A estética e a ideia de Deus

Um dos salientes aspectos da alma de Dr. Plinio era o amor ao belo — “pulchrum”, em latim —, a respeito do qual pronunciou diversas conferências, algumas delas dedicadas a comentar o livro de Edgar de Bruyne, professor da Universidade de Gand (Bélgica), intitulado “L’esthétique du Moyen Age”– A estética da Idade Média. A seguir, transcrevemos a introdução feita por Dr. Plinio àquela série de exposições.

 

A propósito da matéria apresentada no livro de Edgar de Bruyne (ver quadro em destaque), cumpre consignar o pressuposto de que nossa noção de estética é um tanto diferente daquela estabelecida pelas opiniões de outros autores que ele, sem tomar partido, apenas compendiou. Explico-me.

A emoção estética redunda num ato religioso

Segundo se infere de ditas opiniões — que não traduzem, saliento, necessariamente a do autor —, a estética não é senão uma matemática encarnada no sensível, enquanto que para nós a emoção estética desencadeia uma série de fenômenos na alma humana, dos quais o último e mais alto é uma sensação de solidariedade, de harmonia entre a coisa observada e o observador. E, por detrás disso, uma experiência interna, inefável, pela qual sentimos como nosso próprio eu é coerente com o ser enquanto ser, que é bom em si mesmo, pois foi criado por Deus.

Em determinado momento do percurso dessa sensação de harmonia, percebo na coisa observada o que ela tem de objetivamente belo e de afim com algo em mim, um predicado comum pelo qual ela e eu participamos da beleza transcendente de Deus. Nesse instante, o conúbio entre nós dois alcança sua plenitude. Embora continue evidentemente existindo, com toda força, uma alteridade entre ambos, essa noção da participação no Criador representa um ponto de convergência e de transcendência mais alto.

De maneira que, conforme nosso ponto de vista, a emoção estética bem entendida termina substancialmente num ato de caráter religioso e metafísico, ainda que subconsciente.

Pares homogêneos e ímpares heterogêneos

Já sobre o que de Bruyne registra a respeito dos algarismos pares e ímpares, da correlação entre os conceitos de igualdade e variedade indefinida, bem como sobre a indicação das propriedades dos números, poderíamos tecer outras observações.

 Para bem se compreender a teoria dos números, devemos considerar que, ao lado da concepção que toma os ímpares como princípios de igualdade, há também aquela que os entende como símbolos da desigualdade. De maneira que, por exemplo, o algarismo 5 não é apenas a soma 1+1+1+1+1, na qual cada unidade é rigorosamente igual à outra, mas pode ser a união de dois pares de 2 presididos pelo número 1. E dado o caráter indivisível dos ímpares, este 1 será heterogêneo e diverso dos outros “uns”.

Ilustra de modo muito eloquente essa nossa argumentação a arquitetura do conhecido Castelo de Cheverny, na França. Nele há quatro corpos de edifício laterais e um central, diverso, pequeno, porém mais nobre. Por esse exemplo nos é dado entender melhor o significado que atribuímos aos números. Poder-se-ia dizer que o número do Castelo de Cheverny é 5, e sob este aspecto ele estaria perfeitamente definido.

Combinações com fisionomias e qualidades diferentes

Prosseguindo nessa análise do texto do de Bruyne, poderíamos ainda imaginar combinações em que os vários algarismos integrantes do número global tivessem como que fisionomias e qualidades diferentes. Seriam orgânicos, como membros de um mesmo organismo. O que é distinto de uma concepção estritamente numeral e anorgânica, própria de uma aula de aritmética na qual se distribui a uma criança bolinhas iguais até completar, digamos, o número 5.

A teoria que levantamos é inteiramente diversa da que se deduz apenas da igualdade matemática dos algarismos, sem contudo pretender que tal igualdade seja falsa ou má.

Conjugação de conceitos díspares

Concluindo esses breves comentários, convém ressaltar que os números não possuem apenas expressão quantitativa, mas também qualitativa. Embora entre os conceitos de quantidade e qualidade haja um abismo intransponível, existe a possibilidade de conjugá-los, aceitando-se o que acabamos de considerar.

