Moral católica, fundamento da Civilização Cristã

A Europa foi o continente que, em tempos passados, correspondeu à pregação da Igreja Católica; continente que durante séculos permaneceu substancialmente fiel à Esposa de Cristo. Daí partiu a instauração da Civilização Cristã.

 

Por meio de seus Sacramentos, a Igreja dá forças para que a verdadeira Moral seja praticada pelos homens. Ora, é só por meio da verdadeira Moral que os homens conhecem e praticam a verdadeira ordem, porque a Moral não é senão a ordem do procedimento dos homens. Assim, em conclusão, só há autêntica e perfeita ordem entre os homens onde existe a verdadeira Igreja.

Igreja Católica, o fundamento da ordem

Se a Igreja ensina e dá forças para cumprir a Moral, ela é o verdadeiro fundamento da ordem. Quando os homens seguem a Moral da Igreja, a verdadeira ordem está adotada, no que ela tem de mais profundo.

E acontece com a ordem o que sucede com o corpo humano. Se eu estiver, por exemplo, com meu braço em ordem, só poderei esperar coisas boas: os movimentos necessários, a reação, os serviços, a defesa que ele me proporcionará. Se algo do braço está destroncado, o resto é dor, miséria, inflamação, perigo de gangrena, atrapalhações várias.

Assim também ocorre com a Civilização: se ela está baseada na Moral católica, inclusive nos seus pormenores, não há bem que não se possa esperar; mas quando ela se afasta da Igreja, ainda que seja em pequenas coisas de certa importância, não há mal, tristeza, miséria que não se possa temer.

Nascimento de um novo mundo

Ora, São Bento, por meio de seus monges, foi por excelência o missionário que trouxe à Civilização Católica os germanos e deu impulso ao movimento de evangelização que conquistou todas as nações escandinavas.

Por outro lado, São Bento, através dos monges beneditinos, instituiu um tecido de Ordens religiosas que espalharam por toda a Europa essa moralidade e esse modo de ver quando o continente europeu estava se reconstituindo; era um mundo novo que nascia depois das invasões.

Então o ideal da contemplação ficou profundamente presente nessa fecundidade do apostolado de conversão da Europa.

Portanto, a ação da graça penetrou nas raízes dessa árvore, e o resultado foi essa coisa maravilhosa: a Europa, que se tornou durante muito tempo a própria realização dos ideais da Contra-Revolução.

É para a destruição dessa Europa que a Revolução se levantou. E é para essa Europa que os nossos olhos se voltam nostálgicos, admirativos, cheios de afeto, precisamente porque aí estão os restos sagrados da Contra-Revolução.

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 10/2/1965)

Revista Dr Plinio 171 (Junho de 2012)

PALCO DE GLÓRIAS

Do cimo do monte que lhe serve de pedestal, ele contempla, sobranceiro e elegante, a aldeia que o circunda, o vale e as vastidões de terra que se estendem à sua frente. Suas torres de variegadas proporções, em gracioso movimento para o céu, conferem ao seu todo o signo da leveza, enquanto seus vigorosos panos de muro, maciços, apenas atenuados por janelas e arcos ogivais, dão-lhe a nota da majestade grandiosa e forte.

Deixa-se ver entre folhagens ou brandamente refletido no espelho das águas que correm um pouco abaixo de seus alicerces. Numa e noutra visão, aparece recuado nos tempos de heroicas epopeias, de lutas e de glórias em que cravou raízes naquela paisagem espanhola. Apesar de reconstituído em sua maior parte no século XIX, o lindo Castelo de Segóvia conserva ainda a atmosfera dos seus dias de batalhas e triunfos. Ao visitá-lo, sem muito esforço nossa imaginação viaja pela história, e nos achamos na presença de um rei santo, São Fernando III, que o utilizou como uma espécie de posto avançado em seus vitoriosos combates.

Podemos figurá-lo ali, na sala do trono, ou na sala de estar, — com suas paredes de pedras rudes e tetos ricamente lavorados — séria, solene, bonita, onde o soberano vivia na intimidade com a rainha. A distração mais repousante de ambos era se dirigirem para junto de alguma das largas aberturas em ogiva, através das quais perlustravam os campos e as pradarias que se desdobravam além. Então, o casal régio sentado em cadeiras de madeira com espaldar alto, com almofadas de um conforto discutível, olhava para aquela imensidão na qual nada se erguia, a não ser uma pequena fortificação de Templários, distante algumas centenas de metros do castelo. Observar a movimentação dos cavaleiros que entravam e saíam de seu reduto, constituía, assim, um motivo de entretenimento para o rei e sua esposa.

São Fernando, porém, sabia que os momentos de lazer não deviam ser o preponderante da existência para a qual fora suscitado por Deus. Sua missão providencial exigia dele a disposição para o sacrifício e para a luta. E foi esse mesmo Castelo de Segóvia o palco de um dos episódios mais eloquentes da gesta que o santo monarca empreendeu de forma magnífica.

Ainda hoje é mostrado aos visitantes o lugar em que São Fernando almoçava, quando lhe foi avisado que Sevilha, a metrópole dos invasores, a cidade cuja conquista proporcionaria o êxito em todas as demais batalhas, estava prestes a ceder diante das investidas das tropas espanholas. E o mensageiro lhe dirigiu o apelo: “Vinde, Majestade, auxiliar os vossos, e hoje à noite entrareis em Sevilha!”

Mais não era preciso para aquele coração de herói e de santo. No mesmo instante o Rei interrompeu a refeição, mandou preparar suas armas e seu cavalo, e se dirigiu à brida solta até a cidade sitiada, onde já seus intrépidos soldados empreendiam os assaltos finais. Ao verem o soberano que se aproximava, os inimigos compreenderam que nada mais lhes restava senão se render e entregar a praça. Naquela noite, São Fernando se lembraria das torres e grossas paredes do Castelo de Segóvia sem nostalgias nem tristezas. Ele já dormia em Sevilha, olhando para o próximo campo de batalha. Pois assim fazem os Santos. Não contemporizam, não deixam para daqui a pouco, e, quando é necessário, interrompem a refeição, sem consumi-la até o último bocado, nem beber o último trago de vinho. Se chegou o momento do combate, que venham as armas e o cavalo, façamos uma jaculatória a Nossa Senhora, um Nome do Pai, e corramos… de encontro ao quê?

Ao que poderia ser para São Fernando a morte, ou a vitória e a glória… Pouco lhe importava que fosse a vitória, a glória ou a morte. Importava, sim, que Maria Santíssima triunfasse e que a Espanha novamente Lhe pertencesse.

A História do Universo e sua interpretação doutrinária

Para Dr. Plinio, a formação doutrinária de seus discípulos era de capital importância. Por isso, ele não perdia nenhuma ocasião de aprofundar os mais elevados temas. Assim, na conferência abaixo transcrita, encontraremos uma magistral explicação sobre o que Deus teve em vista com a criação do Universo, bem como dos meios por Ele estabelecidos para o perfeito cumprimento de seus desígnios.

 

Pediram‑me para dar uma aula a respeito da temática do curso para formação de professores de Religião, e me pareceu que seria melhor não propriamente dizer resumidamente aquilo que os senhores devem desenvolver, mas dar a matéria como ela é, para daí tirarem aquilo que convém para os seus alunos.

Porque, evidentemente, nem tudo o que vai ser dito nesta aula convém aos alunos; mas é uma grande vantagem para o professor conhecer além do que ele vai ensinar. Propriamente só se impõe ao prestígio do aluno o professor a respeito do qual o aluno percebe saber muito mais do que ele está ensinando.

A respeito desta temática, nós poderíamos dividir a matéria da seguinte forma:

I – O fim que Deus teve em vista ao criar;

II – Os meios por Ele estabelecidos para que esse fim fosse realizado pelas criaturas;

III – Qual o uso desses meios feito pelas criaturas e em que medida elas se dirigiram para esse fim.

