Desassombro, coragem e galhardia

Ao contrário do que pretendem alguns espíritos exageradamente pacifistas, segundo os quais qualquer forma de perigo deve ser afastada da vida, o ser humano por sua natureza, a mais elevada e nobre das criaturas tem um certo gosto do risco. Essa afeição é um dos elementos que trazem felicidade para a existência. E, não raras vezes, afastar de alguém o risco pode causar-lhe grande prejuízo.

Este princípio torna-se mais compreensível e aceitável quando se considera, por exemplo, as touradas ibéricas. Especialmente aquelas em que o toureiro se lança a cavalo na arena.

É impossível não sentir a impressão de risco que transmite a marcha do cavaleiro e de sua montaria diante do perigo. Nota-se o prazer, uma espécie de alegria, de euforia mesmo, em se atirarem naquela situação desafiadora. E parece que o risco produz, psicologicamente, no cavalo e no cavaleiro, como um arejamento fresco e agradável. E que espetáculo! Cavalgar dentro da aventura e do imprevisto; improvisar as manobras que devem ser executadas; avançar, recuar, atacar, defender… tudo realizado de acordo com uma certa regra interior, que faz exatamente o esplendor da tourada!

Em geral, o cavalo corre de modo extraordinário, com um passo lindo e audacioso. Dir-se-ia não é assim, pois trata-se de puro instinto que o animal possui uma noção raciocinada do que se está passando, e acha uma verdadeira beleza jogar-se para frente e raspar no perigo. Tem-se a impressão de um bem-estar do cavalo, no momento em que o touro avança, quase o toca, e ele se esquiva com donaire, como se dissesse: “Touro, tu não és senão touro; eu sou cavalo. Sou elegância, força e garbo. Você é massa bruta! E por causa disso, posso raspar-me em você, posso até permitir que seu chifre me risque, e eu ter a alegria de roçar pelo perigo e sair vitorioso!”

Curiosamente, essas reações do cavalo lembram certas atitudes do espírito humano colocado diante do perigo, em várias circunstâncias do quotidiano nesta terra: não só quando a vida está ameaçada, mas numa jogada política, numa polêmica acirrada, num negócio arriscado, num empreendimento difícil, etc., há pessoas que se saem como o cavalo diante do touro.

E se este segundo animal é a força bruta, sem expressão nem nada de humano em sua postura, já no primeiro há qualquer coisa de sobre-animal, parecendo transcender não o faz, claro está a mera condição de bicho e participar em algo do reino dos homens, pelas atitudes que demonstra na arena. Característica esta que nos leva a admirar outro interessante aspecto desse tipo de tourada.

O autêntico cavaleiro sabe transmitir alguma coisa de sua personalidade à montaria. E vê-se que, ao enfrentar o touro, o cavalo compartilha do heroísmo do toureiro. Geralmente, este é esguio, destro, cheio de movimentos ágeis, e quando ele mesmo raspa pelo perigo, sente euforia. Quando executa a manobra para cravar a “banderilha” no touro, e quase é atingido pelos chifres de seu adversário, ele seria comparável a um homem que está tomando o melhor trago de rico licor. É o licor do risco! O delicioso licor que o pacifista exagerado de nossos dias não sabe compreender nem apreciar…

Quando se esquivam do  oponente, a atitude do cavaleiro e do cavalo  não é a de dar as costas e se pôr a correr. Eles saem de lado, procurando contornar o touro para lhe fincar mais uma farpa. É a imagem da “distância psíquica”, de um inteiro domínio de si, calculado e ativo. Pode-se olhar para o toureiro e para o cavalo: ambos estão numa posição em que não têm medo. Não perderam a noção da realidade e só estão procurando dar uma volta, com elegância e distinção, para atacar com mais eficácia!

É este um lado esplendoroso da luta entre cavaleiro e touro que nos faz considerar um outro aspecto da vida humana: o gosto que tem o homem justo, colocado na presença do mal, diante de ignomínias insuportáveis que se propagam e não podem ser contidas senão pela força, de enfrentá-las e de vencê-las, obedecendo aos altos desígnios de uma Fé sumamente equilibrada. Então ele, obrigado a atacar, avança e subjuga.

É realmente belo que o homem,  em presença do mal, o goste de calcar aos pés. E a sensação do golpe atingindo o alvo, é uma experiência na qual o homem se realiza inteiro!

Por fim, um outro aspecto a se contemplar nas touradas a cavalo. Durante todo o certame, não se vê nada de teatral no toureiro. Ele não presta uma atenção vaidosa em si. Mas está sempre vigilante, e por isso não tem receio de que a coragem lhe pregue alguma peça nos momentos decisivos. Naturalmente, conhece à saciedade o seu “métier”, está muito bem treinado, e, note-se, todas as sensações que nascem nele na aparência, impulsivas e até irrefletidas são na verdade enriquecedoras da razão.

É o garbo, a galhardia, a coragem e o desassombro, o esplendor da “distância psíquica”, a vivacidade da inteligência e da varonilidade que enfrentam o perigo. São qualidades,  também elas, frutos da civilização cristã.

O maior tesouro de um povo

Sob o influxo de todas as energias naturais e sobrenaturais entesouradas nas nações cristãs, foi emergindo lentamente do caos da barbárie na alta Idade Média, a sociedade civil cristã, a Cristandade. Sua beleza, de início indecisa e sutil, mais promessa e esperança que realidade, foi se afirmando à medida que, com o escoar dos séculos de vida cristã, a Europa batizada “crescia em graça e santidade”. Nasceram por essas energias humanas vitalizadas pela graça, os reinos e as estirpes fidalgas, os costumes corteses e as leis justas, as corporações e a cavalaria, a escolástica e as universidades, o estilo gótico e o canto dos menestréis.

Os admiradores da Idade Média se exprimem mal quando sustentam que o mundo atingiu nessa época o maximum de seu desenvolvimento. Na linha em que caminhava a própria civilização medieval, muito ainda haveria que progredir. O encanto grandioso e delicado da Idade Média não provém tanto do que ela realizou, como da harmonia profunda e da veracidade cintilante dos princípios sobre os quais ela se construiu. Ninguém possuiu como ela o conhecimento profundo da ordem natural das coisas; ninguém teve como ela o senso vivo da insuficiência do natural — mesmo quando desenvolvido na plenitude de sua ordem própria — e da necessidade do sobrenatural; ninguém como ela, brilhou ao sol da influência sobrenatural com mais limpidez e na candura de uma maior sinceridade. Ela foi feita de homens que lutaram e sofreram na realização desse ideal, e que na sua caminhada muitas vezes recuaram ou desfaleceram ao longo do caminho; mas de homens que sempre continuaram fiéis ao seu ideal, ainda mesmo quando dele se afastavam por seus atos. E daí uma [grande] consonância de todas as instituições, de todos os costumes, de todas as tradições nascidas nessa época, não só com as circunstâncias contingentes e transitórias do tempo em que surgiram, mas com as exigências genéricas da alma humana “naturaliter christiana”(1) e as tendências espirituais peculiares aos povos do Ocidente.

Tocamos num ponto de importância fundamental. Todos os povos têm sua mentalidade coletiva e seus problemas regionais. (…) Os homens, como os cursos de água, poderão ir correndo para a eternidade. Mas as nações, como os rios, continuam sempre os mesmos nos dados essenciais de seu temperamento. Além destas circunstâncias psicológicas, há problemas peculiares à situação geográfica de cada região. (…) Toda civilização cristã há de ser inteiramente cristã, católica, universal, mas há de se ajustar, há de respeitar, há de desenvolver e estimular as características de cada região, e de cada povo. (…)

Nos séculos de civilização cristã, cada povo teve, pois, suas características próprias, bem definidas. A alma nacional, em todas as suas aspirações universais e humanas, em todas as suas aspirações nacionais e locais, encontrou plena e ordenada expansão dentro da civilização cristã. Daí a enorme variedade de formas de governo e de organização social ou econômica, de expressões artísticas e de produções intelectuais, nas várias nações da Europa medieval.

