O fundo de quadro da formação de Dr. Plinio

Em número anterior acompanhamos as considerações de Dr. Plinio sobre o papel que a Fräulein Mathilde Hellman desempenhou na sua educação. Transcrevemos agora algumas reflexões dele  acerca de outros esteios de sua primeira formação: o ambiente familiar, a influência decisiva  de Dona Lucilia e o não menos importante influxo recebido da Companhia de Jesus.

 

O fundo do quadro de minha educação foi o resto de tradição católica que eu recebi de minha família, a qual não era nem muito mais nem muito menos católica que o conjunto das famílias  tradicionais em São Paulo, na época de meu nascimento. Essa tradição era ibero-americana, mais especificamente luso-americana, com algumas características do ambiente paulista de onde vinha minha mãe, e do pernambucano, berço de meu pai. Este pertencia à classe dos fazendeiros, senhores de engenho, de ascendência portuguesa muito remota e com várias gerações no Brasil. Tal  tradição, para aqueles que a quisessem analisar bem em seus subentendidos, em suas estruturas, tinha ainda muito do calor e do sabor do Ancien Régime e da Idade Média.

Admiração sem limites pela Igreja Católica

Este foi o quinhão que recebi e me habituou a considerar a Igreja Católica como sumamente afim com ele. Depois verifiquei que, mais do que sumamente afim, era a própria base e a alma desse  estado de coisas. Isso me levava a ter para com a Igreja, a fé e a admiração sem limites, quase diria a adoração que, com a graça da Virgem, lhe consagro. Quer dizer, uma fé incondicional,  submissa, jubilosa, total! E qualquer qualidade que haja em mim, com muita alegria e contentamento declaro ser fruto dessa Fé Católica. Ademais, a tradição que mencionei, foi-me legada porque  a doutrina católica vivia na alma das pessoas que constituíam a atmosfera na qual me formei. Ou seja, a fonte verdadeira e viva desse ambiente era a   Fé Católica Apostólica Romana, e a submissão ao Santo Padre, Vigário de Jesus Cristo na Terra.

Influências de Dª Lucilia e dos padres jesuítas

Essa influência católica, quer a da tradição brasileira, quer a de minha família, teve dois apoios especialíssimos. Em minha primeira infância, o amparo natural de minha mãe, que se prolongou até   último momento da vida  ela. Dona Lucilia foi para mim um sustentáculo, e depois — quando já não o podia ser — uma alegria. Hoje, ela é para mim uma esperança. São as três etapas de minhas relações com mamãe, à qual eu queria tanto quanto um filho pode querer sua mãe.

Porém, a partir dos meus doze anos, acrescentou-se uma outra influência: a de Santo Inácio de Loyola e da Companhia de Jesus, da qual fui discípulo por cursar em um de seus colégios. Esta  influência me penetrou fundo na alma, constituindo um todo harmônico com as anteriores, pelas maneiras de ser católicas: de um lado, a leveza da tradição familiar, e de outro, a tradição de uma  ordem religiosa especificamente combativa como deveriam ser os jesuítas — ambas emanando do espírito da Igreja. Portanto, somando e subtraindo, era a Igreja, a Igreja, a Igreja.

Cintilações da catolicidade de Dª Lucilia

Poder-se-ia perguntar como a Igreja vivia no espírito de minha mãe. De um modo bem distinto do que existia na Companhia de Jesus, embora as duas se completassem, porque Dª Lucilia era  muito doce, porém firme; a Companhia de Jesus era muito firme, porém doce.

É possível fazer uma idéia da doçura e da firmeza de minha mãe, tomando em consideração, por exemplo, o seguinte fato: até a sua morte, ocorrida quando eu tinha 65 anos, ela jamais me fez um  elogio. Somente uma vez, estando eu na Europa, recebi uma carta sua, na qual, de passagem, dirigia-me palavras laudatórias. Nada mais. Por quê? Por se achar convicta de que não se deve  enaltecer as pessoas, colocando-as em risco de se tornarem vaidosas. Se não me elogiava, em contrapartida não me privava de seus sábios conselhos…

“Plinio — dizia-me ela certa feita —, deves compreender que sempre ao falar em público, as pessoas têm menos desejo de te ouvir do que tu tens vontade de lhes dirigir a palavra. Portanto, sejas  desconfiado; fales menos do que quererias, e quando pensares que falaste pouco, teus ouvintes ainda julgarão que terás falado demais. É necessário estar atento e fazer o contrário. Sempre sejas  muito resumido e breve. Além disso, numa conversa com alguém, fixa-te bem que a pessoa não quer ouvir falar de ti. Ela já acha bastante a tua presença. Fales com os outros sobre eles mesmos,  ou das coisas do Céu. Não fales de ti, porque tu és por excelência o tema desinteressante para os outros.”

Como esse, deu-me ela uma série de conselhos muito bons, nos quais transparece a severidade, procurando a exatidão nos mínimos detalhes.

Nesse sentido, não posso me esquecer de um final de ano letivo no Colégio São Luís, quando recebi quatro medalhas na distribuição de prêmios. Ao chegar em casa, minha mãe abriu a porta, viu  as medalhas, ficou bastante satisfeita e me beijou muito, etc. No ano seguinte ganhei três medalhas, o que não representava um mau resultado para um aluno de colégio tão rigoroso. Como de  costume, Dª Lucilia me esperava à porta de nossa residência: antes de me olhar, fixou as vistas em meu peito e exclamou: “Só três!?”. E eu lhe disse, sorrindo: “Mamãe, uma é de ouro”.

Então ela  me abraçou com intenso carinho…

Assim era o tônus e a maneira de ser dela. Lembro-me de outro exemplo. É conhecido o meu hábito de falar acaloradamente. Como de costume, eu me sentava à mesa ao lado de mamãe, e quando  me punha a conversar de modo mais entusiasmado, sentia dois dedos dela batendo em minha mão, como quem quisesse dizer: “Seja menos acalorado, é necessário mais moderação”. Com este  significado: não falar muito alto, nem demasiado, contra as pessoas. Era sua maneira de ser. Porém, na doçura, ela era absolutamente indescritível. E simplesmente saber que mamãe estava em  casa, enquanto eu trabalhava sozinho em meu escritório (uma das dependências do nosso apartamento), era para mim uma fonte de suavidade. Às vezes ela entrava, sem me dirigir a palavra a fim  de não me interromper, mas colocava uma mão sobre meu ombro e dizia somente: “Filhão!”, e me beijava. Isso ela o fazia freqüentemente, e valia para mim um mês de doçura. Já no âmbito da  Companhia de Jesus, cumpre dizer, aprendi o contrário: ter espírito militante, combatividade, lógica, perspicácia, penetração, resistência, a norma que Santo Inácio de Loyola ensinava de agere  contra, isto é, enfrentar o adversário de nossa salvação, batalhar, etc…

E eu procurei harmonizar as duas influências, com indiscutíveis e salutares efeitos para minha alma.

A superior proteção de Maria Santíssima

Essa breve exposição sobre o conjunto de pessoas e ambientes que tiveram papel determinante na minha formação seria entretanto incompleta, se não me referisse Àquela a quem devo, mais do  que a esses já citados, tudo o que houver de bom em mim: Nossa Senhora. Ela é a Protetora soberana, que sempre me socorreu e auxiliou em todos os momentos de minha vida. E minha devoção a  aria Santíssima é a razão de eu ter alcançado as graças e favores mais insignes no cumprimento de meu chamado, como a correspondência e a fidelidade à vocação, assim como a disposição de  nunca desanimar ao longo dessa via. Terá Ela permitido que me assaltassem perplexidades e receios de não atender aos desígnios de Deus a meu respeito. Nunca, porém, a tentação do desânimo.

Cônscio da necessidade dessa augusta proteção de Nossa Senhora, e da retribuição que Lhe devo em amor e entrega, sempre quando comungo, imediatamente depois de recebido o Santíssimo  Sacramento, o primeiro pedido que faço a Deus é que me conceda mais devoção à Virgem Bendita.

Pedido este que dirijo a Nosso Senhor pelas próprias mãos de Maria, sabendo que, como onipotente intercessora, me obterá de seu Divino Filho mais essa graça inestimável de crescer  continuamente no amor a Ela.

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 74 (Maio de 2004)

LOBOS E OVELHAS

A imprudência ou ingenuidade de quem, em seu apostolado, põe em perigo sua própria alma ou a tranqüilidade do aprisco, não pode ser chamada de zelo. Dr. Plinio rebate algumas teses em vigor  nos anos 40, que confundiam o carinho do Bom Pastor com a temeridade mais peculiar das… virgens loucas!

 

Em anteriores ocasiões acentuamos os graves inconvenientes a que muitos católicos expõem a Igreja, cancelando inteiramente de seus processos de ação quaisquer manifestações de energia.

Resumindo em duas palavras a doutrina que sustentamos, lembraremos apenas a nossos leitores que o Evangelho contém, a respeito de apostolado, duas parábolas de máxima importância, nenhuma das quais deve ser esquecida em benefício da outra.

É injustificável abrir o redil ao lobo mascarado de ovelha

Nosso Senhor fala em ovelhas perdidas e em lobos com pele de ovelha. Quem visse nas ovelhas desgarradas do redil apenas lobos vorazes disfarçados com a pele de suas vítimas não poderia,  evidentemente, ser o bom pastor que vai ao longe, enfrentando perigos e desprezando fadigas, salvar a ovelha perdida. Que dizer, entretanto, do católico que, até o contrário, vencendo obstáculos sem conta, desce ao fundo do abismo, com perigo para si mesmo, e ali recolhe carinhosamente um lobo astuto, afagando-lhe com meiguice a fingida pele de carneiro; que abrisse triunfante com sua “conquista” as portas do redil, soltasse ali o fruto de seu caridoso apostolado, e, depois de um prolongado e terno olhar para o gáudio com que a nova “ovelhinha” se encontrava em  “confraternização” com as demais, fosse dormir sobre os louros de tão brilhante feito?

É evidente que qualquer católico leigo que queira proceder com prudência deve preferir, a introduzir um lobo no aprisco do Bom Pastor, correr o risco de deixar de fora alguma ovelha inocente. O  conselho parece cruel? E, porventura, não será ainda mais cruel expor a risco grave e real todo o aprisco?

