Inocência paradisíaca

Continuando a descrição de como a alma de um menino reto se abre para a realidade à sua volta, conhecendo-a com o senso do ser pelo qual ama o belo e rejeita o feio, Dr Plinio concebe esse processo numa criança ideal: Abel, se tivesse nascido sem pecado original, no Paraíso terrestre.

 

Na anterior exposição sobre o tema, ficamos de considerar o exemplo de Abel, imaginando-o inocente no Paraíso, como teria sido sem o pecado de Adão.

Refiro-me de modo intencional a Abel, e não a Adão, porque este foi criado já adulto. Tendo Nosso Senhor Jesus Cristo morrido aos 33 anos, costuma-se dizer que essa é a idade perfeita do homem, e com ela Deus criou Adão. Portanto, um adulto na sua plenitude, que foi tomando conhecimento das coisas durante a vida.

Mas, Abel passou pela infância. Como teria sido esse período na existência de um homem sem pecado original? Como as coisas iriam se apresentando para ele?

O conhecimento na alma inocente

É preciso notar que, após a queda de nossos primeiros pais, a infância é um misto de inocência e imbecilidade, acompanhadas pela fraqueza da mente e do corpo. Essa imaturidade vem do pecado original. Sem este, a criança passaria a pensar desde o início sem as debilidades que trouxe o pecado, dotada de notável discernimento e profundidade de espírito, embora sem a experiência de um homem adulto.

Coisa infinitamente mais maravilhosa se deu com Nosso Senhor Jesus Cristo, na sua natureza humana. E, dizem os teólogos, algo análogo aconteceu com São João Batista, a partir do momento em que — durante sua gestação, mas com sua razão constituída, no claustro materno de Santa Isabel — ouviu a voz de Nosso Senhora e estremeceu de alegria.  Nesse instante, viu-se limpo da culpa original, e conheceu algo de extraordinário na Santíssima Virgem.

Portanto, se não houvesse pecado original, a criança teria um conhecimento maduro, embora incipiente, das coisas. Ao tomar contato com estas, verificar-se-ia nela algo de primaveril, não apenas candidamente limpo, mas com o encanto daquela primeira hora que vai desabrochando e contém todo o futuro. Mais ou menos como a aurora que encerra em si a beleza do dia. É muito bonito vê-la condensada no raio inicial de luz cortando as nuvens, com uma beleza especial que nem ao meio-dia o sol apresentará. O primeiro ósculo do astro-rei na Terra tem uma pulcritude própria.

Os homens nascidos no Paraíso terrestre, sem pecado original, seriam mortais por natureza, porém, por um dom especial de Deus, não morreriam.

Quer dizer, a riqueza da vida no primeiro instante iria se ampliando até atingir a apoteose. E, sob certo aspecto, nada seria mais belo quanto o momento primaveril, inicial, em que um homem nascesse e tivesse a vida diante de si, semelhante a uma cascata na qual a água escachoa com abundância e plenitude formidáveis. Assim seria a criança, com o caráter e os encantos de um principiante já maduro de espírito.

Para formarmos uma ideia dessa condição, imaginemos Nosso Senhor menino ensinando no Templo. Cândido e admirável como uma criança que tinha à sua frente todo o futuro, mas, de outro lado, maduro a ponto de deixar estarrecidos os doutores da Lei. Nosso Senhor, Homem-Deus, nascido da Virgem que tinha sido concebida sem pecado original, quanto Ele era incompatível com qualquer forma de pecado! Guardadas todas as proporções, assim também seria a criança sem pecado original.

Abel passeando pelo Paraíso

Temos na alma um mecanismo de raciocínios, vontade, sensibilidade, instintos, que trabalha continuamente e nos faz conhecer as coisas exteriores, e depois confrontá-las conosco.  E para que essa operação seja mais perfeita, realizamos uma análise e um estudo intelectivo de cada uma, de maneira a conhecermos a coisa melhor e também a nós mesmos. Assim, sabemos o que nos convém.

Uma criança sem pecado original — o nosso hipotético Abel perfeito —, em seu primeiro passeio pelo Paraíso, ao ver as plantas, por exemplo, teria a noção da natureza e das propriedades de cada uma, como também de sua própria realidade física, de suas apetências, conveniências e seu feitio de alma.  E escolheria as frutas adequadas para sua primeira refeição.

Suponhamos uma árvore em estado de frutificação permanente, da qual o homem pudesse facilmente colher frutas ao alcance de sua mão, ou porque tinha tal império sobre a natureza que, por um ato de vontade, poderia obrigar a planta a se dobrar, e do alto descer um galho, reverente, apresentando-lhe uma penca delas à sua escolha. Isso sucedia, aliás, com o primeiro homem,  em virtude de seu domínio sobre as demais criaturas.  Quando passeava pelo Paraíso, todas as coisas se voltavam para ele, a fim de servi-lo, em atitude de corte, como se fosse um rei. E à medida que as observava, em sua alma despertavam-se reações semelhantes às da criança com a bola: é, não é; quero, não quero, mas sem a falta de critério do menino que, por exemplo, deseja comer uma bola de vidro.

Voltemos a Abel. Ele ia conhecendo as coisas lentamente, com exatidão, escolhendo o que lhe convinha; almejando tanto quanto razoável, não se empanturrando com elas nem as esbanjando.  Em determinado momento, quando se alimentava de algo, com a naturalidade de quem toma um copo de água, diria: “Agora basta, estou satisfeito”.

Começaria a conhecer também os panoramas paradisíacos, que se lhes apresentavam ordenados. O Paraíso era uma caixa de surpresas, não porém um labirinto. Podia-se saber o que se encontraria, caminhando nesta ou naquela direção. E, de quando em vez, Deus dispunha uma surpresa maravilhosa lá e acolá. E Abel passearia em busca de paisagens que lhe agradassem, onde, por exemplo, os pássaros gorjeassem de acordo com aqueles cenários, compondo um “son et lumière”(1) especial; as sombras fizessem lindos jogos com a luz, e houvesse musgos magníficos ou pedras suntuosas para Abel sentar-se, a fim de observar melhor e pensar de modo mais profundo, sem sentir fadiga, pois ele não conhecia cansaço físico nem mental.

A glória eterna, sem passar pela morte

Ademais, seu seletivo 2 funcionaria continuamente, quer ele percebesse ou não. Ao observar duas coisas, pensaria: “Desta gosto mais, e daquela, menos. Como Deus é grandioso!  A segunda convém a meu irmão, e a primeira para mim.  Como o Criador é esplêndido em tudo que faz!  Meu Senhor, obrigado pelo que destes a meu irmão, e por aquilo que me ofertastes. Como sois maravilhosos e bom!”

Abel usaria do que lhe era oferecido, deleitar-se-ia e iria se completando, tornando-se cada vez mais ele mesmo.  Sobretudo, compreenderia que, pelo funcionamento desse seletivo, quando alcançasse a plenitude de si próprio, teria a magna recompensa: a apoteose, o céu se abriria, os Anjos desceriam para levá-lo, sem passar pela morte, para a glória eterna.

Essa seria a perspectiva da vida de um homem sem pecado original.

Riquezas do seletivo no inocente

Tendo em vista esses pressupostos, podemos estudar melhor o que se passa nesse misterioso seletivo de uma criança nascida no Paraíso, sem a mácula original: como ele opera, se desenvolve e se enriquece.

Tudo o que existia no Éden era cognoscível pelo homem, sendo cada coisa imagem, semelhança ou vestígio de Deus. E o Paraíso, no seu conjunto, espelhava o Criador de maneira mais perfeita do que cada criatura em particular. Assim, à medida que a pessoa — Abel, por exemplo — fosse conhecendo as coisas, perceberia a excelência e compreenderia melhor a natureza peculiar de cada uma delas, e como se imbricavam entre si.

Logo depois das sensações concretas, surgiram em seu espírito as idéias abstratas. Imaginemos que ele encontrasse junto a um magnífico lago, uma árvore estupenda a qual, em todos os milímetros de sua superfície, estivesse florescendo e se projetasse sobre a água de um modo maravilhoso. Planta, do seu gênero, sem igual no Paraíso. Sua primeira impressão, puramente sensível, assim se exprimiria: “Que maravilha!”

Em seguida, começaria uma reflexão: “Como é bom para essa árvore dar tantas flores! Que excelente qualidade ela possui!”. E numa terceira etapa, ele se perguntaria: “Como conceituar esse predicado da árvore, pelo qual dá tantas flores?”

Não tendo nenhuma limitação mental, ele comporia imediatamente a palavra perfeita, cunhada como uma moeda: fecundidade.  Esta árvore é fecunda em flor. Então compreenderia melhor o que é flor, sua grande utilidade para encantar a alma e, por isso, superior sob certo aspecto à fruta.  A árvore tem fecundidade, e a flor, beleza.

Voltando-se para outro lado, vê uma flor que é única, brotada na ponta de uma pequena planta, e em torno dela não se acha nenhuma igual.  É maravilhosa!  Ele cogita: “Curioso! Há pouco me agradou a fecundidade.  Dir-se-ia que estou agora apreciando a infecundidade? Não pode ser. Ah! Esta última flor tem outro predicado: raridade!”

Logo após o conhecimento concreto, viria o conceito abstrato e a palavra: “Ah, é rara. Tudo que é raro é precioso. As coisas fecundas, de si produzem muitos efeitos. Mas há outra forma de fecundidade, como a dessa plantinha da qual nasceu uma flor que equivale a todas daquela outra árvore. Isso se chama categoria, classe!”

Um maravilhoso descortino do universo

Assim se poderia imaginar um passeio pelo Paraíso, e as idéias surgindo e se desprendendo umas das outras como se fossem páginas um pouco coladas de um livro que se abre e elas se desvendam. E, naturalmente, viria ao espírito de Abel outra ideia: “Não se pode ser mais fecundo do que aquela árvore, e ter mais categoria do que essa flor? Qual é o “summum” da fecundidade: florescer ou criar?

“Criador… Quem, do nada, fez tudo isso? O que é criar? Como é Aquele em quem todas essas coisas potencialmente estavam e que, de repente, lhes deu vida? Como Ele é único, e n’Ele se fundem todas as qualidades! Deus!”

Percebe-se, então, como o universo vai se abrindo de modo maravilhoso, conduzindo-nos até o Onipotente Senhor da Criação.

A esse propósito, lembro-me de um brinquedo japonês que havia no meu tempo de criança, tão pobre em comparação com essa faustosíssima figuração que estamos imaginando… Punha-se um pouco de água num prato de sopa, por exemplo, e nele se jogava uns papeluchos, espécie de confetes. Estes se umedeciam e começavam a se abrir, formando florzinhas diferentes. As crianças gostavam de ver como as bolinhas bonitinhas se abriam em flores, e depois o prato ficava repleto delas.