A expansão das tendências nacionais causa ao povo um grande bem-estar físico. A mentalidade nacional inspira a formação de símbolos, costumes, artes, nos quais ela se exprime, se define e se afirma, se contempla a si mesma e se solidifica. Esses símbolos são um patrimônio nacional, uma condição essencial para a sobrevivência e progresso espiritual da nação. Eles têm uma consonância indefinível e profunda com a mentalidade nacional, uma consonância que é natural e verídica, e não puramente fictícia e convencional. Por isto, em via de regra, cada povo elabora uma só arte, uma só cultura e nela caminha enquanto existe. O maior tesouro natural de um povo é a posse de sua própria cultura, isto é, quase a posse de sua própria mentalidade. 

 

Plinio Corrêa de Oliveira, (Extraído do “Legionário”,  nº 666, de 13/5/1945)

1 ) Naturalmente cristã.

O PARAÍSO DO NOVO ADÃO

Conforme disse certa vez um autor sagrado, os verdadeiros devotos de Maria se sentem irresistivelmente atraídos uns pelos outros. É o caso de Dr. Plinio em relação a São Luís Maria Grignion de Montfort, cujos escritos foram, para ele, contínua fonte de inspiração. Nestas páginas ele volta a comentar as riquezas aí encontradas.

 

Uma das obras mais ricas e empolgantes sobre Nossa Senhora é, sem dúvida, o Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, de São Luís Maria Grignion de Montfort. Nele encontramos sempre ensinamentos que nos convidam a crescer no amor e na devoção a Ela, além de se prestarem a valiosos desdobramentos acerca das insondáveis e maravilhosas perfeições da Mãe de Deus.

Tomemos, por exemplo, um pequeno trecho desse magnífico Tratado, para comentá-lo passo a passo. Discorrendo sobre como devemos fazer todas as ações com Maria, em Maria e por Maria, explica o santo autor:

“Para compreender cabalmente essa prática, é preciso saber que a Santíssima Virgem é o verdadeiro paraíso terrestre do novo Adão, de que o antigo paraíso terrestre é apenas a figura. Há, portanto, nesse paraíso terrestre riqueza, belezas, raridades e doçuras inexplicáveis que o novo Adão, Jesus Cristo, aí deixou”.

Excelência interior de Nossa Senhora

Como se sabe, Adão foi criado no Paraíso Terrestre. Era o lugar de maravilhas, de esplendores, de felicidade, do qual ele e Eva foram expulsos, depois de caírem na tentação do demônio e prevaricarem contra os preceitos divinos. Contudo, aquele era o paraíso do primeiro homem.

Ora, Nosso Senhor Jesus Cristo é considerado, a justo título, o segundo Adão. Quer dizer, aquele que veio resgatar a humanidade, tirá-la das sombras da morte e restabelecê-la no estado de graça, através da imolação que Ele fez de si mesmo no alto da Cruz. E assim como o primeiro Adão foi criado num paraíso, o novo Adão deveria ser criado igualmente num lugar de delícias imaculadas. Esse segundo paraíso é Nossa Senhora. Ou seja, tudo o que Éden terrestre tinha de belo e de esplêndido na sua realidade material, Maria possuía ainda mais belo e esplêndido na sua realidade espiritual.

E Nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em Nossa Senhora, teve maior felicidade e contentamento do que Adão no seu paraíso, pois assim como o Filho de Deus era infinitamente superior a Adão, o paraíso d’Ele era insondavelmente mais precioso e excelente que o do primeiro homem. Por isso São Luís Grignion fala de “riquezas, belezas, raridades e doçuras” que existiam nele.

Tratam-se de aspectos distintos. Riqueza é a abundância das coisas úteis, e nem sempre envolve a beleza. Por outro lado, algo pode ser muito belo sem ser necessariamente rico, e pode ser raro, sem representar riqueza ou beleza especiais. Nesse novo Paraíso havia, portanto, extraordinárias raridades, belezas e riquezas espirituais, além de incomparáveis doçuras.

A doçura é uma qualidade que torna alguma coisa amena, agradável de trato, suave de contato. Por exemplo, o bem-estar que uma pessoa sente quando se encontra à sombra de determinadas árvores frondosas, a faz experimentar uma satisfação e uma harmonia que são diferentes da realidade da riqueza e da beleza. É o mesmo aconchego que se sente, aliás, à beira de um bonito lago, de um riacho ou, conforme o momento, à beira do mar. Enfim, há uma doçura que não se esgota nos termos de beleza, nem de riqueza, nem de raridade.

Nossa Senhora e a Igreja, perfeições recíprocas

E São Luís Grignion faz então um inventário desses quatro valores, para nos dizer que tudo isso existe em Nossa Senhora, e nos levar a compreender o que n’Ela há de riqueza, beleza, raridade e doçura. Desse modo, embora a Santíssima Virgem seja inesgotável, vamos adquirindo um conhecimento classificado das perfeições e magnificências contidas na sua alma. Por via de comparação, deveríamos proceder da mesma maneira em relação à Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Porque quase tudo que se diz de Nossa Senhora, se diz da Igreja; e, reciprocamente, quase tudo o que se diz da Igreja, se diz de Nossa Senhora. Maria é Mãe de Cristo, a Igreja é a Esposa Mística d’Ele, e entre a Mãe e a esposa existem essas correlações que facilmente podemos compreender.

Podendo conhecer a Igreja Católica, no que ela tem de essencial, no seu esplendor copioso que atravessou os séculos, também nos é dado distinguir suas riquezas, suas belezas, suas raridades e doçuras…

Dotada de graças indizíveis

Concluindo seu pensamento, São Luís afirma que tais maravilhas foram deixadas nesse segundo paraíso pelo próprio novo Adão. É a ideia de que Nosso Senhor Jesus Cristo, durante o tempo sacratíssimo em que Ele se formou no ventre materno, cumulou-o de excelências de toda ordem. Depois, pelo convívio entre Filho e Mãe, desde o nascimento d’Ele até a Ascensão, enriqueceu-A ainda mais. Adão, no primeiro paraíso, parece ter sido apenas um consumidor; não consta que fosse um embelezador, embora, permanecendo fiel, provavelmente lhe coubesse a tarefa de construir ali uma civilização que aprimorasse tudo quanto recebera de Deus. Ao contrário dele, Nosso Senhor requintou e elevou o paraíso onde esteve, isto é, aprimorou e dotou Nossa Senhora de graças indizíveis, fazendo-o, segundo a expressão de São Luís Grignion, “com a magnificência de um Deus”.

Analisemos. A magnificência de um Deus é a magnificência total. O autor lembra, de passagem, que ninguém pode realizar coisas tão magníficas quanto Deus. E se é verdade que o paraíso do novo Adão foi mais esplêndido do que o do primeiro, devemos deduzir que Nossa Senhora é incomparavelmente mais bela que todo o universo. Quer dizer, estrelas, sol, lua, água, lírios do campo, nada tem qualquer paralelo com a beleza espiritual e física da Santíssima Virgem.

Terra imaculada para o corpo do novo Adão

“Esse lugar santíssimo é formado de uma terra virgem e imaculada da qual se formou e nutriu o novo Adão, sem a menor mancha ou nódoa, por operação do Espírito Santo que aí habita. É nesse paraíso terrestre que está, em verdade, a árvore da Vida que produziu Jesus Cristo. Há, nesse lugar divino, árvores plantadas pela mão de Deus e orvalhadas por sua unção divina, arvores que produziram e produzem todos os dias frutos maravilhosos, de um sabor divino; há canteiros esmaltados de belas e variegadas flores de virtudes, cujo perfume delicia os próprios anjos.”

São outras lindas comparações.

Assim como Adão foi formado a partir do barro, e em seguida Deus lhe insuflou uma alma, assim também o novo Adão foi constituído da carne virginal de Nossa Senhora, por obra do Espírito Santo. Depois, havia uma árvore da vida no paraíso antigo, porém no paraíso novo existia outra, que produziu o mais precioso dos frutos, Jesus Cristo. É uma referência à fecundidade imaculada de Nossa Senhora.

Os belos canteiros, flores e frutos variegados simbolizam os dons e virtudes de Maria Santíssima, que deixam os próprios Anjos tão santos e puros extasiados.

Fortaleza invencível, caridade abrasadora

“Há torres inexpugnáveis e fortes, habitações cheias de encanto e segurança”. Como em todo o texto de São Luís, temos aqui mais uma imagem muito bonita. Ela nos faz pensar num castelo com torres inexpugnáveis, cheias de encanto e segurança, com maravilhas dentro e robustíssimas por fora. Essa é a virtude da fortaleza que em Nossa Senhora protege todas as demais virtudes.