As duas primeiras partes são doutrinárias, a terceira é histórica. Trata-se de uma interpretação doutrinária da História.

Finalidade da criação

O que Deus teve em vista criando?

Como fim último, ao criar, Deus teve em vista a sua própria glória extrínseca.

Em Deus — também no homem — nós podemos distinguir a glória intrínseca da glória extrínseca.

Noções de glória intrínseca e de glória extrínseca

O que é a glória intrínseca? É o esplendor, a manifestação de dentro para fora das qualidades gloriosas de um determinado ser.

Por exemplo, Nosso Senhor Jesus Cristo no alto da Cruz, transformado, segundo diz a Escritura, num leproso, tinha glória intrínseca. Quer dizer, Ele tinha um abismo de méritos, um abismo de virtudes, um abismo de capacidades; mais ainda, algo disso filtrava para fora, apesar de tudo quanto a flagelação e a Paixão introduziram de deformante n’Ele. Os senhores considerem, no Sacro Sudário de Turim, a face de Nosso Senhor depois de ter passado por tudo aquilo, e compreendem que transparecia n’Ele uma glória. Essa glória era a transparência externa de algo interno que residia n’Ele: era a glória intrínseca d’Ele.

A glória extrínseca é a glória que outros dão, que outros reconhecem, que outros tributam.

Por exemplo, Nosso Senhor ao entrar em Jerusalém, aclamado pelos judeus, tinha glória extrínseca e intrínseca, enquanto que Nosso Senhor, no alto da Cruz, tinha apenas a glória intrínseca.

No alto da Cruz a glória extrínseca não Lhe estava sendo dada. Ele tinha a glória, porque tinha o louvor de Nossa Senhora, e o louvor de Nossa Senhora vale insondavelmente mais do que desmerecem as blasfêmias de todos os judeus e de todos os demônios somados; mas exceção feita de Nossa Senhora, e digamos que das santas mulheres, Ele ali não tinha glória extrínseca, todo o mundo estava injuriando a Ele.

Na coluna da flagelação Ele não tinha glória extrínseca. Ninguém, dos que estavam lá assistindo a flagelação, glorificava a Ele.

Essa é a diferença que vai entre a glória extrínseca e a glória intrínseca.

A glória intrínseca é a posse de todas as perfeições. Isso dá ao indivíduo uma glória interna que ninguém pode lhe negar.

A glória extrínseca é o reconhecimento dessas perfeições pelos outros e o louvor que eles dão a essas perfeições.

Uma pessoa pode ter muita glória intrínseca e nenhuma extrínseca. É, por exemplo, o caso de uma pessoa que seja injustamente perseguida.

Glória intrínseca e extrínseca de Deus

A glória intrínseca, Deus a tem infinita, eterna, absoluta e nenhuma criatura pode aumentá-la.

A glória extrínseca — quer dizer, a glória que Lhe vem de fora — as criaturas que Ele criasse Lhe podiam dar: louvando, reconhecendo as qualidades d’Ele, prestando homenagem a Ele, amando-O, servindo-O.

Para isso Ele criou: para sua glória extrínseca.

Meios estabelecidos por Deus para que as criaturas realizassem o fim para o qual foram criadas

A glória extrínseca de Deus provém da excelência das criaturas feitas por Ele; ou seja, da semelhança das criaturas com Ele. Porque tudo o que é excelente é semelhante a Ele, e a semelhança das criaturas com Ele é a glória d’Ele. Nisso está a glória que as criaturas Lhe dão.

Por exemplo, esta água que eu estou despejando aqui e que, por coincidência, é uma água cristalina e transparente, dá glória a Deus porque as suas qualidades têm um vestígio das perfeições divinas. Algo do ser espiritual, no que ele tem de diáfano, no que ele tem de puro, no que ele tem de imaterial, se reflete na água cristalina; há um vestígio da glória de Deus nisso, e a água dá glória a Deus.

Mas os seres inteligentes e dotados de vontade dão glória a Deus, além disso, conhecendo a Deus, amando‑O, com isso tornando suas almas semelhantes a Ele, e servindo‑O. É assim que dão glória extrínseca a Deus.

Um homem não dá uma glória extrínseca a Deus como um boneco. O homem é vivo, é dotado de inteligência, deve querer ser parecido com Deus. Tudo quanto há nele de semelhante a Deus ele deve aprimorar, tudo quanto o poderia levar para longe de Deus ele deve rechaçar; ele deve adorar a Deus, deve servir a Deus, deve louvar, deve dizer a Deus que O ama. É por essa forma que ele tributa glória a Deus.

Porque Deus criou seres diversos, e não apenas um só?

Deus criou. Podia Ele criar uma só criatura para Lhe dar glória? Ou, a criar, teria que criar várias criaturas?

Absolutamente falando, Deus não precisa criar criatura nenhuma, porque Deus não tem necessidade da glória extrínseca que nós lhe damos; ela convém, mas não Lhe é necessária. Mas, a criar, Ele poderia criar uma criatura só? Pode haver uma criatura só que dê suficiente glória extrínseca a Deus?

Esta matéria é muito discutida entre os teólogos. Eu me inclino para a ideia de que nenhuma criatura sozinha, nem mesmo Nossa Senhora em sua indizível perfeição, seria suficiente para dar glória a Deus; e que Deus, a criar, teria que criar várias criaturas, porque Deus é tal que em nenhuma criatura há possibilidade de refletir todas as suas perfeições.

Donde, então, são necessárias muitas criaturas. Quer dizer: a criação necessariamente envolveria muitas criaturas.

O pressuposto que está nessa minha afirmação é que para que a criação dê suficientemente glória a Deus, precisa ser um reflexo amplíssimo d’Ele; não que reflita com toda a propriedade cada um dos atributos d’Ele, mas deve refletir, nas limitações de toda criatura, os atributos d’Ele.

Ora, os atributos d’Ele são tais que uma criatura não os pode conter todos em forma suficiente para refletir.

E então é necessário que haja muitas criaturas.

O conjunto das criaturas forma uma coleção que reflete as perfeições infinitas de Deus

Daí tiramos a conclusão de que toda a criação é uma espécie de coleção, e que Deus criou os seres de maneira que cada ser existente reflita, de um modo inconfundível, um dos atributos d’Ele. De maneira que um atributo d’Ele pode ser refletido por dez milhões de seres, pouco importa; mas cada um reflete, de um modo inconfundível, um aspecto daquele atributo divino.

Por exemplo, o canário reflete certo atributo de Deus; mas imaginemos todos os canários que houve desde o começo do mundo até o fim. Se alguém pudesse considerar a “ordem canária” compreenderia que forma uma coleção em que aquele atributo específico, que o canário apresenta, é desenvolvido e representado de um modo inconfundível por um conjunto enorme de seres, os quais formam uma coleção; que ela, sim, dá o total do quadro desse atributo.

Isso que podemos dizer dos canários, podemos dizer também, por exemplo, dos camarões; nós o podemos dizer de tudo quanto queiram.

Nós o devemos dizer, sobretudo, dos anjos.

A criação angélica foi feita de tal maneira que no seu todo, com as miríades de anjos que há e que são incontáveis, ela dá um quadro total de Deus. E é uma “coleção‑espelho”, em que cada anjo não repete o outro, porque Deus não gagueja.

O homem que tem um defeito de locução, para dizer uma coisa pronuncia duas sílabas, uma das quais é supérflua. Mas Deus não vai, ao fazer o espelho da sua glória, pôr um indivíduo “gago” dentro; quer dizer, um indivíduo que seja um gaguejar, que repita viciosamente o que o outro já diz, o que outro já é.

De maneira que os anjos constituem uma prodigiosa coleção, uma fabulosa coleção, na qual os atributos de Deus estão devidamente espelhados: tronos, dominações, querubins, serafins, potestades, virtudes, simples arcanjos — simples arcanjos!, pobres de nós!, é como quem dissesse: simples imperadores… —, anjos, todos eles são, no total, uma imagem de Deus.