Costuma-se repetir com muita razão que há mais alegria no Céu por um pecador que se converte do que por cem justos que perseveram. Mas esta afirmação do Evangelho não pode deixar de ser  considerada em conjunto com as tremendas ameaças com que Nosso Senhor fulmina  aqueles que, de qualquer maneira, concorrem para a perdição das almas que já se encontravam no caminho da virtude. Ao indivíduo que por imperícia, consciente ou inconscientemente culposa, abrisse o redil ao lobo mascarado de ovelha, se aplicaria com toda a propriedade a expressão de Nosso  Senhor : “Melhor seria para ele que lhe atassem uma pedra de mó no pescoço e o atirassem ao fundo do mar”.

E não lhe valeria como escusa o ter agido por excesso de zelo no temor de sacrificar uma ovelha possivelmente inocente. No Céu há realmente mais alegria por um pecador que faz penitência do  que por noventa e nove justos que perseveram. Mas, por isto mesmo, precisamente porque passar do pecado ao estado de graça é a maior das venturas, decair deste estado para o de pecado é desventura não menor. Logo, não se poderia pretender que a conversão de uma alma recompense a Nosso Senhor os riscos que com isso se faça correr a outra alma.

Pensar de modo diverso seria blasfemar contra Deus, atribuindo-Lhe maldade por dois títulos:

a) supondo que a Providência não dispusesse outros meios para a salvação da ovelha inocente sacrificada pela razoável prudência do pastor avisado;

b) imaginando que Deus dispõe das almas como o jogador de roleta usa de suas moedas, e de bom grado se expõe ao risco de perder uma delas a fim de ganhar, se bem sucedido, duas, dez ou cem. Preconizar tais aventuras apostólicas é entrar em conflito com a economia da Providência. E ninguém ignora o que acontece a quem zomba da Providência de Deus.

A corrupção do mundo moderno não se cura com simples sorrisos

É curioso que, em uma época de cavilosas maquinações, em conseqüência das quais países inteiros têm desabado como que devorados pelo caruncho de conspirações a modo de quinta coluna; em uma época em que [os adversários da Igreja] tomam ares de sacristão para melhor iludir os fiéis; é precisamente nesta época que, em certos círculos católicos, ganha terreno um otimismo ingênuo e eufórico, para o qual toda a malícia do mundo contemporâneo, toda a corrupção, toda lascívia, todo desbragado egoísmo de nossa sociedade contemporânea, da qual Pio XI escreveu que está na iminência de se tornar pior do que era antes de Nosso Senhor; que tudo isso não passa de um equívoco. E de um equívoco tão tênue que, com uma meia dúzia de sorrisos este mundo será o melhor dos mundos.

O paganismo antigo foi vencido pelas preces dos eremitas, pelo sangue dos mártires e pelos suores dos evangelizadores. Lendo-se, entretanto, certos tratados […], tem-se a impressão de que o mundo moderno pode ser regenerado com os simples sorrisos desses novos apóstolos, mais felizes do que Orfeu, pois que nem sequer precisam de flauta para amansar as feras.

Perdoem-nos certos confrades no apostolado, disseminados um pouco por toda a parte neste imenso Brasil, e para os quais escrevemos este artigo, se nesta última comparação entrou alguma  ironia, aliás muito explicável na pena de quem está escrevendo depois de todo um dia de afanoso trabalho. Mas, causa-me horror verificar uma certa maré montante de ingenuidade que  diariamente produz as mais novas e variadas manifestações, e ganha dia a dia mais terreno.

Lembrem-se estes amigos a quem tanto amo em Nosso Senhor, que o apóstolo leigo que não tiver desenvolvido todos os seus recursos a fim de precaver contra os lobos as ovelhas do Bom Pastor,  não poderá no leito de morte fazer a sublime oração de Nosso Senhor: “Meu Pai, dou-Vos graças porque, daqueles que me destes, a nenhum perdi”.

Plinio Corrêa de Oliveira Extraído do “Legionário”, nº 473, de 5/10/1941. Subtítulos nossos.)

Revista Dr Plinio 74 (Maio de 2004)

Características da Revolução

Processo cinco vezes secular, a Revolução tem sua raiz nos problemas de alma mais profundos, de onde se estende para todos os aspectos da personalidade do homem contemporâneo e todas as suas atividades. E nesse pernicioso afã de desordem manifesta ela, como nos aponta Dr. Plinio, algumas características fundamentais.

 

Quais os principais aspectos da Revolução?

Designando a Revolução com o termo “crise”, Dr. Plinio afirma: “Por mais profundos que sejam os fatores de diversificação dessa crise nos vários países hodiernos, ela conserva, sempre, cinco caracteres capitais”: é universal, una, total, dominante e processiva (pp. 22 e ss.).

Como um grande incêndio

Por que a Revolução é universal?

“Essa crise é universal. Não há hoje povo que não esteja atingido por ela, em grau maior ou menor” (p. 22).

Em que sentido a Revolução é una?

“Essa crise é una. Isto é, não se trata de um conjunto de crises que se desenvolvem paralela e autonomamente em cada país, ligadas entre si por algumas analogias mais ou menos relevantes.

“Quando ocorre um incêndio numa floresta, não é possível considerar o fenômeno como se fosse mil incêndios autônomos e paralelos, de mil árvores vizinhas umas das outras. A unidade do fenômeno “combustão”, exercendo‑se sobre a unidade viva que é a floresta, e a circunstância de que a grande força de expansão das chamas resulta de um calor no qual se fundem e se multiplicam as incontáveis chamas das diversas árvores, tudo, enfim, contribui para que o incêndio da floresta seja um fato único, englobando numa realidade total os mil incêndios parciais, por mais diferente, aliás, que cada um destes seja em seus acidentes” (pp. 22-23).

Depois da crise, restam vestígios de Cristandade

Explique a unicidade da Revolução que atingiu a Cristandade.

“A Cristandade ocidental constituiu um só todo, que transcendia os vários países cristãos, sem os absorver. Nessa unidade viva se operou uma crise que acabou por atingi‑la toda inteira, pelo calor somado e, mais do que isto, fundido, das sempre mais numerosas crises locais que há séculos se vêm interpenetrando e entreajudando ininterruptamente. Em conseqüência, a Cristandade, enquanto família de Estados oficialmente católicos, de há muito cessou de existir. Dela restam como vestígios os povos ocidentais e cristãos. E todos se encontram presentemente em agonia sob a ação deste mesmo mal” (p. 23).

Rainha à qual obedecem as forças do caos

Por que a Revolução é total?

“Considerada em um dado país, essa crise se desenvolve numa zona de problemas tão profunda, que ela se prolonga ou se desdobra, pela própria ordem das coisas, em todas as potências da alma, em todos os campos da cultura, em todos os domínios, enfim, da ação do homem” (p. 24).

Face aos acontecimentos caóticos atuais, como explicar que a Revolução seja dominante?

“Encarados superficialmente, os acontecimentos dos nossos dias parecem um emaranhado caótico e inextricável, e de fato o são de muitos pontos de vista.

“Entretanto, podem‑se discernir resultantes, profundamente coerentes e vigorosas, da conjunção de tantas forças desvairadas, desde que estas sejam consideradas do ângulo da grande crise de que tratamos.

“Com efeito, ao impulso dessas forças em delírio, as nações ocidentais vão sendo gradualmente impelidas para um estado de coisas que se vai delineando igual em todas elas, e diametralmente oposto à civilização cristã.

“De onde se vê que essa crise é como uma rainha a que todas as forças do caos servem como instrumentos eficientes e dóceis” (p. 24)(1). v

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 110 (Maio de 2007)

 

1 ) Editora Retornarei, São Paulo, 2002, 5ª edição em português.

Renunciar-se a si próprio para seguir o Redentor

Após um retiro espiritual, o objetivo de alcançar a santidade, sob o impulso da graça de Deus, implica em que as verdades tão corajosamente meditadas e as resoluções tão generosamente tomadas sejam levadas até o fim, consoante os ditames propostos pelos Exercícios de Santo Inácio de Loyola. Com esse ensinamento, Dr. Plinio conclui sua conferência no marco das celebrações do IV Centenário da Companhia de Jesus.

 

As verdades claras e simples, afirmadas nos Exercícios Espirituais nem por isso deixam de ser profundas e fundamentais. Constituem elas os grandes princípios que devem dirigir toda a conduta do cristão. Por isto, é incontável o número de conseqüências que nelas pode encontrar o retirante.

Questões terríveis e luminosas que elevam a alma

Daí um longo trabalho — fecundo somente se for pessoal — que o retirante deve levar a cabo: a fixação das linhas ideais de toda a existência cristãmente vivida. Qual a conduta que deve ter em sua vida familiar, social, profissional, política, o homem persuadido de que foi criado para a glória de Deus? Quais os deveres que essa grande verdade, ao mesmo tempo tão terrível e tão suave, lhe impõe para com a Igreja, as almas, a civilização cristã? Que perderá ele ao transgredir estes deveres, ou ao lhes dar um desempenho superficial e fraudulento? Que lucrará com sua prática honesta e integral? Qual a razão que precisa movê-lo a cumprir estas obrigações por puro amor de Deus, abstração feita até mesmo das punições ou das recompensas eternas?

Questões terríveis e luminosas, as quais, se de um lado mostram ao homem, por vezes, uma longa jornada a vencer nos caminhos ásperos da santificação, de outro lhe franqueiam o acesso a píncaros dourados pelo sol, radiantes de glória e de grandeza, certamente muito diversos dos vales lamacentos ou das grotas sombrias em que se arrasta habitualmente a fragilidade humana.

Diz Santo Agostinho que “Deus não deixa a fragilidade sem remédio, nem a culpa sem punição”. Esta frase admirável encontra nos Exercícios de Santo Inácio sua plena demonstração.