Assim se sentiria alguém inocente que fosse vendo o universo se desdobrar, abrindo-se como essas florzinhas, preparando seu espírito para Deus. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 85 (Maio de 2005)

 

1 ) Espetáculo de som e luz.

2 ) Como vimos em anterior artigo, “seletivo” é uma palavra cunhada por Dr. Plinio para indicar o senso pelo qual o homem seleciona as coisas que conhece, aceitando umas e rejeitando outras.

Pentecostes

“Emitte Spiritum tuum et creabuntur, et renovabis faciem terrae! — Senhor, mandai o vosso Espírito e todas as coisas serão criadas, todas as coisas reviverão, e a face da terra será mudada.”

Onde o Divino Espírito Santo se faz presente, Ele vence, assim como venceu no dia de Pentecostes, depois de descer sobre os doze Apóstolos reunidos no Cenáculo. Transformados, estes passam a pregar aos habitantes de Jerusalém. As conversões se tornam torrenciais. O inesperado se realiza. Homens de todas as partes do mundo se deixam tocar e mudam completamente, como outros tantos pregoeiros da grande nova: “Um Deus nasceu, um Deus se encarnou numa Virgem; morreu por nós e nos resgatou. As portas da salvação se abriram para nós!”

Tinha início a aurora da Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana, nimbada de glória a partir de Pentecostes.

A mais fulgurante de todas as estrelas

Nossa Senhora é chamada, muito a propósito, de Estrela Luminosíssima. Incontáveis astros reluzem no firmamento, porém Ela é o mais resplandecente de todos, ou seja, Maria é a mais luminosa das criaturas. E por que é simbolizada pela estrela? Porque é durante a noite que cintilam as estrelas, e esta vida é para o católico uma noite, um vale de lágrimas, uma época de provação, de perigo e de apreensões. Na eternidade teremos o dia, porém na vida terrena temos o escuro da madrugada. E nesta noite existe uma estrela que nos guia, que é a consolação de quem caminha nas trevas, olhando para o céu: Maria Santíssima, a mais fulgurante de todas as estrelas!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 24/8/1965)

Revista Dr Plinio 254 (Maio de 2019)

Contemplação do universo sideral

Deus poderia perfeitamente ter feito fogos de artifício magníficos e incomparáveis, perto dos quais os nossos fossem uma caipirada. Entretanto, criando os astros, deu-nos a ideia de um espetáculo pirotécnico, com a possibilidade de projetar no ar uma ordem que, debaixo do ponto de vista lógico e puramente estético, em algo é mais bonita do que a ordem que Ele fez.

 

Ao considerarmos o universo sideral, vemos uma tão grande série de maravilhas que o maravilhoso se multiplica pelo maravilhoso e ficamos sem saber o que dizer à vista de tudo isso.  Os comentários que mais saltam aos olhos são banais e morrem por incertos, indecisos, restando um vagido inexpressivo e insuficiente. Aquilo que é lindo pede uma exclamação: “Que lindo!” Mas isso todo mundo viu. E se começamos a descrever o lindo, quebra-se a impressão do conjunto que ele causa.

Assim sendo, vou apenas esboçar três ou quatro comentários, dos quais um não é de caráter artístico, porém consiste mais em uma reflexão do que num comentário: é a analogia entre o inter-relacionamento dos corpos celestes e a sociedade humana.

Imagem possante da sociedade orgânica

Se formos ao centro de uma grande cidade, olharmos do alto de um prédio para baixo e virmos aquele “formigueiro” de gente que anda de um lado para outro, nossa primeira impressão é de desordem. As pessoas correm com toda espécie de objetivos, entrecruzam-se e, contudo, não se chocam umas com as outras.

Ora, a impressão que se tem ao contemplar os corpos celestes é de que estamos num arranha-céu, olhando muito de longe um mundo de gente andando. Tudo isso é posto em andamento por atrações diversas. Entretanto, nesse todo que parece um magma sem sentido nem estrutura que lhe dê uma significação especial, vemos que há grupos de corpos geminados, irmanados, em relação uns com os outros, formando galáxias e estas, por sua vez, constituindo outros conjuntos nos quais encontramos uma imagem possante da sociedade orgânica.

A sociedade orgânica, como ela existiu nos tempos da Civilização Cristã, era assim. A partir da prodigiosa desordem dos indivíduos, começa a se notar a aglomeração em famílias, em corporações, em municípios, em regiões, em feudos. Depois, esses mesmos se reúnem em outros grupos até dar na estrutura de cúpula que era o Sacro Império Romano Alemão, o qual poderia ser comparado um pouco como uma visão de conjunto da abóbada celeste.

Percebemos, assim, que, para ordenar os corpos do firmamento, Deus usou de um sistema parecido com aquele pelo qual Ele quis ordenar a sociedade humana, dando-nos uma noção de como o princípio da unidade na variedade pode ser aplicado de um modo sumamente conveniente.

Essa unidade, considerada nos seus elementos mais fundamentais e mínimos, dá uma impressão de desordem. Mas à medida que vão se formando vistas arquitetônicas desses e daqueles seres, notamos como eles constituem conjuntos que, por sua vez, encaixam-se em conjuntos sucessivos, dando tudo numa grande ordem total que é a beleza e a sábia disposição de tudo quanto ali se encontra.

Ora, não podia ser ignorada por Deus a possibilidade de, com o avanço da Ciência, o homem vir a conhecer o cosmo com riqueza de pormenores. E essa possibilidade ocorreria quando na Terra esse princípio acima enunciado estivesse mais negado e mais subvertido.

Na ordem sideral há uma negação da mentalidade revolucionária

Vemos na ordenação dos astros uma imagem impressionante dos céus e da Terra de fato cantando a glória de Deus, como diz o salmista (cf. Sl 18). Mas narram-na da seguinte maneira, entre outros aspectos: a ordenação orgânica de todo o universo, e como tudo corre bem sem trambolhões, nem choques, sem desastres e sem catástrofes. Por outro lado, na Terra, quando esse mesmo princípio é negado entre os homens, tudo corre mal. De fato, céus e Terra narram a glória de Deus porque esse princípio ordenativo, admitido no céu, causa essa ordem magnífica; negado aqui na Terra, dá nesse caos pavoroso. Então, no contraste podemos ver a afirmação da glória de Deus.

Ademais, há na ordenação sideral uma negação da mentalidade revolucionária. Sempre me chamou a atenção o modo pelo qual certos problemas sociais, psicológicos, educacionais, pedagógicos são postos em nossa época. Vemos certos especialistas discorrerem, por exemplo, sobre o problema infantil: “Ah, o problema da criança é gravíssimo! Se, de fato, o Estado não tomar essas e aquelas medidas, vai acontecer tal coisa…”

Eu penso: “Meu Deus, que pedagogia é essa que vê em cada criança exclusivamente uma bomba? É um contínuo apagar de incêndio. Tem que extinguir mil labaredas nesse ente, que quase se diria ser uma pequena hiena no mundo, e é uma criança que nasceu. Tudo isso é assim mesmo?”

Além do problema do menor, tem o da velhice; depois dos salários, das comunicações. E a ordem nesta Terra, em vez de ser apresentada principalmente como algo que se liga e anda, embora sujeita a insucessos e catástrofes derivadas próxima ou remotamente da impiedade e do pecado, pelo contrário é vista como sendo por natureza uma coisa sempre em explosão, em perigo de choque. O corolário disso é a necessidade da intervenção do Estado socialista, planejando e dirigindo tudo, para solucionar esse pânico contínuo provocado por certo tipo de Ciência ao considerar os fenômenos humanos.

Um indivíduo dominado por esse espírito, ao analisar o que se passa nos astros, diria: “Há o problema das explosões no céu. Pensamos que de repente haja uma explosão e um corpo celeste pode mover-se em sentido contrário, ocasionando um desastre.”

Nós olhamos encantados para essas explosões trágicas e lindas, sem saber se é a apoteose de um processo que foi se formando na aparência da desordem para dar um magnífico fogo de artifício, ou se, pelo contrário, é um verdadeiro desastre.

Contudo, quer as explosões-desastre, quer as explosões-apoteose, triunfais, em que uma determinada situação se liquida no fulgor de uma bagunça magnífica, não há epidemias de desastres. Esses fenômenos se contêm, se circunscrevem, têm forças contrárias que os compensam, etc. Assim também a verdadeira sociedade orgânica, católica, em que a impiedade e o pecado estão contidos.

Explosões da santidade, do gênio, do talento

Por certo, mesmo em uma sociedade humana virtuosa e ordenada há desastres, choques, e convém atendê-los. Mas não é uma coisa que está a toda hora caindo, sendo preciso um Estado omnipotente, omnisciente, tomando conta de tudo, fazendo prodigiosos institutos, babéis securitárias para tomar conta disso. Deus nos livre dessas “camisas de força” administrativas, dentro das quais quase não se pode respirar nem piscar sem se deixar carimbar, estampilhar, fazer requerimento…

Felizmente ainda não foi dada aos seres humanos a oportunidade de tentar controlar o movimento dos astros, porque se houvesse essa possibilidade, podem ter certeza de que caía o dirigismo por cima disso também. E com ele sairia besteira. Isso tudo corre por si, pois não tem ali o pecado, o mal, nem os fatores de desordem que conhecemos.

Donde se tira uma conclusão que a mim agrada muito: uma sociedade humana da qual a impiedade e o pecado estivessem expulsos poderia ser nobremente livre, cheia de imprevistos magníficos e até, num certo sentido, de explosões benditas, que são as explosões da santidade, do gênio, do talento, da originalidade adequada, que de todos os lados se manifestariam. Originalidade aqui não é extravagância, mas novidade sadia.

De outro lado, constatamos até que ponto a impiedade e o pecado organizaram a desordem para que o mundo pudesse chegar ao ponto em que está. Esse próprio equilíbrio das coisas humanas, pelo qual, dentro do âmbito da virtude, elas podem entrar em desordem, mas se compensam e se consertam; esse equilíbrio magnífico que se pode chamar de saúde do gênero humano, entretanto, foi destruído por uma obra científica intencional, com o intuito de levá-lo até onde rolou e caiu.

Se não tivesse havido uma intenção e uma execução desse método, não teríamos chegado onde estamos em matéria de desordem, e não estaríamos ameaçados de descer ainda mais baixo. É esse o contraste que podemos notar entre o universo sideral e a sociedade humana, como ela nos aparece hoje em dia.

