Admiração e cortesia

A elevação, suavidade e elegância no convívio humano que reluziram de modo especial em outras quadras históricas, constituem um acervo da Civilização Cristã. Segundo Dr. Plinio, os desajustes nos relacionamentos originam-se, sobretudo, do fato de o homem se afastar do amor a Deus e concentrar-se em si próprio.

 

Quando conversamos com alguém, devemos ter em vista as vantagens espirituais de nosso interlocutor e, de outro lado, os interesses da Igreja. Se começamos a pensar em nossos próprios benefícios, surgem mil misérias que não nos é difícil imaginar.

O egoísmo desnatura o convívio humano

Na verdade, os outros têm uma extraordinária sensibilidade para perceber se, em relação a eles, estamos agindo de modo interesseiro ou não. Podem não exprimi-lo nem conscientizá-lo, mas em seu subconsciente algo dessa percepção permanece. Portanto, para agir bem é necessário um completo desinteresse de si e desejar apenas as vantagens da Igreja e da alma com quem tratamos.

Importa distinguir aqui o que chamamos de interesse, pois podemos, legitimamente, defender nosso próprio direito. Há, porém, dois modos de fazê-lo. O primeiro consiste em agir em função de Deus, o qual deseja que nosso direito seja respeitado; o segundo, em defender com ferocidade alguma vantagem implícita nesse direito. São atitudes muito diferentes. Exemplifico.

Se alguém comete uma injustiça a meu respeito, tenho dois motivos para reagir. Antes de tudo, sendo a injustiça um pecado e, portanto, contrária à glória de Deus, devo ser incompatível com ela e impugná-la. Outra razão de me indignar é ter em vista, não a causa de Deus, mas meu lucro pessoal. Quer dizer, como meu interesse foi lesado, posso até alegar em meu favor os cânones da moral. Esta, porém, passa a funcionar quase como pretexto e não como o motivo principal de minha defesa.

Em virtude da natureza humana decaída, o interesse próprio facilmente se hipertrofia, degenera-se e redunda numa explosão de egoísmo. E este deturpa, desnatura e corrói o convívio humano.

Ao desapegado, o Espírito Santo inspira a agir retamente

Poder-se-ia, então, perguntar: quais as palavras adequadas para nos defendermos?

Respondo com um conselho do Divino Mestre. Nosso Senhor recomendou aos Apóstolos que, ao serem arrastados à presença das autoridades na sinagoga, não se preocupassem com o que haveriam de dizer, pois o Espírito Santo lhes poria nos lábios as palavras necessárias para responderem dignamente (Mt 10, 17-19).

O mesmo sucede em nosso apostolado ao tratarmos com aqueles que a Providência coloca em nosso caminho, inclusive pessoas influentes na sociedade: se formos desapegados, não precisamos nos perturbar, pois o Espírito Santo — que habita como num templo na alma em estado de graça — de um ou outro modo nos instruirá para agirmos retamente. E se, por qualquer falta de sagacidade ou de tino diplomático, atuarmos de modo não ideal, mas bem-intencionados, Nossa Senhora fará redundar o mal em bem.

Cultivar a cortesia “saint-simoniana”

Outra objeção poderia ainda ser levantada: “Dr. Plinio, de nada adianta então ter a elevação e suavidade de trato do Duque de Saint-Simon [ver quadro em destaque], tão salientado pelo senhor, pois tudo se reduz à vida espiritual”.

Não é correto. Suponhamos o caso de uma pessoa chamada a discutir para defender a doutrina católica. Para tanto existem a teologia e a filosofia (a Suma Teológica de São Tomás de Aquino, por exemplo), as quais fornecem o aparelhamento magnífico de raciocínios que provam a veracidade da Santa Igreja Católica Apostólica Romana. É a apologética.

Se essa pessoa cultivou seu espírito, ou se não pôde estudar por falta de meios materiais, ou o fez — sem culpa própria — de modo incompleto, imperfeito, o Espírito Santo, a rogos de Nossa Senhora, a ajudará e abençoará para que sua ação se torne útil e fecunda, a fim de salvar as almas. Porém, se por preguiça ela não estudou apologética, o Divino Espírito Santo certamente não a favorecerá, pois ele não supre as mazelas dos negligentes.

Ora, o que se dá com a doutrina sucede também com a cortesia e o “saint-simonianismo”. Quem possui os meios e o tempo para aprendê-los, deve fazê-lo. Quem não tem, confie em Nossa Senhora, seja desinteressado e seu trato fará bem às almas. Insisto: o “saint-simonianismo” não aproveitará ao egoísta nem será útil àqueles que manifestam um tratamento interesseiro, pois este corrompe tudo. Nas relações e conversas com o próximo, cumpre ser abnegado, amar seriamente a Deus e ao nosso semelhante por amor de Deus.

Pela admiração se aprende o “saint-simonianismo”

Como se aprende e se cultiva essa forma de cortesia a que chamamos de “saint-simoniana”?

Posso responder evocando meu exemplo pessoal. Aprendi, primeiramente, de modo vivo e direto — ­aliás, o mais importante —, prestando atenção, admirando, procurando entender, na medida do possível, as pessoas com alguma tradição “saint-simoniana” com as quais convivi desde pequeno. Entre elas a “fräulein” Mathilde, nossa preceptora, alguns parentes e conhecidos que frequentavam minha casa ou que eram visitados por mim, e em cuja educação refulgiam belos traços da formação dos antigos tempos.

Com o passar dos anos tornei-me ávido de conhecer mais, compreendi a beleza desse modo de ser, entendendo tratar-se não apenas de um dote mundano, mas, acima dos defeitos do personagem em si, de um valor da civilização católica. Então, quando me caiu nas mãos uma compilação de textos de Saint-Simon, minha alma teve sede de tomar contato com a obra completa dele. Li, sublinhei e reli os vários volumes, e confesso “invejar” os que ainda não os leram, pois podem ter a alegria — já saboreada por mim — de fazê-lo pela primeira vez…

Portanto, àqueles que é dado ler Saint-Simon, alegrem-se! Os que não o conseguem, não chorem, pois há algo melhor do que isto: se nos ambientes autenticamente católicos encontrarem algumas pessoas “saint-simonianas”, procurem admirá-las e entendê-las. Sobretudo, almejem ser inteiramente desinteressados, e o Divino Espírito Santo lhes ensinará o resto. Máxime se devotos de Nossa Senhora, por meio de quem obtemos todas as graças do Céu.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 22/5/1970)

Revista Dr Plinio 111 (Junho de 2007)

A maior das glórias

Muito se disse da glória da carreira militar, a qual não advém do número de vítimas que o guerreiro faz, e sim dos riscos que ele corre, emoldurados pelo seu esforço pessoal de combatente. Ele não recuou diante do perigo e da iminência da morte, enfrentou todos os obstáculos na sua ofensiva, deitou toda a energia dos seus músculos e todo o vigor da sua alma naquela refrega.

Em geral as nações — é fato comprovado pela História — têm seu período de glória militar e a fase em que tal esplendor se eclipsa, o entusiasmo pelo heroísmo cede lugar ao desejo de acomodação, de se sentir dentro de casa, protegida, sem os sobressaltos de um conflito.

Surge, então, o papel da glória literária. Esta consiste em levantar na alma do povo o apreço pelo maravilhoso por meio da palavra, da argumentação, da letra de um hino, capazes de suscitar nos corações os sentimentos que fazem do homem um herói. A literatura desse porte alcança despertar numa população inteira que vai se tornando lerda, egoísta e moleirona, o brio da coragem e, com este, a força de se reerguer à altura de seu luminoso passado.

Tal é a glória literária, cuja beleza está no ela poder servir o heroísmo, ressuscitando-o. Exemplo característico, os Lusíadas, de Camões. É um poema que exalta a glória dos navegadores portugueses que venceram todos os mares, tocaram nas Américas, na Índia, no Japão…

Esplendor militar, grandezas da literatura, excelências dignas de admiração. Porém, pode-se considerar ainda mais admirável e mais bela a glória religiosa. Compreende-se, pois esta é a glória daquele que deseja conquistar para Deus uma imensa vitória na Terra, isto é, evangelizar o maior número possível de almas a fim de que Deus seja Senhor e Rei delas no Céu por toda a eternidade. O religioso almeja dar ao Criador algo que Ele ama superlativamente, com amor infinitamente superior àquele que qualquer conquistador tenha por seu próprio triunfo.

Se um missionário conseguisse salvar a alma de um só dos seus semelhantes, ofereceria mais a Deus do que se a Ele fosse dado a terra, a lua e todo o nosso sistema planetário. Pois a Igreja nos ensina que tudo quanto Nosso Senhor Jesus Cristo sofreu na sua Paixão e Morte preciosíssimas, foi em ordem à redenção de todo o gênero humano, mas o Salvador padeceria os mesmos tormentos por qualquer homem individualmente considerado. Quer dizer, se Deus tivesse criado um só homem e este tivesse pecado, Jesus estaria decidido a sofrer tudo o que sofreu para resgatar essa alma.

Imagine-se, então, a grandiosidade da missão de uma pessoa que consegue para Deus a adesão de um país inteiro, o qual permanecerá católico até o fim dos tempos! Quantas almas irão para o céu porque tal pessoa obteve esse prêmio para Deus!

Camões, Vasco da Gama, guerreiros, literatos e conquistadores ilustres: todos expressões de extrema beleza, mas pouco adiantariam se não houvesse homens especialmente voltados para converter as almas e encaminhá-las nas vias da Civilização Cristã, com suas catedrais, ­suas universidades, toda a sua cultura, obras muito mais filhas de missionários e religiosos do que daqueles expoentes da literatura e da glória militar.

Pensemos, entre outros, nos monges beneditinos, insignes evangelizadores da Europa medieval, os quais, sob o impulso irresistível de seu Fundador, se espalharam pelo Velho Continente fundando mosteiros e abadias, promovendo a edificação de imponentes catedrais, a instituição de renomados estabelecimentos de ensino, a construção de monumentos que encantam o mundo até os presentes dias. Mais. Eles desejavam fugir das cidades para se recolherem em locais ermos, e as cidades corriam atrás deles: fundavam conventos, e as populações católicas cresciam em torno dos muros sagrados.