Para tomarmos o exemplo de outro monumento francês, pensemos no Castelo de Chambord, que nos transmite a ideia do incontável.

Apesar de ele ostentar uma quantidade de torres passível de ser estabelecida, ao vê-las temos a impressão do  infindo e incontável.

É outro modo de o número exprimir também qualquer coisa de qualitativo.

 Exemplo de índole diversa, a poesia com sua métrica: os versos se compõem de sílabas contáveis, mas possuem também algo de incontável, livre ao indefinido, que nos remete para o infinito e, de certa maneira, nos conduz à ideia de Deus. 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  em 16/1/1973)

Chenonceaux: um castelo-cisne

Harmonia, equilíbrio e elegância feita de leveza são as características ressaltadas por Dr. Plinio, ao comentar um dos mais célebres castelos do Loire.

 

Creio que o verdadeiro modo de projetar Chenonceaux numa tela, seria o seguinte: não fazer uma longa “statio”(1) olhando para a foto dele, porque todas as emoções desgastam — sabemos bem disso —, mas correr uma cortina e, de repente, levantá-la.

Assim, haveria um primeiro inebriamento e uma espécie de entusiasmo — palavra de origem grega, que significa “estar cheio de Deus” —, uma sensação de algo extraordinário e maravilhoso!

Vejamos qual a razão do feérico que esse castelo apresenta. Imaginemos que ao invés desse rio, houvesse junto dele uma estrada poeirenta, por onde transitassem carroças e automóveis, teríamos a sensação de que o edifício perderia, pelo menos, cinqüenta por cento de sua beleza.

Além de ser muito bonita e elegante, a construção explora particularmente o seguinte princípio: todas as coisas que se refletem na água ganham em pulcritude.

Embora a teoria grega dos quatro elementos não possua nenhum valor científico, ela, por assim dizer, tem um significado sensitivo: de fato, para se tocar e ver há quatro elementos: o ar, a terra, o fogo e a água.

Dentre os quatro elementos, a água tem algo de especial: tudo quanto se “debruça” sobre ela, reflete, e tudo quanto nela se reflete toma um caráter de beleza celeste. Uma beleza quase irreal, de sonho, de mundo das maravilhas, para dizer tudo numa palavra só, de paraíso perdido.

Tem-se uma sensação paradisíaca vendo as águas do rio Cher correrem, tão plácidas, cristalinas, marcadas pelo azul do céu, e a imagem do castelo que nelas se reflete. Percebe-se que a sua maior beleza provém da ideia de construí-lo sobre uma ponte, de maneira tal que ele, por assim dizer, está como um cisne na superfície da água.

Pode-se dizer que é um castelo-cisne. Está “flutuando” com leveza, parece uma fantasia, algo de irreal, um sonho…

Imaginemos numa bonita noite de luar, o castelo todo iluminado, as janelas abertas, e em seu interior havendo uma festa. Os risos, a música, os perfumes, os luzir das lâmpadas refletindo no rio que corre, transmitem a sensação de uma espécie de nau na qual se leva uma vida de elevação, de requinte, de distinção, de nobreza, de grande classe; em suma, uma vida totalmente diferente da contemporânea.

Se há algo contrário a um arranha-céus “moloch”, a uma construção escarrapachada, ao cimento armado, é exatamente esse castelo, que parece não ter base e flutuar.

Vemos quanta harmonia o espírito francês introduziu nesse conjunto, composto de três elementos distintos.

O primeiro é a ponte, sobre a qual foi construído. Há uma parte maciça, que contrasta com outra muito leve; se apenas existisse a primeira, o edifício perderia a graça. A parte mais “leve” ainda é medieval, como se nota pelas torrezinhas agudas. Trata-se de um período de transição entre a Renascença e a Idade Média; as pequenas torres que flanqueiam o castelo dão ideia de uma velha fortificação.

Percebe-se o contraste entre os arcos diáfanos leves de um lado, e a base pesada onde se tem a impressão de que passa uma água que sai das masmorras e banha prisioneiros causando-lhes tormentos, devido à umidade, com lagartixas, rãs, mofo; é uma espécie de reino tenebroso. As janelinhas da parte inferior parecem dar acesso a horríveis porões ou cárceres.