Os céus de Versailles cruzados por fogos de artifício

Imaginem o grande canal de Versailles, tendo ao fundo o castelo magnífico, o parque que se desenvolve ordenadamente de um lado e doutro do grande canal e se desdobra até um emolduramento de florestas, em que cada árvore é uma obra-prima de elegância, de graça, quase como se fosse um marquês ou uma marquesa, a ponto de se poder falar, de certo modo, das florestas como se fossem cortes.

Sobre as águas transitam harmoniosamente as gôndolas douradas que Luís XIV ali mandou pôr; embarcações com magníficos veludos que ficam pairando sobre a massa líquida e constituem como que a cauda pomposa da gôndola, algumas delas com lanternas iluminadas. Em algumas se ri, em outras se canta, em outras se toca música, em quase todas se come ou se bebe um pouco.

De repente, os céus de Versailles são cruzados por centenas de fogos de artifício magníficos que sobem e delineiam uma feeria de luzes e corpos celestes, lançados pelo homem para iluminar o firmamento, conforme o próprio homem imaginaria como o céu seria bonito. Portanto, uma imagem do firmamento toda ela artificial, construída pelo homem.

Se confrontarmos esse espetáculo com as figuras que vemos formadas pelos astros na abóbada celeste, poderíamos nos perguntar o que é mais belo. E num primeiro momento responderíamos com ênfase que a obra saída diretamente das mãos de Deus é incomparavelmente mais bela. Entretanto, não se pode negar que a ordenação artística e visível que o fogo de artifício põe, efemeramente, nos aspectos do céu tem para a mente humana algo de mais belo do que nos apresenta o universo sideral.

Esses astros, dispostos na desordem como alguém que enchesse a mão de farinha e esparramasse sobre um tecido, não têm para a concepção humana a beleza dos fogos de artifício, os quais formam geometrias magníficas quando lançados nos céus de Versailles ou de qualquer outro lugar.

Estaremos errados? Há um choque entre a obra divina e a humana? Deus trata o homem com tanto respeito e delicadeza, que fez todas essas maravilhas, mas deu-lhe a oportunidade de superar em algo aquilo que Ele mesmo criou. É um requinte de delicadeza e de misericórdia paterna, por onde o próprio Criador quer aparecer ao homem debaixo de outro aspecto, para que ele O ame mais inteira e plenamente.

Creio que, se não houvesse estrelas no céu, o homem não teria imaginado os fogos de artifício. Deus poderia perfeitamente ter feito fogos de artifício magníficos e incomparáveis, perto dos quais os nossos fossem uma caipirada. Mas não fez. Entretanto, criando os astros, deu-nos a ideia de um espetáculo pirotécnico, com a possibilidade de projetar no ar uma ordem que, debaixo do ponto de vista lógico e puramente estético, em algo é mais bonito do que a ordem que Ele fez.

Nossa Senhora é o centro e o ápice de todas as maravilhas do universo

Alguém poderá objetar: “Mas isso não O diminui? Não nos dá orgulho, fazendo-nos pensar que em algo somos mais do que Ele?”

Ora, Deus é tão poderoso e é tão autêntica a infinitude do seu poder, que Ele fez tudo isso, mas muito mais do que isso: criou almas capazes de pensar, imaginar e compor algo em certo sentido melhor do que aquilo criado por Ele. Ao fazer isso, demonstra um poder incomparavelmente maior, com a delicadeza de quem diz: “Meu filho, complete o desenho!”

Ao mesmo tempo, manifesta Ele essa grandeza fabulosa, como quem afirma: “Meu filho, veja o que tu és! És pensante e capaz de acrescentar uma nota de harmonia a tudo isso, porque és mais parecido comigo do que todo o universo. Essas são minhas semelhanças, tu és a minha imagem. Meu filho, como te amei quando assim te criei e quando aproximei as nossas naturezas, elevando a tua ao unir ambas numa só Pessoa! Veja como tudo isso é zero em comparação com as grandezas intelectuais, espirituais, morais, sobrenaturais para as quais foste criado. Quando um dia passeares por essas vastidões, em comparação com as quais és mais pequenino do que um micróbio, sentir-te-ás um verdadeiro rei, pois compreenderás que por teres existido, pensado, amado, sentido e agido conforme a Mim, teu Deus, te tornaste incomparavelmente mais belo do que todo o universo.”

Ó Sol, ó Lua, ó universo, ó maravilha! Ó poeira… A menor das almas que está no Céu é mais maravilhosa do que tudo isso.

Nosso Senhor Jesus Cristo Se voltaria para Nossa Senhora e diria: “Vós sois minha Mãe, o centro e o ápice dessas maravilhas. Em Vós há mais beleza do que em toda a Criação. Quem contempla o vosso olhar, contempla todo o universo em um grau de beleza e de perfeição como não se pode imaginar.”

Por fim, imaginemos a Santíssima Virgem, do alto do Céu, contemplando todas essas maravilhas e pedindo em nosso favor a graça de fazermos bem esta meditação, e Se interessando mais em ver o movimento da graça em nossas almas do que em conhecer o universo. Para Ela, cada um de nós vale muito mais do que essas imensidões que nos deslumbram. Com isso compreendemos quanto valemos, quanto Deus e Nossa Senhora nos amam, e que possibilidades magníficas, como também responsabilidades, há diante de nós. Assim, estaria feita uma reflexão, entre mil outras que a contemplação do universo sideral nos sugere.       v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 25/2/1977)

Revista Dr Plinio 254 (Maio de 2019)

O bom conhecimento da alma humana

Tratando com o próximo, não devemos desde logo considerar seus defeitos, mas precisamos ter um conhecimento exato de quais são seus lados positivos, e pensar como seria aquela alma se correspondesse ao que deve ser.

 

Para se ter um bom conhecimento da alma humana não se deve ir desde logo aprofundando na consideração dos defeitos. Essa é uma concepção detetivesca que para efeito de polícia terá sua utilidade, mas para nós não é a verdadeira.

Procurar ver no outro o que ele tem de melhor

É preciso, tratando com o próximo, ter um conhecimento exato de quais são os lados positivos, o que seria aquela alma se correspondesse ao que deve ser. A partir daí se faz uma medida do que a alma deveria ser e o que ela é, e se vê a diferença no que está faltando. Depois pode-se ter a consideração do que a pessoa infelizmente é, do que pode vir a ser, do mal para o qual ela tende. Mas a vista primeira que elucida todo o resto é o conhecimento do melhor aspecto da pessoa. Eu acho que o espírito dos ditos argutos não vê isto, e por essa razão eles acabam vendo muito pouca coisa.

Isso não é ingenuidade, porque não quer dizer que se imagine ser a pessoa como ela deveria ser, mas vê-se como ela deveria ser e não é. O que supõe na base da perspicácia uma generosidade de alma pela qual se é propenso a ver no outro o que ele tem de melhor, e não um rival, mas uma complementação de si próprio. Se a pessoa não tem esse estado de alma nunca chegará à verdadeira perspicácia.

Há, portanto, um certo discernimento na base de todo conhecimento, por onde se vê, antes de tudo, o melhor aspecto da pessoa e algo que tocaria quase na pessoa utópica, em que ela fosse a plena medida de si própria, na promessa de Deus. A partir disso, então, é que vêm os vários graus de conhecimento.

É muito importante esta impostação para conhecer as pessoas e saber agir em face delas, e ter assim o espírito retamente construído. Daí nasce um primeiro passo no caminho de uma ordem ideal realizável, que consiste em não se contentar com a vulgaridade, com a trivialidade, como sendo a própria face autêntica das coisas. Ao contrário, entender que a vulgaridade e a trivialidade são sempre deformações, pois nada é, ex natura própria, vulgar e trivial a não ser certas coisas materiais feitas por Deus para nos despertar a repulsa, pensar no Inferno, outras coisas assim; mas, de si, nada deve ser visto a não ser numa ordem cumeada que faz com que o justo viva de esperança e nunca perca, ao longo de sua vida, esse movimento de alma pelo qual ele trabalha continuamente para que todos e tudo se aproximem daquele ponto alto ideal.

A arte, a cultura, o verdadeiro progresso

Decorre daí uma visão de um plano de Deus sobre o conjunto das pessoas, das instituições, que é uma espécie de primeira elevação, primeiro salto que ainda não é voo, mas um ensaio de voo. A partir desse primeiro salto começa-se a subir para os saltos superiores.

A arte, a cultura, o progresso no sentido bom da palavra são uma tendência para isso. E o encanto da Europa esteve em que ela intensamente teve isso, foi muito modelada para que no contato com cada coisa se visse o ideal dela e que cada uma, sem ser idêntica ao ideal, participasse em algo do ideal que ela tinha consigo. E a alma assim como estou dizendo já acolhe essas participações com simpatia, com bondade, ela não olha para a coisa que apenas participa do seu próprio ideal e afirma frustrada: “Porcaria! Você não participa inteiramente.” Não, ela diz: “É pena você não participar inteiramente, mas em tal ponto eu me encanto”.

Há, portanto, uma espécie de posição benévola da alma que é o ponto inicial. A influência da Igreja ajuda fabulosamente as almas a serem assim. Eu conheci uma pessoa ou outra enormemente assim, que representava um convite contínuo a se colocar em função do próprio ideal. Não com repreensão, mas um convite generoso, bondoso, sem, contudo, ocultar o amargo da decepção.

Assim, há um primeiro movimento de alma por onde se constrói um mundo para o qual se deve tender com uma esperança infatigável, pois vendo existir ali um plano de Deus, tem-se sempre a esperança da misericórdia d’Ele e da realização.

A partir daí a pessoa pode subir, não digo cronologicamente, mas logicamente, para a utopia e depois para o sobrenatural. Há, pois, uma gradação que me parece interessante, mesmo porque não importa só à criança, uma vez que cada idade tem diante de si, a seu modo, essa encruzilhada e essa possibilidade que se abre.

Autêntico idealismo

Por exemplo, o modo de entender a vida de família pode comportar intimidades degradantes como também um respeito mútuo nobilitante, por mais pobre que seja, pois não entra em cena questão de dinheiro. Enfim, o convívio familiar pode elevar ou rebaixar, ter um dinamismo para cima ou para baixo, como também ter cruzadas algumas coisas muito altas e outras muito baixas onde, em geral, o muito baixo prevalece, naturalmente.

Ora, o feitio de espírito bem construído não omite nada disso. Ao pensar em morar no céu azul, não deixa de considerar, em concreto, o ambiente onde está, mas deseja o modelo ideal de todas as coisas que vê, e tende para ele, batalha por ele e é, portanto, um homem imerso nesta vida concreta. É muito diferente do utopista que se lança num voo com uma espécie de horror desta vida concreta, um indivíduo que entre duas leituras de Saint-Exupéry(1) poderia perfeitamente estar numa estrebaria malcheirosa, e para quem a utopia faz as vezes de uma droga. Não é isso! É do alto de uma vida concebida nos seus modelos ideais, na sua arquetipia – os arquétipos têm um grande papel nisso – que se situa o idealismo, palavra conspurcada de todos os modos, mas cujo sentido bom encontra-se nessa faixa; esse é autêntico idealismo.