Não será esta glória superior à militar? À literária?

É a primeira das glórias. Porque visa mais diretamente a glória de Deus. Porque conquista algo que vale incomensuravelmente mais do que terras, cidades e tesouros. Conquista almas.

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 99 (junho de 2006)

O papel da oração na Comunhão dos Santos

No Mar Mediterrâneo, cruzados enfrentaram terrível tempestade e foram salvos em virtude das preces de monges.
Esse fato mostra a prevalência da oração sobre todos os recursos humanos e comprova o dogma da Comunhão dos Santos.

 

O episódio que vamos comentar é narrado por Montalembert(1), em sua obra “Les Moines d’Occident”. O texto é o seguinte:

O Conde Raul de Chester(2), fundador da abadia cisterciense de Dieulacres, voltava da Cruzada durante a qual havia tomado Damieta e se cobrira de glória, quando uma violenta tempestade caiu sobre o navio em que ele viajava. Eram já dez horas da noite e, como o perigo aumentava a cada instante, o Conde exortou os que viajavam a redobrarem os esforços até mais um minuto, prometendo que então a tempestade cessaria. Ele próprio se pôs a manobrar e trabalhou mais do que qualquer um. Em seguida, o vento parou, o mar se acalmou e, tendo o piloto perguntado a Raul por que ele lhe tinha ordenado de trabalhar apenas um minuto a mais, o Conde respondeu: “Porque, a partir daquela hora, os monges e outros religiosos que meus ancestrais e eu estabelecemos em vários lugares se preparavam para cantar o Ofício. E nesse momento eu sabia que eles estariam rezando, e esperava do Céu, graças a eles, que a tempestade parasse”.

Embora separados por enorme distância, estavam unidos em Deus

Este é um lindíssimo episódio que, sendo ou não real, pouco importa, indica um princípio da Doutrina Católica.

O fato nos apresenta a imagem poética de um grupo de cruzados atravessando o Mediterrâneo. Naquela época, sendo os meios de navegação tão insuficientes, cruzar o Mar Mediterrâneo — o qual, em última análise, é um grande lago — era uma façanha náutica.

Podemos imaginar a situação aflitiva: a noite escura, o Mediterrâneo cheio de incógnitas para eles, a tempestade que sopra e os homens que se apavoram, a nau naturalmente cheia de cruzados, com suas pesadas armas, das quais não podem abrir mão jogando-as no fundo do mar, porque, abordando em terra firme, precisariam dessas armas para se defender. Uma cena que lembra, algum tanto, o episódio da tempestade no Lago de Tiberíades, e os Apóstolos em torno de Nosso Senhor.

Não está ali Jesus, mas — “christianus alter Christus”(3) — um homem de Fé, que é o Conde de Chester. Ele sabe poder contar com as orações dos religiosos que viviam nas numerosas abadias fundadas por seus ancestrais. E que a gratidão dos verdadeiros religiosos jamais se desmente. Portanto, tinha confiança de que na hora certa o Ofício começaria e que logo no início aquelas orações se uniriam às dos descendentes dos fundadores e, principalmente, segundo as intenções de quem era, provavelmente, o primogênito na linha dos fundadores.

Então, ele pede apenas mais um minuto de atenção, de paciência e de perseverança porque sabia que a tempestade iria amainar. A tempestade cessa e o Conde diz: “Os monges começaram a recitar o Ofício”.

É o poder da prece, que ignora as distâncias. Naquele tempo, a distância entre a Inglaterra, o Norte da França e o Mediterrâneo se percorria devagar, atravessando povos muito diferentes, estradas incertas; eram espaços psicologicamente enormes que separavam o local da tragédia iminente e daquele onde a solução devia se operar.

Os monges não sabiam que os descendentes de seus benfeitores estavam em perigo; tudo os separava, exceto uma coisa que os unia: o vértice. Os religiosos e os cruzados olham para Deus. Nele se encontram a oração daquele que pede e a necessidade de quem precisa. E a oração de uns liberta os outros.

O mais bonito é considerar o seguinte: a tomar a narração ao pé da letra, os monges naquela mesma hora teriam começado a cantar. Deveria haver uma decalagem de horário, e a hora não poderia ser exatamente a mesma no relógio do Conde e no da abadia. Mas Deus, que não se atrapalha com a Ciência e não se deixa prender por esses pequenos pormenores, operou essa maravilha. E quis fazer jogar algo à maneira de uma coincidência de horários que, na realidade, não existia.

Duas formas de heroísmo se encontram: a do cruzado no alto mar e a do monge na capela

Desse belo fato podemos tirar algumas lições.

A primeira delas, e a mais importante, é a prevalência da oração sobre todos os outros recursos humanos. Leão XIII escreveu uma frase num de seus documentos, que nunca mais me saiu do espírito. Afirmava ele que em seu tempo havia muitos homens que agiam para promover a Causa Católica. Entretanto, eles agiam mais do que rezavam. E que se rezassem tanto quanto agissem, eles obteriam muito mais do que simplesmente pela ação. Porque o grande meio de vitória do homem é a oração. É um meio que não dispensa a ação, mas prepara para ela e a torna fecunda. Mas é um meio indispensável e supereminente em relação à ação.

Vemos aqui essa tese perfeitamente ilustrada. O Conde de Chester foi um cruzado. Atraído pela graça de Deus, ele fora até o Oriente. Ação. E para a luta, a mais bela e mais nobre forma de ação. No Oriente ele arranca ao poder dos maometanos uma cidade importante: Damieta. Êxito na ação. Entretanto, vemos a necessidade da oração. Ele tem a sua vida exposta a um perigo enorme, frente ao qual quase não lhe adiantaria nenhuma indústria humana: uma tempestade, açoitando o mar onde ele se encontrava. Oração. E sua prece assegura a preservação da vida dele e de seus bravos. Muito mais do que isso: ele dá um exemplo de como Deus atende a oração e vela por aqueles que confiam na prece dos outros. Mostra-nos o dogma da Comunhão dos Santos, por assim dizer, funcionando e fazendo com que essas duas formas de heroísmo se encontrem: o do cruzado no alto mar, e o do monge pontual na capela, rezando com Fé por aqueles que estão expostos a riscos.

A oração tem um valor maior do que a ação

Daí nós deduzimos a importância de nossa oração, do nosso Rosário, do Ofício recitado ou cantado. Precisamos ter Fé de que, para o êxito da causa da Contra-Revolução, este esforço de oração tem um valor maior do que o próprio esforço nobre e indispensável da ação. Mesmo quando se trata de grandes guerreiros, que realizaram grandes feitos e conseguiram grandes vitórias para a Igreja, o papel da oração é preponderante. Essa é a grande lição que devemos tirar desse episódio.

Mas há uma outra: por que Deus permitiu terem eles chegado ao extremo da aflição, para só depois intervir? Exatamente para provar a confiança n’Ele. As horas de extrema aflição são as horas da Providência, as horas da misericórdia. O verdadeiro católico, quando vê que tudo parece perdido, reza e confia mais do que nunca, porque sabe que é a hora do sorriso de Nossa Senhora. Nesse fato vemos o sorriso de Maria Santíssima, que intervém e resolve a situação desses guerreiros.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de Conferência de 3/8/1973)

 

1) Charles de Montalembert, Les Moines d’Occident. Paris: Lecoffre, 1860, vol. VI, p. 35

2) Raul de Blondeville, Conde de Chester (1172-1232). Participou da quinta Cruzada, durante a qual Jean de Brienne conquistou Damieta, em 1218.

3) O cristão é outro Cristo.

Lamparinas de Deus…

Dr. Plinio, arauto da Eucaristia, teve sempre especial apreço pelo valor simbólico das lamparinas que, junto ao tabernáculo, indicam a Presença Real de Jesus nas Sagradas Espécies. Acompanhemos uma analogia feita por ele, ao recordar o dia de seu próprio Batismo.

 

A lamparina acesa durante a noite diante do tabernáculo, até o momento em que raie o sol é a luz! E, quem passa toda a noite em adoração tem naquela fagulha um elemento de esperança do sol que vai nascer!

Em algumas almas percebemos a chama da graça que arde. De certo modo, cada alma humana é uma lamparina para a vida espiritual.

Imaginem uma igreja com uma lamparina em cada um de seus vários altares. Em algumas delas as chamas sobem, engrandecem, depois diminuem; parecem mover-se dentro da escuridão. Em outras são fixas, calmas, serenas, como que se imolam sem nenhuma excitação, até o ponto final. Às vezes crescem de um lado e parecem querer subir ao céu por uma via própria.

Imaginemos o universo das lamparinas de todas as igrejas! Como seria encantador, no silêncio da noite, observarmos a história de cada uma. Se tivéssemos o dom do discernimento dos espíritos, perceberíamos em cada alma como a lamparina da graça de Deus se move: ora se acende, ora pelo contrário enlanguesce, helas, às vezes toma vento, deita fumaça, suja o teto… E estende-se a mão meiga de Nossa Senhora que a limpa e, a lamparina continua a brilhar.

Se tivéssemos os olhos voltados para isso, compreenderíamos o que o Batismo deu a cada um de nós: ser algo à maneira de uma lamparina dentro da casa de Deus, mas com pavio aceso e não apagado; pavio que brilha e não pavio morto! E a história da alma de cada de um de nós poderia ser comparada à de uma lamparina.

Aqui está uma lamparina que, tendo demorado seis meses para acender-se , deveria arder pelo menos até setenta anos.

Quanto ao resto do tempo, Deus o saberá.

Se eu fosse estudar a história dessa lamparina, diria que no meio de mil provações e desventuras, uma alegria a manteve ereta como um gládio. E a alegria provinha deste fato: sou lamparina na casa de meu Deus, aos olhos de minha Mãe! De minha Mãe celeste e também aos olhos, tão insondavelmente menores, mas tão insondavelmente carinhosos, de minha mãe terrena.