“Ninguém, exceto o Espírito Santo, pode dar a conhecer a verdade oculta sob essas figuras de coisas materiais. Reina nesse lugar um ar puro, sem infecção, um ar de pureza; um belo dia sem noite, da humanidade santa; um belo sol sem sombras, da Divindade; uma fornalha ardente e contínua de caridade, na qual todo o ferro que aí se lança fica abrasado e se transforma em ouro.”

São Luís Grignion, referindo-se aos elementos materiais que relacionou nesse paraíso, afirma que só com o auxílio da graça alguém pode fazer ideia do que eles significam enquanto aspectos físicos, espirituais e sobrenaturais de Nossa Senhora. Quer dizer, Ela é bela como o dia por sua natureza, mas Cristo, que habitou n’Ela, não é apenas o dia, mas é o sol, a fonte de todo o esplendor diurno. Então, Jesus é o astro soberano da divindade presente em Maria.

Depois, a igualmente magnífica simbologia da fornalha ardente e abrasadora de caridade, de amor a Deus, que é a Santíssima Virgem. Uma pessoa pode ser dura e fria como o ferro, porém, lançada nessa fornalha, isto é, sendo muito devota de Nossa Senhora e n’Ela confiando, transforma-se não apenas em ferro incandescente, mas em ouro. O contato com Maria muda a alma por completo, a nobilita e santifica.

Abundância de humildade e virtudes cardeais

“Há um rio de humildade que surge da terra e que, dividindo-se em quatro braços, rega todo esse lugar encantado: são as quatro virtudes cardeais.”

Por fim, um outro conceito muito bonito. As quatro virtudes cardeais são aquelas que regulam todas as ações do homem: a justiça, a temperança, a fortaleza e a prudência. Todas as outras virtudes decorrem dessas. Então, São Luís Grignion diz que em Nossa Senhora há como que um rio de humildade, que se abre em quatro braços e dá origem às mencionadas principais virtudes.

Mas a imagem significa também que uma pessoa verdadeiramente humilde possui de modo torrencial as virtudes cardeais. E o que é ser verdadeiramente humilde?

Antes e acima de tudo é ser humilde para com Deus, reconhecendo tudo o que devemos a Ele e retribuí-lo. Sermos, portanto, em relação a Deus, amorosos, fiéis, filiais, paladinos da causa d’Ele até o último ponto, vivendo num holocausto contínuo a serviço d’Ele. A autêntica humildade coloca uma alma nessa posição, e é dessa maneira que esta última adquire, abundantemente, as quatro virtudes cardeais.

E assim era Nossa Senhora.

Aqui temos, portanto, um pouco daquele bem-estar de que falamos atrás, proporcionado pelas doçuras da Santíssima Virgem. É impossível comentar-se algo a respeito d’Ela, sem se ter a impressão de que estamos junto a um rio ou a uma árvore sobrenatural, sentindo, num plano diferente, aquela satisfação particular que experimentamos à beira dos rios ou à sombra das árvores naturais.

Acredito que, após um dia passado no corre-corre de uma cidade supermoderna, super trepidante, superdinâmica, deter-se um pouco na consideração desse panorama maravilhoso que é a alma de Nossa Senhora é algo que sempre nos fará bem…

Estética do Universo

Numa conferência pronunciada na década de 60, Dr. Plinio analisa duas concepções de vida, duas ordens de valores profundamente diversas: a católica e a anti-católica moderna. E procura mostrar que, acima das aparências, a razão profunda da oposição entre ambas é de caráter metafísico-religioso. Esta é a causa fundamental da divisão dos espíritos. Oferecemos nestas páginas excertos dessa conferência.

 

Pode uma maneira de encarar os problemas do Universo encerrar uma questão religiosa?

Considerando a Criação, podemos nos perguntar por que Deus, tendo em si toda a plenitude, desejou criar a imensa quantidade de seres que compõem o universo.

Sendo infinitamente perfeito, não precisava criá-los. E se é verdade que não havia nenhum motivo que o impedisse de dar existência ao cosmos, de outra parte razão alguma existia que O obrigasse a fazê-lo. Em sua bondade e sabedoria infinitas, Deus assim o quis. E então, com que de um jorro, uma quantidade incontável de seres foi por Ele produzida.

Deus Nosso Senhor, além de ter em si todas as perfeições, vê também em si todos os graus de perfeição possíveis. Seu intuito, ao criar tão  grande  número de seres, foi fazer com que esses seres não só espelhassem a sua perfeição, mas a reproduzissem nos mais variados graus.

Assim se explica o caráter hierárquico que Deus imprimiu ao universo.

Esses graus de perfeição espelham convenientemente a Deus.

Não podia Deus criar uma única criatura que por si só refletisse todas as suas perfeições tão bem como o conjunto dos seres criados? Não nos parece que esta questão possa ser considerada como objeto de uma opinião unânime dos filósofos, mas somos muitíssimo propensos a pensar que isso seria metafisicamente impossível. Deus criou o universo composto de muitas criaturas para que elas, de um lado pela sua pluralidade, de outro pela sua hierarquização, espelhassem de modo conveniente a perfeição divina.

A razão de ser da criação consiste, portanto, em dar glória a Deus, espelhando de modo completo e pleno as perfeições que n’Ele existem.

Essas considerações são importantes para a exata compreensão do que seja a “causa católica”. Poder-se-ia conceituá-la como sendo o ideal que visa a fazer com que a Criação dê glória a Deus, considerada entretanto a Criação em seu todo, e não somente em um ou outro de seus aspectos parciais. É o conjunto das famílias, das cidades, das nações, da humanidade, e, em última análise, do universo inteiro, que se trata de fazer com que dê glória a Deus.

O princípio da unidade na variedade e suas leis

De acordo com a escolástica, a beleza consiste na unidade posta na variedade. Julgamos um objeto belo quando seus elementos variados formam um todo uno. Os seres fragmentados, sem unidade, não têm nem beleza, nem capacidade de atração. É a unidade que dá beleza aos seres, é ela que dá o valor por seus elementos diversos e variados. Portanto, a unidade é a forma da beleza; e a variedade é a sua matéria, elemento secundário mas indispensável da beleza.

De certo modo, cada ser tem em si essa unidade e essa variedade. É fácil percebê-lo em todos os seres concretamente considerados. Examinemos, por exemplo, a alma humana. Verificamos que ela tem inteligência, vontade e sensibilidade. Eis a variedade na alma humana. Mas esta variedade está posta na unidade da pessoa do homem.

O princípio da unidade na variedade tem suas leis, que consubstanciam o que chamamos de estética do universo.

No estudo dessas leis encontramos a explicação de muita coisa da Idade Média que nos encanta.

Analisemos, em primeiro lugar, as leis da variedade.

Lei do caráter típico

Para bem entendermos essa lei, vamos servir-nos de um exemplo. Tomemos uma sala com vários objetos: poltronas, quadros, lustres, tapetes, cortinas. Aí está a variedade de elementos. Em que condições, entretanto, será autêntica essa variedade?

Só o será quando cada um dos objetos for muito tipicamente, muito caracteristicamente ele mesmo. As poltronas devem ser tipicamente elas mesmas; os quadros devem ser caracteristicamente eles mesmos. Digamos que todos esses objetos fossem feitos de uma única substância a matéria plástica, por exemplo e que seus formatos não diferissem entre si como deveriam, parecendo-se o lustre com a poltrona e a poltrona com o lustre: não teríamos variedade. O característico é, pois, um sinal distintivo da variedade autêntica, é nele que a verdadeira variedade se realiza.

É essa a razão pela qual tanto nos maravilhamos com aspectos ricos, característicos e típicos que encontramos na organização política e social da Idade Média.

Por que, por exemplo, [ao considerarmos a Espanha] temos um movimento de simpatia e admiração para com um andaluz característico? É que nele estão muito nítidas todas as notas que o tornam diferente de um biscainho ou de um navarrês. Se nada houvesse senão o homem “standard” moderno, não haveria variedade. Julgamos bonito, na Espanha antiga, o soberano intitular-se “rei de todas as Espanhas”. Sim, porque cada uma de suas regiões era como que uma pequena Espanha, com sua arquitetura, suas danças, suas músicas, tudo muito característico.