Mas se examinamos as várias ordens angélicas dentro de si, cada uma delas é uma espécie de coleção dentro da coleção; é a representação de um atributo dentro do atributo.

E assim nós poderíamos ir ao infinito, percebendo, então, que a criação angélica não é uma espécie de imensidade dentro da qual nos perdemos, mas é uma imensidade orgânica. São figuras que formam figuras, que formam figuras que formam a Grande Figura. E é a vastidão insondável dos seres celestes criando a imagem perfeita de Deus.

As criaturas refletem “totus sed non totaliter” as perfeições infinitas de Deus

O conjunto da criação não é um reflexo de Deus idêntico a Ele; a criação reflete a Deus “totus sed non totaliter”(1); quer dizer, reflete a Deus no seu vulto geral, mas não possui as perfeições d’Ele, que é uma coisa diferente.

Eu dou um exemplo. Suponhamos um filho sumamente parecido com o pai e que tenha todas as qualidades do pai; reflete o pai, mas não totalmente; porque o filho é da mesma natureza que o pai, ele pode ter os mesmos atributos que o pai, mas não é idêntico ao pai. Assim, nós não refletimos a Deus totalmente, senão nós seríamos deuses.

A criação reflete a Deus como uma figura de espelho reflete a pessoa, para usar um exemplo que não é muito preciso. Quer dizer, o reflexo é apenas uma figura, não é uma pessoa, não tem aquela natureza.

A criação angélica espelhava magnificamente a Deus.

Deus, sendo um abismo infinito de todas as perfeições, por algum lado é sumamente majestoso, mas por outro lado Ele é sumamente gracioso. Há animais que refletem a majestade de Deus, por exemplo, o leão; há animais que refletem algo de indizivelmente gracioso que existe em Deus, por exemplo, o beija‑flor, que já é outro atributo; o trovão reflete, por sua vez, Deus enquanto puniente; o cordeiro reflete Deus enquanto capaz de perdoar, enquanto manso, enquanto pacífico.

Quer dizer, Deus tem um número indizível de atributos, ou seja, de qualidades; cada criatura espelha uma qualidade; o conjunto delas espelha o conjunto das qualidades divinas.

Então no que está a infinitude de Deus? Está em que cada uma dessas perfeições é infinita, ou cada uma dessas qualidades é infinita.

Caso Deus não tivesse criado os homens, Ele receberia uma glória total só dos anjos, como até, a seu modo, Ele recebe dos animais ou das pedras.

A seu modo, cada uma dessas ordens dá uma glória diferente, como dariam várias sinfonias diversas.

A criação é como um conjunto de orquestras que cantam a glória de Deus

Deus ia criar como que várias grandes orquestras diversas: a criação angélica e a criação humana, cada uma cantando as glórias d’Ele a seu modo, cada uma dando a Deus um reflexo total d’Ele; mas também a criação animal, a criação vegetal e a criação mineral, dando, cada uma, reflexos totais d’Ele.

Nós compreendemos, então, para que o homem, o anjo e todos os seres foram criados; compreendemos que a criação realiza sua finalidade cantando a glória de Deus, amando a Deus.

Compreendemos que Deus faz residir a sua glória, não tanto numa só criatura, mas em conjuntos de criaturas, porque o conjunto é melhor do que cada parte.

Então compreendemos a criação do universo.

Estava constituído um todo do qual o Gênesis diz que Deus descansou no sétimo dia, considerando a sua obra. Esse descanso é exatamente a alegria por sentir a criação que Lhe está dando glória, e vendo que cada coisa era boa e o conjunto era ótimo.

É bem a doutrina que estamos dando: o conjunto do universo é magnífico.

O plano doutrinário está tratado.

Continua no próximo número…

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/1/1967)

Revista Dr Plinio 159 (Junho de 2011)

 

1) Todo, mas não totalmente.

 

Procurando imitar as perfeições divinas

Desde a sua infância, Dr. Plinio cultivou um profundo amor às excelsas perfeições do Homem-Deus, almejando o quanto possível refleti-las em sua própria alma. De modo particular, encantava-o a sublime dignidade de Nosso Senhor, à qual desejou imitar para difundir ao seu redor o “bom odor de Cristo”.

 

No tempo em que fiz a Primeira Comunhão e cursava os anos iniciais de colégio, Nosso Senhor era apresentado sempre na plenitude de sua bondade, mas também com majestade e dignidade excelsas. De tal maneira que, tenho a impressão, quem O conhecesse pessoalmente, ao mesmo tempo se derreteria de confiança e se evanesceria de humildade diante da grandeza d’Ele. As imagens, o estilo do culto, o ambiente das igrejas, tudo recendia uma elevação que era a expressão da majestade suprema e incomparável de Jesus. Essa realeza se origina do fato de ser Ele o Homem Deus e, como tal, o Rei de todas as coisas por definição e natureza.

Espelhando-se na dignidade de Jesus

Ora, eu julguei que O imitava, na medida em que toca às meras criaturas, de dois modos. Primeiro, prestando muita atenção e procurando entender a dignidade humana, não com raciocínios filosóficos (os quais não estavam ao alcance de minha jovem idade), mas vendo as pessoas mais especialmente dignas que eu conhecia, analisando a sua superioridade e como se colocavam acima das outras, para o bem delas e o de todas. Em segundo lugar, compreendendo, em conseqüência, o que é ser e como se tornar uma pessoa digna.

Depois, quanto coubesse à minha condição de criança, tentei realizar essa dignidade em mim mesmo. Porque nunca aceitei como válida a teoria — muito difundida no meu tempo de infância, e talvez ainda vigente e requintada nos dias atuais — segundo a qual um menino não possui dignidade nenhuma. Ele é considerado um palhacinho, um bobinho, para divertir os mais velhos e fazer coisas terríveis: quebrar as janelas, praticar toda espécie de turbulências, com o que indica a sua genialidade e o grande homem que ele será no futuro. Isso nunca admiti. Pelo contrário, detestei essa ideia com toda a minha alma.

O menino é uma participação dos seus pais. Ele tem a dignidade inerente a seus maiores, embora posta nas condições da infância. Daí eu sempre cultivar maneiras cerimoniosas, o modo elevado de se exprimir, o observar a castidade (inseparável da dignidade), o prestar homenagens aos mais dignos do que eu, etc. Como também o fazer sentir àqueles que me eram inferiores, os limites, as diferenças, movido pelo senso das proporções da caridade que impregna tudo quanto faz o verdadeiro católico.

Hábito da reflexão e amor às autoridades

Outro elemento característico da dignidade que procurei nutrir em minha alma, para imitar a Nosso Senhor Jesus Cristo, é o hábito e o gosto da reflexão. Sempre me pareceu que a pessoa espontânea, irrefletida, estava a um milímetro do completo ignorante. O indivíduo que mal ouve algo e já se põe a tagarelar, sem nunca ter pensado naquilo, é um asno, pois se orienta apenas pelos seus sentimentos impulsivos. Essa atitude me inspirava não pequeno desdém.

Pelo contrário, aquele que reflete, pesa todas as coisas, entende, considera, forma as suas opiniões, tem uma dignidade especial. E essa dignidade eu procurei, desde os meus primeiros anos, manter em mim, muito ciente de que em Nosso Senhor Jesus Cristo, a própria Sabedoria Encarnada, isso tomava os aspectos divinos que n’Ele têm todas as coisas.

Outro traço da divindade de Jesus que procurei cultivar em mim, tanto quanto possível, foi reverenciar adequadamente todas as autoridades constituídas. Lembro-me de ficar indignado vendo como alguns dos meus colegas consideram certos professores. Tratavam-nos como lacaios ou algo até inferior. Em última análise porque eram filhos de pais ricos e o professor era pobre. Se esse mesmo professor um dia aparecesse no colégio dirigindo um automóvel de luxo, porque se tornara um homem de posses, seria tratado com bajulação. Porém, como em geral recebiam um ordenado pequeno e levavam vida modesta, eram humilhados pelos seus alunos abastados. Então, senhores de 50, 60 anos, dignos de alguma reverência, tornavam-se objeto de debiques e gargalhadas. Isso me revoltava, e me levava a ter para com todos os meus professores um imenso respeito.

