do castelo de Fontainebleau, ele chama a atenção para a luz que entra pelas janelas, os lustres, os quadros, os painéis, os caixilhos dos tetos, as tapeçarias, os tapetes, tudo constituindo uma prodigiosa policromia. Mostra que tudo visava a beleza a qual, em seu grau extremo, toca a sublimidade.

 

O castelo de Fontainebleau(1) foi construído, no século XVI, pelos reis da dinastia de Valois(2). Quando os Valois se extinguiram, passou para os Bourbons(3) e foi ininterruptamente residência real, até a Revolução Francesa. Depois, sob Napoleão III, mais uma vez se tornou residência real; Napoleão I também habitou Fontainebleau. Depois de Versailles, o mais importante dos castelos franceses é Fontainebleau.

Galeria imponente

Observem a amplitude das dimensões da galeria, que é um corredor, uma comunicação entre dois pontos do castelo. Em galerias como essa se davam festas, faziam-se bailes. Colocava-se, por exemplo, no fundo, os tronos para o rei e a rainha, depois lugares para os personagens principais da família real, e em todo o resto se dançava, havia “buffets” e coisas semelhantes, de tal maneira a galeria era ampla e feita com perspectivas colossais, nobres, imponentes.

Notem a preocupação contínua de elevar a nobreza das coisas, e com a nobreza, a beleza a um grau extremo, que toca a sublimidade. Chamo a atenção, primeiro, para o teto. É todo feito com um jogo de madeiras encaixadas e que formam realces, caixilhos. Esses caixilhos constituem desenhos lindíssimos, num tom marrom.

E esse jogo riquíssimo de caixilhos vai se repetindo, com variedade, de uma ponta até a outra. O que não aparece nessa fotografia é que muitos desses caixilhos são realçados a ouro, de maneira que há um jogo de dourado com marrom.

Do teto pendem lustres que se usavam no tempo, altos e, ao mesmo tempo, muito elegantes, suspensos por grandes correntes, e de pesos leves; não se tem nenhum pouco a impressão de uma massa pesada. Há uma bola, mas depois os braços para cima dão uma impressão de equilíbrio. Tem-se mais a sensação de que o lustre está flutuando no ar, do que preso ao teto e constituindo um peso.

O jogo de luzes e os quadros

A preocupação ornamental é toda estabelecida em processo de jogos de luz. No soalho, notam-se várias zonas claras e escuras, que correspondem às janelas muito altas. Cada uma delas se compõe de duas janelas superpostas, das quais a mais alta é a maior, e com um vidro que não é inteiramente transparente, mas vagamente leitoso.

Assim, a luz que entra na sala é matizada, meio irreal. E bate, então, sobre um soalho todo feito de tacos enormes, formando desenhos, e esplendidamente encerado. De maneira que essa luz especial penetra aqui, reflete lá, com o brilho marrom da madeira esplendidamente envernizada, e joga dentro de toda a galeria. E uma das coisas que esta galeria tem de mais bonito, mas que fica indefinível, é um jogo de luz dentro dela. Num sistema de arte, uma das coisas mais bonitas é exatamente o jogo de luz.

Porque a luz é algo de nobre, uma categoria de espírito, que nos transporta para uma espécie de mundo irreal, superior, diáfano, quase de fadas, em que se movimentava a sublimidade real, o esplendor da aristocracia e coisas do gênero.

E nas paredes, quadros com coloridos muito bonitos, molduras de madeira e de gesso riquíssimas; dir-se-ia que as paredes estão quase empetecadas, mas não estão — o francês evita o empetecamento da Renascença italiana — por causa dessa simplicidade da parte de baixo. O empetecado é bonito desde que contraste com uma zona de muita simplicidade, que o compensa.

Se imaginássemos que houvesse esses quadros na parte inferior das paredes, seria um pesadelo; teríamos vontade de atravessar a galeria correndo. Mas aqui está a nota do equilíbrio francês. Em cima, riquíssimo; embaixo, a madeira muito mais sóbria e com trabalhos discretos, simples, distintos, de maneira que uma coisa compensa a outra, e mais uma vez temos o jogo de claro-escuro.

A luz que penetra pelas janelas também contrasta com o marrom, constituindo um jogo de uma cor meio cinza-pérola, que forma a nota cromática da galeria.

Jogo de painéis, banquetas e, no fundo, o busto do rei

Cada zona dessas — da parte inferior das paredes — é de uma composição muito simples. Porque é feita de um painel central com um escudo e três flores de lis; e, em volta, elementos heráldicos. Ao lado há um painel igual. Mais além há uma espécie de painel extra, que também se repete. Assim, forma-se um jogo de painéis. Enquanto em cima os quadros são muito variados, embaixo os painéis se repetem bastante. E as banquetas repetem-se também, de quando em quando.

De maneira que forma um jogo de unidade na variedade, mas a muitos títulos. Há um contraste entre algumas coisas muito trabalhadas e outras simples. Existem várias unidades e diversas variedades, compondo uma harmonia central. Esta tem por ponto de mira o fundo da galeria, a qual possui duas portas que são apenas o enquadramento do objeto principal: um busto do Rei Francisco I, dominando toda a galeria. A última perspectiva é da majestade real. Olha-se e, no fundo de todas essas distâncias, nimbado de glória, dentro dos jogos de luz etc., está o rei. O que me parece soberanamente bem pensado.

Tão bem pensado que o indivíduo vê isso, gosta e não é capaz de explicitar. É preciso a pessoa ter tido tempo para conseguir explicitar. E o triunfo dessas coisas se dá não quando elas chamam a atenção do homem capaz de explicitar, mas quando encantam o incapaz de fazê-lo. Aqui elas atingem o seu equilíbrio, a plenitude da força convincente. O indivíduo não sabe por que, mas gostou muito.