Na presença deles ardi, procurando o teto o tempo inteiro e dessa maneira procurando dar a glória que dei! Sei que não foi o que deveria, Ela que perdoe; mas, algo está feito, algo está dado, algo resta para dar. 

 

(Extraído de conversa em 7 de junho de 1979)

Obra-prima da Inocência

Nascida de um conjunto de circunstâncias e, sobretudo, de graças especiais, a Sainte Chapelle não foi concebida apenas por um artista, mas por um ambiente e um modo de ser que caracterizou a alma medieval.

 

Lembro-me de quando, há muitos anos atrás, visitei por primeira vez a Sainte Chapelle, edificada por São Luís Rei a fim de abrigar uma preciosa relíquia: espinhos da coroa de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ao entrar, fiquei encantado!

O recinto sagrado possuía dois patamares, sendo o inferior reservado aos servidores e empregados da corte.

Zeloso pelo bem espiritual de seus súditos, o Rei se comprazia em assistir à Santa Missa em presença de todos eles. Celebrava-se, então, o Santo Sacrifício na parte superior da capela para a corte, e, concomitantemente, na inferior para os criados.

Chamaram-me a atenção as proporções da parte inferior, que são inteiramente diversas do que encontramos habitualmente. Quando nos indagamos se o ambiente é alto, logo chegamos a uma conclusão negativa; porém, se nos perguntamos se ele é baixo, percebemos que tal afirmação seria exagerada. Esse ambiente possui uma proporção especial para quem nele se detenha a rezar, que poderia ser definido assim: um ambiente elevado, porém muito íntimo, como que o mais íntimo gabinete de Deus, ou sua mais interna sala. Esta atmosfera produz na alma uma perspectiva que concilia a elevação com a intimidade.

Como se consegue produzir essa sensação? É possível notar que todas as colunas são muito esguias e tênues, não demonstrando força rústica. Elas desabrocham como palmeiras, cujas folhas se encontram no teto. Abrem-se de modo tão harmonioso, gradual e perfeito, que causam a impressão de que o teto está a uma grande altura, onde acabam as folhas das palmeiras, ao mesmo tempo em que esta altura pode ser alcançada pelo homem. Fica-se assim misteriosamente elevado. Na intimidade sente-se uma grande elevação, e na elevação uma grande intimidade. O homem mede toda a grandeza de Deus, mas se sente atraído até Deus. Afetuosamente e carinhosamente elevado.

Doce e suave penumbra

Ao subir ao andar superior, vemos que a iluminação do ambiente emana dos belos vitrais, de tal forma que uma doce e suave penumbra era o elemento dominante desse recinto. Havia um presbitério com o altar para as celebrações litúrgicas, e as naves laterais onde permaneciam os fiéis. O ambiente fora feito para receber muitas pessoas em um pequeno espaço, ou ao menos causar a ideia de que o local era pequeno.

Porém o conjunto era melhor…

As ogivas exercem o seu incomparável fascínio sobre os espíritos. Nota-se como são belas; entretanto, vistas em conjunto, são mais bonitas do que cada uma em particular, à semelhança da Escritura quando diz que Deus, ao criar o universo, repousou no sétimo dia, considerando a obra que tinha realizado. E que se Lhe tornou patente que cada coisa era bela, entretanto o conjunto era superior a cada coisa em particular. Bem se pode aplicar esse princípio à Sainte Chapelle. Todas as colunas são belas, as pinturas as tornam ainda mais belas, mas o conjunto é muito superior a tudo. O mais belo é o conjunto.

Toda a leveza, delicadeza e elevação da Sainte Chapelle fazem-se notar não apenas no teto ou na torre, mas também num detalhe: um florão, no qual pousou um anjo. A figura do anjo está numa tal proporção com o florão, que se diria que, ao menor movimento dele, o florão vergava e ele perderia o equilíbrio. É semelhante a um pássaro que pousasse sobre uma flor

O ângulo formado por ambas as partes das ogivas causam a impressão de que o teto está apertado. Entretanto, essa forma esguia aumenta o efeito de leveza. Pois quanto mais o teto é espaçoso, tanto mais causa a impressão de rude, enquanto que, tanto mais estreito, maior é a impressão de que vai atirar-se ao céu. Também a torre do campanário é como um gráfico do desejo do homem medieval de subir até Deus. O próprio colorido do céu aumenta a beleza da Sainte Chapelle, pois ela seria mais bonita imaginada no meio das nuvens e construída no céu, do que nesse vale de lágrimas.

Monarca guerreiro para um reino de paz

A imagem de São Luís proporciona uma ideia real do que poderia ter sido esse santo rei. Vê-se nele uma indiscutível majestade real. Não a majestade de um rei agressor e anexador de terras que não lhe pertencem, mas de um monarca defensor, firme e tranquilo de seus direitos, seguro de terras que recebeu e sobre as quais tem o direito de mandar. Um rei guerreiro, que combate se necessário, por ser o seu dever, para manter a integridade do seu reino. Sua fisionomia traduz uma determinação e uma decisão admiráveis.

A atitude e a fisionomia de São Luís causam a impressão de calma, segurança, e de uma determinação a qualquer extremo, no caso de ter de lutar, que demonstram bem o rei cruzado e batalhador que teve guerras para sustentar, mas que soube orientar essas guerras de tal modo que não só saiu-se vitorioso, mas proporcionou a seu povo um reinado de paz.

O irrealizável feito realidade

Poder-se-ia afirmar que a Sainte Chapelle é feita de vitral, de tal forma o que há de pedra é o estrito necessário para sustentar os vitrais e escorar o teto. O restante é todo feito de cristal ou de vidro tão bem trabalhado na diversidade de cores, na precisão dos desenhos e na elegância das formas, que chega a tocar no inimaginável.

Ao entrar nessa capela, tem-se a impressão de que o irrealizável tornou-se realidade, e o que surge à mente é a seguinte ideia: “Não pensava que fosse possível, com os elementos desta terra, realizar uma coisa tão semelhante ao Céu.” Realmente, isso se tornou possível devido à Fé.

Caso esse edifício não fosse concebido por almas elevadas à vida sobrenatural pela graça — remidas e resgatadas pelo sangue preciosíssimo de Nosso Senhor Jesus Cristo, que lhes abriu as portas do Céu e lhes infundiu a abundância da graça —, e construído em séculos de Fé, por sua própria capacidade o homem jamais cogitaria uma maravilha como essa.

Extraordinária inocência

A Sainte Chapelle deixa entrever uma extraordinária inocência de alma, o que permitiria chamá-la a Capela da Inocência. Para conceber algo assim, a alma precisa ser profundamente inocente. A Sainte Chapelle é a obra-prima da temperança, nela tudo é lindo, magnífico e arrebatador. Porém, com um equilíbrio que permite à inocência atingir o auge de seu entusiasmo. Auge sereno, calmo, refletido, o qual frutifica em meditação e contemplação.

 

Plinio Corrêa de Oliveira, (Extraído de conferência de 12/4/1989)

Cerimônia de investidura do cavaleiro medieval

Quando um jovem era armado cavaleiro, o senhor de seu pai lhe entregava sua própria espada, dizendo: “Não a conquistei de um chefe sarraceno. Eu mesmo mandei forjá-la, e durante muito tempo a usei. Cabe-vos agora ser digno dela”. Na Idade Média todo mundo tinha um senhor, o qual era para com seu vassalo como um pai em relação a seu filho.

 

Vamos comentar a descrição que Léon Gautier, em seu livro “A Cavalaria”(1), faz da investidura do cavaleiro.

As portas do heroísmo cristão, do martírio e do holocausto se abrem

A noite desce sobre o velho “donjon”, e o mosteiro mais próximo encontra-se a uma légua. Rodeado por seus jovens pajens, o jovem que vai ser armado cavaleiro despede-se de sua mãe e de seus irmãos […]. O caminho se faz alegremente, mas sem desordens […]. A viagem não é longa, e eis que, de um momento para outro, percebe-se na penumbra o portal da igreja […]. Os jovens entram alegres e recolhidos.

Léon Gautier é um grande especialista em matéria de Idade Média, e por isso merece que se preste muita atenção a cada uma de suas palavras. Ele vai descrevendo a investidura do cavaleiro a partir dos seus mais remotos começos.

O jovem deixa seu castelo para fazer a vigília de armas no mosteiro mais próximo. Ele vai acompanhado pelos seus pajens, jovens como ele e da mesma classe social, que mais tarde serão, eles próprios, cavaleiros também. Vão alegres para a vigília, mas, assinala o autor, sem barulho. Quer dizer, não é uma alegria estúrdia, tola, mas é um júbilo no qual se manifesta a admiração, o respeito pela ação que vai ser feita e, por causa disso, uma alegria cheia de recolhimento.

O que quer dizer recolhimento neste caso? Uma alegria sem dissipação, na qual a pessoa tem em mente a alta razão pela qual está alegre: “Meu amigo vai receber a condição de cavaleiro pelo sacramental da Cavalaria, que um dia eu devo receber também. As portas do heroísmo cristão, do martírio, do holocausto se abrem, portanto, para ele. Que coisa linda! Eu admiro, respeito isso! Alegro-me em que meu companheiro vá receber esta graça”.

Combatente na defesa da Civilização Cristã e para a expansão do Reino de Maria

Esta alegria é verdadeira na medida em que ela conserve sempre a recordação dos seus próprios motivos. É diferente do gáudio do tonto que começa a se alegrar por uma razão boa e daqui a pouco está se regozijando por uma asneira e se alegra como um asno. A alegria recolhida é diferente. É o júbilo da posse ou da expectativa da posse iminente daquilo que é superior. É esta a alegria que leva, pelas tranquilidades das serranias e dos campos da Idade Média, o grupo de jovens ao mosteiro que os espera.

Não se distingue mais nada a não ser um grande foco luminoso, ao fundo, em uma das capelas. É lá que se realizará a vigília de armas, nessa capela consagrada a São Martinho, como indica um vitral que representa o Santo em trajes de cavaleiro, dando a um mendigo a metade de sua capa.