Esse misto de firmeza e estabilidade com a delicadeza, forma um contraste harmônico de qualidades opostas que acentuam o encanto que há no castelo.

A chaminé tem um papel extraordinário; é uma espécie de ponto final vivo e agudo para dar a entender que o altaneiro castelo acabou. Imaginemo-lo sem ela…

Chenonceaux se prolonga por uma ponte levadiça que conduz à outra margem. E, como uma espécie de último eco do castelo, um torreão, que deve ser o resto de uma velha fortaleza medieval, sólido, atarracado, grande e levando a sensação de estabilidade ao último ponto.

Então, estabilidade máxima, estabilidade média, leveza diáfana.

São os três elementos sucessivos que dão encanto ao castelo e explicam sua beleza.

Imaginemos que não houvesse essa torre, faltaria algo que é imponderável. Ficaria leve demais, sem graça.

Aqui se percebe o espírito de medida do francês. Todo mundo costuma dizer que esse espírito consiste na simetria. Na verdade, porém, a simetria é apenas um dos modos pelos quais os franceses externam sua capacidade de medida. Nesse castelo vemos outro aspecto da medida: leveza e estabilidade.

Há ainda outro contraste: junto à parte, que bem pode ser uma masmorra ou um arquivo, encontra-se um jardim esplêndido. É um quadrilátero com desenhos em vegetação, lindíssimos e grama esmeraldina própria da Europa.

Depois de uma interrupção se vê, mais ao longe, outro jardim, penteado de tal maneira que não poderia a natureza ser mais arranjada e governada do que está ali. Em compensação, do outro lado existem os encantos de uma arborização puramente silvestre.

Suponhamos que nesses locais não houvesse mato, mas grama. Perder-se-ia o panorama. Quer dizer, tudo que parece espontâneo foi estudado com uma sagacidade extraordinária para um efeito de conjunto. Porém, com uma tal perfeição que a noção de harmonia nasce sem que a maior parte das pessoas saiba dizer de onde ela surgiu.

O bonito da harmonia está em que não se consiga precisar exatamente no que ela consiste. E é preciso muita atenção e explicitação para se definir onde a harmonia se encontra.

Nesse castelo há uma sinfonia de harmonia feita de um conjunto de coisas que produzem um primeiro entusiasmo; mas depois resistem a uma demorada visão, porque sua análise satisfaz o espírito.

Não é uma sensação irracional, mas sim de acordo com a razão, repentinamente satisfeita por algo de ótimo e que repercute nos sentidos.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  em 2/1/1969).

1) Período preparatório

 

Solidão e convívio

Quando todas as relações sociais se impregnam do verdadeiro espírito católico, o homem nas suas solidões é introduzido no convívio humano de um modo reto, proporcionado, amoroso; dessa sociedade evola-se o bom aroma de Nosso Senhor Jesus Cristo.

 

Embora o homem seja um ser fundamentalmente sociável, por sua natureza, nas profundidades de si mesmo ele pensa, sente e elucubra só, ou seja, tem uma vida de solidão. Essa solidão é para ele, ao mesmo tempo, sumamente aprazível, mas em algo penosa, porque sente certa insegurança perguntando-se a si próprio — não é uma pergunta que ele se faça explicitamente — se o consenso universal está de acordo com o pensamento dele. Isso porque ele é levado a achar que o consenso universal é acertado.

Segurança e insegurança decorrentes do instinto de sociabilidade

Por exemplo: gostar muito de música. Se for um homem muito cauto, ele se perguntará se o seu gosto está na linha do equilíbrio humano verdadeiramente. Ele apreciará ver que outros arqui-gostam de música, tanto quanto ele. Esta noção de que há outros com ele dá-lhe uma espécie de segurança naquilo para onde ele ruma.

Por outro lado, essa segurança compensa de algum modo o instinto de sociabilidade que fica chocado por não ter essa forma de apoio. Ademais, ele percebe que no seu isolamento não é suficiente para abarcar tema nenhum. E, portanto, o próprio abranger global de um assunto não é praticável sem essa comunicação.