O indivíduo que, fazendo uma reta análise de si mesmo, tem a noção do que ele deveria ser e procura participar do seu próprio papel na medida em que suas condições lhe permitam, não é um impostor, não visa inculcar a ideia de ser ele o que não é, mas procura ser tudo quanto deve, fazendo-o notar às outras pessoas, não para se estadear, mas por fidelidade aos seus próprios princípios.

Isto é o oposto da teatralidade. O teatral procura fingir ser o que não é, não tem nenhuma vontade séria de ser o que deve e procura até aparentar o que ele não deve ser nem foi feito para ser.

Modos de enfrentar a vida no mundo atual

É preciso levar em conta que o mundo moderno corrente – não o da quarta Revolução, mas da terceira Revolução expirante em que nos encontramos – apresenta a seguinte máxima: olhar para baixo é um pesadelo, olhar para cima é um sonho. Nós devemos rejeitar o pesadelo e o sonho, e viver nessa realidade chata e lisa. Mais ainda, ter sonhos atrapalha uma postura prática da alma por onde se pode evitar o pesadelo.

Eu vejo, por exemplo, o modo de um indivíduo conduzir uma doença. O sujeito tem uma enfermidade qualquer e considera isso um pesadelo e uma inferioridade. Entretanto, uma vez que tem essa doença, ele precisa formar a ideia mais lúgubre de tudo quanto possa lhe suceder de pior e viver na espreita para evitar que isso aconteça. Então, ele transforma sua vida numa batalha contra as hipóteses-pesadelo que o espreitam ao longo da enfermidade. Mas a mesma coisa se dá em relação à carranca que lhe fez o diretor da repartição onde ele trabalha; idem com o tédio que o cliente decisivo sentiu quando conversou com ele e que talvez o faça abandonar o escritório…

De tudo isso o indivíduo prevê as coisas piores que podem acontecer, e fica lutando contra aquilo para evitar uma ruína na sua vidinha e conseguir os interstícios de umas férias gostosas, numa viagem de transatlântico para não sei onde. Isso não é vida, não é ideal, mas é o mundo atual.

Eu vi pessoas dos antigos tempos adoecerem. Elas sabiam que havia as hipóteses extremas, mas as hipóteses médias eram sempre as mais prováveis. Então, preparavam-se para estas e viviam confortavelmente dentro da doença. O que se pode fazer a não ser isso? Hoje, não: consultam-se quinze médicos, fazem não sei mais o quê, conversam entre si sobre Medicina para saber se há mais uma invenção…

Um apelo para o mais elevado

A inocência é uma visão global das coisas que contém o que estou dizendo. Portanto, não estou fazendo outra coisa senão traçar um pormenor da inocência. Por causa disso também, a alma verdadeiramente inocente é benévola, com boa vontade se dá, acolhe, se abre. Com as agruras da vida, a inocência comporta uma decepção muito triste, mas não uma amargura anti-axiológica. Ela vê a realidade, mas tem esperança de que isso se recomponha, se reconstitua, pelo menos em alguma medida, e trabalha generosamente neste sentido, sem ilusões e sem se deixar arrastar nem calcar aos pés. Quer dizer, a inocência espera do mal todo o mal, e quando vê em alguém uma pontinha de mal, começa a recear que aquilo tome conta da pessoa à maneira de um câncer; isto é positivo. Contudo, mesmo na pior decepção aquela esperança fica.

Neste sentido é muito bonito o modo de Nosso Senhor tratar Judas. Aquela pergunta: “Judas, com um ósculo trais o Filho do Homem?” (Lc 22, 48) ainda tem algo, como quem diz: “Eu vejo tudo quanto há em você e lhe dou uma graça suprema para ser o que deveria.” “Amigo, a que vieste?” (Mt 26, 50). Pode haver uma coisa que indique mais a perseverança d’Ele na esperança de que Judas ainda viesse a ser o que deveria? Entretanto, Ele media também, sem ilusões, a infâmia aonde o traidor estava se atirando.

Isso gera um convívio no qual está presente o vislumbre de todo o bem, até o máximo a que pode chegar uma pessoa, e de todo o mal, também até o extremo onde pode afundar, o que traz um relacionamento ao mesmo tempo sem ilusões e nunca desesperançado, que tem sempre algo de condicional, de quem pensa: “Levarei a minha esperança até o último limite do ‘amigo, a que vieste?’, mas não me iludirei e saberei por que escadas tu desces, e o que de ti devo esperar, e também saberei tomar as precauções para me defender.” O que supõe, naturalmente, muito equilíbrio.

Como a maior parte das pessoas não leva em consideração a existência da graça, não interpreta bem o que se passa dentro de si. Quando alguém tem numa parte da alma algum elemento de virtude sobrenatural, que não recusou inteiramente, olha para si e pensa ter reservas morais ilimitadas e muito nobres, sente com isto um apelo para subir, o qual, de fato, vem da graça.

Papel da bondade

Por outro lado, quem tem experiência da vida espiritual é levado a reconhecer o papel da graça neste ponto: não há quem não tenha fossas dentro da alma e que não se sinta incapaz de vencê-las sem um milagre. Uso a palavra “fossas” de propósito. São infâmias, torpezas desconcertantes que a pessoa sente que não tem condições de vencer a não ser pelo milagre. Ora, para isso entra uma ação da graça, e a pessoa espera que esse milagre se opere.

Até vou dizer mais: isso se presta, com certa frequência, a abusos porque acaba dando uma noção errada da estabilidade à beira do precipício, e a pessoa não se dá conta de que, habituando-se a viver à borda do precipício, pode até não cair nele, mas o solo debaixo dos pés pode ir afundando cada vez mais, constituindo um outro modo de afundar num precipício sem se dar conta.

Cada um de nós carrega fossas asquerosas dentro da alma, e é justo, normal, que alguém receie cair nessas fossas. Como é natural também que outro tenha em nós a grande esperança de que alcancemos altos píncaros, e que no relacionamento conosco ele deseje enormemente que atinjamos o nosso píncaro, mas não sem um olhar atento para nos ajudar e se proteger, caso estejamos facilitando com a fossa. Não podemos ter a menor ilusão a esse respeito.

Aqui entra o papel curioso da bondade: quando alguém se aproxima muito de sua própria fossa, mas sente que o outro persevera em esperar que ele suba, recebe um impulso para cima. É uma baforada vinda de fora para dentro que levanta o homem todo; isto devemos fazer com o outro. Por isso Nosso Senhor disse a Judas: “Amigo, a que vieste?” Por que Ele disse “amigo”? Porque se naquela hora Judas dissesse “sim”, entrava na condição de amigo de Nosso Senhor, diretamente. O convite que entrou nesse “amigo” é o que devemos ter para todos, até depois de tudo consumado.

Infelizmente, as pessoas se tornaram insensíveis a esta forma de bondade como, aliás, Judas o foi. Pode-se usar esta bondade como se queira, as pessoas não se incomodam. Elas preferem a cumplicidade. Como não recebem, tornam-se inimigas.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/6/1982)
Revista Dr Plinio 254 (Maio de 2019)

 

1) Antoine Jean-Baptiste Marie Roger Foscolombe, Conde de Saint-Exupéry. Escritor, ilustrador e piloto francês (*1900 – †1944).

 

A guerra psicológica revolucionária

Nos tópicos aqui selecionados, Dr. Plinio nos explica como, na impossibilidade de instaurar seu domínio imediato e de mostrar seu hediondo rosto por inteiro, a Revolução se vê obrigada a utilizar diversos estratagemas, um dos quais é a guerra psicológica, impalpável, que atua de modo insidioso na mentalidade do homem.

 

Que é o comunismo?

É uma “seita filosófica que deduz de seus princípios uma peculiar concepção do homem, da sociedade, do Estado, da História, da cultura, etc.  Exatamente como a Igreja deduz da Revelação e da Lei Moral todos os princípios da civilização e da cultura católica. Entre o comunismo, seita que  contém em si a plenitude da Revolução, e a Igreja, não há, pois, conciliação possível” (p. 139-140).

Rancor dissimulado

Qual a grande esperança atual do comunismo?

“A guerra  revolucionária psicológica.

“Embora nascido necessariamente do ódio, e voltado por sua própria  lógica interna para o uso da violência exercida por meio de guerras, revoluções e atentados, o comunismo internacional se viu compelido por grandes modificações em profundidade da opinião pública, a dissimular seu rancor, bem como a  fingir ter desistido das guerras e das revoluções”.

Porém, o comunismo “não extingue a violência, mas a transfere do campo de operação do físico e palpável, para o das atuações psicológicas impalpáveis” (p. 172- 173).

Guerra psicológica, mas total

Qual o principal objetivo da guerra psicológica revolucionária?

“Alcançar no interior das almas, por etapas e invisivelmente, a vitória que certas circunstâncias lhe estavam impedindo de conquistar de modo drástico e visível, segundo os métodos clássicos” (p. 173).

Tal guerra realiza tão-somente operações esparsas?

“Bem entendido, não se trata aqui de efetuar, no campo do espírito, algumas operações esparsas e esporádicas. Trata-se, pelo contrário, de uma verdadeira guerra de conquista — psicológica, sim, mas total — visando o homem todo, e todos os homens em todos os países” (p. 173).

Mal que visa todas as potências e fibras da alma humana

Poderia nos explicar melhor esse objetivo?

“A guerra psicológica visa a psique toda do homem, isto é, ‘trabalha-o’ nas várias potências de sua alma, e em todas as fibras de sua mentalidade.

“Ela visa todos os homens, isto é, tanto partidários ou simpatizantes da III Revolução, quanto neutros ou até adversários” (p. 173).

De que meios ela se utiliza?

“Ela lança mão de todos os meios, a cada passo é-lhe necessário dispor de um fator específico para levar insensivelmente cada grupo social e até cada homem a se aproximar do comunismo, por pouco que seja.  E isto em qualquer terreno: nas convicções religiosas, políticas, sociais e econômicas, nas impostações culturais, nas preferências artísticas, nos modos de ser e de agir em família, na profissão, na sociedade” (p. 173-174)(1).  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 134 (Março de 2019)

 

1) Para todas as referências: Revolução e Contra-Revolução, Editora Retornarei, São Paulo, 5ª edição em português, 254 páginas.