As perfeições de Nosso Senhor são tantas, que passaríamos vários dias enumerando-as e indicando os modos de um fiel imitá-las. Poderíamos considerar, ainda, a observância de todas as leis que Ele praticou desde Menino, bem como o ter sempre manifestado muito respeito às autoridades legítimas. Por exemplo, às da Sinagoga, pois quando Ele curava alguém, mandava-o mostrar-se aos sacerdotes.

Enfim, em tudo Nosso Senhor demonstrou a maior deferência, até o momento em que investiram contra Ele. E o Redentor se deixou matar como uma ovelha, um manso cordeiro, sem protesto nenhum, mas sustentando implacavelmente a verdade.

A exemplo do Divino Mestre, eu julguei que também era meu dever sustentar a verdade em qualquer ocasião, de modo intransigente, porém com o respeito e o acatamento devidos a todas as autoridades.

E assim, nas diversas circunstâncias da vida, procurei formar meu senso contra-revolucionário por meio da imitação das qualidades divinas de Nosso Senhor.

O dom da palavra

Um dos mais excelentes dons que Deus deu ao homem é o da palavra, e o bom uso que dela devemos fazer, pois é o melhor meio de se praticar a caridade. Com efeito, o dinheiro e outros recursos materiais que oferecemos a alguém necessitado pode lhe matar a fome do corpo, mas a fome da alma só é saciada pela palavra.

Nesse sentido, poder-se-ia tecer uma longa descrição a respeito do uso que Nosso Senhor Jesus Cristo fazia da palavra, e nos perguntar: Ele falou pouco ou muito?

É curioso: não parece que Ele tenha sido de muito falar, mas de dizer coisas apropriadas. Cada palavra de Nosso Senhor tinha um peso, uma densidade, uma luminosidade especiais. O menor conselho ou comentário seu, era um tesouro, uma bênção, algo extraordinário!

Mesmo na intimidade com Lázaro, Marta e Maria, em que Ele se expandia mais, como se estivesse em casa, imaginemos que ali Jesus falasse de modo menos conceptual: quais eram as suas conversas?

O Evangelho não nos revela, mas vendo o conjunto da conduta dos anfitriões com Ele, percebe-se que cada palavra nascida dos lábios de Jesus era uma estrela que se acendia, deixando seus interlocutores mudos de admiração e enlevo.

Ora, tanto quanto houvesse proporção com a minha condição de menino, de mocinho e, depois, de homem feito, eu procurei cultivar uma linguagem correta, elevada, com vocabulário abundante, e, sobretudo, na qual eu tivesse o que dizer. Claro, não indo além do limite alcançado por meu espírito, mas chegando até ele, pelo que sou responsável diante de Deus.

Então, com o auxílio da Santíssima Virgem, procuro atingir esse limite, fazendo um bom uso da palavra, para imitar Nosso Senhor, para bem servi-Lo e à Santa Igreja.

Sem nos esquecermos de que a presença é a bem dizer o complemento da palavra, a qual está para a primeira como o perfume para a flor, patenteando-se não só através de fatores ponderáveis, mas também imponderáveis. Há presenças insignificantes: a pessoa entra numa sala onde vários estão conversando, não chegou ninguém; e quando sai, não se retirou ninguém. A roda de conversa não se enriqueceu com a chegada dela, nem se empobreceu com a sua saída.

Devemos procurar, com humildade, sem pretensões, que nossa presença faça sentir aos outros o bom aroma de Nosso Senhor Jesus Cristo. E ao entrarmos num ambiente, possam dizer que chegou alguém, e ao sairmos, que alguém se ausentou. Entretanto, há muita gente que abusa do dom da palavra, dizem asneiras, coisas sem importância, conversam sobre trivialidades sem valor, sem conteúdo algum. Além disso, se exprimem com uma linguagem vil, com termos chãos, sem elevação, sem beleza, sem a menor preocupação de adornar suas palavras. Para usar uma bonita expressão hispânica, é uma “linguagem pedestre”. Ou seja, não é a do homem a cavalo, mas a do que anda a pé e se arrasta no meio da poeira.

Quantos exemplos Jesus nos deu disso! Nem há palavras para exprimi-lo. Quando estava presente, só havia Ele; quando ausente, não havia ninguém. Porque num lugar onde deixou de estar Nosso Senhor, podem ter ficado os homens mais célebres do mundo, o local se tornou vazio. Pois Ele condescendeu que Lhe fôssemos semelhantes também nessa qualidade, e, portanto, devemos cultivá-la.

Os divinos olhares de Nosso Senhor

Sempre procurei imaginar e admirar igualmente a divina perfeição dos olhares de Nosso Senhor. Ah, se eu pudesse fazer uma ladainha dos divinos olhares de Jesus! Acredito que, para se elaborar tais invocações, precisar-se-ia ser um extraordinário pintor.

É belo considerar as várias cenas do Evangelho, tentando figurar-se a expressão dos olhos de Jesus naquelas diferentes ocasiões. Por exemplo, no sermão das Bem-Aventuranças, cada palavra que Ele dizia era acompanhada, discretamente, por mudanças de fisionomia, assim como o mar assume esse ou aquele colorido, sem percebermos em que instante passou de um para outro. E retratar tão-só os vários semblantes de Jesus no Sermão da Montanha seria uma obra tal que mereceria se edificasse sobre ela uma imponente catedral.

Imagine-se, então, vitrais que representassem os divinos olhares de Jesus, nas várias circunstâncias de sua vida. O último e supremo olhar d’Ele nesta Terra, que podemos conjecturar tenha sido dirigido à sua Mãe, aos pés da Cruz. Como foi essa troca de olhares, mais valiosa que todos os olhares que houve, há e haverá no mundo? Ou como foi o colóquio de olhares que Mãe e Filho travaram, quando Ele, ressurrecto, pela primeira vez apareceu a Ela?

Aparecerão artistas capazes de pintar isso? Tenho a esperança de que, no Reino de Maria, sim. Pois sendo a santidade a medida de todas as coisas, quando ela é muito grande — como o será no reinado de Nossa Senhora — todas as qualidades humanas têm condições ideais para florescer. Portanto, assim como haverá santos extraordinários, aparecerão artistas geniais que saberão representar essa ladainha de olhares de Jesus. Nossa terá sido a voz que, antes de  todas essas maravilhas, as prognosticou e com elas se alegrou. É uma primeira saudação a todas essas grandezas.

Plinio Corrêa de Oliveira

O Batismo: A porta do Céu!

Dr. Plinio comenta suas alegrias ao sentir-se membro da Igreja pelo fato de ser batizado.

 

Em 7 de junho de 1991, para comemorar o 82° aniversário do Batismo de Dr. Plinio, um de seus discípulos dirigiu-lhe breves palavras, enquanto outros entoavam cânticos.

Dr. Plinio, então, afirmou:

“Apesar de tudo quanto dissestes de excelente, generoso e bom, talvez não tenhais inteira ideia de como tocais no que há de mais sensível em mim.

“Recentemente, refletindo a respeito de vários assuntos, passou-me pela cabeça a questão do inferno. E pela primeira vez, depois de ter feito várias considerações sobre os tormentos ali existentes, ocorreu-me a ideia — a qual transformou-se desde logo em convicção, pois é uma evidência — de que, quando a alma é condenada ao inferno, fica expulsa da Igreja Católica Apostólica Romana. E, apesar de ter pensado em todos os horrores do inferno, nenhuma coisa me amedrontou tanto, quanto a hipótese de ser expulso da Igreja Católica.

“Pareceu-me que sofrer tudo aquilo, mas continuar na Igreja, era muito menos dolorido do que não padecer nada e estar fora da Igreja. Assim, podeis ver bem — e provavelmente não até o extremo que deveria ser — quanto Nossa Senhora me ajuda a prezar a graça inestimável de ser filho da Santa Igreja Católica.