Por detrás desse esplendor há um princípio de ordem racional

Muitas pessoas que eu conheço, se visitassem esse palácio, diriam que é bonito, mas não teriam a reação de alma que uma coisa dessas deve provocar. Porque eles não procurariam entender que há um princípio de ordem racional por detrás disso; não desejariam ficar nesse local para vê-lo muitas vezes.

Saindo dali, não se lembrariam disso, e não procurariam fazer algo semelhante, a não ser que estivesse na moda e por questão de esnobismo. Nunca por um verdadeiro gosto e entusiasmo. Por quê? Porque há qualquer coisa de encarangado na alma dessas pessoas, por onde esse sentimento de plenitude, ocasionado pela grande beleza, se perde, se restringe, se retrai, se recusa. 

Esplendor e amor a Deus

Imaginemos essa galeria com as danças do tempo em que o castelo foi construído; eram tipos de dança que começaram com a pavana e acabaram com o minueto. Danças que faziam figura e se iniciavam com longas fileiras de senhores e de damas, riquissimamente vestidos e segurando-se pelas mãos, e que entravam de cada lado das duas portas.

Formava-se uma fileira de cada lado e, em alguma tribuna, ou na ponta de entrada, uma orquestra com alguns violinos tocando — porque era só violino. Mais tarde, começaram a usar o cravo para o minueto. Então, as duas fileiras se constituíam, faziam uma reverência ao rei, depois começavam a dançar, atravessando-se umas as outras etc., e enchendo a galeria com suas harmonias, seus perfumes, os reflexos do brilho das roupas, a elegância das pessoas. E dançando havia pessoas famosas: senhores que tinham governado feudos, participado de guerras, diplomatas, militares que estiveram no Oriente, haviam combatido e tinham ganhado guerras, por exemplo, Dom João d’Áustria(4). Entende-se, assim, quem estava reunido ali. Tanto mais que, de noite, a iluminação era escassa e fora havia as trevas exteriores de que fala o Evangelho. De maneira que isso era uma espécie de guia de luz, numa noite escura. Compreendemos, então, todos os contrastes que jogavam a favor disso. Era uma verdadeira maravilha.

Esse era um dos aspectos do esplendor, do estado de alma em que a pessoa é apetente e se torna plena dessas coisas; não fica ressentida, encarangada, dispersa, em presença disso. Eu sustento que quem está apto a amar isso tem muito mais capacidade de ideal, e de amar a Deus, do que quem não é capaz de amar esse esplendor.

A Sala do Conselho

Consideremos a Sala do Conselho. Não se sabe bem o que dizer dela!  É uma tal pluralidade de cores e de coisas bonitas que, no primeiro momento, fica-se aturdido. Mas depois as observações podem começar. A primeira é a seguinte: o teto aqui aparece melhor; não é envernizado, mas inteiramente pintado. É de uma rara beleza, porque tem qualquer coisa da abóboda celeste, a qual é de certo modo feita de caixilhos de estrelas diferentes. Não é como o teto lambido dos prédios de apartamentos de hoje; aqui tem reentrâncias, saliências, ornatos etc., possui algo do princípio ornamental da abóbada celeste noturna, que é o jogo, as massas, os movimentos.

Mas a Sala precisava ter traves de sustentação, e estas foram aproveitadas como elemento de decoração, formando províncias de caixilhos diferentes. Notem como as pinturas realçam as traves: um azul esverdeado muito claro e um ouro morto, com desenhos muito elegantes que exploram o pontudo e o ovalado, num arabesco.

Os lustres pendem das traves. Porque estragaria o jogo dos caixilhos um lustre pendurado num deles. Prestem atenção nos lustres!  É indizível a beleza de um lustre desses. Isso é de conto de fadas! Há uma bola na ponta de cada um dos lustres, que — por uma convenção da qual não me lembro mais qual é — costumava ter água. Quando fabricavam o lustre, colocavam água nessa esfera. E parece que isso aumentava a capacidade de reflexo, porque esta bola tinha uma finalidade útil que era colher as últimas luzes que caem, e refleti-las ainda uma vez para iluminar a sala.

Há um tal escachoar  de cristais diversos, que não se  tem o que dizer, mas é muito interessante porque, pelo efeito de refração, multiplica-se a luz das velas. É altamente funcional.

Chamo a atenção para as tapeçarias. Não são quadros que estão nas paredes, mas tapeçarias, provavelmente de Gobelin(5), como também o tapete. As paisagens das tapeçarias detêm o espírito, de maneira que a pessoa fica olhando muito tempo; importa muito o jogo geral das cores, segundo um princípio a respeito do qual vou falar em breve. Existem várias tapeçarias simétricas, porque a beleza da sala é toda baseada em simetria. Depois vemos a chaminé da lareira, que respeita o princípio daquela galeria que analisamos: ultra-sobrecarregada na parte superior, e na inferior muito simples, de maneira a descansar a pessoa do sobrecarregado que está em cima.  v

 

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 31/10/1966)

Revista Dr Plinio 182 (Maio de 2013)

 

1) Situado a 55 quilômetros do centro de Paris, França.

2) Dinastia que reinou na França de 1328 a 1589.

3) Os Bourbons ocuparam o trono francês de 1589 a 1792, quando Luís XVI foi preso e decapitado pela Revolução Francesa. Restaurada em 1815, esta dinastia reinou até a abdicação de Carlos X durante a Revolução de Julho de 1830.

4) Capitaneou a esquadra que venceu os otomanos na Batalha de Lepanto em 1571.

5) Famosa manufatura de tapeçarias ricamente ilustradas, criada na França em 1667, sob o reinado de Luís XIV.