Reflexão na festa de Pentecostes

No Cenáculo, um crepitar de ardor. Apóstolos e discípulos se encontram reunidos em torno de Maria Santíssima. De súbito, um grande estalo, “harmonioso e angélico”. O Espírito Santo desce e ilumina a todos, por meio da Virgem, sua Esposa. Dr. Plinio, com os olhos da fé, descreve Pentecostes.

 

É excelente comemorar a Festa de Pentecostes, a vinda do Divino Espírito Santo sobre toda a Igreja Católica, a qual naquele tempo era pequena. Constituíam-na Maria Santíssima, os Apóstolos e algumas pessoas que haviam permanecido na fé em Nosso Senhor Jesus Cristo, apesar de tudo quanto se passara na sua Paixão e Morte. E graças ao Pentecostes, o número de cristãos multiplicou-se de repente, além de toda a medida do excogitável.

Uma explosão harmônica e angélica

Quando desceram as labaredas, produziu-se dentro do Cenáculo um grande estalo, ouvido em toda a cidade de Jerusalém. Podemos supor que esse estampido tenha sido muito bonito, pois aquilo que Deus faz vem acompanhado, normalmente, de beleza e magnitude.

Não havendo — que seja do nosso conhecimento — dados concretos a respeito da natureza daquele estalo, e sem que nossa imaginação contrarie em algo a Sagrada Escritura, é-nos lícito conjecturar o seguinte: deu-se ele não sob a forma de um troar de artilharia (que ainda não existia), mas como uma explosão harmônica e angélica.

A palavra “explosão” traz consigo a ideia de desordem, de caos, pois significa a demolição de algo através da decomposição de seus elementos internos. Trata-se de uma destruição, gerada e seguida de desordens.

Na descida do Divino Espírito Santo houve precisamente o contrário: foi a vinda d’Aquele que é o Criador, a Ordem, a boa disposição das coisas. Seria natural, portanto, que naquela explosão (empregada no sentido da irrupção brusca, forte e enfática) os sons fossem angelicamente belos e concatenados, à semelhança de certas músicas iniciadas com uma retumbante abertura.

Podemos também imaginar que perfumes deliciosos se difundiram pelo ambiente! Nada ou muito pouco teriam a ver com o conceito comum de fragrância vendida em lojas comercias.  Seriam odores mais espirituais que materiais, espalhando-se por todo o universo palpável daqueles arredores, partindo do lugar onde se situava o Cenáculo.

Além dos sons harmoniosos e dos aromas, terão havido lindas reações da natureza como, por exemplo, pássaros que se reuniram e se puseram a entoar seus mais belos trinados. Enfim, pode-se supor que toda a Criação se rejubilou com a descida do Espírito Santo. Ele veio a Nossa Senhora e, por meio d’Ela, aos Apóstolos, sob a forma de línguas de fogo, transformando suas mentalidades e os santificando.

A partir de então, os Apóstolos passaram a atear esse fogo — ou seja, a ação da graça divina e a expansão da Igreja Católica — no mundo inteiro, e até hoje ele se difunde entre nós, fruto do milagre de Pentecostes.

A presença do Espírito Santo nos edifícios sagrados

Esse influxo do Espírito Santo podia ser percebido em certas igrejas, por exemplo a de Santa Cecília, onde fui batizado. Quando menino, ao entrar nesse templo, tinha a impressão de que ali pulsava uma vida difusa repleta de bênçãos as quais podiam como que ser seguradas pelas mãos. Tratava-se de uma mera impressão, porém muito palpável, comparada a uma chuva feita só de orvalho.

Essa igreja possuía uma acústica muito boa, e quando andávamos — minha irmã, uma prima nossa e eu — no recinto sagrado, nossos passos repercutiam harmoniosamente naquela atmosfera. Era um som bonito, do caminhar de três crianças inocentes, e tudo ali me proporcionava uma satisfação extraordinária.

Assim eram em geral as igrejas católicas, cujas bênçãos vêm de Deus através dos órgãos, dos vitrais, das imagens, colunas, arcos, etc. Tenho certeza de que muitos sentiram sensações semelhantes ao entrarem nos templos católicos, essa unção e essa graça especiais que não encontramos em nenhum outro lugar do mundo.

Tudo isso teve seu início no Cenáculo, no meu entender o primeiro ambiente da Terra inteiramente abençoado e sacrossanto, onde esta impressão permaneceu enquanto durou o prédio original e nele foram realizadas cerimônias sagradas. Essa presença de um certo imponderável em todas as coisas católicas é uma manifestação do Divino Espírito Santo, percebida pela primeira vez em Pentecostes.

Graças obtidas por Nossa Senhora

Podemos imaginar que, naquela ocasião, estava Nossa Senhora sentada numa cadeira de braços como se fosse um trono, colocado num estrado, tendo diante d’Ela os doze Apóstolos sentados em tronos menores, dispostos mais ou menos em semicírculo.

Todos rezavam, pois haviam feito um longo recolhimento espiritual e suplicaram graças, as quais desceram sobre cada um deles em torrentes, a rogos de Maria Santíssima, medianeira de todos os dons divinos. Segundo nos ensina a doutrina católica, Nosso Senhor sempre atende os pedidos de sua Mãe em nosso favor, e Ela tem para conosco toda espécie de misericórdias e bondades, alcançando-nos não apenas as graças de que necessitamos, como também o conhecimento exato e a justa ponderação de nossas faltas e imperfeições. Em seguida, o pesar, ou seja, a contrição. Esta é preciosa, pois torna agradável a Deus a alma até há pouco carregada de pecados.

Continuando a se dirigir a Deus, sempre por meio da Virgem Maria, a alma recebe graças e mais graças.

Quantos e que espécie de favores divinos os Apóstolos terão alcançado, estando assim juntos de Nossa Senhora, participando de seu convívio e com Ela conversando?

Podemos imaginar que, nessa situação, um deles talvez tenha se levantado, feito-Lhe uma vênia profunda, ajoelhou-se, acusou-se de seus pecados e pediu perdão.  E a Mãe de Deus, fitando-o com bondade e delicadeza inigualáveis, lhe diz: “Filho, vou rezar por ti. Tem certeza, teus pecados serão perdoados”. Permanecendo mais um tempo genuflexo, ele afinal se ergue e retorna ao seu lugar…

“Grand-retour”, a Pentecostes nos dias de hoje

Crepita um ardor na sala. E um a um, os demais Apóstolos procedem da mesma forma. Aproveitam para contar fatos da vida de Nosso Senhor, ocorridos no convívio deles com o Divino Mestre, que os outros ouvem com avidez extraordinária. Nesse ambiente — de um silêncio eloquente, ou eloquência silenciosa — o fervor aumenta e em determinado momento todos se sentem mais no Céu do que na Terra.

O espírito de Nossa Senhora paira a uma altura inimaginável, sem perder contato com os filhos d’Ela. Em certa hora, uma luz começa a aparecer. Quando ela se torna mais intensa e se generaliza, há um estouro harmônico e perfumado. Os anjos cantam, Nossa Senhora está recolhidíssima, como no instante em que se deu a Encarnação do Verbo em seu seio puríssimo, ou quando Ela segurou em suas mãos o Menino Jesus, logo após Lhe ter dado à luz, e seus olhares pela primeira vez se cruzaram.

Tudo isso se pode imaginar com cuidado, para não se cair em erro. Porque a imaginação voa, e é capaz de nos levar a sérios enganos. Assim, nunca devemos conjecturar algo que não esteja de acordo com a doutrina da Igreja baseada na Escritura, a qual foi redigida sob a inspiração do Espírito Santo. Contudo, nossa alma pode supor coisas que alimentem seu próprio fervor, e nos proporcionem a ideia de como os fatos se teriam passado.

Se houvesse hoje um milagre semelhante ao de Pentecostes, o que aconteceria?

Um dado fundamental distingue nossa época daquela. No tempo de Jesus Cristo existia o mal, como o prova a Paixão e Morte de Nosso Senhor tramada pelos seus adversários, que tinham sido reprovados pelo Redentor com veemência em suas pregações. Havia o mal, não porém a Revolução.  Esta é uma forma organizada, articulada, estruturada do mal, como se fosse um país invisível. Existe por toda a parte, trama contra o bem e procura atacar tudo quanto o represente.

Se em nossos dias sobreviesse fenômeno parecido com o de Pentecostes, teríamos de imaginar — com quanta alegria! — os anjos esmagando a Revolução pelo mundo afora. Seria, então, o nosso Grand-Retour, uma conversão completa, um total repúdio a todo o mal que havíamos feito, e um amor inteiro às virtudes e a todo o bem que éramos chamados a praticar e a realizar. Em suma, um voo à santidade, que abarca o perfeito amor a Deus e ao próximo, com o deliberado propósito de extinguir a Revolução sobre a face da Terra.

Temos assim uma proveitosa reflexão para a Festa de Pentecostes. 

Sumamente religioso…

As coisas temporais devem, à sua maneira, falar de Deus e, deste modo, louvar o Criador. Acerca da sociedade temporal bem constituída, tendo Nosso Senhor Jesus Cristo como centro, Dr. Plinio tece belos comentários ao analisar o Castelo de Saumur.

 

Procura-se Deus, essencial e fundamentalmente, através da vida de piedade, da Fé, dos Mandamentos. Mas, quando O buscamos somente por esses meios, não O encontramos senão de um modo muito menos intenso e próximo do que se quereria. Desta maneira, como que, se acantona Deus dentro da capela, enquanto todo o resto fala pouco d’Ele.

Dou um exemplo: consideremos o Castelo de Saumur, e outros dois castelos não medievais: Escorial e Versailles.

Escorial, Versailles e Saumur

No Escorial, Felipe II colocou bem em seu centro a capela. E que capela! Uma catedral! Analisando o resto do palácio, pode-se até dizer que é um mosteiro, porém, no fundo, o sopro da Revolução está ali; fala de uma ordem geométrica bem observada, correta, mas não diretamente de Deus. Ele está na capela, a qual se encontra no centro do palácio, mas Ele não está no Escorial inteiro. Todos conhecem a homenagem que eu presto ao grande “Felipão”, a qual, embora não irrestrita, é veemente.

Consideremos agora Versailles, mandado construir por Luís XIV, que descendia de Felipe II, por via materna. Mandou edificar Versailles naquela má rivalidade da França com a Espanha, querendo afirmar — ele, a Majestade Cristianíssima, e o outro, o Rei Católico — que não estava atrás em face da Igreja. Mas não quis imitar Felipe II, colocando a capela no centro; então mandou que ela fosse feita nobremente alhures no palácio — não um alhures qualquer; é francês. É a capela exata no lugar exato, a única construção em Versailles que tem teto propriamente; o resto de Versailles é en terrasse1. A capela imita vagamente o estilo gótico, mas procurando disfarçá-lo, e é o corpo de edifício mais alto do castelo.