“O contrário também é verdade. Todos os deleites da Terra, nada são, comparados com a felicidade do menor dos católicos membros da Igreja Gloriosa, que celebra sua vitória eterna no Céu. Tudo quanto o homem terreno pode ter de gozo, beleza, bem-estar, grandeza, etc., cada bem-aventurado possui numa plenitude incomparável, porque está em contato direto com Deus no Céu como se Este existisse só para ele. Não devemos imaginar que, sendo os habitantes do Paraíso tão numerosos, Deus não tem tempo de lhes dar audiência. Ele os recebe a todo instante com o mesmo afeto.

“É certo que o Céu Empíreo dará aos seus corpos uma felicidade que completará a da alma. Porém, nada se compara à felicidade de cada um poder dizer: “sou membro da Igreja, filho de Deus; tenho uma participação na natureza divina, “divinae naturae consors” (Cfr. 2Pd 1, 4). Por toda eternidade será um príncipe neste Céu, onde os menores são príncipes.

“Todos que aqui estamos recebemos a graça inefável do Batismo, e meu desejo é que alcancemos o Céu e lá possamos nos lembrar de nosso Batismo com amor indizível, e quem sabe se Deus, no fim do mundo depois de ter incendiado a Terra, etc., conservará alguns objetos que disseram especialmente respeito à nossa salvação. Por exemplo, as pias batismais que as desgraças não tenham destruído. E, nas festas do Paraíso me seja dado descer à Terra para visitar a pia batismal da igreja de Santa Cecília, junto à qual o caminho do Céu se abriu para mim. Após a ressurreição, cada um de nós será um ente glorioso, e iremos com corpo e alma, andando — com que alegria e suavidade! — oscular a pia, onde foi batizado e louvar o momento bendito em que o sacerdote disse: “eu te batizo em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo”. As portas se abriram, o sol de Deus entrou, e por assim dizer a eternidade começou.

“Alegro-me de que vós tenhais vos alegrado com a comemoração do meu batismo. Meus filhos que estão aqui também passaram por este momento, foram batizados, e para eles o caminho do Céu se abriu; mais tarde, houve um dia em que as portas de nosso movimento se abriram, e começou a via da vocação, iniciou a batalha!

“Com quanto comprazimento ouvi cantarem: ‘Mon Dieu donnez-moi, la souffrance…’ (Meu Deus daí-me o sofrimento)”, como isto é belo, e quanta felicidade de alma há naquele que não tem medo de cantar a plenos pulmões: “Mon Dieu donnez-moi la souffrance”. São coisas, meus filhos, que só no Céu compreenderemos.

Até o Paraíso nos leve a proteção, a bênção, as graças da “clemens, pia et dulcis Virgo Maria” (clemente, piedosa e doce Virgem Maria).  v

 

Onde a santidade está presente, as fontes se abrem!

As obras da Cristandade são fruto da santidade, salienta Dr. Plinio, mais do que das habilidades dos seus autores. Onde a santidade está presente floresce a beleza como de uma fonte. Quer para ornar as magníficas catedrais, quer nos pequenos aspectos da vida cotidiana, como numa boa “champagne”…

 

Quando a santidade se verifica autenticamente em alguém, em qualquer época, tem por característica principal a prática dos Mandamentos, sobretudo o primeiro: o amor de Deus. E o amor de Deus nos leva a querer implantar na Terra o “verum, bonum, pulchrum” — verdadeiro, bom, belo — em todas as matérias e em todos os campos, para que tudo fique semelhante a Ele, ou seja, uma “semelhantização” das coisas a Deus.

Portanto, uma tendência a levar a todas as coisas — desde o tratar de um porquinho até conceber a flecha de uma catedral — à expressão do sublime de que elas são capazes. É uma espécie de sonho do Céu na Terra, fazendo com que esta se pareça com aquele; e uma procura contínua de maravilhoso em tudo, inclusive nos prazeres lícitos da vida.

Na Idade Média havia uma tendência, de — como fazem os santos por toda parte — ao tocar numa coisa, sublimá-la. Em torno do “bonum” floresce o “verum, o pulchrum” e surge uma grande civilização.

Por exemplo, as ordens religiosas deram origem a alguns dos vinhos mais saborosos do mundo! E dos quais, eles não vão beber senão umas gotinhas. Fazem o vinho pela alegria de servir. Recordemos Dom Pérignon com a “champagne”…

Há numerosos conventos na Europa que fabricam vinhos, chás, queijos, cervejas, de primeira ordem!

O que os monges, os frades, os padres feitos para a renúncia de tudo, realizaram para ornar os aspectos cotidianos da vida é uma coisa fantástica. Porque quando há santidade, onde ela toca, floresce o “pulchrum”! Ela é larga de horizontes, e modela tudo segundo seu estilo.

Lembremo-nos de tudo o que se fez no campo artístico para embelezar as catedrais. A Idade Média tinha entusiasmo por Nosso Senhor Jesus Cristo Ressurrecto. E todas as catedrais grandiosas dessa época histórica proclamavam a Ressurreição de Cristo. Aquela grandeza inspirou construção de quantos castelos, residências principescas e régias! Onde o frade, o monge, ou o artista humilde que haviam concebido aquilo para a glória de Deus, não iriam morar; residiam eles em lugares modestos. Porém, essas almas cheias de entusiasmo fabricavam o “pulchrum, o bonum”, descobriam o “verum” em todos os setores. Daí a magnificência de suas obras.

Eles não estranhavam em ver que o Bispo ou o Rei implantavam essas grandiosidades em suas casas, porque eram autoridades, pessoas constituídas em dignidade. Pois tinham alegria em que as autoridades fossem assim honradas. Os que renunciavam eram os que faziam! Isso constitui uma verdadeira maravilha!

Como isso é diferente do critério produtivo de certas mentalidades!

Tudo isso provinha de uma noção muito ampla do amor de Deus.  Deus era para eles, a fonte de toda beleza.

Por exemplo, a gruta de Subiaco em seu interior é feia, mas o panorama é maravilhoso! Percebe-se a procura da beleza. É a constituição de uma multidão humana tocada por essa levedura, essa fermentação, que quis o ideal, a perfeição, a beleza, movida por uma graça de Deus.

Para encerrar, narro um fato característico.

Conta-se que nos arredores de Roma, — embora não haja prova histórica, pode perfeitamente ser verdade — no lugar onde São Paulo foi martirizado, sua cabeça decepada, ao cair, pelo vigor do golpe saltou três vezes sobre o chão. E em cada lugar onde ela bateu se abriu uma fonte.

Isto é bem o que se passa: onde a santidade toca, as fontes se abrem. v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 4 de dezembro de 1988)

Revista Dr Plinio 135 (Junho de 2009)

Supremacia da alma

Como já tivemos ocasião de assinalar, a mentalidade do homem medieval se alicerçava na ideia da existência de uma outra vida e de uma ordem de coisas superior à terrena.

A meu ver, retratos fiéis de pessoas com essa concepção aparecem nas pinturas de Fra Angélico, o qual, embora de uma época posterior, é um artista talhado nos moldes da Idade Média. Em seus afrescos ele costuma representar figuras imbuídas de uma luz, claridade e leveza que não encontramos na vida real, e que nos falam de uma ordem eminentemente superior. Personagens, dir-se-ia, isentos das fraquezas humanas e sem a marca do pecado original, tão grande é a elevação de que o pintor os revestiu.

E não apenas nas figuras humanas, como também nos anjos que retratou, Fra Angélico soube expressar a temperança e a sabedoria do espírito medieval, voltada para as riquezas celestiais. Anjos de alma tão límpida, tão honesta, que estão dispostos a toda espécie de serviço. Tão fortes e conscientes de si, que estão prontos para toda sorte de domínio. Tão pacíficos, que são anjos da paz; tão combativos, que são anjos de combate ao mal. Todos os contrastes, todos os opostos harmônicos neles se acham em estado maravilhoso. São uma síntese magnífica e um símbolo perfeito das melhores disposições da alma medieval.