“Deus que nos criou sem nós, não nos salvará sem nós”

Fala-se muito, em nossos dias, da debilidade humana e, certamente, o aspecto das ruínas generalizadas que nos circundam sugere, a todo o passo, a lembrança de nossas misérias. Mas os espíritos vãos que a toda hora se comprazem em lembrar nossa fragilidade, não têm em vista que “Deus não a deixa sem remédio”. Portanto, se somos fracos, temos culpa por nossa fraqueza. Se o homem é fraco, a graça é forte. Sem Jesus Cristo, ele “nada pode fazer”. Porém, fortalecido pelo Senhor, “tudo pode n’Aquele que o conforta”.

Assim, por mais duros que sejam os deveres — discernidos por nosso olhar quando iluminado pelos clarões por vezes implacáveis, que se desprendem dos Exercícios de Santo Inácio — não há em nossa fraqueza qualquer desculpa que legitime nossos recuos, nossa covardia e nossos indefinidos estacionamentos nos abismos do pecado, ou nos charcos da mediocridade. Conhecendo toda a necessidade do socorro divino, Santo Inácio aconselha reiteradamente a prece, no período dos Exercícios Espirituais. Mas, a oração não basta. Como diz Santo Agostinho, “Deus que nos criou sem nós, não nos salvará sem nós”.

Santo Inácio pede, quer, exige uma cooperação fiel de todas as potências de nossa alma para a obra da salvação e santificação. De nada valerão seus Exercícios aos retirantes dispostos a ver apenas as verdades cômodas. De valor igualmente nulo serão para aqueles que, tendo atingido o ideal de uma vida cristã comum, ou uma existência inteiramente santificada pela prática da perfeição, não se entregarem resolutamente à segunda tarefa, consistente no confronto implacável da vida que levam, das resoluções que haviam formado, dos projetos que vinham nutrindo, com a linha de conduta que acabamos de traçar.

O motivo de tanto ódio aos exercícios espirituais

Sem qualquer receio de erro, pode-se afirmar que nesta dolorosa operação se acha o motivo profundo de tantas animadversões que os Exercícios de Santo Inácio têm suscitado. Com efeito, a alma pecadora que não quer regenerar-se odeia estes processos de cura espiritual; e à alma tíbia, não desejando subir mais alto nas vias da santificação, repugna este método que põe a nu, de modo tão inclemente e vigoroso, os remorsos que se extinguiam discretamente, sob as cinzas de uma longa vida de piedade toda feita do cumprimento de deveres sem importância, de minúsculos progressos sem significação real.

Almas fracas, almas míopes, que não cumprem os pequenos deveres nem realizam os diminutos progressos como meio para chegar aos grandes, mas como uma evasão dissimulada, um álibi inútil, procurando enganar sua consciência e o próprio Deus. Certamente, pelo despeito causados por estas verdades aos que as rejeitam, explica-se em última análise o ódio militante que se ergue não raras vezes contra os Exercícios de Santo Inácio. Mas este ódio é o que (…) a Igreja sem cessar despertará entre os filhos da serpente, irredutivelmente adversários dos filhos da Virgem.

Cumpre estabelecer resoluções

Terminada a tarefa do exame de consciência, ainda há outra. É a formação das resoluções. Não basta que a vontade conceba propósitos genéricos e imprecisos, ou engendre apenas veleidades ineficazes. Santo Inácio quer propósitos firmes e fecundos, que recaem sobre objetos determinados e precisos, e, com esta salutar recomendação, mais uma vez tolhe ele os subterfúgios conscientes ou inconscientes dos retirantes pusilânimes. É preciso chegar até o fim, traduzir em atos as verdades tão corajosamente meditadas, as resoluções tão generosamente tomadas. Mas os atos só nascerão das resoluções firmes e precisas, nítidas e práticas, cujo cumprimento só se realiza com todas as previdências concretas e particularíssimas, que cada situação especial exigir.

Ordenar a sensibilidade para alcançar a perfeição

Mas… e a sensibilidade? Quantas vezes geme um pobre coração humano ao passar por esta via de angústia que conduz à santidade! Quanta renúncia dolorosa! Quanta ruptura trágica! Quanto heroísmo incrivelmente pesado é por vezes necessário para o prosseguimento nas vias luminosas, mas ásperas, da santificação! Santo Inácio não seria o grande Doutor da vida espiritual que foi, se não se preocupasse com a sensibilidade. Erram, e de modo frisante, os que supõem que a ascética inaciana implica na extinção da sensibilidade humana. Em quantos trechos de seus Exercícios, exige Santo Inácio de Loyola que se faça o que ele chama a “composição de lugar”? E o que é essa prática senão um meio de que ele se serve para impressionar a sensibilidade, facilitando-lhe assim a obediência ao império da razão e da vontade? Não recomenda Santo Inácio que meditemos apenas sobre as grandes verdades, mas recomponhamos os quadros das cenas; quer que vejamos, ouçamos, sintamos pela imaginação tudo quanto ele nos manda meditar. E, assim, tende ele a substituir na imaginação e na sensibilidade as impressões que arrastam para o pecado, por aquelas que levam ao Céu.

Se se pensa, pois, que a sensibilidade ocupa na ascética inaciana um lugar de ré condenada ao patíbulo, erra-se. Mas é certo — e nisto está uma das mais salientes características da espiritualidade de Santo Inácio — que, talvez melhor do que ninguém, ele põe claramente o homem diante do dever de reprimir sem piedade, de abater sem falsa misericórdia, de abafar sem vacilações nem recuos, os movimentos desordenados, os caprichos infundados, as petulâncias criminosas ou os sentimentalismos mórbidos que o pecado original deixou em nossa sensibilidade. Disse Nosso Senhor que o homem deve renunciar-se a si próprio para segui-Lo. Sem esta renúncia, não há santificação possível. E a escola que pretendesse articular uma escada que chegasse ao Céu sem essa renúncia teria, na realidade, aberto mais um abismo para atirar as almas ao inferno.

“Ponde Jesus no vosso caminho de espinhos”

Falei-vos, meus senhores, com aquela franqueza que caracteriza os próprios Exercícios Espirituais. Deverei dizer-vos que, assim procedendo, tive a antecipada certeza de que não obteria aplausos unânimes, nem simpatias gerais, senão deste nobre auditório, ao menos daqueles a quem chegar depois de impressa, esta singela palestra. Muitos são em nossa época os que se revoltam contra o dever, porque se insurgiram temerariamente contra toda a lei e todo o freio. Como agradar-lhes, fazendo a descrição de um método espiritual que é o mais eficaz para reintegrar o homem na prática dos mandamentos e no cumprimento dos deveres? Não menos numerosos são os amigos das meias verdades, das “verdades” adocicadas, simpáticas, polidas, incapazes de inquietar a quem quer que seja, e aptas a proporcionar a um auditório alguns minutos de delicado prazer intelectual.

Suponho que não poucos defensores da verdade estremecem quando a vêem, inteiriça e sem véus, erguer-se aos olhos do mundo. Entretanto, não consistem em dissimulações ou recuos os métodos da Igreja. Quem segue a Jesus Cristo não deve temer as perseguições que vierem ao seu encalço. Almas retas, almas nobres, almas sedentas de verdade e de bem, é a vós que me dirijo. Vossa vida será, talvez, repleta de fardos e dores, e tereis possivelmente receio de acrescentar a tantos fardos mais um, a tantas dores mais uma.

Houve uma alma contemplativa, provada por mil sofrimentos, que se viu em sonhos percorrendo um caminho cheio de cardos, no qual seus pés se laceravam cruelmente. Apareceu, entretanto, o Salvador, e começou a seguir o mesmo trajeto. E por toda a parte onde seus divinos pés pousavam, ficava uma marca impressa no solo. A alma contemplativa fez sobre estas sacratíssimas pegadas seu caminho, e conseguiu andar com desenvoltura e sem dores, pela estrada onde há pouco conseguia apenas arrastar-se.

Ponde Jesus no vosso caminho de espinhos, segui suas pegadas e vereis como se mitigarão os sofrimentos que não conseguistes suportar, ou suportareis as dores que não for possível mitigar.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído dos Anais do IV Centenário da Companhia de Jesus, Ministério da Educação e Saúde, Serviço de Documentação, 1946, pp. 369-382.)

 

 

 

Como um relógio…

A conversão dos povos ocidentais não foi um fenômeno de superfície. O germe da vida sobrenatural penetrou no próprio âmago de sua alma, e foi paulatinamente configurando à semelhança de Nosso Senhor Jesus Cristo o espírito outrora rude, lascivo e supersticioso das tribos bárbaras. A sociedade sobrenatural — a Igreja — estendeu assim sobre toda a Europa sua contextura hierárquica, e desde as brumas da Escócia até as encostas do Vesúvio foram florindo as dioceses, os mosteiros, as igrejas, catedrais, conventuais ou paroquiais, e, em torno delas, os rebanhos de Cristo.

Esta florescência religiosa projetou‑se sobre a sociedade civil: organizada com fundamento na Lei de Deus, ordenou‑se segundo a vontade de Deus, e segundo a ordem natural por Deus estabelecida quando criou o universo, o mundo e o homem. Formou‑se assim uma sociedade temporal estabelecida sob o signo de Cristo, segundo a lei de Cristo e conforme a ordem e a natureza própria de cada coisa criada por Deus.

Tudo isto está longe de ser uma vã fraseologia. Exemplifiquemos com um relógio. O relojoeiro tem em vista fazer um instrumento para a marcação do tempo. Para isto, estabelece um plano em que se conjugam várias peças, trabalhando cada qual segundo seu feitio e natureza própria, para o fim visado pelo relojoeiro. Ora, a família é o instrumento humano [com o qual] Deus deseja a perpetuação da espécie. No caso do relógio, cada peça realiza o seu trabalho, atuando segundo a natureza e feitio com que a quis o relojoeiro. Se ela trabalhar segundo essa natureza e feitio terá feito tudo quanto dela desejava seu autor, e tudo quanto era necessário de sua parte para o bom funcionamento do relógio. Assim também na sociedade doméstica: se cada membro agir retamente segundo sua situação e seu papel, terá feito tudo quanto era necessário para que a família funcione bem. E se todos os membros agirem com igual retidão, a vida doméstica terá chegado à sua perfeição própria: precisamente como o relógio atinge sua própria perfeição pelo perfeito funcionamento de cada uma de suas peças.