Neste mesmo sentido, é muito interessante, na sociedade medieval, a diferença nítida que havia entre as classes sociais. Um guerreiro era tipicamente guerreiro. Os monges, os comerciantes, os artesãos, os camponeses, eram marcadamente aquilo que eram. Podemos imaginar uma rua de uma aldeia medieval: passa um nobre precedido de um cortejo, logo após um clérigo, depois um artesão, passa, por fim, um frade. O que torna esta cena interessante? É o fato de cada um desses elementos ser autenticamente ele mesmo.

O mesmo podemos admirar no estilo gótico, que, sendo cheio de variedade, conserva uma profunda unidade, e por isso é equilibrado e harmônico.

O necessário contraste para que a beleza seja mais completa

As diversas coisas devem também manifestar um certo contraste, uma certa oposição, para que sua beleza seja mais completa.

A Igreja Católica tem, em suas instituições, muitas variedades que chegam ao contraste. Imaginemos, por exemplo, um cortejo papal entrando no Vaticano. Notamos, desde logo, os Prelados da Igreja Oriental, com toda a pompa peculiar ao Oriente. Mais adiante, os frades franciscanos, vestidos de maneira paupérrima, com os seus simples buréis. Seguem os príncipes, representando a nobreza; mais atrás, os militares soberbamente fardados. Por fim, entra o Papa, rodeado de um fastígio de glória, enquanto humildes religiosas, rezando, inclinam-se à sua passagem.

Há magnífico contraste entre o Papa, que está no pináculo do poder, diante do qual todos se ajoelham, e um humilde irmão leigo, que protesta se alguém se ajoelhar diante dele. Essa oposição está cheia de harmonia. É precisamente nesse contraste, nesse extremo de aspectos antagônicos, que a variedade se reveste de toda a sua riqueza.

É doloroso verificar como, no mundo moderno, a beleza está mutilada pela uniformização.

Hierarquia cheia de diversidade e inteiramente harmônica

Quis a Divina Providência criar todas as coisas hierarquizadas. Fazendo os minerais, os vegetais, os animais, os homens e os anjos, estabeleceu dentro de cada uma dessas categorias uma imensa gama de graus intermediários. Essa hierarquia, cheia de diversidade, é ao mesmo tempo inteiramente harmônica. Há uma infinidade de matizes entre os diversos graus, que faz com que neles não haja saltos bruscos. Sem esses graus intermediários, aliás, o mundo seria agreste e inóspito.

Imaginemos que o homem vivesse num mundo em que só houvesse minerais, e que a Providência o fizesse tirar daí o alimento indispensável ao seu sustento. Ele se sentiria mal, pois há um abismo entre o homem e os minerais. Porém, quando junto a si ele tem vegetais e animais, estabelece-se uma escala natural que produz nele uma sensação de bem-estar. A hierarquia orgânica e cheia de gradações é agradável ao espírito católico, porque constitui uma unidade cheia de variedade. Esta lei da gradação, transposta para o campo político-social, produziu a sociedade medieval, em que as classes sociais formavam uma hierarquia suave, com uma infinidade de status intermediários entre o vilão e o rei.

Consideremos de um lado um rei; de outro, um plebeu de baixa categoria; e, entre eles, toda uma gradação intermediária, de acordo com os princípios de beleza que acabamos de expor. O rei e o plebeu se completam; a beleza do estado do plebeu vem, de certo modo, do fato de haver o rei, e a beleza do estado do rei vem do fato de haver plebeus.

Se só houvesse reis, e não plebeus, pouca significação teria ser rei. Pois é a existência do plebeu que dá ao rei um grande valor.

Tomemos o inverso. Imaginemos, numa botica medieval, o ourives trabalhando no lusco-fusco, algumas pedras preciosas aqui, um cálice acolá. Um pouco além, um agradável odor de saborosos quitutes, os móveis de carvalho, uma cançãozinha de criança. Em uma palavra, o bem-estar plebeu. Isto é evidentemente agradável; contudo, se o mundo todo fosse somente assim, seria sem graça.

Harmonia do movimento: elemento de formosura na Criação

Há ainda um outro interessante tipo da variedade: o da transformação. Existe no mundo uma transformação constante, um movimento contínuo. Mas as variedades de movimento postas por Deus no universo são graduais, harmônicas, a exemplo das gradações da hierarquia que analisamos na lei anterior. Essa harmonia do movimento constitui um elemento de formosura na Criação.

Para exemplificar, consideremos o desenvolvimento da vida humana em um varão justo. O homem nasce, desabrocha com um movimento rico em harmonia na adolescência, e nobremente se torna maduro; envelhece em dignidade e, quando Deus chama a sua alma, é como que a colheita de um fruto precioso, que vai ser levado para o Céu. É uma bela trajetória.

No entanto, o que quer o espírito moderno? Ele pretende que o homem deva ser mocinho até cair morto. Arranjados ou pintados, todos devem parecer ter a mesma e jovem idade.

Não se tolera o plano divino, que estabeleceu a desigualdade nas idades. Quando, entretanto, é forçado a reconhecer a sua existência que não pode ser, aliás, objeto de contestação o espírito moderno procura fazê-lo com brutalidade, desconhecendo as gradações entre as idades, e desprezando a velhice que para nada serve, já que nada produz!…

Pode-se concluir isso observando a vida de uma família antiga e de uma família moderna. Na primeira, reúnem-se em uma mesma sala os avós, os pais, as crianças, os parentes, os amigos; as mais variadas idades convivem juntas, conversando: variedades na unidade. Na família moderna, se os pais promovem uma recepção, os filhos não devem comparecer. Se estes dão uma festa, os pais e sobretudo a mãe devem ausentar-se… Os pais são chamados pelos filhos de “os velhos”, e não querem com eles ter maior convívio.

Uma ação de graças por meio de Maria

A melhor maneira de reverenciar, louvar e pedir graças a Jesus enquanto Este se encontra presente em nosso interior, após a Sagrada Comunhão, é fazê-lo por meio de Maria. “Um Rei entra em nossa casa — diz Dr. Plinio — e temos algo em comum com Ele: a mesma Mãe!”

 

Segundo uma prática piedosa mais que recomendável, quando recebemos Nosso Senhor eucarístico — cuja presença dentro de nós se estenderá por algum tempo — convém nos dirigirmos a Jesus pelas mãos de Maria Santíssima, Mãe d’Ele e nossa, cogitando, por exemplo, no seguinte:

“Sinto em meu interior algo que me diz: ‘Deus está aqui’, e duas impressões se apoderam de meu espírito. Primeiro, a de ser um sacrário no qual se acha Aquele que eu julgava inatingível. Oh! honra! Oh! maravilha! Mas, em segundo lugar, a noção de que eu conheço esse sacrário… Lembro-me de quantas vezes fui infiel e dos defeitos com os quais convive minha pobre alma. E este homem ingrato, ser tabernáculo d’Aquele que é infinitamente santo, perfeito, meu Senhor, meu Criador! Eu não existia e Ele me tirou do nada, deu-me a vida. “Ecce enim in peccato concepit me mater mea” (cf. Sl 50, 7) — eis que no pecado me concebeu minha mãe, devem dizer todos os homens, filhos de Adão e Eva, porque nasceram com o pecado original, raiz de nossas faltas pessoais. Não sou digno de recebê-Lo! Preciso ter uma ponte com esse Rei que entrou em minha casa. Há algo em comum entre Ele e eu: temos a mesma Mãe!”

Nosso Senhor, Maria e nós, na Sagrada Comunhão

Ela é a mais perfeita das meras criaturas, ornada de todos os dons necessários para ser a Mãe do Verbo Encarnado. Concebida imaculada, Virgem antes, durante e depois do parto, em todos os instantes de sua vida não cessou de corresponder à graça de Deus, atingindo uma insondável elevação de virtude, até o momento bendito em que o Redentor resolveu colhê-La da Terra e levá-La para o Céu.