Mais ainda: quando se tratam de altas cogitações, o homem nota que aquilo que ele cogita segundo a ordem do universo mereceria ter outros que também pensassem. E que aquilo que ele sozinho estima fica meio depreciado. Há uma violação da ordem do universo que só ele admirará.

Assim, por exemplo, se um homem se visse o único admirador do Monte Saint-Michel na Terra, além de ter a insegurança quanto ao seu próprio bom senso, e da necessidade de outras repercussões para compreender bem o monte, ele teria uma espécie de frustração de notar que o monte não se fez venerar como deveria. E como aquele monte representa para ele um absoluto, seria um pouco como se o absoluto se tivesse deixado relativizar. E daí uma frustração perturbada que atinge a alma dele no fundo.

Se um homem, no fim do mundo, chegasse à conclusão de que o Monte Saint-Michel não tem mais condições de se fazer venerar pelos homens — não porque tivesse perdido a beleza, mas porque a humanidade mudou irreversivelmente —, se esse homem tivesse um senso axiológico(1) reto, fosse inocente, concluiria: “Vai acabar o mundo”.

Contudo, se for alguém sem um senso do ser reto, máxime se pertencer a uma religião ou corrente filosófica que não lhe tenha dado o ensinamento a respeito do fim do mundo, ele pensará que o mundo vai rolar eternamente, e nessa pessoa entrará um sentimento contra o Monte Saint-Michel, como quem diz: “Embora eu não saiba e não consiga ver, há em ti, ó Monte Saint-Michel, alguma coisa falha que não percebo”.

Um dos prazeres mais prenunciativos do Céu

Poder-se-ia perguntar: Por que o ressentimento não se volta contra os outros?

Pela ideia de que o senso universal não pode estar errado. E nesse caso o senso universal venceu.

Isso por que essa pessoa não está inteiramente convencida do absoluto. Seria alguém não compenetrado da ideia de que a opinião pública é versátil, falível. E há muita gente com mentalidade assim.

Se formos nos aprofundar no tema do convívio, notaremos que temos uma tendência a achar que as ideias ao encalço das quais nós caminhamos devem simbolizar-se de um modo excelente em algumas tantas pessoas. E descobrir as pessoas-símbolos de nossas ideias é o grande encontro da vida.

Isso constitui um dos prazeres mais internos que o homem possa ter na vida, realmente mais prenunciativos do Céu; é cercar-se de condições por onde essas várias formas de isolamento sejam harmonicamente rompidas. Isso vale muito mais do que ter um automóvel, um barco etc. É a busca do absoluto, da verdade e do bem, em função também do instinto de sociabilidade.

Compreendemos, assim, o caráter desinteressado do teor das relações no Reino de Maria. Não é, portanto, um relacionamento para fazer carreira, para arranjar um bom negócio, ou para qualquer outro interesse. É uma relação boa para conduzir a estados de alma assim. E que devem dar, por causa disso, também numa coisa inerente à natureza humana: faz parte do instinto de sociabilidade querer ser amado. O ser humano deseja que aquilo que o rodeie tenha um tipo de compreensão dele, por onde, entendido como ele é, nas suas retidões, seja querido como deve ser.

Quando a vida espiritual de uma sociedade é bem organizada, e todos em geral vivem essa vida, as relações naturais das pessoas — o ambiente familiar, a escola, a paróquia que elas frequentam devem oferecer-lhes, a vários títulos, jogos mais ou menos completos de relacionamentos assim.

Analogia entre as muralhas das cidades medievais e o relacionamento humano

Certos aspectos retratados em pinturas, iluminuras representando as sociedades medievais, cidades cercadas pelos próprios muros e com casas umas junto às outras, me dão uma ideia deste relacionamento. Eu sei que aquele muro tem como razão de ser o adversário que vai chegar. Mas percebe-se que ali se levava uma vida tão aconchegada, que se tem a impressão de que a muralha é uma condição para o aconchego de todas essas solidões bem ordenadas ali dentro, e que davam uma organicidade à vida, que era um motor, ou o próprio motor do resto da organicidade. Por isso também a destruição das muralhas traz-me uma dupla impressão: de um lado, o advento da era do otimismo em que tudo se resolveu, não vai mais haver dramas, as cidades não precisam de muralha; de outro lado, a impressão de uma cidade que se dispersa afetivamente, perde essa proximidade de um com o outro e se desconjunta, e a vida de individualismo começa.