Ora, o mesmo que se diz do relógio ou da família pode dizer‑se da sociedade civil. A sua grandeza própria, enquanto sociedade civil, resultará de que cada um dos elementos que a compõem, isto é, família, classe, associação, pessoa, atue retamente segundo seu feitio e natureza próprios. E é este, e só este, o modo por que a sociedade civil chegará à sua grandeza.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Cf. Legionário, n. 666, de 13/5/1945)

Revista Dr Plinio 110 (Maio de 2007)

O vigor da vida espiritual

Transcrevemos em seguida a parte final do memorando redigido por Dr. Plinio, em 1940, a pedido de um sacerdote vinculado à Ação Católica, para mostrar a necessidade de se utilizarem as práticas consagradas pela ascese cristã.

 

Meditar é aplicar a intelinas, para sempre melhor conhecê-las. Aplicá-la, também, ao conhecimento quanto possível exato de nós mesmos, para verificar o grau de correspondência entre aquilo que há em nós e aquelas verdades eternas, e, por aí, deduzir os meios práticos para atingir essa correspondência. Para este último fim é necessária uma aplicação da vontade sobre todo o já meditado, para que se fortaleça no amor do bem e no ódio ao mal, e se proponha a aperfeiçoar-se.

Há vários métodos de meditação, mas entre todos se salientam os que se contêm nos Exercícios Espirituais de Santo Inácio. Aliás, o Santo Padre Pio XI recomendou expressamente estes Exercícios aos membros da Ação Católica na Encíclica já citada, nos seguintes termos: “Vivamente desejamos, Veneráveis Irmãos, que se formem pelos Exercícios Espirituais numerosas coortes da Ação Católica. Não achamos palavras para exprimir toda a alegria que sentimos vendo organizarem-se por toda a parte cursos de exercícios particularmente reservados às pacíficas fileiras dos valorosos soldados de Cristo, especialmente aos mais jovens, que numerosos acorrem para travar os santos combates do Senhor, e ali encontram não só a força para melhorar a própria vida, mas bem depressa sentem no coração a voz misteriosa que os chama para o apostolado em toda a sua magnifica significação”.

Necessidade da leitura espiritual e modo de fazê-la

Para bem meditar é quase sempre necessária a leitura espiritual, isto é, a leitura atenta e devota de algum livro de piedade, devidamente aprovado pela autoridade eclesiástica.

A leitura espiritual recorda-nos nosso destino eterno em meio às atividades deste mundo, que nos distraem pela sua multiplicidade e urgência; desapega-nos a inteligência e a vontade das coisas terrenas e eleva-nos a sensibilidade, já mostrando-nos as misteriosas belezas da Fé, já movendo-nos pelos exemplos de santidade, ou ainda, dando-nos regras práticas de vida e de devoção. Desta forma, a leitura espiritual deposita em nós

os gérmens da perfeição cristã, que hão de ser desenvolvidos e amadurecidos pela meditação, a qual encontra neles seus elementos vitais. Mais explicitamente, é a leitura espiritual que fornece a matéria de nossa meditação.

Entretanto, para ser proveitosa, esta leitura deve ser periódica e freqüente, e cuidadosamente proporcionada aos interesses especiais de cada um, porque do contrário a sua influência fragmentária e esparsa facilmente seria delida pelos agentes mundanos, que atuam quase sem cessar.

Obrigação de estudar a doutrina católica

Para bem meditar é ainda necessário o conhecimento claro da doutrina da Igreja.

Vimos que a meditação versa sobre as verdades eternas. Ora, estas verdades estão contidas na doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo. Portanto, sem a instrução religiosa que nos dê o seu conhecimento claro, não só se poderão perder os frutos da meditação e da leitura espiritual, como também poderá acontecer muito provavelmente que o espírito se ponha a divagar por caminhos escusos, que levam a ilusões perigosas e a erros funestos, com suas conseqüências imprevisíveis sobre a sensibilidade.

Além disso, na doutrina da Igreja se contêm as verdades que são o objeto da Fé. Ora, desde que é a Fé o que caracteriza a nossa profissão de católicos, todos estamos obrigados a conhecer tais verdades em toda a medida de nossa condição e capacidade, pois que ninguém pode crer sem saber no que crê. E será suma ingratidão para com Deus, que nos revelou estas verdades para nossa salvação, não nos aplicarmos a conhecê-las quanto nos for possível.

Este conhecimento deve ser haurido num catecismo mais ou menos desenvolvido segundo a inteligência e o estado de cada um, pois que o catecismo é a fonte autêntica.

Fazer em tudo a vontade de Deus

O fruto próximo da vida espiritual, segundo vimos indicando, deve ser o firme propósito, isto é, o desejo cada vez mais vivo e ardente de servir a Deus e de desapegar-se inteiramente das coisas do mundo. Desejo vivo, porque se propõe empregar todos os meios conducentes a este fim e não desfalece ante as dificuldades e a vista

da própria fraqueza, mas está cônscio de seu livre arbítrio, e confia humilde e ativamente na Providência. Ardente, porque se consome no zelo pela glória de Deus. O firme propósito não quer dizer a promessa de sempre, em tudo, e nas mínimas coisas realizar a vontade de Deus, porque tal promessa não se pode fazer sem uma vocação especial ou graça toda particular, e, assim mesmo, em relação a certos fatos determinados. Mas é a vontade intensa de que isso aconteça o mais breve e perfeitamente.

Exame de consciência: a chave da vida espiritual

Para evitarmos surpresas e auferirmos os resultados positivos da vida espiritual, e, por aí, adotarmos os métodos sempre mais adequados de procedermos para com nós mesmos, é necessário o exame de consciência pelo menos quotidiano.

O exame consiste na inspeção cuidadosa de nossos pensamentos, palavras e obras, dentro de um período de tempo determinado, e na investigação dos motivos e circunstâncias desse nosso comportamento. No exame assim feito está a chave da vida espiritual, pois é pela apreciação concreta do que se passa em nós que se pode atingir a atividade superior e geral de ver, julgar e agir em si mesmo. Além disso, o exame de consciência ajuda-nos a desfazer falsas idéias sobre nós mesmos, leva-nos à humildade e excita-nos o arrependimento.

Também é necessário o exame de consciência para a confissão. Neste particular todos devem ter o seu diretor espiritual, que é a cúpula de tudo quanto se tem dito em matéria de vida de piedade. De fato, praticamente de nada adiantariam todas as recomendações que se vêm fazendo sem a direção de um sacerdote que, por estar muito mais aparelhado pelos seus conhecimentos e graças especiais, sabe indicar os caminhos que seus penitentes poderão seguir com segurança. Se não fosse pela inexperiência dos que se iniciam nas vias da perfeição inexperiência que os fará certamente errar se não tiverem um guia -, bastaria considerar que a vida espiritual exige que cada um se julgue a si mesmo. Ora, ninguém pode ser juiz, não diremos imparcial, mas objetivo de si mesmo. É preciso, portanto, uma terceira pessoa de grande sabedoria e de virtude inconteste.

Devoção à Santíssima Virgem e à Sagrada Eucaristia

A vida espiritual exige a mortificação, isto é, a guarda cuidadosa dos sentidos, ou não será vida espiritual. A verdadeira mortificação não consiste apenas em nos privarmos dos prazeres

ilícitos ou perigosos, mas também daqueles prazeres lícitos que, pelas circunstâncias de fato, variáveis no tempo e no espaço, têm uma certa conexão com a mundanidade. É necessário, ainda, a abstinência dos prazeres, também lícitos, que podem lisonjear as más disposições e tendências desregradas de cada um.

Enfim, todas estas regras de vida espiritual devem encontrar seu complemento indispensável numa dupla devoção, sem a qual nenhum fruto se colheria: a devoção a Nossa Senhora e à Santíssima Eucaristia. Não basta uma só delas, mesmo porque não é possível separá-las, ou já não serão verdadeiras. A Santíssima Virgem é a Rainha da bem-aventurança e dos bem-aventurados, e a devoção a Ela é considerada sinal certo de predestinação. Só há um caminho para Deus, que é Nosso Senhor Jesus Cristo; mas só há um caminho para Nosso Senhor Jesus Cristo, que é Nossa Senhora, a medianeira de todas as Graças.

Onde está Maria, não há temer ilusões, extravios, erros, porque Ela é a inimiga, assim constituída por Deus, do demônio e de suas fraudes (Gen. 3, 15). A devoção a Maria é, ainda, uma conseqüência necessária do Corpo Místico. Pois, “se Jesus Cristo, o chefe dos homens, nasce d’Ela, os predestinados, que são os membros deste chefe, também devem nascer d’Ela inelutavelmente. Uma mesma mãe não dá ao mundo a cabeça ou o chefe sem os membros, nem os membros sem a cabeça; isto seria um monstro da natureza. Igualmente, na ordem da Graça, o chefe e os membros nascem da mesma mãe. E se um membro do Corpo Místico de Jesus Cristo, quer dizer, um predestinado, nascesse de outra mãe que não fosse Maria que produziu o chefe, não seria um predestinado, nem um membro de Jesus Cristo, mas um monstro na ordem da graça” (São Luís Maria Grignion de Montfort, La vraie dévotion, cap. 1, art. 1º, § 32).

Assim, o devoto da Santíssima Virgem encontrará no Coração de Maria o próprio Coração de Jesus, naquilo que este Coração tem de mais amoroso, mais terno e mais compassivo. Ora, onde mais se manifestam as finezas do Coração de Jesus é na Santíssima Eucaristia. Desse modo, a devoção a Nossa Senhora leva natural e espontaneamente à devoção eucarística. E é aí que os membros da Ação Católica encontrarão o alimento de sua vida espiritual, em primeiro lugar na freqüência assídua à Santa Comunhão, depois na adoração também assídua ao Santíssimo Sacramento.

Sem este culto fervoroso à Eucaristia que só pode ser verdadeiro com o culto mariano, pelo culto mariano e no culto mariano não é possível a vida espiritual, pois que esta é a assimilação deste sublime alimento, segundo as recomendações dadas. É no Santíssimo Sacramento que reside não só a Graça, mas o Autor de toda Graça, à cuja semelhança se fazem os eleitos, porque fora d’Ele não há bênção nem fruto, nem ressurreição bem-aventurada. A Ele, pois, sejam dadas honra, glória, louvor, adoração, ação de graças, por todos os séculos. Amém.