Ora, essa excelsa criatura é também nossa Mãe, e a verdadeira mãe nutre ternuras e compaixão até pelo filho mais esfarrapado, torto e desarranjado que seja. Então devemos nos voltar a Ela e dizer: “Minha Mãe, aqui está Plinio. Como sempre o fizestes, mais uma vez tende pena de mim. Nunca recebemos uma graça que não seja a vosso rogo. Se estou comungando a Ele, é porque Vós me obtivestes de seu Filho esta dádiva, pedistes a Ele que entrasse numa cabana tão indigna chamada Plinio. Purificai-a, ordenai-a, enfeitai-a para que seja do agrado d’Ele.”

Nossa Senhora ornando minha alma, o Rei do Céu e da Terra olhará para mim com satisfação, e dirá: “Aqui me encontro com gosto, porque minha Mãe querida está ordenando sua alma”.

Adoração e agradecimento

Ao ser objeto de mais essa bondade, minha primeira atitude deve ser de adoração. Ou seja, depois de reconhecer minha pequenez e indignidade insondáveis, devo reconhecer também a infinita perfeição de Nosso Senhor. E estando a Santíssima Virgem — espiritual e não realmente — presente em mim, não tenho receio e Lhe digo: “Minha Mãe, fazei com que eu voe para Deus!”

Sorrindo, com muito afeto, Nosso Senhor fala no meu íntimo: “Tu és um filho amado por Maria, minha Mãe. Ela quis que Eu aqui viesse. Pede-me o que quiseres”. Digo-Lhe, então: “Senhor, antes de pedir, eu Vos agradeço tanta bondade e misericórdia”. Em seguida, dirigindo-me a Nossa Senhora: “Mãe e Rainha do Céu, agradecei por mim, porque a minha ação de graças é insuficiente”.

Ardorosa reparação

E sempre por meio de Maria, acrescento: “Senhor Jesus, sei que pequei e preciso Vos pedir perdão de minhas faltas. O mundo inteiro peca contra Vós, Senhor. Sois a própria bondade e tão clemente para comigo, como posso, a menos que seja irremediavelmente vil, não me indignar diante de tantas ofensas de que sois alvo?

“Contristam-me, Senhor, os pecados cometidos por mim e pelos outros contra Vós. Perdão, Senhor! Cordeiro de Deus que tirais os pecados do mundo, tende compaixão de nós. Senhor, podeis tornar limpo quem é asqueroso, desde que este corresponda à graça. Mais uma vez, tende compaixão do mundo, e de mim, pelos rogos de Maria!

“E se houver pessoas que continuem infiéis, aceitai como reparação minha atitude indignada. Sabeis — pois vosso olhar penetra até o fundo de nossas almas — que eu gostaria de estar em todos os lugares do mundo ao mesmo tempo, censurando os impenitentes e combatendo o mal com a força de invectiva que Vós me concederíeis.

“Não me é dado estar em toda parte, porém aceitai esse desejo que vossa graça infunde no meu coração, e não pode ser inútil. Fazei, Senhor, que em todos os lugares onde sois ofendido, minha alma de certa forma ali esteja, admoestando e fazendo recuar os fautores do mal.

“Terminada essa prece, começarei a laborar no apostolado ao qual me destinastes: acolho um, falo com outro, sorrio para um terceiro, tomo uma deliberação, atendo um telefonema, leio uma revista, um jornal, um livro. Rezo. Tomai, Senhor, cada uma dessas ações como se eu as estivesse praticando no mundo inteiro, junto a todas as almas, diante de todos os sacrários da Terra, suplicando-Vos graças para todos os homens, falando no interior de cada um deles.”

Petições repassadas de zelo

Como nos ensina a Santa Igreja, os atos de piedade são: adoração, ação de graças, reparação e petição. Assim, depois de oferecermos a Nosso Senhor os três primeiros, vem o momento de Lhe apresentarmos nossas súplicas, dirigidas a Ele pelas mãos da Virgem Santíssima.

“Devo, Senhor, pedir coisas para mim, para aqueles a quem estimo e até pelos que não conheço. Antes de tudo, rogo-Vos que em todo cargo da Sagrada Hierarquia eclesiástica — desde o sólio de São Pedro até uma simples paróquia — haja fervorosos apóstolos de Maria, ardorosos escravos d’Ela segundo o método de São Luís Grignion de Montfort, em toda a força do termo”.

É o intenso desejo do Reino de Maria que surge no fundo de nossas almas. Com efeito, além das necessidades da Igreja, nos é dado conhecer as da sociedade temporal. Amamos todas as nações da Terra, e quereríamos que Nossa Senhora as fizesse florescer, no maior esplendor de sua piedade, para dar glória a Ela e a seu Divino Filho, numa nova e mais luminosa Cristandade. Poderíamos compor uma ladainha enumerando todos os países e, a propósito de cada um, suplicar graças específicas.

“Senhora, Vós pusestes em minha alma tanto amor por tal nação; tornai-a inteiramente vossa. E tais povos, raças, culturas, civilizações… Ó minha Mãe, intercedei por tudo isso junto a Deus, e obtende que desabrochem no vosso Reino, para a glória de Cristo Senhor nosso!”

Temos também obrigações especiais para com os que nos são mais próximos. Ou seja, em certo sentido, nossos irmãos de vocação, sobretudo pelos que nos mantêm, pelo seu exemplo e seu impulso, nos caminhos da Santa Igreja. Com não menos solicitude devemos rezar por aqueles que nos parecem em dificuldades na vida espiritual: “Minha Mãe, notei, pela fisionomia, que tal filho vosso se acha muito provado. Socorrei-o! Outro vai bem, mas precisa melhorar. Ajudai-o!

“Agradou-me ver um terceiro progredindo; minha Mãe, não permitais que ele esmoreça na virtude!”

Como se nota, quase que instintivamente nos dirigimos a Nossa Senhora, embora estejamos fazendo uma ação de graças após comungar o Corpo e o Sangue de Jesus. Compreende-se, pois é por meio d’Ela que nossas preces chegam mais segura e rapidamente ao Altíssimo.

Rezemos, em seguida, pelos nossos mais chegados quanto ao vínculo de sangue; aqueles dos quais nascemos, nossos irmãos segundo a carne, nossos familiares. Devemos querê-los segundo o amor de Deus e, portanto, ter para com eles, ao mesmo tempo, todo o afeto e o desapego preceituados pelos mandamentos da Lei divina. Peçamos que eles amem a Deus acima de todas as coisas, e nos queiram a nós também por amor ao Criador. Assim, pelas mãos de Maria Santíssima, estaremos rezando pelo bem da alma deles, e este é o maior tesouro que podemos lhes oferecer.

Pelos amigos e também pelos inimigos

Rezaremos pelos nossos amigos, mais próximos ou distantes, nas mesmas intenções. E, por fim, uma prece por aqueles que porventura alimentem injusta hostilidade em relação a nós; desejando que a clemência e a misericórdia infinitas de Nosso Senhor toquem os seus corações e os conduzam ao arrependimento e proporcionada penitência.

Para estes, poderíamos dizer a Nossa Senhora: “Minha Mãe, na medida de vossa compaixão, rogai a Deus que não os castigue nem nesta vida nem na outra; sobretudo, o que Vos peço é que os salveis, pela glória da Igreja. Dai-lhes tudo o que de Vós os aproximam e tirai-lhes tudo o que de Vós os afastam”.

Deste modo terão passado os minutos do convívio com Jesus Eucarístico em nosso interior, e estará feita nossa ação de graças pelas mãos de Maria Santíssima.  

 

A Cooperação de Nossa Senhora com seu Filho

Na seqüência de suas considerações sobre o Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, de São Luís Grignion de Montfort, Dr. Plinio nos convida a contemplar as “maravilhas de graça” operadas em Nossa Senhora, cujo claustro materno tornou-se, durante nove meses, a paradisíaca habitação de Deus.

 

Escreve São Luís no tópico 16 do Tratado:

Deus Filho desceu ao seu seio virginal qual novo Adão no paraíso terrestre, para ai ter suas complacências e operar em segredo maravilhas de graça.