Por uma dessas sínteses muito felizes em que aparece o gênio, a santidade e a sabedoria da Igreja Católica, o cavaleiro não é apenas combatente; é glorioso sê-lo na defesa da Civilização Cristã e para a expansão do Reino de Maria na Terra. E porque é terrível no combate, odiando o erro, mas sem ódio àquele que errou, ao mesmo tempo em que ele é um herói formidável, é um homem cheio de caridade. E por isso ele luta pelas viúvas, pelos órfãos, pelos pobres, é altamente esmoler. Não possui muito dinheiro consigo, porque não tem ocasião para fazer riqueza; ele não é um burguês, dono de uma padaria ou de uma casa onde se vendem tecidos, e que vai tirando e acumulando lucros, mas um homem desprendido, que sem outros interesses percorre a Terra para defender o Reino de Cristo. Então, ele tem pouco dinheiro, mas é esmoler.

O vitral representa o episódio em que São Martinho de Tours, grande cavaleiro, ao mesmo tempo um símbolo da nação francesa, passando durante o inverno por um lugar onde há um pobre tiritando de frio, divide sua capa e dá metade dela ao indigente. Esse ato de amor ao próximo por amor de Deus deve ser praticado por aquele que, também por amor de Deus, vai combater e até odiar o próximo quando este se transforma num fautor, propagandista, baluarte do erro ou do mal.

Eram as vésperas de Pentecostes.

Foi escolhida, portanto, para receber a investidura da Cavalaria a lindíssima festa em que a Igreja celebra a descida do Espírito Santo sobre os Apóstolos e a transformação completa da mentalidade deles, de homens que tinham mostrado um espírito tão diferente do cavaleiro, fugindo quando Nosso Senhor foi preso, e que recebendo o Espírito Santo se tornaram os primeiros cavaleiros de Nosso Senhor Jesus Cristo, que foram sem dúvida os Apóstolos, verdadeiros heróis da Fé.

Ao mesmo tempo em que mata o herege, o cavaleiro reza para que ele se salve

Os futuros cavaleiros começam sua vigília invocando a Mãe de Deus. A noite será longa. É-lhes proibido sentar-se por um só instante.

Por que “os futuros cavaleiros”? Porque os pajens do jovem um dia também serão cavaleiros e fazem junto a vigília.

Um dos traços lindos da Idade Média é a devoção a Nossa Senhora. A vigília começa pedindo o auxílio da Medianeira de todas as graças, por meio da qual tudo se consegue e sem a qual coisíssima nenhuma se obtém.

Proibido sentar-se um só momento; fica-se em pé ou ajoelhado a noite inteira. Alguém me dirá: “Mas é duro!” Esta é uma dureza minúscula em comparação com as outras agruras que deverá enfrentar o cavaleiro ao longo de sua vida. Ele entra na vida dura. E a razão de ser de todas essas festas é que é dura a via para a qual ele entrou. Se entrasse para uma via mole, tais festas seriam uma tolice. O motivo é que ele, por amor a Deus e a Nossa Senhora, ingressou na via dura.

Eles rezam por si e pelos seus […]. Pensam nos rudes golpes de lança que eles darão, talvez também naqueles que receberão.

Oram provavelmente por aqueles que receberão seus golpes de lança. Aqui vemos caracterizado o amor ao próximo, por amor de Deus. Eles dão uma estocada no maometano ou no herege albigense e o derruba por terra, mas desejam a salvação eterna do homem que estão abatendo. Jogam no chão, mas não querem lançá-lo no Inferno. Ao mesmo tempo em que o matam, rezam para que ele se salve. São Bernardo chega a dizer que o guerreiro que luta com ódio pessoal é como um assassino, mas quem combate por um ódio doutrinário, porque aquele indivíduo adotou o erro e por isso deve ser combatido, este serve a Deus.

Missa especial para armar o cavaleiro

Eles pensam no grande dia que se levanta para eles, no elmo, […] no gume de sua espada; rezam mais uma vez. Enfim uma pequena luz branca penetra no santuário que pouco a pouco vai se tornando claro. Não há dúvida, é a aurora.

É muito bonita esta ideia: uma noite inteira de vigília, e depois uma pequena luz que entra aqui, lá, acolá, e as primeiras claridades da manhã penetram pelos vitrais do santuário onde estão os futuros cavaleiros que vão lutar pela glória de Deus, de sua Igreja e da Civilização Cristã.

Então um barulho de passos se faz ouvir na igreja. Um sacerdote chega e se prepara para celebrar a Missa […]. Essa Missa é muito solene e de muito remota origem. Ela é muito anterior à vigília de armas que os antigos não conheciam […]. Mais tarde o noviço fará uma confissão geral e se aproximará do Sacramento da Eucaristia. No século XII ainda não se faz alusão a esta Comunhão. Enfim a última bênção do padre libera o jovem e seus companheiros que se dirigem para o portal da igreja. São seis horas da manhã. O ar é fresco e eles têm fome.

Notem com que naturalidade isso é apresentado. Depois de uma coisa tão sublime, este pormenor: eles têm fome. Eis a naturalidade da Igreja que, tendo elevado os espíritos às mais altas considerações, cuida também do mais comum, porque tudo está dentro da ordem posta por Deus, harmonizado. O Criador quis que os homens tivessem fome de oração, mas também fome de pão. E a Igreja, ao mesmo tempo, estimula à oração e abençoa o pão. Tudo está numa sequência em que a harmonia incomparável do espírito católico se faz sentir.

Aparentes oposições são próprias do gênio e do espírito da Igreja

A volta para casa se faz novamente com alegria. Mas desta vez uma alegria mais vivaz. É bastante natural, depois de dez horas de meditação e de oração.

O recolhimento deu-lhes certa necessidade de se expandirem. Voltam mais alegres porque suas almas estão penetradas de Deus. Depois de uma longa oração não se deve imaginar que o próprio é regressar para casa cansado, dizendo: “Puxa! Onde está a cama para eu ir correndo deitar-me?” Não. A alma que aproveitou bem a oração volta animada para a vida diária, e não preguiçosa.

No castelo a mesa está posta. O futuro cavaleiro faz honra ao pão branco e às peças de caça que estão colocadas na mesa.

É, portanto, um desjejum vigoroso, com carnes, etc. Ele está alegre, comungou, encontra-se em estado de graça, prevê a festa e a cruz que se segue àquela.

É preciso tomar forças para a solenidade que está próxima. O dia será duro e belo […]. Logo depois desta refeição matinal, a cerimônia de investidura do cavaleiro começa.

O autor passa a descrever lentamente todas as partes da cerimônia na qual se arma o cavaleiro. É muito curioso ver como a Igreja vai aos poucos civilizando os povos. Aqueles eram tempos bárbaros nos quais o banho não era uma preocupação da pessoa. Como a Igreja promove o bem em tudo quanto faz e de todos os modos possíveis, mesmo naquilo que não está diretamente na sua missão, ela estabelece na cerimônia da investidura do cavaleiro um banho: o futuro cavaleiro tem que se banhar. Precaução altamente útil naquele tempo, ainda mais que não havia água encanada e o banho não era simples como em nossos dias.

O banho era realizado numa tina com água de rosas. E aqui está mais um desses paradoxos magníficos da Igreja: o homem vai ser armado de aço da cabeça aos pés; pois bem, esse homem é preparado pela prece, depois por um banquete e, em seguida, um banho de água de rosas para chegar todo perfumado dentro da armadura. Essas aparentes oposições são próprias do gênio e do espírito da Igreja que faz tudo assim.

Cerimônia de sua investidura

Chega, então, o momento solene da investidura:

O senhor de seu pai se dirige direto rumo a ele segurando a espada. A famosa espada tão ardentemente desejada, suspensa num rico talabarte.

Por que o senhor do pai dele? Isso é muito bonito. Nós estamos numa sociedade feudal onde todo mundo tem um senhor. Houve um rei da França que fez um decreto dando ordem a todos os homens que ainda não tinham senhores que escolhessem um, mas todos deveriam ter um senhor. E o senhor era para com seu vassalo como um pai em relação a seu filho. Assim como numa festa em família, estando presente o avô, a presidência caberia naturalmente a ele, também o senhor do pai do neo-cavaleiro foi convidado para presidir essa grande festa. É ele, então, que vai armar o cavaleiro. É a presença do vínculo feudal, misturando a autoridade familiar com a do Estado.

Dizia-se de um modo muito belo no “Ancien Régime”, continuador de tantas tradições medievais: o pai é o rei de seus filhos e o rei é o pai dos pais. Este era o pensamento, que vemos expresso nessa cerimônia.

Quando o rapaz vê aproximar-se a espada com o talabarte, fecha os olhos e se recolhe. E o senhor do pai dele faz um discurso: “Esta espada, eu não a conquistei de um chefe sarraceno. Fiz forjá-la eu mesmo, durante muito tempo a usei. Cabe-vos agora ser digno dela”.

Que coisa bonita! O indivíduo recebe, portanto, a própria espada daquele que é suserano de seu pai, o qual diz: “Isso vale muito mais do que se fosse de um sarraceno; usou-a um herói católico. Agora você vai utilizá-la, torne-se digno dela. Tenha respeito por essa espada que foi empregada dignamente no serviço de Deus. Seja ela, nas suas mãos, utilizada do mesmo modo”.

O jovem oscula respeitosamente o pomo da espada, que é oco e contém habitualmente augustas relíquias.

Honra, delicadeza e força

Enfim, o pai do novo cavaleiro se aproxima por sua vez: “Curva a cabeça que eu te vou dar a ‘colée’”.

É um golpe que o pai dá no filho para torná-lo cavaleiro. Não é uma coisa puramente protocolar.

Não é um golpe ligeiro que ele acena sobre a nuca de seu filho, mas sim um formidável golpe com a sua palma direita. O jovem quase cambaleia. Diz o pai: “Cavaleiro sejas, ó meu belo filho, e corajoso em face de teus inimigos!”

Essa tapona é como quem diz: “Muitas virão, muitas receberás; seja a primeira a de teu pai para te ensinar a reagir como herói”. Eu acho isso perfeito. Não há nada mais que replicar.