Outros exemplos, ainda, poder-se-ia ver nas figuras esculpidas nos portais e fachadas das catedrais góticas. Mesmo quando se tratam de imagens que representam pessoas na atitude de exercer sua profissão, percebe-se que têm o espírito povoado por idéias de uma ordem superior, o que lhes confere dignidade, equilíbrio, recolhimento e uma total preponderância da alma sobre a matéria. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências em 15/9/1966 e 3/6/1967)

Revista Dr Plinio 123 (Junho 2008)

 

Intimidade suprema, distância infinita

Exemplo daquilo que costumava ensinar a seus seguidores, Dr. Plinio se deleitava em contemplar a ordenação das coisas criadas como reflexos de Deus e caminho que a Ele nos conduz. Nas suas palavras aqui transcritas, compara os diferentes reinos da natureza, cujas insondáveis diversidades nos fazem “intuir a infinita grandeza do Criador”.

 

Compraz-me, vez por outra, considerar os vários reinos da criação e as diferenças imensuráveis que os separam.

O Pão de Açúcar e a grama

Imaginemos, por exemplo, que o Pão de Açúcar, rochedo extraordinário, de repente pudesse ter cinco minutos de pensamento e, nesse fulgor de raciocínio, visse um punhado de grama crescer nas suas encostas. Ele, o grandioso e eterno paralítico, que nunca se move nem se moverá, provavelmente, até o fim do mundo, é incapaz de crescer, de diminuir, de se deslocar. Não possui vida. Pelo contrário, a grama cresce, se alastra. O Pão de Açúcar contempla aquele desdobrar da grama, estremece de alegria e pensa: “Que honra para mim carregar uma graminha!”

Essa seria a bela e natural atitude a ser tomada por ele. Como seria igualmente natural e belo que a grama, por sua vez, dotada de pensamento, pudesse olhar para o Pão de Açúcar e dizer: “Que rochedo maravilhoso e colossal! Como sou pequena diante dele! Porém, eu vivo e ele não. Vivam as graminhas!”

Existe, portanto, um abismo entre o reino mineral e o vegetal.

A rosa e a taturana

Subamos outro degrau e imaginemos que a mais esplêndida das rosas, exercitando a faculdade de pensar que lhe fora dada, observasse uma taturana subindo pela sua haste, prestes a se esgueirar no meio de suas pétalas. A rosa então diria: “Sou linda, perfumada, uma obra-prima! Quando me vêem, os homens me colhem, as damas me osculam, e todos me oferecem para ornar o que há de mais precioso, até para os altares das igrejas. Sou a rosa. Em contrapartida, se virem essa taturana, deitam-na abaixo e a esmagam, porque a aparência dela não lhes agrada.

“Contudo — prossegue a rosa — um fato é fato: essa taturana se move e sente. Eu não sinto. Cortam-me, deixam-me secar e fenecer, e não tenho conhecimento disso. A taturana, porém, conhece quando é ameaçada e se encontra em perigo de vida. Como o conhecer é mais valioso do que ser belo! Ó taturana, feia e repulsiva, que honra para mim carregar-te!”

Mais um abismo, pois, entre o reino vegetal e o animal.

Outras distâncias insondáveis

Imaginemos, agora, que um leão pudesse contemplar uma criança que está aprendendo a recitar a Ave-maria, ensinada por sua mãe. Ainda não sabendo articular bem as palavras, a criança apenas tartamudeia a oração. O animal observa aquela criancinha. Ente indefeso, esta seria presa fácil para ele, um aperitivo que a fera estraçalharia quando quisesse. Porém, se pudesse compreender as coisas, o leão chegaria ao seguinte raciocínio: “Essa pequena criatura, que eu deglutiria em poucos minutos, é dotada de razão, de inteligência, de vontade. Ela pensa, ela deseja, ela age. Eu não penso, não quero. Sou um jogo das minhas vísceras que se movem e me impulsionam para frente. Sigo os instintos que me dominam e ordenam o que devo fazer. A criança se governará a si mesma, e eu não me governo. Somente nesse relâmpago de raciocínio me é dado ter conhecimento disso. Ó criança, ó obra-prima!”

O leão, se pudesse, veneraria aquele pequeno ser humano.

Se galgarmos mais um patamar nessas comparações, deveríamos ainda imaginar um sábio pagão, inteligente e experimentado, diante de um menino batizado no qual desabrocham a inocência batismal, a vida da graça, a sua participação no Corpo Místico de Cristo, a sua filiação à Santa Igreja Católica. Se pudesse discernir tudo isso na criança batizada, o idoso pagão, movido por sua retidão natural, exultaria de admiração diante daquele grau mais elevado de vida.

O homem e o Criador…

Não é difícil perceber como essa graduação posta por Deus nos diversos reinos e seres criados se reveste de extrema beleza. E esse esplendor reluz de modo particular quando no outro termo de comparação está o homem. Tomemos, por exemplo, de um lado, o mar. Magnífico, interessantíssimo, apresentando-se a nós como se fosse um interlocutor cujo repertório de temas é inesgotável. Ao mesmo tempo grandioso no alto oceano onde toca o céu, e encantador, capaz de dizer coisas afáveis num cantinho qualquer de praia onde ele circunda um caramujo. Estende-se por zonas calmas, assim como por outras em que suas ondas rugem. O mar é uma imensa prosa. Ele imita uma grande mente humana. Mas… como o homem menos afortunado em matéria de inteligência vale mais do que o mar inteiro!

Assim Deus graduou e ordenou todas as coisas na criação, e dispôs entre elas esses abismos, cada um deles constituindo uma imagem do abismo quão mais insondável que separa a criatura do Criador. Essas diferenças abismais nos fazem intuir a infinita grandeza de Deus, Ele próprio diferente de tudo e em tudo refletido.

Então, nós, homens dotados de inteligência, paramos e dizemos: “Meu Deus, eu pensei em tudo, medi tudo. Como sois Vós? Como será  vossa Mãe Santíssima?”

E logo nos silenciamos, mudos de admiração e enlevo diante de tanta magnitude. Em nosso interior formulamos uma súplica ao Onipotente, pelos rogos misericordiosos de Maria: que Ele, terminada nossa existência terrena, nos leve a contemplá-Lo na bem-aventurança eterna, onde O adoraremos numa intimidade suprema e numa distância infinita. E ambas as coisas nos encantarão pelos séculos sem fim.

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 123 (Junho de 2008)

Altaneria e estabilidade sacrais

Nesse castelo estiveram os cruzados que lutaram contra os mouros. Existe nele um contraste harmônico entre a altaneria e a estabilidade, que de algum modo marca a sacralidade da fortaleza. Quando vier o Reino de Maria e de novo a luz do Espírito Santo brilhar na Terra, que altaneria e estabilidade magníficas terá esse Reino, pois será muito superior à Idade Média!

 

O panorama que vamos comentar compõe-se basicamente de três elementos: o Castelo da Mota – em Medina del Campo, na Espanha –, o céu e a árvore.

Muralhas altas, belas, dignas

No castelo, que evidentemente é a nota dominante, encontramos dois aspectos principais: as muralhas, nas quais se destacam os grandes torreões de ângulo, que  sobressaem como um elemento inteiramente distinto das muralhas, e a torre que, por sua vez, é a nota dominante do castelo.

Parece-me mais interessante começarmos por analisar o castelo, partindo do elemento secundário para depois passar para o principal.

O elemento secundário é constituído pelas muralhas e os torreões que as integram.

As muralhas são altas, bem trabalhadas, belas, dignas, altivas. Entretanto, não têm nada de extraordinário. Elas possuem uma beleza real, mas frequente em muitos monumentos medievais desse tipo.