Em primeiro lugar, devemos considerar a Encarnação de Deus Filho em Nossa Senhora. Ela, pelo processo da maternidade, foi gradualmente fornecendo-Lhe sua carne e seu sangue, e assim foi sendo formado, dentro de seu seio virginal, o corpo de Nosso Senhor, unido à divindade pela união hipostática. A participação d’Ela no mistério da Encarnação é imensa. Considerando que o corpo de Nosso Senhor, sua carne e seu sangue, são carne da carne e sangue do sangue de Nossa Senhora, não se pode imaginar uma maior intimidade com Deus. O papel de Nossa Senhora nesse mistério foi tal, que Deus quis que Ela antes desse o seu consentimento, para depois dar sua carne, seu sangue e, portanto, algo de seu próprio ser.

Maria criou, governou e ofereceu Jesus em holocausto

…Encontrou sua liberdade em ser aprisionado no seio da Virgem Mãe; patenteou sua força em se deixar levar por esta Virgem santa…

Foi vontade de Deus Pai que Nosso Senhor ficasse contido n’Ela como dentro de uma arca, de um tabernáculo, em que Ele operava maravilhas de graças só por Ela conhecidas. E foi dentro d’Ela, como no interior de um santuário, que Nosso Senhor Jesus Cristo começou a dar glória ao Pai Eterno. No próprio momento em que começou a existir a união hipostática, Deus Pai recebeu de Nosso Senhor Jesus Cristo o mais perfeito ato de amor que jamais se deu na Terra. Ninguém nunca prestou-Lhe um ato de amor tão excelso quanto a humanidade santíssima de Nosso Senhor Jesus Cristo.

O Santo mostra ainda como Jesus, que era Senhor onipotente, contido em Nossa Senhora, deixou-se transportar por Ela, não só pelas montanhas da Judeia para visitar Santa Isabel, como por todos os lugares pelos quais Maria o quis.

…Achou sua glória e a de seu Pai, escondendo seus esplendores a todas as criaturas deste mundo. Para revelá-las somente a Maria; glorificou sua independência e majestade, dependendo desta Virgem amável, em sua conceição, em seu nascimento, em sua apresentação no templo, em seus trinta anos de vida oculta, até a morte, a que ela devia assistir, para fazerem ambos um mesmo sacrifício e para que ele fosse imolado ao Pai eterno com o consentimento de sua Mãe, como outrora Isaac, com o consentimento de Abraão á vontade de Deus. Foi ela quem o amamentou, nutriu, sustentou, criou e sacrificou por nós.

Ó admirável e incompreensível dependência de um Deus!… Nossa Senhora foi incumbida de criar Nosso Senhor e de O governar em sua infância, durante a qual Ele tinha para com Ela as mesmas relações de uma criança para com sua mãe. Pois seria falso imaginar que, na presença de outros, Nosso Senhor fazia o papel de criança; e quando não havia ninguém, apresentava-se como Deus. Ele estava junto a Nossa Senhora sempre como menino, do qual Ela cuidava como quem trata a um Deus.

Depois Nosso Senhor cresceu, passando trinta anos de sua vida junto d’Ela, e consagrando aos homens somente três.

Por fim, Ela O levou até o alto da cruz e, ali, ofereceu-O a Deus.

São Luís Grignion resume o papel de Nossa Senhora na Redenção: Ela gerou, criou, acariciou e finalmente acompanhou a vítima ao altar do sacrifício, onde Ela mesma o imolou, como diz o Santo autor. Porque verdadeiramente Nosso Senhor morreu com o consentimento de Nossa Senhora. Ela aceitou que Ele sofresse tudo o que padeceu, e morresse da maneira como expirou.

Dediquemos mais tempo a Nossa Senhora, a exemplo de seu Divino Filho

Há aplicações maravilhosas para nossa espiritualidade a tirar desse fato: Nosso Senhor vivendo trinta anos sob a dependência de Nossa Senhora.

Em nossa vida de piedade, por exemplo, que importância damos, respectivamente, à nossa união com a Virgem Santíssima e ao nosso apostolado? Temos a impressão de que este é muito mais importante que a nossa união com a Mãe de Deus, de tal modo que dedicamos nosso quarto de hora de oração a Ela, e, o restante do tempo a nosso “enorme” apostolado?

Nosso Senhor nos dá exemplo do contrário. Tempo dado à união como Nossa Senhora: trinta anos; ao apostolado: três.

Podemos bem compreender o que representa de homenagem — “homenagem” de um Deus, a palavra parece até absurda —, de glória para a Virgem, o Verbo Encarnado vir ao mundo e passar trinta anos junto d’Ela, dedicando apenas três à realização de sua missão. E entender o que significa a graça de estar junto de Maria Santíssima. Assim sendo, quando vamos fazer uma visita a uma imagem de Nossa Senhora numa igreja, podemos nos unir a esses sentimentos de Nosso Senhor. Convém que, amiúde, interrompamos nossas atividades, e entremos numa igreja para fazer uma visita a Maria Santíssima com esta intenção: imitar Nosso Senhor, que não se apressou em iniciar desde logo sua vida pública, mas consagrou trinta anos a estar junto de Nossa Senhora. Vou seguir seu exemplo; por isso peço-Lhe que, dada minha impossibilidade de agradar como devo a Nossa Senhora, que Ele A agrade por mim neste momento. Quando me coloco diante do tabernáculo, devo pedir a Nosso Senhor a graça de que, em meu nome, Ele trate Nossa Senhora como eu gostaria de fazê-lo, embora seja incapaz.

Eis uma boa visita ao Santíssimo Sacramento e a Nossa Senhora. Com isto se constrói uma vida espiritual digna desse nome. Mas é preciso que sempre tenhamos em mente todas essas idéias, esses princípios, para que possamos utilizá-los quando as ocasiões se apresentarem.

Convicção e resolução em nosso amor, não mera sensibilidade…

Pelo acima exposto, vemos como seria tolo dizer que há secura ou geometrismo na piedade por parte de quem assim procede. O que aí não se pode desejar é o vácuo, a bazófia. Pois o que recomendamos não é secura nem geometrismo, mas coerência: a inteligência ilumina, a vontade quer, e a sensibilidade acompanha o preito de amor da vontade. E se acaso a sensibilidade não acompanhar, não terá maior importância, pois o ato de amor estará feito. O amor reside na vontade.

Não se trata, portanto, de experimentar uma espécie de consolação sensível, sentir o trêmulo da comoção, para só então rezar. Importa, sim, ter convicção e resolução. A Fé nos ensina que Nossa Senhora é imensamente bondosa, e por isso recorremos a Ela com confiança. É uma consideração racional, que não nasceu da sensibilidade. Essa atitude racional na oração, a construção de uma piedade toda ela alicerçada sobre convicções recebidas da Fé, que a razão anipula, isso sim é verdadeirasi um tabernáculo admirável, “como Adão no Paraíso”. Para compreendermos bem o que isto significa, é interessante apelarmos para certos conceitos subjacentes à seção Ambientes, Costumes, Civilizações, que nós escrevemos, sobre a importância da beleza e a propriedade dos ambientes. Estando no seio virginal de Nossa Senhora, Jesus encontrou todo o necessário para suas delícias espirituais: havia ali um ambiente, uma atmosfera que Lhe eram perfeitos, graças às virtudes excelsas de Maria Santíssima. Durante este período, Nosso Senhor teve com Ela uma união verdadeiramente incomparável.

Já consideramos o fato de que, neste período, Nossa Senhora vai fornecendo sua própria carne e seu próprio sangue para a formação do corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo. Durante esse tempo, havia uma atividade em extremo íntima entre Ele e Ela, sendo preciso notar que Nosso Senhor teve o uso da razão desde o primeiro instante do seu ser. Ele, portanto, vivia em Nossa Senhora dispondo já completamente de sua inteligência. Podemos imaginar a intimidade enmente a seriedade na vida espiritual. O que desejamos é produzir convicções profundas, construir uma estrutura de espírito útil à vida de piedade, e não apenas fabricar uma faísca passageira de emoção mariana.

União inexprimível entre Mãe e Filho

São Luís Grignion lembra, entre outras coisas, que Nosso Senhor, no período de sua gestação, enclausurou-se no ventre puríssimo de Nossa Senhora, e aí encontrou para tre Eles e o alto grau de cada ato de amor? A cada colaboração que Ela prestava para a formação de seu corpo, correspondia da parte d’Ele uma série de graças a Ela concedidas. Durante a gestação de Nosso Senhor havia, portanto, entre Ele e sua Mãe, uma união verdadeiramente inexprimível e de uma sublimidade incomparável.