Princípios da unidade

Na segunda parte da conferência, cujo início transcrevemos no último número, Dr. Plinio continua a tratar de um princípio da escolástica, segundo o qual a beleza consiste na unidade posta na variedade. É fundamental para se compreender por que Deus imprimiu no universo um caráter hierárquico, com graus diversos de perfeição. Após haver estudado as leis da variedade, Dr. Plinio examina as da unidade.

 

A unidade supõe uma ausência de interrupção que se pode verificar de duas maneiras: pela continuidade ou pela coesão.

A continuidade é a simples ausência de vazios, para que, no ser uno, não haja hiatos.

Muito mais profunda é a unidade que se verifica pela coesão: neste caso há uma articulação interna entre os elementos, de modo que eles ficam presos uns aos outros por vínculos íntimos e poderosos.

Entre as classes sociais, numa civilização cristã, deve haver continuidade e coesão. Embora numerosas, e profundamente diferentes entre si, o todo que elas constituem é contínuo e coeso. É contínuo porque umas se explicam pelas outras, auxiliam-se mutuamente e formam um conjunto sem os hiatos que caracterizam a sociedade revolucionária. E é coeso porque as classes, embora distintas, estimam-se, defendem-se umas às outras, não se consideram estranhas ou inimigas entre si, mas se amam com o verdadeiro espírito de Nosso Senhor, que foi Príncipe e, ao mesmo tempo, artesão. Como tudo isso é diferente da luta de classes do mundo moderno!

Transição harmônica, como as cores de um arco-íris

Ao tratarmos das leis da variedade e ao examinarmos a lei da gradação, vimos que deve haver hierarquia na Criação.

Estudando agora as leis da unidade, veremos que essa hierarquia, para ser autêntica, deve compor-se de graus que se sobreponham uns aos outros harmonicamente, e não de qualquer modo.

Na hierarquia, a variedade se assegura pela multiplicidade dos graus intermediários, ao passo que a unidade se assegura pela suavidade da transição entre esses graus.

É o que acontece com o arco-íris: as cores que o compõem se ordenam em uma transição suave. Vemos nisto a sabedoria de Deus, que criou o Universo com uma magnífica unidade, expressão de uma grande força, e ao mesmo tempo com uma magnifica variedade, expressão de um grande poder.

Pensemos na coroação de um Imperador do Sacro Império Romano Alemão. No momento em que o Imperador recebia a coroa, bimbalhavam os sinos da capital do Império. Logo repicavam os sinos das cidades mais próximas; a seguir, os das cidades mais longínquas; e por fim, os de todas as Igrejas da Alemanha. Durante dias e dias os sinos repicavam, anunciando, de campanário em campanário, que o Imperador havia sido coroado.

Consideremos esse tocar de sinos que se estendia por todas as Alemanhas: a Alemanha da Baviera, a da Saxônia, a de Dresden, a de todos os tipos de alemães, desde o tipicamente militar, até o burguês bonachão. Essa amplitude de repercussões da notícia da coroação do Imperador por vários mundos dá a impressão de algo forte e suave ao mesmo tempo. Que poder imenso é o do Imperador! Mas, ao mesmo tempo, quanta doçura há nesse Império! Como a força e a suavidade nele coexistem harmonicamente!

São bem esses os valores que devemos amar do fundo de nossa alma, pois se relacionam com uma perfeição a perfeição da hierarquia em que a variedade e a unidade se encontram num grau excelente.

Proporção: tudo feito com número, peso e medida

A Sagrada Escritura nos diz que todas as coisas foram criadas por Deus com número, peso e medida. Vemos, com efeito, que em todos os corpos, a natureza, o movimento e a massa são proporcionais.

Temos um expressivo exemplo dessa proporção na Igreja Católica. Sendo uma organização imensa, riquíssima e belíssima, Ela se personifica, por excelência, na pessoa do Papa. A pompa e a dignidade papais, a beleza de sua corte, enchem a todos de admiração. Mas, ao mesmo tempo, achamos tocante que a Igreja Católica também se personifique num pequeno cura de aldeia. Essa personificação é a mais proporcionada aos camponeses, está bem ao nível das suas almas, não os intimida nem os constrange. A representação do Sacerdócio de Nosso Senhor tem, nesses curas de aldeia, como que uma condição pequena, proporcionada àquela gente também pequena.

Imaginemos agora um estadista coberto de glórias, que chega à velhice, e suponhamos que a Igreja, para cuidar de sua alma, delegue um monsenhor. É um fato que, aliás, tem se dado na História. Contemplemos o velho estadista e o monsenhor conversando de forma amena e respeitosa. Não agiu bem a Igreja Católica, reconhecendo e honrando a dignidade desse homem? É que a Igreja procura proporcionar a sua hierarquia à hierarquia civil. Seu amor é semelhante ao materno, pois uma mãe sabe dosar como ninguém a energia e a suavidade. Assim faz a Igreja.

A proporção existia em grau excelente na hierarquia feudal. A nação, que se personificava no rei, também se personificava no pequeno senhor feudal, colocado junto ao povinho miúdo. Ele, o menor grau da aristocracia, iluminava com a transcendentalidade da nobreza o último grau da escala social.

Até com relação às bebidas podemos contemplar a proporção. Ao lado de vinhos do mais alto requinte, existem boas bebidas populares, feitas exatamente para o pequeno povo. Essa é a proporcionalidade das coisas boas. Na casa do rei, há móveis dourados; na do camponês, os há de carvalho trabalhado, como em algumas regiões da Europa. Na casa do rei, há ouro e prata; na do camponês, objetos toscos, mas que, por serem dignos e artísticos, às vezes valem o ouro e a prata.

Esta é a proporção bela, leve, suave, razoável, que devemos, amar com todas as nossas forças.

Simetria: não pode haver o risco de se perder a unidade

Imaginemos um edifício com uma fachada tão extensa que corra o risco de perder a unidade. Se, entretanto, ele tiver nos dois extremos duas torres iguais, sua unidade estará, pela simetria, reconstituída.

Na História do século XVI vamos encontrar uma cena que ilustra bem isso. Francisco I, rei da França, e Henrique VIII que ainda não se tinha feito protestante decidiram encontrar-se em Cambrai, no lugar que depois foi chamado “camp du drap d’or”, tal o luxo, tal a magnificência de que se revestiu o fato. Basta dizer que, no campo de Francisco I, as tendas eram douradas. O encontro entre os reis realizou-se em uma ponte. Imaginemos a beleza do encontro dos dois soberanos, e das duas cortes que chegavam. Na ponte inteiramente coberta de tapetes, um rei se inclina diante do outro rei, cumprimentando-se assim mutuamente, enquanto as trombetas soam. Quando os franceses querem descrever a atitude dominadora de um homem, dizem que ele tem o ar de um rei que recebe outro rei “l’air d’un roi recevant un roi”. Em que consiste a beleza de um soberano que recebe outro rei? É exatamente a beleza da simetria, em que dois princípios iguais se contemplam um ao outro e, de certo modo, se multiplicam um pelo outro.

Na cristandade, a existência de muitos reis iguais em força, glória e poder, era exatamente uma expressão do princípio da simetria.

Tudo se ordena em torno de um elemento supremo

A quinta lei da unidade é a da monarquia. Ela é indispensável para a beleza da vida humana. Todas as coisas, para serem reduzidas à sua unidade, devem tender a se ordenar em torno de um elemento supremo, que será um símbolo, uma como que personificação do conjunto. E é esta personificação que dá perfeição à unidade

A monarquia não é, como poderia talvez parecer, o oposto da hierarquia, mas, pelo contrário, é a sua consumação. Nela, a beleza de todas as diversas perspectivas como que se concentra.

Ao lado da lei da monarquia, há a lei da sociedade. Ela consiste em que as coisas, postas juntas, se completam e se embelezam mutuamente.

Analisamos embora de forma muito sucinta as leis da estética do Universo. Trataremos de mais um ponto, muito relacionado com este assunto.

Atração pelo que melhor espelha a perfeição de Deus

Tomemos as palavras: decente, excelente, nobre, majestoso, sagrado. Elas constituem uma gradação ascendente.

De um determinado objeto, pode-se dizer primeiro, que ele é decente, o que significa que não tem nenhuma nódoa de vergonha. Além de decente, podemos dizer que ele é ótimo, excelente. Excelente já é mais que decente.

Poder-se-ia, prosseguindo, apôr o adjetivo nobre, que é especificamente mais do que excelente e decente. Mais do que nobre, poderemos dizer que o objeto é majestoso, adjetivo que, não é, entretanto, especificamente diferente de nobre, pois dele difere somente em grau. Por fim, poderemos acrescentar que o objeto é sagrado, quando contém valores que superam a majestade humana.

Nessa gradação de valores, um espírito muito religioso será atraído por aquilo que melhor espelha a perfeição de Deus: o majestoso e o sagrado. Ele procurará, em tudo, esses supremos valores, e terá sede deles.

Tendo esse espírito, o homem desejará uma sociedade em que, ao lado de muitas coisas decentes, haja várias excelentes, nobres, majestosas, e sagradas.

E então esse homem criará naturalmente uma sociedade que realiza, dentro dessa ordem quase fluida de coisas, uma admirável variedade e uma perfeita unidade

Compreendemos, pois, que quando uma pessoa conhece e ama os princípios da variedade e da unidade do Universo, e quando essa pessoa é católica pois só o católico já tem os pressupostos para compreender inteiramente esses princípios , ela é de fato profundamente religiosa, no sentido mais verdadeiro da palavra.

Este quadro que descrevemos da estética do Universo, com suas leis, os reflexos divinos colocados pelo Criador em todas as coisas, em última análise, tudo o que os católicos fervorosos amam, tudo aquilo de que têm sede, tudo isto a Revolução quer destruir, eliminar, apagar.

E é nisso que consiste a questão religiosa, que não se restringe ao problema do laicismo. É uma questão que não se resolve fazendo uma concordata e declarando que a Igreja Católica é a oficial no país. Está em cena toda uma concepção da vida, todo um modo de ser do pensamento humano.