“Eu o serei, se Deus me ajudar”, responde o novo cavaleiro.

Nada, portanto, de presunção: “Ó, meu pai, deixe comigo…” Não! Humildade: “Sem o auxílio de Deus, não serei; mas se Ele me ajudar, eu serei, ó meu pai”.

Ouvem-se barulhos e gritos. As pessoas se afastam. Um relinchar claro se distingue. É a entrada dos cavalos. São cavalos enormes, magníficos. Eles chegam conduzidos pelos escudeiros. O cavalo de nosso barão é um presente de seu senhor. Ele é jovem, mas de raça e tem o nome de Veillantif, como o cavalo de Roland. Assim que o animal é trazido, o novo cavaleiro o abarca com um só olhar e dá alguns tapinhas amigáveis no pescoço; depois, de um salto só, ele se põe na sela, sem tocar no estribo.

Para mostrar que a coisa é séria, para valer. Portanto, mais uma vez, delicadeza e força.

Então lhe trazem suas duas últimas armas, as quais não se dão a não ser quando o cavaleiro está na sela: o imenso escudo que cobre um homem inteiro, e a lança que tem oito pés de altura.

É muito bonito receber ali essas armas!

Sobre o escudo está pintado o brasão da família.

O símbolo da família nem sempre é pintado, mas em relevo no próprio metal, lembrando ao cavaleiro que a partir daquele momento toda a honra da família está relacionada com a coragem que ele tenha no campo de batalha. Se for valente, ele continua aquele rio de virtude, de coragem, que é o curso de sua família através da História; se for um poltrão, pelo contrário, vai envergonhar a sua família e todo o seu passado; mais ainda, transmitirá a seus filhos um nome desonrado, maculado.

No alto da lança flutua um estreito e longo gonfalão com três faixas de pano. Não resta mais ao nosso barão senão provar que ele é bom cavaleiro.

Está um final bem francês, elegante, bem-apanhado.

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 11/2/1977)

Revista Dr Plinio 255 (Junho de 2019)

 

1) Cf. GAUTIER, Léon. La Chevalerie. Cholet: Edition Pays & Terrois, 1999. p. 314-330.

 

Considerações sobre o Brasil Império – IV

Após tomar uma série de medidas contrarrevolucionárias, Dom Vital foi preso por ordem de Dom Pedro II, censurado pelo próprio Pio IX e anistiado pela Princesa Isabel. Tendo viajado a Roma para se defender num processo contra ele instaurado, foi considerado inocente pela Santa Sé, de um modo inteiramente providencial, mas acabou sendo morto pelos inimigos da Igreja.

 

Naquele tempo, as confrarias religiosas eram muito ricas, porque vinham da época do Brasil Colônia, com muitas propriedades. Havia pouco fervor religioso, pela simples razão de que o clero passava por uma grande decadência. Por exemplo, um dos regentes do Império era o Padre Diogo Antônio Feijó, um jansenista que andou com os estudos adiantados para uma quase separação do Brasil com Roma. Era sabidamente um mau padre.

Sagrado bispo na velha Catedral de São Paulo

Por outro lado, os inimigos da Igreja tinham proibido o noviciado nas Ordens religiosas no Brasil, de maneira que nenhum brasileiro podia entrar em nenhuma delas. Então, as Ordens muito ricas começaram a mandar seus jovens candidatos, em quantidade, fazer os estudos na Europa, de onde voltavam já ordenados padres. Isso as leis não podiam proibir. Eram os felizes dias do pontificado de Pio IX, e os seminários davam a melhor formação possível.

Um desses seminários era o dos capuchinhos na França, onde foi estudar um jovem pernambucano muito inteligente, alto, bem constituído, forte, com uns olhos oblongos, pretos, tão penetrantes que ele disse nunca ter olhado para uma fisionomia sem que num primeiro olhar compreendesse completamente a psicologia, as intenções da pessoa. Seu nome era Vital Maria Gonçalves de Oliveira, natural da cidade de Goiana, em Pernambuco. Ordenou-se, veio para o Brasil como capuchinho e começou a exercer o ministério em São Paulo.

Ele não era meu parente, mas amigo de parentes meus originais de Goiana como ele. Ocupava, então, o cargo de Ministro do Interior do Império o meu tio-avô, Conselheiro João Alfredo Corrêa de Oliveira.

Naquele tempo, quem indicava os bispos a serem nomeados pelo Papa era o Imperador. O Papa podia recusar, mas não lhe era permitido nomear um bispo sem ouvir o Imperador. O João Alfredo julgou que daria uma bela tacada nomeando essa pessoa muito chegada a ele para bispo, e propôs o Padre Vital ao Primeiro-Ministro, Visconde do Rio Branco. Este, para comprazer ao João Alfredo, concordou e apresentou o nome ao Imperador, o qual aceitou e ele foi sagrado bispo na velha Catedral de São Paulo.

Minha avó materna assistiu a essa ordenação e comentava que se lembrava dele, ainda em pé, na porta da catedral, dando a bênção ao povo, com as mãos de uma alvura e de uma beleza que chamara a atenção dela.

Dom Pedro II decreta a prisão de D. Vital

Ele foi para Pernambuco resolvido a tomar uma série de medidas contrarrevolucionárias. Ficou um ano ou dois em Olinda e Recife, tomando a temperatura, o pulso das coisas, orando e gemendo junto ao Santíssimo Sacramento, e pedindo que desse um jeito de vibrar um golpe nos inimigos da Santa Igreja.

Em certo momento, julgou já estar em condições de desferir o golpe e o fez por meio de cartas pastorais, destituições de maus priores de confrarias e até suspendendo de ordens os maus padres. Isso produziu uma polvorosa.

Ora, tudo isso Dom Vital fez baseando-se em um breve de Pio IX, e havia um velho tratado entre a Casa Real de Portugal e o Vaticano pelo qual, segundo a interpretação do Governo, os decretos papais não podiam ser aplicados sem a autorização do Imperador. O Vaticano negava isso.

Os opositores de Dom Vital recorreram ao Imperador alegando esse tratado. Dom Pedro II enviou, então, o seguinte recado a Dom Vital: “Eu mando prendê-lo e trazê-lo para o Rio de Janeiro para ser julgado, se Vossa Excelência não revogar as medidas tomadas. Ao que ele respondeu: “Então venham me prender, porque é inútil, eu não mudo”.

E o Imperador decretou a prisão. No dia estipulado para a execução do mandato, o chefe da Polícia de Recife foi ao Palácio da Soledade onde, na hora marcada, estava Dom Vital com mitra, báculo, vestido de grande cerimônia e cercado com as principais figuras de seu clero. Dirigindo-se ao chefe da Polícia, disse:

— O senhor veio me prender? Prenda-me!

O chefe da Polícia não esperava aquela cena… Ficou sem jeito e declarou:

— Vossa Excelência está preso.

— Assim não – retrucou Dom Vital –, é preciso que o senhor faça violência sobre mim.

— Eu não farei violência sobre o senhor.

— Se o senhor não fizer, não me entrego à prisão, porque quero que conste ter o Governo imperial exercido violência sobre mim.

— Mas que violência?

— Ponha a mão sobre o meu ombro e diga que eu estou preso. Assim entenderei que o senhor me ameaçou de força física e me entregarei.

Ele pôs a mão sobre o ombro do bispo e disse:

— Vossa Excelência está preso.

— Está bem, vou a pé até o cárcere.

Ora, isso era impossível. Levar como prisioneiro um bispo com mitra, báculo e todo paramentado, a pé para a cadeia, sairia uma arrelia popular que iria longe…

Diz-lhe o chefe da Polícia:

— Vossa Excelência é prisioneiro, quem manda sou eu! Está preparado um carro para levá-lo à prisão, onde deverá esperar o próximo navio que venha da Europa para levar Vossa Excelência para o Rio.

— Está bem. Agora entro no carro como prisioneiro.

Entrou e foi conduzido à prisão. Depois de dois ou três dias, passou um navio por Recife que o levou para o Rio de Janeiro.

Chegada ao Rio de Janeiro

Por uma tradição pitoresca e uma contradição cruel, Dom Vital viajou em um navio no qual tremulava no alto do mastro a bandeira do Império brasileiro, porque a Igreja estava unida ao Estado e o bispo era não só um alto dignatário eclesiástico, mas também do Estado. Entretanto, o dignatário que lá viajava estava preso. De maneira que nos vários portos onde o navio parava ao longo do extenso percurso, o ilustre viajante permanecia a bordo, sob vigilância, impedido de desembarcar.

Assim chegou Dom Vital ao Rio de Janeiro, onde uma prova particularmente cruel o aguardava. O Bispo do Rio de Janeiro naquele tempo era Dom Pedro Maria de Lacerda, homem mole, amigo de todas as composições e de todos os arranjos, única pessoa no Império que conseguia ter medo de Dom Pedro II, o mais patriarcal e bonachão dos imperadores. Dom Lacerda não se aguentava de medo ao ver seu colega, Dom Vital, expor a Igreja Católica aos riscos os quais ele imaginava que corria.

O Visconde do Rio Branco, pai do famoso Barão do Rio Branco, era o Presidente do Conselho dos Ministros. A ele cabia, juntamente com o Conselheiro João Alfredo, Ministro do Interior, tornar efetivo o mandato imperial de prisão de Dom Vital.

O Barão do Rio Branco, conhecedor exímio das fronteiras do Brasil…

Uma vez mencionado o Barão do Rio Branco, abro um parêntesis na história de Dom Vital, adianto-me no tempo e entro na época da República Velha para narrar um episódio pitoresco.

O Brasil, país de uma extensão enorme, estava com quase todas suas fronteiras indefinidas, porque não interessava à antiga colônia portuguesa fazer brigas por causa de limites de terras onde não se poderia chegar. A linha fronteiriça passava quase toda ela por terras incultas e inabitadas. Então, que interesse havia em discutir limites? Porém, já no tempo da República era de se prever o momento em que essas terras interessariam. Então, tornava-se necessário um homem que conhecesse, palmo a palmo, todo o traçado da linha do Tratado de Tordesilhas.