Em que sentido a consideração dessa união nos pode ser benéfica?

O homem, na Igreja Católica, encontra-se diante de um firmamento de verdades. E assim como, colocados diante do céu físico, contemplamos inúmeras pulcritudes que enriquecem nossa alma, no universo de verdades da Santa Igreja poucas maravilhas podemos considerar tão grandes quanto a intimidade de uma alma inteiramente humana, como era a de Nossa Senhora, com Nosso Senhor Jesus Cristo, durante o tempo da sua Encarnação.

Assim, nos é dado ter uma ideia da intimidade que também nós podemos adquirir, pela nossa santificação, com Nosso Senhor; faz-nos compreender um pouco o que é a vida da graça, e faculta-nos a apetência de uma maior união com Jesus Cristo.

Essas considerações não podem ficar no vácuo. Na vida espiritual devemos propriamente desejar esses dons sobrenaturais, a união com Deus e os bens eternos!

 

 

Equilíbrio, façanha e alegria

Quando analisamos a Idade Média, notamos que esta se encontra toda semeada do desejo e da  prática de atos heroicos. Não, porém, do heroísmo como vulgarmente se o entende, e sim como o propugna a Igreja, isto é, a palpitação contínua do coração do verdadeiro católico, que o inclina de modo constante para o melhor de sua alma: a façanha. Não se trata, portanto, de façanhas quaisquer, mas daquelas que interessam à Fé, e é a propósito delas que somos levados a afirmar ser a Idade Média toda ela “façanhuda”.

Em seus diferentes aspectos, nos diversos terrenos de seu realizar, mesmo nos mais práticos, operativos, técnicos, ela está sempre empreendendo proezas. De maneira que, com freqüência, a  altura das torres são ousadias de impulso para o céu, as espessuras das muralhas são audácias de arquitetura, os vitrais são aventuras de luz e policromia, e assim por diante, os mil progressos artísticos e industriais da época medieval representam façanhas porque estão na fina ponta do que um espírito muito dinâmico poderia querer realizar.

E examinando aquelas maravilhas, nos perguntamos como esses homens ousaram tanto! Ousadia que comporta riscos, e esse ombrear com o perigo do fracasso é igualmente belo. Contudo, o  melhor da façanha medieval é ter pensado com tanta maturidade, seriedade e prudência os seus planos arrojados que, na hora de concretizá-los, o risco está reduzido ao mínimo que as  circunstâncias da época permitem. Sempre deverão contar com ele, é verdade, mas protegido pelos escudos da prudência e da seriedade, do equilíbrio e do “saber fazer” todas as coisas com largueza de espírito.

Não há negar que aquelas grandiosas catedrais góticas, aqueles castelos-fortalezas, aquelas abadias monumentais, aquelas torres e muralhas só podem ter sido construídos por arquitetos sérios, à solicitação de príncipes ou de bispos profundamente sérios, para um povo também ele imbuído de seriedade. Mas, ao mesmo tempo, dotados do senso católico que os leva a pôr em tudo uma nota característica que nos fala de equilíbrio, de harmonia, de contentamento de alma.

Muralhas e torres de robustez quase inabalável — como as de Ávila, por exemplo, que tive a grata oportunidade de admirar — recordam a batalha e a luta, lembram dias de tragédia, de desventuras em meio aos perigos que traziam consigo os cercos contra a cidade. Mas, como não ver nesses gigantescos panos de muro e altaneiros torreões a temperança de alma e a dignidade com que arrostavam todas as vicissitudes?

Como não ver a tranqüilidade e a alegria dessas pedras resplandecendo à luz do sol? Coisas equilibradas, do mesmo equilíbrio que se acha disseminado pela civilização medieval, e que constitui o ponto de partida da felicidade da Idade Média. Nela, todas as disposições lícitas do espírito se coadunam, dão-se as mãos, e a alma sente um certo aprumo, uma certa solidez, uma certa  serenidade, uma certa distância psíquica para considerar as belezas da criação, e para subir até Nossa Senhora, para chegar até Deus — fonte de todas as grandes alegrias, de todos os heroísmos, de todas as façanhas, de todas as santidades.

 

Fascínio e Respeitabilidade

A primeira impressão que se tem diante do castelo de Valençay é de deslumbramento. Um conjunto de torres que se elevam garbosas para o ar, e de alas intermediárias vastas, extensas, indicando  senhorio, poder, grandeza e esplendor.

Nos dois ângulos do corpo principal, erguem-se duas torres muito maciças, fortes e robustas, que formam agradável harmonia com a graça e a elegância da ala central. Esta se compõe de três  andares. O primeiro, arejado por grandes portas e janelas em arco, era destinado aos melhores aposentos da casa no tempo em que Valençay foi construído.

No segundo pavimento, onde se abrem vidraças retangulares, outra série de quartos e salas. E, por fim, para quebrar a monotonia que uma fachada desse gênero pudesse apresentar, existe o sótão, bem alto e vasto, como vasta é a própria fachada.

Nele encontramos uma aprazível seqüência de janelas e óculos, embutidos num extenso telhado de ardósia.

A preocupação de ornar está presente em todo o castelo, porém tão circunspecta que o observador a sente sem perceber, e é necessário um pequeno esforço de atenção para distinguir os adornos. 

Em grande parte, porque o ornato não se encontra naquilo que se põe para enfeitar, mas na discreta, fina e bela proporção das coisas (arte esta que vem a ser um dos traços característicos do gênio francês). Assim, nesse corpo central, a nota de adereço pode ser vista na espécie de sobrancelha grossa, mas bonita, aposta acima de cada mansarda e de cada óculo do sótão.

Por outro lado, a “cara” séria e o caráter um tanto pesado das torres laterais são aliviados pela existência dos pequenos torreões, vazados e leves, que sobre elas se erguem à maneira de  campanários. Na parte central da fachada eleva-se outra torre, de estilo diferente, quadrada, com alto teto em “V”.

Sem ser inteiramente gótica, ela entretanto encerra uma reminiscência de Idade Média que lhe confere particular atrativo. É uma torre de fortaleza. Nos quatro ângulos, pequenos torreões  arrendondados, outrora ligados por ameias de que ainda se notam vestígios na base da parede sobre a qual se levantam o teto e as chaminés.

* * *

No muito belo jardim de Valençay, extensos canteiros com grama e arbustos estabelecem certa distinção reverencial entre o visitante e o castelo, em relação ao qual aquele se sente mantido à  distância. É compreensível, pois tudo quanto é respeitável, ao mesmo tempo que atrai, impõe certos limites. É o próprio da respeitabilidade, cujo modelo infinito e perfeito é Nosso Senhor Jesus  Cristo.

Contemplando as imagens que procuram retratar mais fielmente o Divino Redentor, por vezes nos perguntamos qual seria nossa atitude se Ele, em corpo e alma, estivesse diante de nós. Com  certeza, nosso coração teria a tendência de voar até o d’Ele, mas dobraríamos imediatamente os joelhos em terra. É a confirmação de que tudo quanto é respeitável e elevado atrai, mas mantém a  posição.

Assim também é Valençay: belo e atraente, porém incute respeito.

* * *

Fascínio e beleza de uma habitação que, à primeira vista, espanta pelo que tem de amplo e na qual, em épocas remotas, tudo girava em torno de uma pessoa: o senhor de Valençay. E de uma  família: a dele. Mais ou menos até a Revolução Francesa, o castelo foi, portanto, a residência de uma pequena dinastia feudal, com uma corte local, constituída de nobres das redondezas. Ali se  reuniam para festas, caçadas, conversas, ou, no caso dos vassalos, para prestar homenagens ao senhor de Valençay e render-lhe seus tributos.

Igualmente se apresentavam no castelo plebeus, que vinham pedir justiça ou proteção, ou prestar serviços, ou ainda à procura de auxílios materiais, etc. Em suma, o castelo era o centro da vida de  toda uma região.