Tudo tem que ser concebido a partir de pessoas que se relacionam desse modo.

Assim como há um perfume que se evola do turíbulo, quando falamos de Cristandade sentimos também um perfume que provém fundamentalmente deste relacionamento. Quer dizer, quando todas as relações sociais se impregnam disso, tomam o homem nas suas solidões, introduzem-no assim na sociabilidade e o instalam dentro do convívio humano de um modo reto, proporcionado, amoroso, evola-se, a meu ver, o bom aroma de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Uma coisa fantástica para mim é constatar como, ao considerar Nosso Senhor Jesus Cristo e tudo quanto Ele disse e fez, a pessoa se sente atendida neste relacionamento de todos os modos, formas e graças possíveis. Quer dizer, é um dos traços que nos fazem sentir na presença d’Ele mais “em casa” do que diante daquilo que nos for mais chegado.

Então, a Cristandade, antes de ser uma federação, uma união, uma coligação de povos para expandir a Fé, redigir os estatutos para uma mesma lei, originariamente era uma sociedade da qual se evolava esse perfume sem o qual não adianta falar em Civilização Cristã.

Entretanto, há nisso uma determinada ordenação, porque o homem bem constituído, embora seja sequioso de romper o seu isolamento, é sedento, sobretudo, de não destruir as muralhas e não se perder no meio da sociedade. Ele quer ser inteiramente ele mesmo, com sua legítima individualidade.

“Élans” de alma representados na arquitetura

A arquitetura medieval, elaborada por intenções de caráter estratégico, tático e econômico, tem esses “élans” de alma que representam o contrário harmônico do que estou dizendo.

Por exemplo, um castelo-fortaleza com a casa do senhor feudal. A certa altura encontra-se o “donjon”. Na muralha, de vez em quando, se erguem torres também. O “donjon” se levanta, mas há outras torres que não são “donjons”, nem estão nas muralhas. De cá, de lá, de acolá, erguem-se como uma espécie de desafio de torres que querem ir para o céu.

A torre representa, em relação ao corpo do castelo, algo como é a alma quando ela se destaca para cima, de dentro da coletividade, onde ela está perfeitamente bem instalada. Ela por alguns lados tem a necessidade de subir sozinha. Este isolamento não é uma ruptura do convívio, mas quase um produto deste. Está em harmonia com o convívio.

No “donjon” há algo que fala disso ainda mais: é um torreãozinho suspenso do lado de fora. Fica um encanto! É como quem diz: “Em relação a esse castelo para o qual fui feito, sem o qual não existo e em função do qual me explico, há certos lados de minha alma que me levam a me isolar legitimamente.”

Não se trata de ser inimigo do pátio, onde está a entrada da casa do castelão, um homem pregando a ferradura do cavalo e uma mulher lavando roupa, e onde se vê o vigário entrando na capela. Não é isso! É amar a harmonia dessas coisas posta por Deus.

Creio que tudo quanto falei da sociabilidade do homem ficaria meio adulterado se eu não fizesse esta ressalva. É preciso ter esse equilíbrio, e ao mesmo tempo entender que a guarita e a torre rompidas com o castelo viram prisões, mas que o castelo concebido como uma mera aldeia super-fortificada por construções horizontais atrás de muralhas, não corresponde ao instinto de sociabilidade bem ordenado.

Não obstante, há um elemento nas construções mais recentes que dá uma impressão parecida com a da guarita: em certas casas há mansarda na qual se abre de repente uma janela e há um quarto dentro da mansarda, com uma espécie de autonomia dentro da casa, onde quem mora pode levar a sua própria vidinha, entretanto, muito ligado à casa. Ali há uma condição que simboliza esse desejo da alma de ser só ela mesma, onde existe uma solidão bendita.