Espanha e Portugal tinham uma dúvida a respeito do interior do continente, e para evitar uma guerra entre ambos os países, recorreram à arbitragem do Papa Alexandre VI. Ele traçou uma linha perpendicular a partir de determinados pontos, e essa divisão foi aceita pelos dois países ibéricos no famoso Tratado das Tordesilhas. Naturalmente, foi um dos elementos para determinar, mais tarde, os limites entre as antigas colônias tornadas nações independentes.

O Barão do Rio Branco era cônsul, o que, naquele tempo, correspondia a um corte na carreira diplomática, pois o cônsul só tratava de questões comerciais e os diplomatas dos assuntos políticos. O diplomata era embaixador, usava um uniforme brilhante, com alamares de ouro, chapéu de dois bicos com pluma, espada, morava num palácio, era cercado de pompa. O mesmo não se dava com um cônsul.

Ora, o Barão do Rio Branco tinha se embarafustado por essas questões de limites completamente, numa época em que ninguém se interessava por isso. Ele era um leão na matéria, possuía cópias dos tratados e toda a documentação.

…é nomeado Ministro do Exterior

Quando se apresentou a necessidade de fazer a delimitação do nosso território, apelou-se para ele que foi nomeado, logo de uma vez, Ministro do Exterior, por cima de todos os diplomatas.

Entretanto, na hora de ser nomeado Ministro do Exterior, apareceu uma dificuldade: ele usava o título de barão, e a República não reconhecia títulos de nobreza. Portanto, nos decretos por ele outorgados seria obrigado a assinar José Maria da Silva Paranhos Júnior. Não podia utilizar o título de Barão do Rio Branco.

Vejam como os tempos eram outros… O Presidente da República ia elevar esse homem da condição de cônsul para a de ministro, e uma brilhantíssima carreira se abria para ele. Só faltava tomar posse. Então lhe avisaram:

— Vossa Excelência não pode usar o título de Barão do Rio Branco para ser ministro de uma república. A nobreza foi extinta e a República não reconhece barões.

Ele disse:

— Está bem, então desisto do meu título de ministro. Arranjem essas fronteiras como entenderem. Eu não aceito.

Estava posta uma incompatibilidade. Mas na terra do “jeitinho” haveria de aparecer um meio de resolver esse impasse. E o “jeitinho” foi este: ele assinava “Rio Branco”, mas não “Barão”.

Assim, todos os decretos promulgados por ele vinham assinados: “Rio Branco”. Ora, logicamente ele não tinha o direito de chamar-se “Rio Branco”, pois seu nome era José Maria da Silva Paranhos Júnior. “Rio Branco” correspondia ao extinto título de nobreza. Pois bem, todo mundo fingiu que estava muito bem e tocou-se a vida para a frente.

Ele era um técnico exímio em matéria de Geografia, conhecia os limites do Brasil perfeitamente. Neste ponto era um gênio. Para traçar uma fronteira é preciso conhecer os mínimos acidentes geográficos: uma montanhazinha, um regatinho, um lago, um pântano, nem sei o quê… Ele não só conhecia isso, mas negociava muito bem. Resultado: ele obteve para nós os imensos limites de nossas fronteiras.

O Bispo de Olinda e Recife é encarcerado na Ilha das Cobras

Voltando ao Brasil Império: Dom Vital desembarcou no Rio de Janeiro, onde, por ordem do Visconde do Rio Branco e do Conselheiro João Alfredo, em cumprimento do mandato do Imperador, foi enviado para a cadeia.

Com Dom Pedro Maria de Lacerda apavorado, uma parte do clero brasileiro contrário a Dom Vital e a opinião pública brasileira mais ou menos sem entender o que estava se passando, pasma de ver um bispo preso, o Rio de Janeiro inteiro assistiu, apaixonado, os debates, que tiveram lugar no Supremo Tribunal e foram muito teatrais, à maneira do século XIX.

Assim como o século XX, na sua primeira metade, foi o século do cinema, e na segunda metade o da televisão, o século XIX foi o do teatro. A Europa e o mundo se encheram de teatros, de companhias ambulantes de atores que visitavam todos os países.

Dom Vital era bem moço naquele tempo, creio que ainda não tinha 30 anos, alto, tez muito alva, barba longa, sobrancelhas espessas, trajando o burel franciscano. Ele entrou na sala escoltado pela polícia e dirigiu-se para o banco dos réus. Um ministro do Supremo Tribunal se levantou, pegou sua própria poltrona, foi até o banco dos réus e disse: “Senhor Bispo, vossa Excelência merece o lugar de um ministro. Tenha a bondade!”

Naturalmente, aplausos delirantes dos partidários de Dom Vital e vaia dos seus adversários. O ministro pouco ligou, voltou ao seu lugar. Pouco depois veio um funcionário do Tribunal trazendo outra poltrona para o ministro se sentar, e o julgamento começou. Este durou várias sessões nas quais Dom Vital fez uso da palavra para se defender. Quiseram que ele constituísse um advogado, mas ele disse: “Eu não constituo advogado porque não reconheço a este Tribunal o direito de me julgar. Sou Bispo da Igreja Católica e a mim só há um poder que julga na Terra: é o Papa, em Roma. Mais ninguém!”

Afinal o Tribunal condenou Dom Vital a quatro anos de prisão com trabalhos forçados. Contudo, o Imperador sentiu que era demais mantê-lo sob trabalhos forçados, porque se espalhariam por todo o Brasil uma série de gravuras representando o bispo com ferros e enxada nas mãos, vestindo trajes de sentenciado, o que daria a Dom Vital um redobrado prestígio de mártir. Então o monarca fez um decreto dando-lhe indulto quanto aos trabalhos forçados, mas obrigando-o à pena de prisão.

Uma carta de Pio IX

A partir daquele momento começou a vir gente do Brasil inteiro para visitar e venerar Dom Vital na prisão. Vinham pessoas de categoria do interior do Estado do Rio de Janeiro – fazendeiros, políticos –, mas também pessoas simples de todo o País, que viajavam a cavalo, em liteira ou banguê.

A liteira era um meio de transporte onde a pessoa viajava sentada numa cadeira colocada dentro de uma cabinezinha carregada por escravos. O banguê era mais cômodo: uma rede presa a dois paus com dois escravos levando aos ombros e o dono deitado nela.

Uma viagem dessas demorava vários dias e, por vezes, representava risco de morte. Tive ocasião de ver o testamento da famosa Marquesa de Santos, dispondo de todos os bens e pedindo Missas por sua alma, no qual ela declarava que viajaria para o Rio de Janeiro por mar e que, à vista do perigo considerável dessa viagem, precisava fazer o seu testamento.

Apesar disso, foi gente em quantidade de São Paulo e dos mais longínquos confins do Brasil, chegava ao ancoradouro do Rio de Janeiro, tomava barquinhos fretados para levar os peregrinos até a Ilha das Cobras, só para ver Dom Vital, receber dele uma bênção e depois voltar.

Até então, para o bispo prisioneiro era apenas um crescimento de prestígio. Entretanto, certo dia aparece Dom Pedro Maria de Lacerda acompanhado do Internúncio, aporta o barquinho, descem e pedem para falar com Dom Vital. Naturalmente, são recebidos, sentam-se e aí começa o martírio de Dom Vital.

— Tenho uma carta do Santo Padre Pio IX para Vossa Excelência – diz o Internúncio.

Dom Vital sentiu que vinha um golpe. Ele, que lutara pelo Papado até o último ponto, levava um golpe do próprio Papa. Não podia ser mais cruel. Era um verdadeiro martírio de alma. Ele respondeu:

— Pois não, desejo ver.

Um dos dois puxou a carta e lhe entregou. Ele abriu, leu, e viu tratar-se de uma carta de Pio IX mandada por meio do Secretário de Estado, Cardeal Antonelli, censurando a atitude dele.

Terminada a leitura, Dom Vital dobrou a carta, colocou-a no bolso e ficou quieto. Um dos dois, que conhecia o conteúdo da carta, disse:

— Mas, como? Vossa Excelência não nos comenta nada sobre a carta?

— Comento que a recebi.

— Bom, mas Vossa Excelência não nos dá a carta?

— Não, o destinatário sou eu. Portanto, sou o dono dela. Ela está no meu bolso.

— Mas então, não há comentário a fazer?

— Não. A carta é para mim, não é para Vossa Excelência.

Ao que parece, ele não respondeu a Pio IX. Quando saísse da cadeia, ele iria a Roma se entender com o Papa.

Anistia concedida pela Princesa Isabel

Nesse ínterim o Imperador viaja para a Europa e deixa a Princesa Isabel como Regente do Império. Ela era a primogênita, e o Imperador não teve filhos homens. Logo, se ele morresse, a Imperatriz seria a Princesa Isabel. Naturalmente, ela ficava na regência do Império, como herdeira do trono. Sendo muitíssimo católica, uma das providências que ela teve mais empenho em tomar, na ausência do pai, foi anistiar Dom Vital.

Uma vez libertado, Dom Vital voltou para Recife onde sua absolvição causou uma festa geral, sendo ele recebido apoteoticamente pelo povo. E foi para o Palácio da Soledade. Lindo título para um palácio de bispo; lembra a soledade de Nossa Senhora, ou seja, o estado em que Ela ficou só, no período entre a Morte e a Ressurreição de Nosso Senhor. Então, Palácio da Soledade eu acho um nome imponente, lindíssimo.

O Vigário Geral da Diocese tinha mandado pintar todo o palácio por fora e por dentro, e Dom Vital foi recebido com festas e permaneceu lá. Mas depois de ter passado algum tempo, ele declarou que ia a Roma para dar satisfações a Pio IX. Ele queria conversar sobre a carta, levava a missiva consigo.

Em Lourdes, uma misteriosa voz infantil anuncia a vitória

Ele partiu para Roma e foi recebido por Pio IX com frieza. O Papa comunicou-lhe que seria processado canonicamente e estudariam se ele estava ou não com a razão.