Como católicos, pois, devemos amar profundamente a face de Deus refletida na ordem verdadeira das coisas. Mas, para que nosso amor chegue até onde deve ir, aprendamos a aplicar essas leis da variedade e da unidade.

Assim, sempre que algo nos causar admiração e nos deleitar, saibamos perceber qual das leis da estética do Universo está aí aplicada. Agindo desse modo, faremos algo imensamente agradável a Nossa Senhora.

Com este sinal, vencerás!

No ano de 312, a batalha da Ponte Mílvia marcava a ruína de um mundo e o surgimento de outro. Após três séculos de perseguições, a mensagem do Evangelho derrotava o paganismo.

 

Durante centenas de anos a religião católica tentou espraiar-se por todo o mundo romano. E por isso foi perseguida, arrastada perante os tribunais, condenada injustamente, e sofreu toda ordem  de calúnias. Mas, impavidamente, os católicos se negaram a professar outra religião que não a católica e afirmaram ser falsa a religião dos deuses pagãos, e infames os ídolos que o mundo antigo  adorava. Proclamaram a existência de um só Deus e de Jesus Cristo Nosso Senhor, filho de Deus, Homem-Deus, Redentor do gênero humano, nascido de Maria.

Perseguição, refúgio nas catacumbas

Em várias ocasiões, parecia que o Cristianismo ia sucumbir e desaparecer no esmagamento geral em que o paganismo o procurava sufocar. Nesta luta grandiosa, a seqüência de acontecimentos se  dava de um modo que nós poderíamos esquematizar mais ou menos da seguinte maneira:

Ia um apóstolo a uma cidade qualquer, e ali pregava o Evangelho. Alguns se convertiam, começava a vida da religião católica naquele local. No início, sem muitos entraves. Mas não tardava a arrebentar a perseguição. E os católicos, que até então se reuniam em casas particulares, eram obrigados a  passar para esconderijos, a descer para as catacumbas. E a estabelecer o culto católico nas entranhas da terra, no meio dos maus odores e das feiuras daquelas profundidades cavadas para os  cadáveres, para aquilo que é feito para ficar escondido e não para aparecer.

Em pouco tempo, os pagãos ficavam com a ideia de que o culto católico havia desaparecido e dormiam sossegados. E também os católicos durante algum tempo dormiam sossegados, porque se  julgavam ignorados.

Mas não tardava muito a chegar uma denúncia aos governantes do lugar, informando que os cristãos se reuniam em tal casa e depois desciam a um subterrâneo, ou se escondiam numa gruta, ou  se adentravam no matagal, praticando ali o seu culto. E recomeçava a perseguição.

Depois de cada esmagamento, pujante renascimento

O Catolicismo, então corria novamente para os esconderijos e se habituava a morar ali dentro. Recomeçava a viver nas trevas e nos maus odores,  é verdade, mas sentindo o bom odor de Nosso  Senhor Jesus Cristo e recebendo graças magníficas nos subterrâneos, ou nas grutas, ou nos outros lugares onde se refugiava. Começava ali novamente a crescer. Mas apenas ele crescia um pouco  mais, vinha outro golpe brutal que, por assim dizer, o esmagava.

Os cristãos não se dispersavam, mas se escondiam em outros lugares. A perseguição se acentuava, chegava às vezes ao inimaginável da crueldade e da brutalidade, com a interferência pessoal do  imperador, que determinava os suplícios a que os cristãos deveriam ser submetidos para desanimarem e desistirem de pertencer à Igreja. Tinha-se a impressão de que a última hora havia chegado, que desta vez o pânico iria dominar completamente os que ainda conservavam a Fé e que a religião cristã acabaria.

Neste vaivém, o que aparece à primeira vista é a seqüência de uma fundação, um surto e um esmagamento. Um aparente acabrunhamento, um aparente destroçamento. Mas, daí a pouco, esse  destroçamento dá origem a algo de novo; logo, porém, é novamente um esmagamento que vem.

E isto vai de ponto em ponto, mas com uma circunstância que eu até agora não mencionei. É que, depois de cada esmagamento, aquilo que renasce é mais numeroso, mais amplo, mais cheio de fé,  mais brilhante. De maneira que, se é verdade que um esquema desses acontecimentos poderia ser: nascimento, esmagamento, novo nascimento, novo esmagamento — é preciso dizer que esse  esquema está mal formulado. Porque o verdadeiro esquema deve ser assim:  nascimento, esmagamento, multiplicação, esmagamento maior, multiplicação maior!

Ao cabo de alguns séculos, um apologista cristão pôde escrever a um imperador uma carta mais ou menos nos seguintes termos: “Vós só estais no vosso trono porque nós queremos, porque vós  sois fraco apesar de serdes o imperador. E nós somos fortes apesar de sermos apenas uns pobres perseguidos. Olhai em torno de vós e entre os vossos próprios ministros encontrareis católicos, entre vossos generais encontrareis católicos, entre os que comandam as vossas naus encontrareis católicos, entre os que dirigem as vossas finanças, entre aqueles que brilham na vida cultural, na  vida social, na vida política do vosso Império.

O que digo? Entre aqueles que fazem parte da vossa guarda pessoal e que são responsáveis pela vossa vida, que velam por vós enquanto vós dormis. Vós dormis e só não sois morto, porque são  católicos que vos guardam.” E ele poderia ter acrescentado: “Se durante a noite a consciência de vossos crimes vos acordar e vós olhardes para os homens que estão à vossa cabeceira, revestidos de couraça e de elmo para vos defender contra algum ataque, lembrai-vos: eles sabem que vós amanhã os jogareis aos tigres, os jogareis aos leões e aos leopardos; que vós os revestireis de matérias  combustíveis, os amarrareis em árvores e os incendiareis como se fossem tochas; eles, que sabem que amanhã serão vossas vítimas, hoje são vossos guardiães. Vós confiais neles, mas vós confiais,  na verdade, na vossa derrota. Porque vós, os pagãos, já sois os derrotados, falta apenas o fato histórico de um piparote para vós estardes no chão. E esse Cristo a quem quereis esmagar, que não  quereis conhecer, que caluniais, Ele já venceu sobre a face da Terra!”

Uma visita às catacumbas de Roma

Imaginem a situação dos católicos nos lugares onde eles se escondiam. Eu a senti, por assim dizer, palpitar na concha da minha mão estando nas catacumbas de Roma. A primeira vez que fui às  catacumbas, estava acompanhado de várias pessoas. Descemos, mas a certa altura eu tive de voltar, por causa de algo que costuma acontecer comigo: se vejo alguém ter falta de ar, imediatamente começo a sentir, também eu, falta de ar e sou obrigado a me distanciar.

Naquela ocasião, os meus companheiros e eu descemos até o fundo da terra. Mas à medida que íamos avançando por aqueles corredores, eu ia imaginando a falta de ar que deveria haver lá nos tempos de perseguição, com aqueles lugares repletos de gente, confinada num espaço limitado, naqueles corredores sem fim. Pensando nessa falta de ar, não suportei e tive de, discretamente,  desligar- me dos meus companheiros e sair. Fora, havia um bonito jardim, sorridente,  agradável, com um banco de pedra iluminado pelo sol da primavera.

Sentei-me e comecei a respirar livremente, pensando na diferença das situações. Naquele mesmo solo, nas noites do Império Romano, quanto passo fugidio de mártires do dia de amanhã, que  esgueiravam-se pelas trevas, passavam depressa e se enfurnavam dentro da terra, quando a noite estava mais escura e os guardas não podiam distinguir senão sombras muito confusas! Eram  escravos ou ex-escravos, homens pretos ou brancos, graduados ou não, mas todos marcados pelo signo do Batismo.

Mas a História tinha mudado tanto que naquele mesmo lugar onde se situava a entrada de uma catacumba, havia no momento um jardim e nesse jardim estava sentado num banco aprazível um  homem que se beneficiava do fresco ar da primavera de Roma…

Poltrões transformados pela graça em mártires

Esse ambiente no qual eu me encontrava era o sinal de uma vitória enorme. A fé que realizava seus cultos sob a superfície da terra, dominava agora essa superfície. E na tranqüilidade da liberdade conquistada e possuída, um filho dessa fé católica respirava tranquilamente, à espera dos que estavam sob a terra.

Que diferença dos tempos antigos! Que diferença de tanto suor, de tanto sangue, de tantas lágrimas, de tanto martírio!

Pior do que tudo isto: de tantas apostasias de pessoas que chegavam na hora do sacrifício e não tinham coragem de manter a fé, renegavam-na e então eram libertadas. E à noite, corroídas de  vergonha e de remorso, sem ter coragem de chegar perto dos homens santos que no dia seguinte morreriam pela fé, essas pessoas os viam passar e diziam baixinho, nas sombras: “Tenha pena de mim! Eu me envergonho, eu peço perdão. Obtenha de mim que eu esteja ao seu lado na hora do holocausto amanhã”. E o passante dizia: “Sim, sim. Deus o ajude!”, e se afastava com rapidez.

No dia seguinte, a graça lhes havia dado uma energia que dominava tanta fraqueza, uma força enormemente maior do que tanta poltronice. E assim, entre a coorte dos pobres miseráveis que iam  andando no meio das feras e sendo agarrados por elas de cá e de lá, via-se um homem que com coragem desafiava um leão. Era o poltrão da véspera. O raio da graça tinha pousado sobre ele. Na Igreja de Cristo havia mais um mártir; no Céu, mais um santo.

Não estava longe o dia em que o paganismo cairia

Bem, com tudo isto a Igreja foi se estendendo sobre toda a Terra. Era assim mostrada a vitória da Igreja , na sucessão dos pequenos triunfos e dos grandes esmagamentos, da enorme frutificação  conseqüente a esses esmagamentos e a enorme proliferação dos filhos da fé por todo o Império Romano.

Os que tinham presenciado tudo isto e os que eram frutos deste processo, viam que não estava longe o dia em que o paganismo haveria de cair.