Na Roma antiga há umas coisas assim pitorescas. Umas casas, mas leprosas, sobre as quais faltou espaço para mais dois ou três “bambini” que nasceram. Então, construíram em cima uma casa de pedra que pode datar dos romanos, mas junto a um muro que talvez tenha pertencido a um palácio imperial. Puseram em cima um andar de madeira e, para aproveitá-lo melhor, fizeram uma projeção sobre a rua, apoiada em duas vigas aparentes.

Gáudios do convívio e do isolamento

Uma manifestação muito curiosa, pitoresca, desses vários estados de alma é a existência de frisas e camarotes nos teatros antigos. O que faz para a audição da peça aquele biombozinho à altura da cintura de um homem, que separa uma família da outra? Se em vez daquilo houvesse um cordão de seda, ou não houvesse nada não seria a mesma coisa? Aquilo indica uma vida própria dentro da vida geral. A família está contente de estar com todos, mas ela tem seu espaço.

Todos esses gáudios juntos, do isolamento e do convívio, nós teremos no Céu. Nas nossas relações com Deus somos, ao mesmo tempo, elementos vivos desse imenso castelo que é o Céu, mas somos torre, e até guarita, em alguma coisa de confidencial entre Deus e nós e que só nós sabemos, e é o ponto da requintada intimidade com Ele, e que não podemos contar aos outros.

Se uma pessoa, voltando-se a Nosso Senhor Jesus Cristo — representado nas boas imagens como, por exemplo, a de Turim — se ajoelhasse diante daquele Varão tão inflexível e tão soberano que está no Sacro Volto e dissesse o que tem de mais “guarita” na alma, tenho certeza de que seria compreendida por Ele a cem por cento, como ninguém, e encontraria n’Ele o Arquétipo daquele aspecto de sua alma.                v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/3/1982)
Revista Dr Plinio 219 (Junho de 2016)

 

1) Termo derivado de “Axiologia”: ramo da Filosofia que estuda os “valores”, isto é, os motivos e as aspirações superiores e universais do homem, as condições e razões que dão rumo à sua existência, para os quais ele tende por insuprimível impulso da sua natureza.

 

 

Nobreza, severidade e dignidade

A praça onde se encontra o Paço Municipal de Siena — juntamente com a Praça de São Marcos, a de São Pedro e a Place Vendôme — é uma das mais bonitas da Cristandade.

 

Um dos prédios mais bonitos que existe é o Paço Municipal da cidade de Siena, situada a uma distância considerável de Orvieto. Há ali uma grande praça pública e veem-se uns prédios de construção mais ou menos antiga. A praça no seu conjunto forma uma moldura adequada para o Paço Municipal. O prédio merece uma análise.

Equilíbrio arquitetônico

O edifício se compõe de três corpos diferentes: um principal, que é o prédio propriamente dito, composto por sua vez de uma parte central guarnecida de uma de torre, com um círculo bem no meio. Em cima, ameias, e nos dois extremos da fachada, como que dois torreõezinhos vazados.

Como essa construção data aproximadamente do fim da Idade Média, e as guerras entre senhores feudais, entre cidades, estavam terminando, o aspecto de castelo fortificado que o Paço Municipal conserva é mais uma reminiscência artística do que uma necessidade tática para defender o paço. As ameias continuam no alto, e terminam agradavelmente o prédio.

Há um equilíbrio arquitetônico muito bonito entre os dois lados, os dois corpos de edifício mais abaixo e, no centro, um mais alto onde se encontram os tais torreõezinhos.

A torre grande forma praticamente um edifício separado do Paço Municipal e possui um relógio, o qual, para o tempo em que foi instalado, representava um grande progresso. No alto está o campanário dos sinos do Paço Municipal, por meio dos quais se davam os avisos aos habitantes da cidade, em caso de perigo, de incêndio, etc.

Em baixo, encontramos uma espécie de tribuna de mármore branco encostada na torre, mas não constitui um só todo com a torre. É também uma beleza!

Esses três elementos juntos formam uma verdadeira maravilha.