De fato, o processo começou e ele compareceu às Congregações romanas competentes para prestar depoimento e depois viajou para Lourdes, onde estava começando o auge das curas milagrosas. Ali ele almoçou e foi fazer uma sesta, tendo um desses sonos em que as preocupações esvoaçam em torno da pessoa como morcegos. De repente, Dom Vital ouve uma voz de criança, que parecia vir do lado de fora do hotel, dizer: “Dom Vital, o processo está julgado, Vossa Excelência ganhou”.

Ele se impressionou com aquilo, julgando que talvez fosse uma graça de Nossa Senhora, porque uma voz vinda da rua dizer-lhe isso em português, naquele tempo em que os turistas eram muito mais raros do que hoje, as viagens caras, difíceis, era uma coisa muito singular. Ele ficou impressionado e, algum tempo depois, recebeu um telegrama do representante dos capuchinhos em Roma, confirmando: “Seu processo está ganho.”

Esse capuchinho escreveu a Dom Vital contando que a comissão de cardeais que devia julgar o caso dele permaneceu numa sala, à espera da hora marcada para o início do julgamento. Ali ele esteve com todos os cardeais antes de começar a reunião e, como representante da Ordem dos Capuchinhos, falava a favor de Dom Vital. Mas notou que todos os cardeais estavam contra.

Quando eles se trancaram no recinto onde deveriam deliberar sobre o assunto, o capuchinho ficou do lado de fora e já considerava o caso perdido. Não se sabe o que aconteceu, mas quando eles abriram a sala, estava pronto o decreto considerando Dom Vital inocente. Foi para ele uma vitória brilhantíssima!

Pintam com tinta tóxica o quarto em que Dom Vital dormia

Entretanto, outra provação se delineava no horizonte. Um padre, parente meu muito chegado, pernambucano de Goiana, e que era cônego, conhecido como Cônego Luís Cavalcanti, contou-me que ouviu isso do próprio secretário de Dom Vital, que viajava sempre com o Bispo de Olinda. Dizia este sacerdote brasileiro que Dom Vital era um fisionomista extraordinário e, tendo visto uma fisionomia, não esquecia mais. Em certo momento, ele disse para o secretário:

— O senhor preste atenção: em todos os lugares aonde eu vou aparece sempre o mesmo homem, cuidadosamente disfarçado, me acompanhando, e sempre arranja um jeito de me saudar, fazendo-se de muito católico, querendo sempre saber para onde vou.

Quando o fato se dava, depois de o homem ir embora, Dom Vital dizia para o secretário:

— O senhor reconhece?

O secretário afirmava que algumas vezes o homem estava tão bem disfarçado que ele por si não reconheceria, mas Dom Vital dizendo quem era, ele percebia. Outras vezes o secretário o reconhecia também. Dom Vital tratava o tal homem sempre com muita polidez.

Dom Vital adoece de repente e começa a cuspir sangue junto com matéria orgânica preta, que parecia pedaços do pulmão. Chamaram os melhores médicos da França e todos diziam não ser tuberculose, mas não sabiam qual era a doença. Como não existia ainda a radiografia, eles só podiam diagnosticar por auscultação, e esta não indicava nada que ajudasse no diagnóstico. Para resumir, Dom Vital morreu.

Houve naquela época, em Portugal, a morte de vários membros da Família Real portuguesa que atrapalhavam uma certa sucessão ao trono, e ninguém sabia do que morriam. Investigações feitas neste século provaram que na tinta utilizada para pintar as paredes dos quartos onde eles moravam era introduzida uma substância tóxica, que criava nos pulmões um processo de desagregação o qual levava à morte. Ao ser examinada a tinta do quarto de dormir de Dom Vital, foi detectada a mesma substância tóxica. Compreende-se, então, por que Dom Vital morreu.                v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 30/11/1985 e 7/12/1985)

Revista Dr Plinio 255 (Junho de 2019)

 

Encantos da ordem temporal

A sociedade temporal é o ambiente próprio ao homem, proporcional à sua natureza e estatura, à qual ele pertence e constitui o tema comum de suas cogitações. Contudo, a esse homem posto no âmbito temporal, por uma misericórdia insondável Deus concedeu a riqueza de alma que o torna capaz de, a partir de observações do seu dia-a-dia, elevar-se à ordem espiritual que ilumina e empresta sentido à sua existência neste mundo.

Desse modo, continuamente, tudo que nos cerca na civilização temporal, quando bem ordenado, é para nós imagem de Deus. E se as aceitamos como tais, conformamos nossa alma ao Criador, nos deixamos influenciar beneficamente pelo sobrenatural, somos conduzidos a tomar uma posição religiosa diante dos valores temporais, a relacioná-los com os dados recebidos no catecismo, com o que aprendemos de doutrina católica, etc.

Assim, nossa missão consiste em termos um autêntico enlevo pela ordem temporal nas suas variadas facetas, enquanto colocando em movimento os mais altos princípios da vida de pensamento de um homem e, pois, da vida espiritual. Donde, então, haver no âmbito terreno uma beleza de ser, um esplendor de relações e de ordenação que devemos aprender a contemplar.

Vivendo na ordem temporal, nela não estamos postos apenas nem sobretudo para fazer, produzir ou ganhar, mas para nos portarmos diante da realidade que nos cerca como o Evangelho dizia de Nossa Senhora: guardando todas as coisas e as conferindo em nosso coração. “No coração”, isto é, no pensamento, na mente.

Compreenderam-no bem nossos maiores, aqueles que edificaram séculos de civilização cristã. Por isso mesmo, ainda hoje acariciam nossos olhos e corações tantos e tão encantadores aspectos de antigas cidades do Velho Continente. Heranças de épocas em que essas verdades se achavam mais vincadas no espírito humano. De tempos em que, por exemplo, a produção econômica e comercial ainda não estava envolvida pelas influências materialistas contemporâneas, e se fazia num ambiente de calma, de pensamento e de fino gosto. Questão de mentalidade: segundo a concepção espiritualista, o melhor modo de agir humano se faz com a mente, e por isto a produção econômica dá o melhor de si, como qualidade e até como quantidade, quando feita na calma sem ócio e no recolhimento meditativo…(1)

Quer dizer, se soubermos cultivar, antes de tudo, esse lado contemplativo, seremos capazes de elaborar coisas belas e até belíssimas, como seremos capazes de nos elevar facilmente do campo temporal para o espiritual.

Houve um Rei de França que, tocado pela excelência e beleza do trabalho realizado pelos vidraceiros da Lorena, outorgou-lhes a condição de gentis-homens. De maneira que estes mantinham sua vida operária, semeada de pensamentos nobiliárquicos que, vez por outra, transpunham seu padrão quotidiano para um estilo superior. Eram artesãos, imersos na faina manual com uma pitada de nobreza posta como minúscula coroa sobre a cabeça.

Analogamente, esta seria a condição do homem católico leigo: elemento da sociedade temporal, mas dignificado como gentil-homem no Reino de Deus, na sociedade espiritual, porque foi batizado e traz emoldurada a fronte por um diadema que é sua condição de membro da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

Será um vidraceiro, sim, mas com quanto desembaraço esse vidraceiro se movimenta na corte do Rei e se comporta como fidalgo, pois tem a alma posta no melhor e no mais alto. 

 

1) Cf. Catolicismo, agosto de 1958

O PODER DA FÉ E DA DEVOÇÃO

Exposta aos luminosos ósculos do sol, envolta nas sombras de uma nublada atmosfera, ou emergindo numa certa penumbra prateada romana (que é preciso conhecer para compreender toda a sua beleza), a grande cúpula da Basílica de São Pedro se destaca no cenário da Cidade Eterna. No alto, uma espécie de pequeno mirante se adelgaça até se cobrir de uma esfera dourada, tendo por arremate o símbolo de nossa Redenção. É a glorificação festiva da Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.

O “Cupolone” (assim a chamam em italiano) é como que separado em gomos por largas estrias de pedra, todas elas de uma simetria perfeita, cobertas de uma camada azulada, tendente ao prateado e meio propensa a refletir o céu.

Imenso, sob ele se poderia construir um edifício com várias dezenas de andares. Tal é o tamanho interno da Igreja de São Pedro.

À esquerda e à direita da grande cúpula erguem-se duas menores, na aparência sem muita significação. Entretanto, quando queremos compreender a razão de ser de algo ou de alguém, não  devemos considerar apenas a impressão que causa por sua atuação e presença. Devemos igualmente imaginar como seriam as coisas se ele estivesse ausente ou se não existisse. Essa é a pergunta  que nos importa fazer, diante dessas duas cúpulas pequenas, diminutas imitações do “Cupolone”. Poderiam alegar que a função estética delas não passa de mero enfeite. Eu digo: são enfeites, mas por que possuem essa capacidade de adornar?

Imaginemos que essas cúpulas menores não existissem. Teríamos logo a impressão de que o “Cupolone” esmaga a igreja. Portanto, para a ótica humana, elas como que suportam psicologicamente o  peso da cúpula gigantesca, e ajudam a tornar leve algo que, sem elas, tornar-se-ia por demais pesado.

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Abaixo da grande cúpula, surge o frontispício da Basílica, assinalado por vigorosas colunas. Nele encontra-se a “loggia”, isto é, o balcão de onde os papas costumam abençoar o povo reunido na Praça de São Pedro. Ato que se reveste de brilho e emoção particulares quando se dá logo após a eleição do Sumo Pontífice. Segundo a sapiencial tradição da Igreja, o Conclave se realiza no palácio o Vaticano, a portas fechadas. Os fiéis, conhecendo a hora em que os Cardeais se reúnem para as votações, dirigem-se para a praça e ali permanecem à espera do resultado. De uma pequena chaminé evola-se uma fumaça preta, quando o novo Papa ainda não foi eleito. O povo então se dispersa, desapontado e ansioso. Quando sai branca, uma estrondosa ovação ressoa pelos  ares: a Igreja já não está mais órfã.