E no resto do palácio, Deus está a léguas. Há deuses mitológicos e outras figuras, mas Deus está distante.

Já no Castelo de Saumur — embora não me lembre de ter notado nele nenhum símbolo religioso—, a meu ver, Deus está no castelo inteiro.

Organizar de tal modo a sociedade que Deus possa ser visto em todas as coisas

Então, a nossa tese é esta: todas as coisas temporais devem ser feitas de maneira tal que elas também nos falem de Deus. Não afirmo que, de modo absoluto, tenham elas principalmente essa finalidade, mas para nossa vocação é a principal. Então, é preciso, na linha da complementaridade, organizar as coisas temporais e eclesiásticas em ordem a ver Deus presente em absolutamente tudo.

Não presente como está na Eucaristia, bem entendido, ou como Ele esteve, por exemplo, no Santo Sepulcro, e também não como está no edifício de um templo. Mas trata-se da imagem ou, conforme o caso, da semelhança do Criador por toda parte. Devemos, portanto, saber ver em cada coisa o por onde ela é semelhança ou imagem de Deus; ou, pelo contrário, se ali está representado o demônio. Ou seja, a Revolução e a Contra-Revolução na mais humilde forma de janela, por exemplo. Essa é a nossa vocação.

Embebida por completo dessa ideia, a pessoa está de corpo inteiro pronta para a contemplação religiosa das verdades reveladas. Mas, se for neutra diante disso, ela de fato acaba pactuando com o que não deve.

Procurar desenvolver o sensus Ecclesiae

De maneira que é preciso ver isso nas coisas e depois nas relações entre elas; mais do que nas coisas, nos seres humanos e em suas relações. E, no ser humano, considerar o filho da Cristandade e o filho da Igreja, a relação entre a Cristandade e a Igreja, para colocar-se ajoelhado diante da Igreja, osculando a soleira da porta e dizendo: “Não sou digno de entrar no edifício sagrado, mas entro, porque as portas dele se abriram para mim e de seu interior Deus me chama.” Como Moisés entrou no lugar sagrado, onde Deus lhe falou através da sarça ardente: “Tira as sandálias dos teus pés, porque o lugar em que te encontras é uma terra santa.”2 Era um sinal de sumo respeito.

Assim, também nós entramos com veneração para com a Igreja, com a Rainha da Igreja, com Nosso Senhor que está no Santíssimo Sacramento, e com a Santíssima Trindade.

Então, o centro imediato é a Igreja e a Cristandade. Devemos recompor a ideia da Cristandade para completar em nós o sensus Ecclesiae, a fim de, com o olhar mais firme, mais adorador, mais reverente, e através de Nossa Senhora, vermos Nosso Senhor Jesus Cristo.

Mas, tudo isto supõe o ver, desde logo, em cada ser, a imagem ou semelhança de Deus; embora muitas vezes não haja uma referência expressa louvável, desejável, ótima, aos temas especificamente da Religião.

Se, por exemplo, um homem artístico colocasse em Saumur um crucifixo em glória ou, ao menos, uma cruz em glória no alto de Saumur, eu me rejubilaria e não sei dizer como lhe agradeceria. Entretanto, isto não impede que eu reconheça Saumur, sem ter no alto o crucifixo, como edifício mais religioso do que a explícita — porém incompleta — profissão de Fé que está em Versailles ou no Escorial.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 16/5/1981)

Revista Dr Plinio 158 (Maio de 2011)

 

1) Apenas a capela de Versailles possui telhado; o restante do palácio é coberto por terraços.

2) Cfr. Ex 3,5.

O mistério da vida… – II

Na sequência de sua exposição sobre o mistério que a vida representa, Dr. Plinio demonstra como ela se torna mais rica à medida que se individualiza. Porém, é quando a contemplamos no homem que ela atinge seu auge. Dotado de razão, o homem conhece, pensa, ordena, quer, ou não quer, sendo assim capaz de conhecer o que nunca verá nesta vida: a alma humana.

 

Subamos agora para outro patamar — há ainda outros dois a transpor —, que é o reino animal, no qual há algumas características que merecem a nossa atenção.

Superioridade do reino animal em relação ao vegetal

O animal, dotado de sensibilidade, deixa-se atrair pelas coisas que lhe são favoráveis e foge das que lhe são contrárias; ele tem mobilidade.

Nisso, ele tem uma possibilidade de ser. No sentir, que é uma forma de conhecer, possui outra possibilidade de ser. No mover-se essa possibilidade de ser se completa. Um animal capaz de sentir, mas incapaz de mover-se seria um ente mal construído, uma monstruosidade. Porque, sentindo, ele quer fugir ou avançar. Se não pudesse mover-se, do que lhe adiantaria a sensibilidade?

Por outro lado, imaginemos um animal que fosse capaz de mover-se, mas não tivesse sensibilidade. Ele giraria a esmo e seria um pobre miserável. Quer dizer, há no animal um grau de vida superior àquele existente na planta.

E com seu grau de vida, dir-se-ia que o vegetal já é tão “feliz”. Às vezes, olhamos para certas árvores e notamos que elas ficam balouçando devido à brisa; temos a impressão de que estão brincando, matando o tempo.

Ou então alguns raios de sol incidem sobre uma planta, sobretudo quando não é meio-dia — não é o sol que queima, mas tonifica —, parecendo-nos que ela adquire uma plenitude. E, depois de certas chuvas, temos a impressão de que a natureza respira.

O animal faz muito mais do que isto: ele tem notícia. Para evitar confusão com o espírito humano, São Tomás prefere não dizer “conhece”, mas “tem notícia”. A expressão é admiravelmente precisa.

Se avançar alguma coisa rumo a um animal, ele tem notícia e se move. Mais ainda, é capaz de intimidar, por exemplo, rugindo; de deslumbrar, cantando; de atrair. Ele tem mil meios de ação sobre aquilo que não é ele, mas proveniente de seu movimento, de um princípio de vida, que pode, domina, combate mais e tem mais relação com o exterior.

A combatividade refletida no leão

A pedra é puramente passiva, não combate. Da pedra lançada por David contra Golias, não posso dizer: “Ó pedra guerreira!” Guerreiro foi David. Aquilo foi um pedaço de matéria que feriu a fronte de Golias e o jogou no chão.

De um vegetal, de algum modo pode-se afirmar que ele é batalhador. Certas plantas resistem aos ventos, com ar de superioridade, de indiferença. Os cedros do Líbano, que duram séculos, em montanhas onde neva, atravessam invernos e verões, indiferentes a tudo e vencem. Eles realizam como que um combate.

Mas o combate da planta não é praticamente nada, em comparação com o combate do leão. O leão dirige, avança, conquista, protege a leoa e os leõezinhos, mas não vai à cata de nada. A leoa é que procura comida e leva para ele.

Quando aparece o combate, a horda leonina vai para trás e ele toma a dianteira.

Vemos assim que, dentro da ordem leonina, há uma diferença não mais de grau de vida, mas de estilo de vitalidade. Poder-se-ia dizer algo de parecido com relação às plantas, entretanto é muito mais evidente e fácil de exemplificar nos animais. Uma é a vitalidade, quer dizer, o estado e o tipo de vida, do animal jovem, depois na idade madura e por fim quando velho.

Certos animais, ao sentirem que o seu ciclo terminou, se retiram ao isolamento e se deixam morrer. A bobina foi desfiada inteira e não há outra coisa para fazer; deitam-se e morrem. Existe a diferença de tipo de vitalidade entre o macho e a fêmea. Esta é feita para as tarefas menores e delicadas; aquele para os trabalhos pesados.

O leão é majestoso e deixa insinuado ser mais nobre combater do que qualquer outra coisa. É o rei e governa, assegurando a tranquilidade e a sobrevivência para todos. Ele é servido. São coisas que apontam para a ordenação do pensamento, para uma sistematização rica em conceitos.

A vida é mais rica na medida em que se individualiza

Comparando uma pedra com outra pedra, uma grama com outra grama e um leão com outro leão, notaremos que cada um é mais ele mesmo em relação ao outro, em escala ascendente.

Se dermos forte pancada num cristal, ele se decompõe num mundo de cristaizinhos. No que cada um destes é diferente do outro? Há certa alteridade, mas que alteridade pequena!

Com as gramas, ocorre algo diferente. Cada uma tem sua dose de vida — se assim se pudesse dizer —, sua possibilidade de duração, de resistência, de crescimento, que não é a da grama vizinha, cujas raízes muitas vezes se interpenetram. Ela é mais ela mesma em relação à outra; está mais separada.

O animal é ainda mais outro em relação ao outro. Entre um leão e outro, ou entre um leão e uma abelha, ou um colibri, que diferenças fenomenais! Há espaços interestelares entre um ser e outro, de tal maneira esse ser é grande. A vida, portanto, é mais rica na medida em que ela individualiza, vai dando ao ser uma capacidade de conhecer, de agir; ela diferencia um ser do outro, torna um ser mais ele mesmo em relação ao outro. Isso é uma grandeza porque o define mais, traça mais os limites e com isso torna um ser mais esplêndido.

Grandeza incalculável da natureza humana

Passamos agora para um grau mais alto de vida, o que está em nós e enche este auditório.

Temos a glória de sermos homens, criados por Deus com a mesma natureza humana de Nossa Senhora e  de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Isso, de uma grandeza incalculável, é para nós um título de nobreza muito maior do que pertencer a qualquer família imperial ou real. Somos irmãos, na carne puríssima da Virgem Maria, de Nosso Senhor Jesus Cristo. A carne de Cristo é a carne de Maria; não entrou outro fator para a geração da carne de Cristo senão a carne de Maria e o Divino Espírito Santo. A Santíssima Virgem foi concebida sem pecado original, mas é descendente de Adão e Eva. Somos descendentes de Adão e Eva. Isto para nós é uma glória enorme.

Almas “asfálticas”: um produto das grandes cidades modernas

Se todo mundo que habita as grandes cidades modernas tivesse a noção do que é a dignidade de ser homem, essas cidades seriam menos animalescas e mais dignas do que são. O que mais arrasa na cidade moderna não é o trânsito, o movimento, a poluição, mas as almas “asfálticas”: cada alma se sente tão pouco outra, diferente, e tão pouco digna quanto um milímetro de asfalto em relação a outro milímetro de asfalto. Tenho a impressão de que elas estão contidas numa mesma massa homogênea, sem esplendor nem beleza e nem vida. Entretanto, foram criadas para serem diferentíssimas e se amarem na sua diferença; e fazer dessa diferença uma ordem, uma harmonia e uma alegria. E o mundo moderno as vai degradando, tornando-as cada vez mais animalescas e parecidas. O pior odor das cidades modernas, a meu ver, é exatamente esse odor animalesco que se exala do homem, quando ele não é tão alma quanto pode e deve ser. Isso para mim é o que a cidade moderna tem de mais repugnante, e mais me desagrada.