Nessa praça realiza-se a famosa festa do Pálio de Siena, que atrai turistas do mundo inteiro. Vários bairros da cidade, denominados “contradas”, comparecem a cada ano com seus trajes, bandeiras e hinos característicos, e realizam uma corrida de cavalos em honra de Nossa Senhora, em meio a uma festa tão fabulosa que todas as janelas em torno da praça são alugadas a um preço enorme, e com muita antecedência.

Este é um dos aspectos dessa praça que faz dela, junto com a Praça de São Marcos, a de São Pedro e a Place Vendôme de Paris, uma das mais bonitas da Cristandade.

Severidade e dignidade do Palácio

Mas o que é muito menos conhecido e perfeitamente notável é a parte interior do edifício municipal, o qual é um palácio com lindas ogivas e salas com alguma coisa ainda do arranjo medieval. De maneira que se pode saborear com toda a intensidade o que seria um palácio medieval no período em que a Idade Média estava caminhando do meio para o fim.

Vejam a nobreza — eu quase diria a severidade e a dignidade — desse prédio, curiosamente côncavo.

Notem na parte alta da torre o mármore branco próprio à região, como é bonito! Por outro lado, como essas reminiscências de ameias e de contrafortes para escorar as ameias tornam bonita a cena do campanário. No alto encontramos ainda o local para pendurar os sinos, que tocavam para dar avisos à cidade.

No interior do Paço Municipal, o único objeto moderno é o lustre com lâmpadas elétricas encarapitadas ali. Percebe-se a indústria do latão e do bronze do século XIX, com muito menos nobreza do que as tochas que na Idade Média se colocavam. O resto é estritamente medieval e muito bem conservado, com chão encerado de modo exímio e as pinturas das paredes muito bem conservadas também.

Percebe-se a riqueza do ambiente. Essa impressão de fausto é causada, por exemplo, pelas pinturas. É de notar também a grossura das paredes. Basta percorrer com o olhar as pilastras que separam os arcos para ver como as paredes são grossas e como todo o edifício é sólido. Isso corresponde, até certo ponto, à ideia de edifício-fortaleza, por causa da guerra urbana. Pode-se imaginar o esplendor de uma festa noturna dentro de uma sala dessas…

Há ali uma capela separada do restante da sala por um gradeado lindíssimo. Nas paredes, belas pinturas de cunho religioso, muito adequadas à capela. Depois, por outro lado, a sala se prolonga para outros fins.

No pátio interno do Paço Municipal vemos as lindas ogivas e bandeiras colocadas em um dos corpos de edifício. Já o outro corpo de edifício mais adiante é digno, mas menos bonito e mais recente, e também está adornado por alguns estandartes.

A catedral e as residências fortificadas

A Catedral de Siena é lindíssima, construída segundo a mesma técnica da matriz de Orvieto. Nela encontramos lindos mosaicos, por exemplo, nos tímpanos das portas, esculturas, e a torre listrada de mármore branco de acordo com o estilo existente em Florença e em outras cidades mais ou menos dessa região.

Em certas igrejas antigas, a pia batismal ficava colocada num apêndice do edifício sagrado. É o caso da Catedral de Siena.

Outro aspecto interessante é o púlpito, inteiramente destacado de qualquer coluna ou parede, e amplo, possibilitando ao pregador mover-se em todas as direções. Havia para isso uma razão prática: essas igrejas eram muito grandes e se enchiam de fiéis inteiramente. E não havia luto-falantes e coisas desse gênero. Então, o pregador tinha que se colocar em posições diversas no púlpito para fazer ouvir sua pregação ora para um lado, ora para outro, evitando desfavorecer excessivamente uma parte do público que estava na igreja.

Em Siena veem-se prédios antigos que, embora não sendo palácios, possuem ameias. Não se trata apenas de uma reminiscência da Idade Média. As lutas de cidade com cidade tinham cessado, mas as querelas entre famílias na mesma cidade ainda existiam. Então eram lutas de casa contra casa. Por isso, às vezes, as residências eram fortificadas.

Em muitas casas encontramos lindas janelas medievais, junto às quais são colocadas, por vezes, bandeiras, todas muito originais. Quiçá são as bandeiras das tais “contradas” que ali permanecem até o momento de serem entregues aos que participam daquele espetáculo.