Para tanto contribuía o fato de que Valençay — à semelhança de todos os grandes castelos — situava- se a uma considerável distância da capital do país. De maneira que não só os nobres e aldeões  tinham dificuldade em se deslocar até a sede da realeza, como as ordens do soberano encontravam obstáculos para chegar até eles. Assim, o senhor de Valençay vivia em seu feudo como um  monarca de diminutas proporções. Um pequeno e esplêndido rei dominando um pequeno e esplêndido reino, onde ele conhecia cada súdito e o chamava pelo próprio nome. Quando partia para  uma caçada, ia passear pelo campo ou admitia alguém em seu castelo a fim de tratar dos negócios do governo local, indagava da saúde deste e daquele, indicava remédios, e, não raras vezes,  fornecia alimentos e agasalhos.

Procurando atender às mais diversas necessidades de seus súditos, dava conselho sobre o melhor casamento para a filha de Fulano, ou a respeito de em qual batalhão do rei deveria se alistar o  filho de Sicrano. Ou ainda escrevia cartas de recomendação para tal moço ou tal moça que manifestasse o desejo de abraçar a vida religiosa. Nestes casos fazia valer sua amizade para com importantes personalidades eclesiásticas, abrindo para seus protegidos as portas de um seminário ou de algum convento.

Numa palavra, o senhor de Valençay era o pai de todos os habitantes do seu feudo, e sua esposa, a mãe. Era um regime patriarcal, em que ambos constituíam o centro e a cúpula do pequeno  universo constituído em torno do castelo. E todo o esplendor deste se aliava de modo extraordinário à patriarcalidade que permeava as relações entre as várias classes sociais.

Tudo decorria harmoniosamente dos senhores de Valençay, que estavam para o resto do feudo mais ou menos como, na torre central do castelo, telhados e ameias parecem defluir das duas  chaminés postas no alto. Assim como seus antigos senhores, Valençay é grandioso, mas acolhedor. Não infunde medo. Apenas desperta fascínio e respeito.

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 15 (Junho de 1999)

A melhor de todas as mães

Nossa Senhora é a melhor das mães que houve e haverá até o fim do mundo.

Imaginemos que do começo do mundo até o seu término, desde Eva até a última mãe que houver, todas essas mães fossem perfeitíssimas, portanto quisessem bem a seus filhos com uma clareza, uma bondade, uma paciência e, ao mesmo tempo, com uma energia, uma força extraordinária. Se fosse possível colher as qualidades de todas elas, somá-las e colocá-las numa só mãe, esta seria de uma tal perfeição que a inteligência humana não conseguiria imaginar.

Pois bem, esta não seria nada em comparação do que é Nossa Senhora como Mãe. Porque Maria Santíssima é Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, Esposa do Divino Espírito Santo, Filha especialíssima do Padre Eterno.

Evidentemente, Ela é tão excelsa que não pode ser comparada com nenhuma criatura, nem com todas as criaturas juntas.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/10/1990)

Grandiosa solidão, convívio celestial

Quando, em sua divina onipotência, dispôs o Padre Eterno que a terra se povoasse de cordilheiras e montanhas, ainda não havia no mundo homens para contemplá-las. Naquela ocasião, os  maravilhosos panoramas constituídos por tantas e tantas elevações desenrolaram- se apenas aos olhos de Deus, e assim permaneceram para proporcionar às criaturas humanas uma leve idéia das belezas arquitetadas por Ele antes de nós existirmos. Podemos, pois, conjecturar que, ao modelar todos esses cenários montanhosos, Deus teve como principal intenção a de nos fornecer a  oportunidade de meditar e refletir a respeito de sua grandeza e de sua majestade infinitas.

Uma das paisagens mais propícias para esse gênero de considera ções é, a meu ver, a que descortinamos nas regiões circundadas pelos Alpes, ombreadas por aqueles montes e montanhas cobertos  e neve, com toda a poesia e a magnificência que esta traz consigo.

Às vezes, contudo, o que há de mais belo nesses panoramas não são as camadas de alvura eterna, e sim a configuração deste ou daquele pico — como o famoso Mont Blanc —, com cristas que se  sobrepõem e se elevam umas às outras, dando formas extraordinárias às cordilheiras. Alguns se assemelham a crateras de vulcões que entraram em irrupção, jorrando das entranhas mais quentes  da terra um jato imenso de lava que logo se congelou, petrificado para sempre naquela posição.

Outros parecem cercados de uma como que muralha natural, imitando a estrutura de muitas fortalezas medievais. No centro do recinto fortificado se encontraria o castelo, formado por rochas  mais acentuadas; e no meio desse castelo imaginário, à maneira de uma torre prodigiosa, elevase o píncaro mais proeminente.

Em geral, o céu em que esses montes se recortam é de um azul belíssimo, ora claro e límpido, ora profundo e malhado de nuvens que procuram envolver os castelos de ficção. Tudo isso contribui  para o esplendor e a riqueza do panorama, que ainda aquire maior expressividade ao ser introduzida nele a presença humana.

Com efeito, o homem não pode contemplar os Alpes sem se imaginar a si próprio nesses píncaros, e sem medir a sensação que ele teria se, por exemplo, lhe fossem oferecidos os meios financeiros  e técnicos para construir uma fortificação de verdade naquelas alturas. Quem pudesse habitar esse castelo se sentiria colocado no cume de uma grandeza colossal. Ele se teria pelo castelão dos  castelões, o homem que se encontra numa elevação fantástica e que domina a partir deste ápice, pelo olhar e pelo pensamento, tudo quanto de contemporâneo se desenvolve aos seus pés.

Em compensação, ele experimentaria também um imenso isolamento. Antes de tudo, porque a neve não é o seu habitat natural. O homem não foi feito para viver constantemente na neve, mas em  lugares onde ela cai durante certo período do ano. Embora existam povos (como os esquimós) que conseguem viver em panoramas nevados, fazem-no entretanto em condições de vida bastante  primitivas e com um desenvolvimento cultural dos mais elementares.

Nessa perspectiva, a neve acaba dando a impressão de uma paisagem lunar, em que o homem estaria tão isolado quanto se achasse na lua, separado de seus semelhantes, longe de todos,  incompreensível para todos, a todos dominando lá de suas alturas. E sofrendo daquilo a que se referem as Escrituras, a propósito da criação de Eva: “Não é bom para o homem que ele esteja só”. Na  verdade, o isolamento, sobretudo quando se torna mais imponente e mais esmagador pela grandeza, é algo que pesa sobre os nossos ombros.

E podemos imaginar que não seria diferente para o castelão na sua fortaleza, vivendo ali com apenas dois ou três serviçais, vendo os dias se sucederem às noites e as noites aos dias, com neves e nuvens cercando todas as suas janelas, e seu castelo de tal maneira isolado do próprio monte sobre o qual se ergue que o homem se pergunta se não está voando…

De outro lado, porém, para os que não vivem na neve, para os que têm de suportar a existência no dia-a-dia rotineiro e trivial, mas conservando suficiente elevação de espírito, para estes haverá  sempre uma vontade de sair da banalidade, um desejo de voar com a alma para dentro dos horizontes grandiosos. De maneira tal que, postos diante de panoramas como os dos Alpes, não seria  estranho que pensassem: “Como seria bom estar lá no alto!”

Essa grandiosidade amiga das alturas, essa magnífica solidão que procura companhia, em ambas há um pouco de verdade que nos fazem compreender melhor o Céu. De fato, o Paraíso Celeste é de  ma elevação, de uma altitude — não física mas moral — incomparável. Por outro lado, nele não se está só. O homem se encontra na presença d’Aquele que é sua finalidade, e sente a companhia  absoluta para a qual foi criado. Junto a Deus, o justo está como que embriagado da alegria de ter contato com seu Criador, de adorá-Lo face a face, de conversar com Ele, infinitamente mais alto do  que todas as montanhas dos Alpes, mas, ao mesmo tempo, infinitamente mais condescendente, afável e amoroso do que as idéias que essas montanhas sugerem.

Além disso, o homem se vê inserido em toda a Corte Celeste, na qual ele passa a ser príncipe, ao lado dos Anjos e Santos que povoam a bem-aventurança eterna. E cada um sente ali a felicidade  completa, que reúne as alegrias antitéticas, aparentemente contraditórias, de fazer parte de uma multidão e de estar isolado num píncaro próprio. Ele se acha no mais alto dos cumes, cercado de  um convívio idealmente afetuoso, respeitoso, amável, com a mais perfeita das multidões, que é o imenso povo formado por aqueles que se salvam.

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 38 (Maio de 2001)