Chegou um momento em que a própria futura  imperatriz, mãe de Constantino, o pretendente ao trono imperial, era católica, a modelar romana Helena. E este fato era do conhecimento de todos, porque a encontravam misturada no meio do  povinho humilde, de cabeça inclinada, na hora em que se oferecia o Santo Sacrifício. E pedindo, naturalmente, por si mesma e pelos dela, mas pedindo também — e com quanto empenho! — pelo filho, e pelo Império que esse filho teria nas mãos, tomando em consideração que um simples movimento de alma do filho podia fazer cessar a dominação pagã e fazer luzir aos olhos do mundo o Reino de Cristo.

Rezava, rezava, rezava, sem articular conspirações terrenas, mas conspirando com o Céu, conspirando com Maria Santíssima, conspirando com Deus onipotente, que é não só misericordioso, mas  é a Misericórdia, para que esse momento chegasse.

O triunfo final

Chegou a confrontação entre os imperadores Constantino e Maxêncio (este último, feroz inimigo dos cristãos) perto da Ponte Mílvia, em Roma, pelo controle da parte ocidental do Império.  Constantino viu que ele estava em inferioridade de condições. Na véspera do confronto, lembrado das orações da mãe, se ajoelhou e rezou ao Deus de Helena. Apareceu no céu uma cruz radiante e  as letras gregas similares às letras X e P, que são as duas primeiras letras do nome de Cristo nessa língua, Christós. Em torno dessa cruz, as palavras “In hoc signo vinces” — “Com este sinal,  vencerás”.

Na magnífica seqüência de aparentes becos sem saída que fora a vida da Igreja no Império Romano até então, havia por fim uma saída, prenunciava- se o triunfo final, abria-se a avenida da  História que se desenvolveria largamente por séculos inteiros.

Era o momento em que, anunciando às tropas o seu propósito de converter-se, anunciando a sua fé em Cristo, mandando pôr nos lábaros romanos o sinal da vitória de Cristo, Constantino deu a  investida. “In hoc signo vinces!” As tropas de Maxêncio foram dispersadas. Constantino era pagão até então, mas atribuiu a vitória ao Deus cristão, a quem rezava sua mãe, Helena.

E pouco depois, em 313, ele concedeu liberdade à Igreja Católica em toda a vastidão do Império. Tomou o palácio da sua esposa, Fausta, que tinha pertencido à nobre família dos Laterani, e o deu  de presente ao Papa.

Esse edifício se tornou a Basílica de São João de Latrão, Catedral de Roma até hoje e, enquanto sede do Papa, Bispo de Roma, cabeça e mãe de todas as igrejas do mundo: “urbis et orbis ecclesiarum ater et caput”.

Não muito longe dali — na Basílica de São Pedro, que Constantino mandara construir sobre o túmulo do Príncipe dos Apóstolos — Carlos Magno haveria de ser coroado imperador pelo Papa. À luz suave da noite de Natal do ano 800, nasceria o Sacro Império Romano Alemão, para bênção dos povos durante muitos séculos.

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 62 (Maio de 2003)

Encantos da velha Alemanha

Ao lado das superiores maravilhas que o espírito católico engendrou ao longo dos séculos, a par dos esplendores de monumentos, costumes e tradições que resistiram ao passar do tempo e ainda hoje se afirmam como obras-primas e requintes da realização humana, junto a tudo isso sempre me agradou considerar o reflexo do bom gosto cristão nos pequenos aspectos do ambiente europeu  em geral, e de modo particular na vida cotidiana do povo alemão.

Refiro-me mais diretamente a essa Alemanha médio-burguesa cujos encantos me foi dado apreciar de perto, a Alemanha de minha inesquecível Fräulein Mathilde, governanta e educadora exímia, ela mesma uma pequena burguesa nascida em Regensburg, na pitoresca e poética Baviera.

As descrições que ela nos fazia de sua terra natal, as histórias que nos contava de sua gente, com seu modo de ser, hábitos e tradições tão peculiares, despertaram minha atenção para o que havia  de bom, de belo e verdadeiro também nas menores  facetas de uma civilização católica.

De dentro dos meus olhos brasileiros, fiz uma análise própria da Alemanha que, desde o meu tempo de menino até hoje, não foi desmentida, mas ampliada e completada — é natural — com  considerações mais amadurecidas.

Assim, a meu ver, reveste-se de intensa beleza uma organização quase inocente da existência de todos os dias, que se pode comprovar até nos menores povoados alemães.

A casa, embora de modestas proporções, tem suas janelas guarnecidas de cortinas presas dos dois lados, de pano barato e comum, mas de cores alegres; os vidros primorosamente limpos e, do  lado de fora, o célebre pote de gerânios sorridentes ao sol de verão que os ilumina. Se, pelo contrário, é inverno, a casinhola amanhece engrinaldada de neve ou adornada por certas figuras  geométricas, por flores petrificadas que os caprichos do gelo desenhou nas pontas de telhado, nas quinas de balaustradas, nas traves das cercas.

As venezianas pintadas de verde e sempre bem conservadas, as portas com suas dobradiças e fechaduras que não rangem, funcionando de modo perfeito, suave, silencioso. Entra-se na pequena  sala de estar, primorosamente arranjada, decorada com móveis de maior ou menor distinção conforme o permitam as posses da família, porém oferecendo todo o conforto possível, além da  lareira, indispensável para o aconchego nos dias frios, com sua lenha disposta de modo ordenado e sua mesa enfeitada com “bibelots” e canecões de cerveja decorativos.

A um canto, na sua gaiola de ferro ou de madeira, um passarinho alegra o ambiente com seus trinares. A sua “morada” é limpíssima, o seu alpiste de primeira qualidade, e quando chega a hora de ele dormir, de entrar na noite antes das pessoas, cobre-se-lhe a gaiola com um lindo pano, e o bichinho se aquieta e emudece, até a manhã seguinte.

Noutro canto da sala, repousa um instrumento que o filho toca. Será um violino no qual o rapaz de vez em quando tange alguma melodia, acompanhado pela irmã que canta, sob o olhar  embevecido e derretido dos pais.

E bem podemos imaginar certos laivos do convívio entre os dois esposos, quando o dono da casa chega de seu trabalho, e já encontra uns largos e deliciosos chinelos que a mulher dispôs para ele trocar, logo depois de se sentar na poltrona que é só dele… Enquanto sua consorte leva os sapatos para o quarto, ele se repimpa e espreguiça no seu assento, acende o cachimbo, solta umas boas  baforadas, pega o jornal e começa a ler. Dali a pouco a senhora está de volta, e os dois se põem a conversar. Ela durante o dia se preparou — porque é a terra das preparações, não há improvisações — para esse momento de prosa com o marido, procurou saber as novidades com as amigas, trocou idéias, etc., a fim de estar à altura da conversa dele. E o homem fica contente quando a mulher lhe diz algo ou exprime algum pensamento que não lhe tinha passado pela cabeça.

A riqueza desse interior de vida familiar, perfumado pelos mil pequenos prazeres inocentes da existência terrena, parece-me formar uma atmosfera única de vidinha cintilante do pequeno burguês, que é uma maravilha da velha Alemanha. Foi ali, naquelas vizinhanças do tirol austríaco, que vicejou o “Stille Nacht, Heilige Nacht” (noite de paz, noite santa). É o Natal alemão que se  tornou o Natal do mundo!

O Natal com presentes sobre a lareira, aos pés do “Tannenbaum” (pinheiro), junto a uma imagem de Nossa Senhora esculpida por um artesão da família, enfim, todas as canduras natalinas com que a piedade popular germânica enriqueceu o universo católico.

Uma beleza, essa vidinha! À semelhança desse ambiente pequeno burguês, cada classe social na Alemanha tem o ar de si própria, como, por exemplo, a dos rudes fidalgos prussianos, os chamados  “junkers”.

Homens que gostam de se encontrar ao redor de volumosas canecas de cerveja, diante de sanduíches de salsichas, camadas de manteiga fresca e outros ingredientes formando saborosos andares nos pratos, devorados por eles com a mesma determinação com que invadem e conquistam territórios! Claro, conversando com o interlocutor muito seriamente sobre política ou filosofia, ou,  melhor ainda, os dois cantando. É outro veio.

Assim, desde o “Junker” ou desde o Kaiser (imperador) até o último pequeno funcionário público que tem seu lugar num alveolozinho com cortininha, tem-se um esplendoroso conjunto que é o  píncaro dessa Alemanha de tantas tradições e glórias católicas que eu, ainda menino, aprendi a admirar pelas descrições da minha Fräulein Mathilde.

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 62 (Maio de 2003)

O cavalo de Tróia e a vigilância

Desconfiar, saber ser vigilante contra os aparentes “agrados” da Revolução, e manter o espírito livre de preguiça a fim de não abandonar a luta pela Igreja, é um dos deveres do católico militante face à corrente daqueles para os quais “tudo sempre dá certo”. Precioso ensinamento que Dr. Plinio nos oferece nestes comentários.

 

A situação do mundo contemporâneo, não só em sua globalidade mas também em cada nação, grupo social e indivíduo, poderia ser comparada com Troia nas vésperas da sua queda, quando o cavalo seria introduzido na cidade e produziria a sua ruína.

Dentro de cada uma dessas entidades — humanidade, nação, grupos sociais, indivíduos — há um cavalo de Troia. Ou seja, um inimigo foi infiltrado em nossas almas ou no grupo a que pertencemos, enquanto dormíamos, como aquele gigantesco embuste de madeira foi colocado na cidade adormecida.

A Revolução, cavalo de Troia moderno

Que vem a ser este novo cavalo de Troia?

Como se sabe, a antiga Troia era uma estratégica localidade, situada no noroeste da atual Turquia, próxima ao Mar Egeu. Mais de mil anos antes de Cristo, fazia ela parte de um conjunto de importantes centros urbanos, pela cultura, civilização, riqueza comercial, etc.

Entretanto, apesar do seu progresso cheio de promessas de bem-estar, um cavalo de madeira foi nela introduzido para sua destruição, pois era o próprio adversário, ardilosamente escondido, que penetrava nas suas muralhas.

Assim também em cada um de nós penetrou um cavalo de Troia. Ou seja, o mundo contemporâneo está em possante progresso material, mas traz em seu bojo a negação de muitos princípios ligados ao que é bom, verdadeiro e belo, que conferem sentido à vida.  É a Revolução.