Após os rituais que se seguem a uma eleição pontifícia — como a escolha do nome adotado pelo sucessor de Pedro e a obediência que lhe é prestada pelos cardeais presentes —, o Papa se dirige para esse balcão. As portas se abrem ante o entusiasmo indescritível do povo: este conhecer á, finalmente, a fisionomia do atual Pai da Cristandade. Os carrilhões da Basílica começam a tocar,  acompanhados pouco a pouco pelos sinos de todas as igrejas de Roma. É a glória de São Pedro que se faz ouvir em toda a Cidade Eterna. Então o Sumo Pontífice dá a primeira bênção “urbi et orbi” —  para Roma e para o mundo inteiro.

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A “loggia” e o frontispício triangular, testemunhas de toda essa glória do Papado, olham para a praça, no meio da qual se levanta um enorme obelisco. É um tipo de pedra coberta de inscrições egípcias, que se encontrava originariamente na terra dos Faraós. Em monumentos semelhantes costumavam esses soberanos deixar gravados os fatos marcantes de seu reinado e outros acontecimentos do gênero.

No alto do obelisco foi colocada uma cruz, que nos faz recordar, emocionados, o lema dos cartuxos: “Stat Crux dum volvitur orbis”— enquanto o mundo todo gira, a Cruz permanece de pé.

É muito interessante observar que a arquitetura da Praça de São Pedro foi concebida de maneira a que ela representasse a forma da cabeça de uma chave, que toma contornos a partir das colunatas de Berninni, dispostas em semi-círculo. Habitualmente, no dia de “Corpus Christi”, o Papa realiza aí a procissão com o Santíssimo Sacramento, acompanhada por uma multidão de fiéis, sob o dobrar dos sinos da Basílica e das igrejas romanas.

O corpo da chave é desenhado por uma avenida de linha retíssima — a Via della Conciliazione — que chega até as margens do rio Tibre. Assim ficam lembradas as chaves de São Pedro, a dos Céus e a  da Terra, quer dizer, o mando do reino celestial e, indiretamente, do terreno.

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Entre todos os eloquentes aspectos que enriquecem a Basílica do Vaticano, entre a fabulosa pluralidade das cores de seus mármores, o reluzimento de seus ouros e a beleza extraordinária de suas pratas, um objeto sobressai por seu maravilhoso simbolismo: é a famosa imagem de bronze de São Pedro. Antiquíssima, datada ainda do tempo anterior à Idade Média, e cujos pés os católicos do  undo inteiro vêm oscular. De tantos beijos depositados ao longo dos séculos, ficaram os dedos do pé completamente sem saliência. É o poder do amor e da dedicação sobre o poder do bronze. Os lábios dos fiéis, penetrados pela doçura da Fé, corroeram a dureza do metal…

Revista Dr Plinio 35 (Junho de 2001)

Huysmans Apelo à conversão

Ainda muito moço, Dr. Plinio despontara como notável orientador da juventude católica. Abordando com coragem temas às vezes espinhosos e polêmicos, ele utilizava as páginas do “Legionário” para proporcionar uma formação adequada aos jovens. Exemplo disso são os dois artigos publicados em janeiro de 1932, nos quais comenta as obras de um grande escritor católico francês.

 

A literatura de nossos dias, acorrentada à sensualidade, está em franca crise de assuntos. Esta crise é, mesmo, o mais sério problema com que têm de lutar todos os literatos hodiernos. O cinema, o romance, a novela, a poesia, tudo enfim, está assolado por uma tremenda crise de temas. Os enredos giram eternamente em torno de casos amorosos.

Ora, os aspectos amorosos da vida, por  mais que nos modernizemos, só podem dar lugar a quatro combinações: ou são duas pessoas casadas, que abandonam seus respectivos lares para constituírem juntas um terceiro sobre os escombros da felicidade de seus primeiros cônjuges; ou é uma pessoa casada, que se apaixona por uma solteira, culminando a paixão numa ruptura dos laços conjugais; ou a ruptura não se dá,  mas morre oportunamente o cônjuge embaraçoso, de sorte que o viúvo ou viúva pode, mal fechado o caixão do defunto, atirar-se nos braços da outra; ou são duas pessoas solteiras que se tributam  mutuamente um amor combatido barbaramente pelo “sogro” implacável.

Estes casos comportam evidentemente algumas variantes. Ou o crime corta o nó górdio de uma vida supérflua, que ameaçava durar demais; ou o adultério brutal põe termo a uma situação incômoda; ou o cônjuge supérfluo se suicida discretamente, para deixar o lugar a seu sucessor mais feliz. Evidentemente, porém, estas combinações também são limitadas e se esgotam ao cabo de  algum tempo. De tal sorte que, quem se entrega assiduamente à leitura de romance durante cinco anos, fica conhecedor de todo o estoque amoroso de nossas livrarias. E, com um pouco de  argúcia, poderá ver, logo ao ler as primeiras páginas, qual o desfecho da história, desfecho este que depende das inclinações do autor, e dos sentimentos e posição que atribui aos personagens do  romance.

Um autor que combata este círculo vicioso, para ingressar em um campo novo, é, evidentemente, um Cristóvão Colombo do espírito, que abre para a inteligência continentes novos, mundos inexplorados. É o que se dá com Huysmans, um dos mais estranhos e admiráveis escritores do século passado (século XIX). Seu mérito foi o de ter sabido confeccionar as mais espantosas obras literárias que se possam imaginar, abstraindo totalmente de complicações amorosas.

J. K. Huysmans, literato naturalista, residente em Paris, encontrou-se a certa altura de sua vida mergulhado em tremenda crise intelectual. Suficientemente lúcido para abominar seu século, mas  destituído de qualquer amparo sentimental em alguma amizade sólida ou afeição de família profunda, Huysmans, ao mesmo tempo que se isolava cada vez mais do convívio de todos, fazia dentro de si um vácuo tremendo.

Tendo abandonado todos os seus amigos, destruído todas as suas antigas ilusões, perdido todos os seus parentes, vivia isolado em Paris, em pequeno quarto, onde passava dias infindáveis em companhia de um gato, a maldizer indefinidamente o século XIX. Foi então que conheceu um pseudo-médico, des Hermies, fidalgo “déclassé”, que frequentava rodas espíritas, de mágicos, astrólogos, etc. no “bas fonds” canceroso que existe em Paris. A princípio, seduziu-o no amigo o cunho original e misterioso de sua vida. Esta sedução se acentuava à medida em que ia privando com as pessoas mais chegadas a des Hermies, todas elas atacadas de um misticismo acatólico e doentio, que exalava os miasmas da mais absoluta putrefação espiritual. Levado por suas inclinações de  diletante, Huysmans não recuou à vista de tal ambiente.

Sobreveio-lhe, nessa ocasião, em condições misteriosas, um convite para que assistisse a uma “missa negra”, celebrada em honra do demônio por um sacerdote privado de ordens sacras. Excitada  fortemente sua curiosidade, aceita o convite e é conduzido a um lugar estranho, em que se amontoam mulheres e homens carregados com o peso de todos os vícios e todas as baixezas. Sobre o  altar, um Cristo rindo, num “rictus” ignóbil, ultrajante.

Toca uma sineta, entra o sacerdote. Começa a missa, entre contorções dos presentes. Quando chega no momento da consagração, o sacerdote pronuncia as palavras sacramentais banhado em suor, a voz repassada de ódio, o olhar carregado de estranhos eflúvios diabólicos. Distribui a Sagrada Eucaristia aos presentes, que a profanam abominavelmente.

Gargalhadas satânicas, blasfêmias tremendas, insultos implacáveis, nada se poupa ao Corpo adorável de Nosso Senhor.

Manifestações evidentemente diabólicas irrompem por todos os lados. É o triunfo de Satanás, glorificado pelos assistentes num delírio de abjeção e de infâmia. Enojado, ferido nos poucos sentimentos que ainda lhe restavam, Huysmans se esgueira pela porta e foge espavorido. Desde então, uma grande preocupação assaltou sua inteligência e acabou trazendo-o submisso aos pés da Igreja. Vira o demônio, vira o espírito das trevas urdindo contra a Sagrada Eucaristia as mais tremendas infâmias.

Ora, — refletia ele —, se o demônio, de cuja existência já não posso duvidar, odeia a hóstia consagrada pelos sacerdotes católicos, é porque realmente ela é o Corpo de Cristo. Logo, a Igreja Católica é verdadeira.

Daí uma conversão dolorosa, penosa, que se vai arrastando através de inúmeras lutas, de combates sem fim, travados contra a carne rebelde às injunções da vontade, e o espírito rebelde às exigências da Fé. Quando entra em uma igreja, extasia-se diante das belezas da liturgia católica. Sua alma se eleva até os pés de Deus, ao som do órgão, no desenrolar grave e compassado da  música sacra. Poucas almas sentiram como a sua as belezas do cantochão. Sua descrição do “De Profundis”, do “Miserere” e da Missa de defuntos são as mais belas páginas que tenha lido em minha vida.

Frequentando assiduamente as igrejas de Paris, a todas surpreende nas suas horas de mais intensa sentimentalidade.

Ora, é Notre Dame de Paris, detendo nas suas ogivas seculares uns restos de claridade coada através dos vitrais, enquanto some no céu, lentamente, tristemente, um sol crepuscular. Ora é uma igreja operária, na qual observa detidamente as mulheres paupérrimas, os mendigos, os operários exaustos, os miseráveis dos arrabaldes de Paris, que vêm dirigir a Deus, depois de um dia de intenso trabalho, preces infindáveis, enquanto, de dentro do tabernáculo, o Senhor invisível os consola repetindo mudamente o Sermão da Montanha: “Bem-aventurados os que choram, os que sofrem, os que têm sede de justiça”…

No entanto, Huysmans ainda não ousou aproximar-se dos sacramentos. Recai no pecado com tal facilidade que nem se atreve a aproximar-se do tremendo tribunal da Penitência.

Resolve, então, ir fazer um retiro numa Trapa. Começa aí a parte culminante de seu segundo livro, “En Route” (“A caminho”), de que me ocuparei no próximo artigo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Transcrito do “Legionário”, nº 93, 31-1-32. O segundo artigo da série será reproduzido no próximo número.)

Revista Dr Plinio 39 (Junho 2001)