Aliás, há muralhas muitíssimo mais bonitas do que essas. Ao menos para o meu gosto, a muralha de uma pedra sombria, um granito carregado e “preocupado”, exprime muito mais tudo quanto a muralha tem a exprimir do que essa pedra um pouco branca, tornada ainda mais reluzente pela luz do Sol, com uma aparência festiva, não parecendo propriamente militar, como era a finalidade das muralhas naquele tempo.

Eu até chegaria a chamá-la de uma muralha plácida,  tranquila. Ela se estende à maneira de um retângulo, sem maiores movimentos, com os torreões intercalados simetricamente, sem maior fantasia, obedecendo simplesmente a uma necessidade militar, mas sem nenhuma preocupação de estética mais particular.

Torre altaneira, forte, firme. Em contraste com esse aspecto e, portanto, realçando- o, vem a torre alta, imponente, que desafia e se ergue muitíssimo acima da muralha,  fazendo desta quase como o véu ou manto que pende da cabeça de uma rainha.

A diferença de altura, de poesia, de fantasia, de imaginação que vai da torre para os muros é enorme. Por esta forma, destaca-se extraordinariamente a torre, tornando-a verdadeiramente a nota dominante.

Como eu disse acima, as muralhas erguem-se altivas. Entretanto, a altaneria da torre é realçada pelos torreões de ângulo que lhe dão a fisionomia especial. A torre se ergue altaneira, mas ao mesmo tempo atarracada, forte, firme, como quem diz: “Eu olho de cima, desafio, mas resisto. Não tenho medo de nada. Meu ângulo está disposto a cortar os vagalhões dos adversários como a proa de um navio fende os mares. Para mim n

OLYMPUS DIGITAL CAMERA

ada oferece insegurança. Estou disposta a resistir de todo jeito, a todo transe. A mim ninguém derruba. Nem sequer depois de abandonada e isolada, tendo sido retirado de mim qualquer uso militar, deixarei de ser uma proclamação viva dos ideais aos quais servi.” Dir-se-ia que por cima dos séculos ela espera outros adversários para prestar novos serviços aos mesmos ideais. Ela está intacta.

Para ela o tempo, o abandono dos homens, a mudança das circunstâncias não querem dizer nada. Ela espera, serena, o fim do mundo e não teme o juízo de Deus. É uma afirmação de um estado de espírito de consciência tranquila que caminha para a morte e a eternidade sem se preocupar com elas. Assim vejo eu a fisionomia dessa torre.

O céu muito azul e a luz que bate no castelo, de que maneira colaboram para compor o panorama?

Fortaleza ufana, mas triste

A meu ver, esse castelo, como se encontra, dá a impressão de um esqueleto calcinado pelo Sol. Nota-se que a vida de todos os dias não se desenrola mais nele. Tem-se a impressão de que, por dentro, ele está pouco mais ou menos abandonado. Por causa disso, tem-se também a sensação de uma espécie de imenso naufrágio, cuja tristeza e cujo abandono são acentuados pelo esplendor da luz solar, como quem diz: “A luz bate, a natureza toda se alegra indiferente à tristeza do castelo.”

A fortaleza é ufana, mas triste. Há nela qualquer coisa que não tem nada de ruína, mas anuncia a ruína de uma ordem de coisas que dentro dela houve.

Porém, esse é apenas um aspecto. De outro lado, há uma certa alegria que a luz do Sol comunica ao castelo.

Alguma coisa que dá a impressão de uma esperança de reviver. E há uma melancolia e um élan que, juntos, produzem uma sensação um pouco indefinida. Não se sabe bem se é de vitória ou de tragédia. A meu ver, no fundo, é a conjugação das duas coisas.

A árvore comunica um pouco de vida ao conjunto da paisagem. Se a imaginássemos sem a árvore, essa impressão de desolação se acentuaria ainda mais. Dir-se-ia que um pouco de seiva, de sorriso de vida concreta se recosta junto ao velho castelo e dá um pouco de animação àquilo que é tão hirto e de tal maneira calcinado pelo Sol.

“Represento a sacralidade contra as hordas de maometanos que invadem”

Lembro-me de uma exclamação do Marechal Mac Mahon, durante a Guerra da Crimeia, a qual eu  cito por causa da concisão francesa que a caracteriza: “J’y suis, j’y reste – Aqui estou, aqui permaneço.” Essa afirmação, que em sua simplicidade é muito sobranceira,  poderia ser aplicada a esta torre. Ela, por assim dizer, olha muito de cima todos os adversários, mas está agarrada ao chão, como a afirmar: “Este chão é meu e daqui  ninguém me tira. Eu fico!”

Mas não é só isso. Uma coisa é a altaneria do Mac Mahon, outra é a de uma torre medieval. Quer dizer, é preciso compreender a altaneria, a persistência, a estabilidade, não como a de um homem – por exemplo, Mac Mahon – durante uma guerra, mas a de uma era, de uma civilização, de uma cultura. É, em última análise, a estabilidade e a altaneria da Fé católica. Ou seja, gente que não crê na vida eterna não é capaz de ter esse tipo de altaneria e estabilidade simbolizadas por essa torre.

Não é a sobranceria de quem se compara com o adversário para declarar: “Eu sou mais!” Mas daquele que, por assim dizer, toca no céu e afirma: “O céu em que eu toco é incomparavelmente mais. Represento aqui o Céu, Deus Nosso Senhor, a sacralidade contra as hordas de maometanos que invadem.” É, portanto, uma altaneria e uma estabilidade sacrais. A sacralidade me parece estar fortemente presente aí.

Assim eu definiria esse castelo.

Contraste harmônico entre altaneria e estabilidade

Devemos procurar lembrar que aqui estiveram os cruzados; esse castelo foi utilizado na luta contra os mouros. Vemos bem a alma católica que nele se exprime, por exemplo, na parte superior da torre. Ela é quase toda lisa, em cima, as ameias e os torreões se acumulam, e há qualquer coisa de carregado no topo que leva para o alto, meio difícil de exprimir. Esse contraste harmônico entre a altaneria e a estabilidade de algum modo marca também a sacralidade do castelo.

Donde se poderia dizer: “Ó altaneria católica, ó estabilidade católica, ó Divino Espírito Santo estável e altaneiro!” E imaginar, por exemplo, Pentecostes, com as línguas de fogo caindo, em que todas as virtudes estavam simbolizadas, como seria ali a altaneria e a estabilidade.

É uma verdadeira maravilha. Ou então conjeturar, quando vier o Reino de Maria e de novo a luz do Espírito Santo brilhar na Terra, como será a altaneria e a estabilidade. Se  o Reino de Maria será mais do que a Idade Média, que altaneria e que estabilidade magnífica terá?

Para isso é que devemos ter os nossos olhos voltados. É a transcendência que vai até o Espírito Santo, e tem uma projeção profética para o futuro.

Desaparecimento gradual dos castelos

Com o passar do tempo, foram-se fazendo fortificações cada vez menos bonitas e menos elevadas, até chegar ao anódino, até precipitar-se na feiura. Há todo um problema de arte militar para discutir, sobre se verdadeiramente esses castelos se tornaram inúteis com as armas de fogo; eu discuto isso. Por exemplo, quando do alto das torres da  Bastilha os canhões dispararam a serviço da Fronda, eles foram muito mortíferos. Por que então uma arma de fogo não é útil do alto de uma torre? É uma questão para se  analisar.

Mas, enfim, começaram por fazer castelos sem torres. E depois, naturalmente, a não fazer mais castelos. Então verificamos essa coisa curiosa: nas batalhas do século XIX – de Napoleão, por exemplo –, de vez em quando houve combates encarniçados para a posse de uma aldeia presente no meio de um campo de batalha. Por que a posse da  aldeia?