O que somos nós? Somos antes de tudo minerais, vegetais e animais. Quer dizer, as três naturezas coincidem em nós; somos uma síntese. Mas por cima disso e dentro disso, não como um fator extrínseco, mas como elemento mais nobre e mais interno, temos uma alma espiritual, a qual nos dá uma possibilidade de fazer uma coisa que o animal não possui: nós pensamos.

O animal tem notícia; nós somos capazes de analisar, classificar e definir o que conhecemos. Temos capacidade de conceber em abstrato e, portanto, também de imaginar coisas que não são.

Tudo isso nos dá um poder e uma grandeza em face das coisas, que eu os comparo da seguinte maneira.

Muitas pessoas conduzem suas vidas como animais

Imaginemos uma cadeira, na qual é criado o mais fino, sedoso e bonito dos gatos angorás. O gato conhece a cadeira porque sobre ela há uma almofada, e toda noite ele dá um pulo e dorme na almofada.

De tal maneira a conhece que, se na hora de ele dormir não houver a cadeira, mas só a almofada, é possível que ele se ponha a miar. É a estranheza que ele manifesta porque a cadeira costumeira não está naquele local. Mas o gato angorá nem sabe o que é uma cadeira. Ele não sabe nada, tem apenas hábitos.

E para termos uma ideia, aliás, imperfeita, do que é um bicho, imaginemos um homem anestesiado, numa sala de operação. Ele tem os movimentos reflexos de uma pessoa que sente, mas não tem conhecimento de nada. Cessado o efeito da anestesia, ele sabe o que lhe aconteceu por causa da dor atual. Se a dor desaparecesse durante a operação, estando anestesiado, ele nem suspeitaria que tivesse dor. Poderíamos comparar um animal a um homem anestesiado no primeiro instante de seu ser e cuja anestesia durasse até ele morrer.

Há muita gente que faz da vida animal o fim desta existência. Querem a vida do anestesiado e não compreendem a vida do “lumen” da razão.

Diferenciar e conceber em tese os objetos: obra-prima da inteligência humana

O homem conhece a cadeira. Se um homem, estando em pé, vê um outro sentado numa cadeira, ele já sente o repouso que o outro ali experimenta. Depois ele conhece uma série de outras cadeiras e, sem trabalho nenhum, mas por um seletivo interno soberbo que faz dele um filósofo, efetua várias diferenças: cadeira com tripé, com quatro pés, de braços, com ou sem espaldar.

Posteriormente ele elabora a obra-prima de tudo isso: cadeira em tese. E a define: móvel destinado a acolher o homem sentado. Está assim concebida uma ideia que vale para todas as cadeiras possíveis e imagináveis. Para ser cadeira, tem que servir para o homem sentar, do contrário não é cadeira. E a inteligência do homem voa até lá.

Alguém poderia dizer: “Muita gente não sabe definir assim.” É verdade, mas todo homem sabe o que é uma cadeira. De maneira tal que, se lhe apresentarmos um banco e afirmarmos: “Senta nessa cadeira”, ele dirá: “Não, eu vou sentar-me nesse banco.” As pessoas não conseguem definir porque não têm instrução, não possuem o instrumento verbal, mas elas sabem o que é. Elas diferenciam. Quer dizer, elas conhecem e, portanto, fazem a obra-prima. As mais dotadas, mais inteligentes, imaginam os grandes móveis em que o homem pode estar sentado: um trono, uma cátedra ou um faldistório episcopal.

As pessoas podem imaginar miríades de assentos diferentes, conforme as utilidades e as situações daquele que está sentado. Por exemplo, banquinho dos réus: frustro, pequeno, balouçante, incerto, que serve para o réu tremer em cima.

A cátedra do juiz é uma poltrona alta, repousada, segura, dignificante, onde ele dispõe segundo a lei do destino do réu que está diante dele. Como o seu trabalho é nobre e sobre o juiz não pesa nenhuma suspeição, ele é cercado de uma atmosfera de honra; por isso sua cadeira é esculpida, sólida, grande. E na hora em que o empregado fizer a limpeza, ele vai espanar com mais cuidado a cátedra do juiz. E, se houver tempo, limpará também o banquinho dos réus.

Helen Keller, tendo apenas o sentido do tato, chegou a fazer conferências públicas

São operações do espírito humano. Conhecemos as coisas através dos sentidos, e nada há em nossa inteligência que não tenha passado pelos sentidos. Um homem que não tivesse nenhum dos sentidos seria incapaz de conhecer qualquer coisa.

Helen Keller, se não me engano, nasceu apenas com o sentido do tato(1). E alguém, com muito cuidado, conseguiu através do sentido do tato manter comunicação com ela. Por exemplo — estou fazendo suposições —, traziam comida e a instrutora dava três pancadas. E sempre que recebia três pancadas, ela sabia que vinha uma refeição. Assim, com outros sinais táteis, e com uma paciência enorme, a professora conseguiu dar a Helen Keller toda uma linguagem, uma descrição do Universo, apenas através do sentido do tato.

Ela trabalhou tanto com isto que aprendeu a falar. Sem ouvir a própria voz, e tomando contato com o mundo somente pelo tato, fez conferências públicas.

Esteve em São Paulo e pronunciou uma conferência no Teatro Municipal. Um conhecido meu assistiu a essa conferência, e contou-me ter ficado muito impressionado ao ver aquela mulher falando ao público, apenas sentindo o chão sob seus pés; em torno dela o vazio.

Mas estava construída em sua mente a ideia do que é um teatro, e ela fez o histórico de como, passo a passo, foi sentindo o mundo exterior e, em face deste, o mundo interior.

Contava ela como nasceu, por exemplo, o primeiro afeto no espírito dela. Quando percebeu que um mesmo agente a atendia em várias coisas que precisava, ela, de repente, o quis bem e sentiu em si uma disposição que não conhecia, na noite de seu próprio isolamento. Realmente é uma coisa trágica!

Assim ela fazia a construção do mundo e acordava a sua própria alma com as sensações do corpo. Através das descrições táteis, ela ia apreendendo os nomes das coisas e, pelo que se passava nela, também conhecendo a si própria. É uma verdadeira obra-prima da inteligência humana construir uma figura do mundo apenas através das sensações táteis.

No exemplo de Helen Keller, notamos especialmente: a inteligência dela, que chegou a conhecer o Universo; e a inteligência de quem soube, por meio de diversos métodos, fazer com que ela adquirisse tais conhecimentos. Essas duas inteligências fizeram esta obra-prima de se comunicarem.

Vemos assim a grandeza do espírito humano. E compreendemos esse elemento imaterial que está no homem, o qual conhece, pensa, ordena, quer, ou não quer; e, através do que ele vê nos outros, é capaz de conhecer o que nunca verá nesta vida: as almas dos outros. E não só as almas dos que existem, mas as dos que existiram e deixaram sua figura nesta Terra. Isso dá ao homem uma possibilidade, que nenhum outro ser animal tem, de deduzir a existência de Deus.

Pela mera razão, chegamos à conclusão de que Deus existe

Sem revelação, mas pela pura razão, o homem chega à conclusão de que Deus existe. Todas as coisas que existem não têm força para se terem causado a si mesmas; porque aquilo que se causou a si próprio, existia antes de se causar. Se eu afirmar “eu me causei”, estou dizendo que eu existia antes de me causar. E se eu existia antes de me causar, há alguma outra causa que me causou. Então, terei que chegar a uma causa primeira.

Todas as coisas são imóveis por natureza. A prova é que este meu corpo, quando dele se retirar a vida, ficará imóvel. Logo, há um fator que o movimenta, o qual não é idêntico a ele, mas pode entrar e sair dele. Ele, de si, não é móvel. O que é esse fator? Quem o fez e deu a esse fator a capacidade de mover? Motor imóvel, Deus por todos os séculos.

A criação da ordem. Quando eu vejo um animal fazer, por instinto, algumas coisas ordenadas, fico abismado; são coisas sapientíssimas produzidas por um bicho perfeitamente ignorante. Um canário tem noções de harmonia que muitas pessoas não possuem. Quem não percebe que há um músico atrás desse instrumento, um artista atrás dessa obra de arte? É uma coisa evidente. E daí para frente.

Através de raciocínios, o homem conclui e faz a construção da ideia de Deus. Quer dizer, nós, em relação a Deus, somos como que espécies de Helen Keller: pegamos sintomas. E perceberemos quão pequenos são esses quando virmos a Deus face a face. Fomos criados e nossas almas pedem ver a Deus diretamente, e não apenas através de sintomas. No Céu, vamos olhar para a nossa vida de agora, e nos sentiremos como uma Helen Keller que tivesse escapado da sua enfermidade e voado.

A vida sobrenatural

Trataremos agora da vida sobrenatural. Parece uma coisa inacreditável, mas, além de o Verbo ter-Se encarnado, e Nosso Senhor, na sua natureza humana, ter sofrido tudo quanto sofreu por amor a nós, Deus criou a graça, quer dizer, um dom pelo qual de algum modo participamos da natureza d’Ele.

Quando nascemos não temos essa participação na vida divina; mas, ao sermos batizados, algo da vida divina se infunde em nós, elevando-nos acima de nossa condição de homens, tornando-nos capazes de fazer coisas que, sem a graça, não poderíamos realizar.

Imaginemos que numa planta fosse enxertado algo da natureza divina. E que, devido a essa misteriosa participação, ela se tornasse capaz de entender e de querer alguma coisa. Se Helen Keller estremeceu tanto de alegria, a planta ainda mais, porque não tem nem sequer o tato. Suponhamos que com esse vegetal se passasse algo de parecido com o que sucedeu a Helen Keller: por alguns sinais, ela entendesse e percebesse que há uma outra ordem de existir. Que júbilo ela teria!

 Ora, isto nos é dado pelo Batismo, pela munificência e magnificência de Deus. Por esse sacramento nos é concedida uma coisa extraordinária, da qual as pessoas não se dão conta: crer naquilo que o Criador revelou.

O homem mais inteligente não pode crer sem a graça. Se dermos a uma pessoa inteligentíssima um catecismo e uma apologética, que prove a veracidade da Religião Católica, ela entenderá tudo e dirá: “Realmente ficou provado que esta religião é a verdadeira, mas falta-me algo, eu não creio.”

Por sua natureza, sem a graça, o homem não é capaz de crer na palavra da Revelação ou fazer qualquer ato de amor a Deus com base na Revelação, ou até mesmo pronunciar com piedade o nome de Jesus ou de Maria.