No que diz respeito ao episódio de Troia, seus habitantes tomaram uma atitude má, não querendo esforçar-se em fazer este pequeno raciocínio: “Esse imenso cavalo que nos foi dado de presente pelos gregos deve conter alguma coisa para nossa desgraça. Devemos desconfiar dele, simplesmente porque nos foi oferecido por nossos adversários mortais, que cercam há tanto tempo nossas muralhas, têm provocado a morte de nossos melhores heróis, e visivelmente tentam incendiar nossa cidade, espreitando para isso a ocasião propícia.

“Nossos inimigos nos brindam com uma obra escultural gigantesca (e, provavelmente, devido à arte dos gregos, era um bonito cavalo), que até possui rodas debaixo das patas… Claro, eles desejam que o levemos para dentro de Troia, a fim de destruí-la.”

A atitude que os troianos não tomaram

Um troiano que tivesse o espírito atilado, sobretudo desconfiaria das rodas.  Pois estas obviamente significavam: “por favor, levem o cavalo para dentro da cidade, porque sua missão não se realiza fora das muralhas, mas em seu interior!” E ele pensaria: “Os gregos só se deram o trabalho de construir esse enorme cavalo na esperança de que o levemos para dentro de Troia. Portanto, se há uma coisa que não podemos fazer, é isso. No bojo desse cavalo não terá soldados escondidos? Se não, por que o adversário no-lo teria oferecido?”

Naquele tempo ainda não havia pólvora, porém não faltavam outros artefatos nocivos que poderiam acabar com a cidade.  Se era presente dos gregos, deveria ser prejudicial aos troianos. Se estes, abrindo o cavalo, nada encontrassem, ou se a monumental escultura fosse maciça, era o caso de pedirem a paz. Pois uma vez que os gregos estavam concedendo-lhes tal presente, a inimizade entre os dois povos havia cessado. Então mais valeria a pena acabar a guerra.

Mas, ai! do miserável troiano que pensasse em paz quando as circunstâncias estavam impondo luta! Esse seria considerado um traidor da pátria.

Não me recordo, da leitura que fiz da história da guerra de Troia, se Homero se refere ao estado de espírito de seus habitantes. Porém, é plausível que tenha havido em Troia duas correntes de opinião: uma a favor do cavalo, e outra, contrária. A primeira era dos otimistas, desejosos de ver tudo pelo lado bom, mais simples e cômodo.  Estes deviam achar que os gregos estavam inclinados a se entregar aos troianos, ou ao menos a propor o fim do conflito, dando início às negociações por meio de um presente.

— Não, cuidado! — diziam os da outra corrente.

— Desconfiar do quê, depois deste presente? — objetavam os otimistas.

— É presente de grego! “Timeo danaos et dona ferentes”: tenho medo dos gregos até quando trazem presentes — respondiam os segundos.

E entretanto, teria sido tão simples resolver o caso: bastava encostarem o ouvido junto ao bojo do cavalo para saber se havia barulho no interior dele, algum sussurro ou som de respiração, etc. Os gregos estavam há horas naquela prisão tremenda, à espera do momento em que pudessem abrir algum alçapão, pular para fora e atacar a cidade. Alguma manifestação de cansaço, qualquer mínimo ruído de corpos se acomodando no amontoado de homens seria percebido por uma escuta atenta.

Uma vez descoberto o ardil, era preciso traçar um rápido plano de contra-ataque. Por exemplo, constituírem três círculos concêntricos em torno do cavalo. O primeiro, formado pelos vigias e alguns poucos troianos com tochas acesas; o segundo, por várias fogueiras, e o terceiro, composto de guerreiros com lanças e espadas. Em dado momento, ateariam fogo na mole de madeira e seria a debandada dos gregos. Os que escapassem ao primeiro círculo, cairiam nas chamas do segundo ou, finalmente, nas espadas e lanças do terceiro. Assim, tudo estaria disposto para a derrota do inimigo e a vitória dos troianos.

A história se repete

Contudo, o partido do otimismo prevaleceu.  O cavalo foi conduzido para dentro da cidade, propiciando o incêndio de Troia. Enéas, príncipe e genro de Príamo, rei de Troia, consegue fugir, carregando aos ombros seu velho pai, juntamente com outros habitantes da cidade que lograram escapar, provavelmente os do partido dos desconfiados. Tomaram barcos ancorados no Mar Egeu e partiram, dando início a uma nova epopeia chamada Eneida. Estes são os vigilantes, que entram a tempo na luta e, quando derrotados, sabem ser os primeiros na fuga, tendo já seus planos elaborados e traçados os caminhos que devem seguir. Conhecem a arte da retirada, e são heroicos nesta como na de avançar.  Este é o verdadeiro homem.

Voltando ao nosso paralelo, face ao mundo atual os homens se dividem igualmente em duas correntes. Uma, a dos defensores da opinião de que tudo, no fundo, dá certo, as coisas se compensam, se compõem, se ajeitam, sem a necessidade de fazer esforço nem correr riscos. Essas são as grandes preocupações, as idéias fixas daqueles que, se estivessem em Troia, seriam a favor do cavalo.

Os que tomariam o partido contrário, os desconfiados, considerando o desabamento do mundo de hoje, diante de tudo quanto tem laivos de Revolução, sabem suspeitar e ser vigilantes, compreendendo que dentro daquilo, na aparência bonito, há um veneno, do mesmo modo como no bojo do cavalo de Troia — realmente belo — escondia-se o inimigo, na espreita do momento azado para atear fogo na cidade.

Assim devemos ser nós, imbuídos da noção de que em todas as coisas revolucionárias há fatores nocivos os quais se desencadearão contra nós. Portanto, cumpre vivermos na desconfiança, na vigilância, a fim de não sermos surpreendidos por esses adversários de nossa alma.

A necessidade de exercitar o espírito pela ascese

Para um homem robusto, uma das atitudes agradáveis a seu corpo é o exercício físico, que o leva a se esforçar e a sentir circular nos músculos, nas suas artérias, uma potência nova, uma capacidade de ir para frente. Ele respira fundo, fita ao longe, deita involuntariamente um olhar de desafio para todas as coisas.

De maneira análoga, o homem ascético, de espírito de sacrifício, tem alegria em exercitar a força moral que ele recebeu de Deus, aplicando-a na luta contra seus defeitos, contra os inimigos internos e externos da sua santificação. Donde o gosto de se entregar às lides apostólicas, à prática da virtude, como verdadeiro combatente de Nosso Senhor Jesus Cristo, disposto a dar a própria vida pela causa d’Ele.

Para o homem assim, uma só coisa não lhe é motivo de alegria: a vida mole, displicente, dorminhoca, sem utilidade, sentado numa cadeira, deixando o tempo passar. Isto é o contrário da existência do verdadeiro católico.

Ora, infelizmente, o que se observa com não pouca freqüência em muitos filhos da Igreja é esse vício do homem ocidental contemporâneo, pelo qual tem cometido, face à Revolução, todos os equívocos possíveis.

Poder-se-ia fazer um catálogo de todos os erros passíveis de ocorrer desde a decadência da Idade Média até hoje, e veríamos que aconteceram.  Por quê?  Por indolência, é certo. Mas os homens se deixaram levar pelos indolentes porque estes recomendaram a atitude fácil, mole, sem esforço nem previsão, entregando-se vergonhosamente ao sono diante dos riscos do amanhã. Essa atitude psicológica de entreguismo é comum se apresentar em nosso caminho.

De fato, até mesmo entre aqueles que procuram ser bons católicos encontramos esse estado de espírito. Embora nos empenhemos em ser o contrário disso, não é o bastante para nos consolar, pois quem, sob alguns aspectos, é um zeloso filho da Santa Igreja, mas sob outros é um relaxado que abandona a luta por Deus diante de qualquer ilusão, neste não se pode confiar. Merece nossa confiança aquele que nunca se entrega, não desanima, não tem preguiça, nem se lamenta face às dificuldades e provações, e sim exclama: “Oh! beleza! Lutarei e vencerei, ou sofrerei, em qualquer dos casos terei servido a Deus como Ele quis!”

Vencer o instinto de sociabilidade decaído

Qual o atrativo da vida contemporânea que nos faz tomar essa atitude de moleza?

O principal deles está ligado a uma deformação do instinto de sociabilidade. Os homens tendem a viver em sociedade, são gregários, e isso os leva a ter existências parecidas, pois se fossem diferentes e se entrechocassem, a civilização seria impossível.

Então eles têm a inclinação de imitar uns aos outros, e de todos serem segundo o mesmo modelo. Entretanto, quando este último é revolucionário, não devemos segui-lo. Do contrário, haveria a mencionada distorção do instinto de sociabilidade. E é preciso vencer esta má disposição, no que ela tem de mais profundo, para podermos dizer ao homem sem fé nem ideal: “Sou católico militante, e quando ouço alguém declarar que estou errado, encontro nisso uma razão ainda maior para me convencer de que sigo a verdade. Sigo em frente! E você, homem da moleza, é o paradigma dos que não se deve imitar. Se alguém quiser andar sempre bem, olhe para você e faça o contrário. Assim, alcançará a vitória.”

É o que podemos e devemos saber dizer aos moles.

Ora, é desagradável agir dessa forma, porque os entreguistas procurarão nos caluniar, causando discussão.  E esta incomoda, causa cansaço e amolação, exige de nós esforço para encontrarmos as palavras certas com que respondermos e refutarmos as difamações, etc. Por essa razão, muitos preferem se eximir do confronto, e repetem o chavão: “ceder para não perder”, sabendo embora que acabarão derrotados. Estes estão acometidos de uma espécie de morfeia, uma lepra moral muito pior do que aquela que apodrece o corpo.

Portanto, se desejamos de fato crescer na vida espiritual e nos aperfeiçoar na condição de autênticos católicos, filhos e servos da Santíssima Virgem, compreendamos a necessidade de sermos sempre vigilantes, zelosos, dispostos a nos esforçar contra nossas preguiças, molezas e imprevidências, bem como no fazer face às más sugestões que de todos os lados nos tentam para o desvio no caminho da santidade.

Compreendamos, outrossim, que sem essa disposição de ascese e de luta por Deus, nossa existência neste mundo não tem razão de ser.

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 86 (Maio de 2005)