Porque aquelas construções são estratégicas para o ataque ou para a defesa. Mas então, como um castelo não seria? O desaparecimento gradual dos castelos, das fortalezas, deu lugar à arte militar baseada em trincheiras. Começava, assim, a guerra das baratas e das lesmas. É evidente que isso tudo tem uma razão técnica. Porém, haveria apenas   razões técnicas? Isso seria discutível…

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/1/1975)

Fontainebleau – esplendor, riqueza e simplicidade – II

Tratando dos mais diversos assuntos, Dr. Plinio procurava ver o aspecto religioso. Analisando o castelo de Fontainebleau, aponta ele para a tendência de se construir algo que superasse a natureza e compensasse um pouco o que esta Terra tem de exílio. Há dentro disso um apelo para algo maior do que as coisas terrenas, e que é o começo do movimento rumo ao Céu.

 

O mobiliário dessa sala é elegante, leve, também constituído de tapeçarias, e habilmente disperso pela sala, de maneira que se tem, ao mesmo tempo, impressão de muita mobília, mas há vazios importantes. Um dos segredos de uma sala bonita é ter vazios importantes. Eu já tenho visto sala empetecada de móveis, não se pode dar um passo sem esbarrar num cacareco. Não tem propósito! O vazio bonito faz parte da boa decoração.

Orquestração fabulosa de riquezas de espírito

Os vazios são indispensáveis para o ornamento de uma sala. Mas nessa sala do castelo de Fontainebleau, que estou analisando, tem-se a impressão, ao mesmo tempo, de muita mobília e de nada de atravancamento; isso é agradável. A beleza cromática da sala é a seguinte: os vidros das janelas são transparentes, a luz que entra por eles é, inteiramente, a luz do dia. Não é aquela luz leitosa da galeria.

Mas essa luz do dia, no que ela tem de cru, é compensada por um mundo de cores. Quase se poderia dizer que todas as cores possíveis estão representadas aqui, mas para não ficarem sobrecarregadas, todas elas em estado muito pálido. E um mundo de cores muito pálidas não dá a ideia de feeria de cores, pois elas quase que se fundem umas nas outras, mas divertem e descansam os olhos maravilhosamente.

Creio ser indiscutível que essa sala dá uma ideia de fausto. A principal noção de fausto que dela se depreende é da prodigiosa policromia, mas de cores delicadas que se fundem umas nas outras; é uma orquestração fabulosa de riquezas de espírito, de riquezas culturais. No meio de mil coisas empalidecidas, ficaria um pouco insípido não ter uma nota viva. E, a ter uma nota viva, o vermelho é o mais bonito. O vermelho-cereja, dado um pouco para sangue, no meio das cores pálidas, é um jato. Como um cozinheiro, que entende das coisas, sabe pôr na elaboração de um prato um pouco de pimenta, para realçar todo o resto.

A porta é feita com a preocupação de constituir um elemento decorativo a mais dentro da sala. Então ela mesma é tratada com uma série de painéis, todos muito delicados, leves, que contrastam com o sobrecarregado das laterais. O contraste de sobrecarregados e leves forma a harmonia da sala, que sem isto ficaria empetecada. 

Manifestamente, nota-se aí a tendência a construir uma coisa que superasse a natureza, e compensasse um pouquinho o que esta Terra tem de exílio, com a ideia de que o homem é feito para coisas maiores do que as coisas terrenas. Há dentro disso um apelo para algo maior do que esta vida e esta Terra, e que é começo de movimento rumo ao Céu. Esse é o lado religioso do assunto.

Esplendor do luto com certa nota de severidade

A sala de estar da Rainha-Mãe, quase não se sabe se é mais bonita do que a Sala do Conselho. É mais severa do que a Sala do Conselho, e se explica porque a Rainha-Mãe — por definição a viúva e tudo quanto acompanhava a viuvez — tinha uma certa nota de severidade. Donde o aparecimento dessas portas escuras, que trazem uma vaga reminiscência de todo o esplendor do luto. É uma sala de avó, tendo um certo compassado que a alegria e o esplendor da outra sala não possui.

Isso corresponde à ideia daquele tempo de a viúva usar até o fim da vida os sinais de viuvez, sobretudo quando se tratava da rainha. O que a moldura dessa sala tem de muito sério é compensado por inúmeros arabescos finos. Então, há aqui um mundo de formas, flores, grinaldas, guirlandas, de figuras mitológicas, de quadros.

E uma coisa que fica muito bonita é o espelho, certamente feito em Veneza — onde se fabricavam espelhos enormes, profundos — e que é como uma janela aberta, o que também torna alegre o ambiente. Depois, tapeçarias colossais, que também dão gáudio à sala.

Os quadros sobre as portas dão à passagem quase a majestade de um arco de triunfo. Fica uma coisa riquíssima, muito bonita. Porta sempre com duas folhas, por causa do protocolo da corte. Para os filhos ou netos de um rei, as duas folhas da porta se abriam, o alabardeiro dava uma pancada no chão e gritava: “Sua Majestade, a Rainha, ou Sua Alteza Real…” Quando era para um príncipe de sangue real, mas não filho ou neto de rei, abria-se uma só face, como também se fazia para todo o resto da nobreza.

De maneira que era de grande estilo a pessoa, digamos a Rainha-Mãe, ser precedida pelos alabardeiros que abriam a porta, colocavam-se de ambos os lados e gritavam: “Sa Majesté, la Reine!” Então, reverências, etc. Quer dizer, a porta era ocasião de um cerimonial, quase um pano de boca de um palco; daí seu caráter triunfal.

Isto estava nos hábitos do tempo, porque entrar e sair eram uma arte. Não se faziam esses movimentos como um frango entra ou sai do galinheiro. A entrada e a saída de uma pessoa marcavam a sala.

Observem a beleza dessa mesa, com as pernas trabalhadas e sobre ela uma taça de porcelana policromada muito bonita. Tudo em nível mais discreto do que o jogo de cores feérico.

A Revolução vai se adensando: melancolia e moleza

Sala de Conselho de Luís XV. O gênero de beleza evoluiu do tempo de Luís XIV para Luís XV. Enquanto a nota do raffiné(1) de Luís XIV era imponente, em Luís XV, que já marca uma certa decadência, o raffiné é gracioso. Então, é um esplêndido de gracioso, mas o gracioso é um valor menor que o imponente, e nisto está a decadência.

Os ângulos retos desaparecem, ou como que desaparecem; o ângulo reto exprime muito mais a força do que o arredondado, que representa o jeito, a conciliação, o sorriso. Por outro lado, as cores se tornam — sob algum ponto de vista — mais delicadas, e um certo ar triunfal, que tinham as salas de Luís XIV, desapareceu. Não é uma sala feita para um rei vencedor do mundo, como Luís XIV pretendia ser e, em alguma medida, foi; mas é para um rei que leva uma vida gostosa e, nas horas vagas, realiza uma reunião do Conselho.

Desta sala não sai a conquista do universo, nem a prevenção da Revolução que vai se formando e adensando. Considerada sob o aspecto da pulcritude, ela exprime o maravilhoso gracioso e, neste sentido, ela o exprime magnificamente. E a linha da feeria continua inteiramente afirmada. Dir-se-ia que, de algum modo, ela é até mais raffinée do que as salas de Luís XIV.

E notem uma coisa curiosa: dentro de todo esse gracioso há qualquer coisa de mais tristonho. Não há aquela alegria matinal. É um gracioso crepuscular, embora com todos os encantos do crepúsculo, mas já não é aquela coisa maravilhosa da aurora.

Essa sala, com todo o seu maravilhoso, poderia ser de lazer, ou de jogo, num palácio real. Não poderia ir além disso. E mesmo assim, ela tem qualquer coisa de perigoso, porque se uma pessoa fica muito tempo aqui dentro, não tem vontade de passar para as outras salas. Ela tem qualquer coisa de anestésico, que é o anestésico do otimismo. Está tudo arranjadinho, redondinho.

As cadeiras já são um pouco dadas ao anatômico, por incrível que pareça. A civilização que gosta da cadeira com pernas baixas é decadente. Então, nessa sala as cadeiras têm perninhas baixinhas.

Poder-se-ia dizer que o melancólico e mole são as notas dominantes nessa sala.

 

(Extraído de conferência de 31/10/1966)

 

(1) Refinado, requintado.