Às vezes encontramos pessoas as quais romperam de tal maneira com a graça que, quando dizem Jesus ou Maria, temos a impressão de que elas possuem uma natureza de metal, pronunciando tais palavras sem nenhum amor, nenhuma dedicação.

Certos indivíduos utilizam palavras, tais como: “Em Mateus tanto, está que Jesus disse…” Pelo timbre de voz, percebe-se que eles não têm Fé. Qualquer um de nós, rezando a Ave-Maria, diz: “…bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus”. Que diferença!

Devemos amar a Deus, enquanto Criador do Universo hierárquico

A vida sobrenatural é um outro grau de vida que se adquire com o Batismo e só se perde com o pecado mortal. A Igreja define a Fé da seguinte maneira: a fé uma virtude sobrenatural pela qual cremos — com o auxílio da graça — no que por Ele foi revelado, pela autoridade do próprio Deus que revela, o qual não pode enganar-se nem ser enganado; já é um começo da visão beatífica. Sem me dar conta, há em mim uma como que semente da visão beatífica pelo fato de eu crer. De maneira que quando faço um ato de Fé, realizo algo que é parecido com o Céu. Compreendemos então a beleza magnífica do Credo.

Vimos os vários degraus da vida. Quanta hierarquia! E que hierarquia sábia, a qual devemos amar!

Segundo esse mundo liberal que nos cerca, todo indivíduo colocado numa posição de hierarquia menor do que o outro é por isso um infeliz. Essa é a lógica de Satanás! Para Satanás, um Anjo menor é infeliz em relação a um Anjo maior; todos os Anjos são infelizes em relação a Nossa Senhora, que é a Rainha deles. O homem é um infeliz em relação a um Anjo, o animal em relação ao homem, o vegetal em relação ao animal, o mineral em relação ao vegetal.

É o contrário. Deus fez magnificamente tudo isto. Ele colocou no ápice um varão: Nosso Senhor Jesus Cristo, o Varão por excelência. E, imediata, porém infinitamente abaixo de Nosso Senhor Jesus Cristo, uma dama, a Rainha do Céu e da Terra. E a nós, Deus não deu uma natureza de ápice, mas a natureza dos que estão no ápice.

Assim compreendemos o que é a nossa vida, e como devemos saber empregá-la, amando, antes de tudo, todas as hierarquias e a obra de sabedoria de Deus, enquanto criando o Universo hierárquico.  v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/2/1980)

Revista Dr Plinio 158 (Maio de 2011)

 

1) Helen Keller, nascida em 27 de junho de 1880, em Tuscumbia, Alabama, perdeu subitamente a visão e a audição devido a uma doença diagnosticada como febre cerebral, ou escarlatina.

 

Um palácio digno e nobre

Alma voltada para as coisas mais elevadas, Dr. Plinio procurava sempre o maravilhoso. No Palácio dos Campos Elíseos ele via o maravilhoso na mediania, no equilíbrio e na harmonia. Mas discernia o que existe de revolucionário nesse edifício: uma solicitação para o gozo da vida, fator de amolecimento das almas.

 

Farei alguns comentários sobre o Palácio dos Campos Elíseos(1). Obedecendo ao princípio de pôr em realce também o óbvio, eu queria mostrar o seguinte: nele há um maravilhoso, o qual é feito — e aqui está o segredo do Palácio — de elementos que de si não conduzem ao maravilhoso. É a harmonia desses elementos que dá o maravilhoso.

Cada mansarda é uma obra-prima

Todos naturalmente notam que o Palácio é muito simétrico: ele tem um corpo central com duas galerias, uma inferior e outra superior. Na galeria de baixo, os arcos são um pouquinho mais largos — e também mais ornados — do que os da galeria de cima. Na galeria de baixo há uma espécie de moldura em torno de cada arco, tendo bem no centro um elemento decorativo que não existe em cima.

Em baixo, entre os arcos, existem medalhões de faiança, que em cima são substituídos por outras aplicações de cimento ou qualquer coisa assim, mas muito mais modestos.

Um espírito banal diria que o Palácio ficaria muito mais bonito se ele fosse tão belo em cima quanto em baixo. Mas perderia completamente. O segredo está exatamente num certo equilíbrio, por onde a parte de baixo parece suportar comodamente a parte de cima que já se perde um pouco no irreal; ela é mais imprecisa, menos nítida do que a parte de baixo. Essa ideia é acentuada ainda mais pelas três mansardas que são, cada uma, uma verdadeira obra-prima. Essas mansardas, por assim dizer, repetem de um modo já meio irreal a galeria.

Edifício sólido, mas tendente para o alto

De um lado e de outro há dois corpos de edifício que se projetam ligeiramente para a frente, mas o mesmo princípio está adotado aqui, quer dizer, a projeção é muito maior em baixo do que em cima. Na parte superior, o destaque é muito pequeno; em baixo, é bastante acentuado. De maneira que para compreendermos toda a harmonia existente aqui, deveríamos imaginar como seria o Palácio sem essas caixas embaixo. Ele não ficaria completamente lambido?

Vejam como tudo é bem estudado, e aqui se desmente a regra, pois as janelas de cima são mais ornadas do que as de baixo.

Então, alguém poderia me perguntar: “Por que essas janelas não pesam?” Porque elas têm essa caixa na frente, que aguenta o peso do ornato maior. Imaginem que essas janelas de cima não fossem mais ornadas, porém iguais às outras; o Palácio não perderia muito?

Então, essa discreta harmonia do Palácio é feita em mil equilíbrios.

Considerem as mansardas. Cada um desses corpos tem apenas uma mansarda. Comparem com as outras; é a mansarda do centro ampliada, mas uma ampliação esplendidamente harmônica com o tamanho do terraço e da parte situada embaixo.

Todas elas — para dar a ideia de que se perdem no ar — têm três bolinhas em três suportes em cima, que é o voo que o edifício toma, de maneira que temos a impressão de um edifício sólido, assentado na terra, mas tendente para o alto.

Não tem nada de angélico como um prédio gótico, mas como o homem é um misto de alma e corpo, há muita alma nesse corpo. Não é pura alma como no castelo de Saumur, por exemplo, mas tem muita alma dentro desse corpo, donde agora se explica o que para mim é o encanto do Palácio: ele não é grande nem pequeno; é médio. Ele não é riquíssimo, não é pobre; é digno. Ele não é faustoso nem esplendoroso; é nobre.

Equilíbrio e harmonia

Quer dizer, é um Palácio que nos dá tudo quanto pode haver de maravilhoso na mediania, no equilíbrio e na harmonia, e representa, nesse sentido, um valor absoluto. Poder-se-ia dizer que é um exemplo de Harmonia com “H” maiúsculo, porque tudo quanto é sensacional foi eliminado do Palácio. Mas ele, de si, é sensacional. Quando o olhamos, pelo menos a mim, ele se afigura sensacional.

Esta sensação, creio que a luz dourada, se estivesse bem focalizada, realçaria enormemente. Ele toma um ar de harmonia de sonho, de conto de fadas nessa visão, e é um dos aspectos do Palácio de que eu gosto muito.

Vou fazer uma comparação prosaica: já imaginaram o Palácio sem aquele portal do lado direito de quem olha? Pareceria uma cara sem a orelha direita, porque do lado esquerdo há outro portal. E ficaria uma coisa que terminaria bruscamente.

Vejam como aquela “orelha” está bem posta: o tamanho, a largura, mas não visa fazer sensação. Uma pessoa de espírito dito moderno faria uma super entrada com um lustre pendurado. Ele não teria percebido nada, porque é esta leveza discreta — de mãe de família adornada com gala, e não como mulher leviana — que constitui o charme do Palácio. Eu acho que o Palácio é maravilhoso pelo charme.

Uma coisa bonita é o abaulado do terraço.

O modo de se perceber a razão de ser de uma coisa é imaginar que ela não estivesse ali. Então, imaginem o teto chato clássico; ele não tiraria algo do Palácio?

Olhem os medalhões e as cerâmicas: que azul bonito! E ouro sobre azul é a combinação francesa…  São muito bonitos e têm categoria.

Vida de seriedade, de pensamento e de ação

Esse Palácio é feito para se levar uma vida de seriedade, de pensamento e de ação. Se morar aí um indivíduo que não for um homem de ação, ele apodrece dentro do Palácio. Tem que ter responsabilidade: é um Palácio para um governo. Responsabilidades gravíssimas, conselhos de Estado apertadíssimos, profundos pensamentos, planos políticos.

 Aqui se faria uma preparação para uma guerra justa, longe da rua e do barulho, uma coisa magnífica: “Ataco assim ou não? Onde é a moleira do adversário? Qual o modo e a hora de dar o golpe?”

É preciso entender o que é a doutrina de governo, que entra dentro disso. Governo não é principalmente viajar, nem tomar contato com muita gente, mas estar informado, coordenar dados e chamar pessoas.

Imaginem, numa manhã, um homem muito reflexivo neste Palácio, em seu escritório dando para as árvores, janelas abertas, tudo tranquilo, e ele está fazendo os seus planos.  Planejar é o auge. Aí dá para rezar, fazer meditação, etc.; uma verdadeira maravilha.

Podemos medir em que atoleiro nós estamos, porque isso no Reino de Maria não poderia existir. Nesse Palácio há Revolução. Estou apontando os lados positivos, mas isso é cheio de lados negativos. Entre outros, uma solicitação contínua do gozo da vida que amolece, e que nós não devemos tolerar.

Tenho medo desse estilo, porque o convite para o gozo da vida existe, embora precisemos saber ver o que ele tem de bonito.

Notem como há uma proporção entre um arco e o conjunto da fachada. Depois, entre a altura do arco, e o que resta da altura do edifício. E a porta de dentro, e até de uma portinha; porque essa portinha é indispensável. Se fosse tudo pedra, ficava pesadão.

Esse embasamento tem exatamente a altura necessária para se perceber que ele existe e para acentuar a ideia de que o Palácio flutua.

Esse Palácio, apesar de muito sério, é muito leve. Ninguém poderá dizer: “esse pastelão”. Gosto muito desse Palácio.

Esses prédios antigos têm lugares que nos convidam a estar olhando e pensando fixamente, sem sair. Naquela balaustradazinha, por exemplo, poderíamos ficar olhando o jardim maior e, por uma boa meia hora, estar pensando em tudo e em nada, e quando sairmos, muitas ideias estarão mais maduras. É desse modo que se matura. Assim como existe adega para guardar e decantar vinho, isso é para guardar e decantar gente. É “adega” de gente. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/5/1974)

 

1) Situado na Av. Rio Branco, bairro Campos Elíseos, em São Paulo. Foi sede do Governo de 1915 a 1965.