As ruas da cidade são sempre pitorescas. São as antigas ruas da velha Itália.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/11/1988)

Revista Dr Plinio 219 (Junho de 2016)

 

O centro da nossa existencia

A ossatura e a certeza de minha alma são o amor e a obediência à Santa Sé. A tal ponto que posso me definir espiritualmente como sendo escravo de Maria, e intelectualmente, como escravo da Santa Sé, aderindo a ela em tudo, por tudo, em todas as circunstâncias. A segurança de meus raciocínios se baseia no fato de serem desdobramentos da doutrina da Igreja, pois se algo há de que estou seguro, é da vinculação efetiva, indestrutível, entre Nosso Senhor, Nossa Senhora e a Santa Sé Católica, Apostólica, Romana. E quem diz Santa Sé, diz, sobretudo, o Papa.

O Papado é o centro da Igreja. A Igreja é o centro de nossa vida. Logo, o Papado é o centro de nossa existência.

Plinio Corrêa de Oliveira.

O Divino Interlocutor

Em sua concepção sacral da existência, no processo de seu pensamento e até na elaboração de uma arte de conversar, Dr. Plinio tinha como fonte de inspiração e ponto de convergência o Sagrado Coração de Jesus.

 

Início, expansão e morte

E isso é tão diferente nas várias espécies de vegetais, e em cada planta em particular! É diverso nos bichos e nas velocidades materiais. E também em todo o processo de pensamento e de desenvolvimento do homem.

Nesse crescer, expandir-se e morrer, Deus Nosso Senhor fez um verdadeiro jogo de maravilhas, que evidentemente as pessoas que cultuam a natureza não se dão o trabalho de apreciar. Porque isso supõe um mínimo de pensamento, de contemplação e de meditação. E esse tipo de meditação, em geral, elas não querem fazer.

Tudo isso — nas plantas, nos animais e nas velocidades materiais — é simbólico, de um modo ou de outro, do processo do homem; é simbólico da vida terrena de Nosso Senhor e da trajetória da História, do curso dos acontecimentos.

Até mesmo certas coisas que são feitas para matar e não para viver — por exemplo, uma batalha — têm seu começo, seu crescimento, depois seu murchamento, e caem. Um dos aspectos bonitos desse estudo é a questão dos recrudescimentos: quais são suas origens, que forças têm, como se faz um recrudescimento. Só o tema dos recrudescimentos daria para uma doutrina interessantíssima da Contra-Revolução.

Até os fogos de artifício podem ter uma trajetória muito bonita nesse sentido.

Um universo de belezas

Uma das coisas que eu gosto de apreciar no mar é exatamente o nascimento da onda, depois o sistema de ondas, quando elas arrebentam ou expiram na praia.

Também, a ilusória perpetuidade da calmaria… Como, dentro da calmaria, o primeiro elementozinho indica uma mudança completa das coisas que vão se acumulando. É um processo muito bonito!

Isto tudo é uma verdadeira maravilha que depois tem sua transposição para os processos políticos, para a história das instituições, das correntes de espiritualidade, etc.

Há um universo de belezas aí, que ao homem foi dado contemplar com olho rápido, furtivo e atento, porque não tem tempo para pensar nisso. Mas que é uma coisa lindíssima!

Por exemplo, há mortes que são como um Amazonas desembocando na eternidade; quase que empurra a eternidade um pouco para fora. Mas existem outras mortes como um riozinho pequenininho, humildezinho, que vai dar diretamente no mar e se perde, envergonhadinho, com um sussurro que o mar incorpora a si…

Há uma porção de coisas bonitas, interessantes, para ver dentro disso. E isso se aplica muito à história de um homem.

Por temperamento, sou muito estável e gosto das coisas estáveis, que duram na calmaria.

Não concebo o Céu num perpétuo movimento, mas com diferentes modos de ser da estabilidade. Não é a instabilidade; é a mutação dentro da estabilidade.

Processo de pensamento de Dr. Plinio

Todas as doutrinas e temas — portanto, também o conceito de sacralidade — têm um modo de se desenvolver peculiar de cada indivíduo. Em mim, essa peculiaridade é assim:

Primeiro, um nascimento cheio de intuições, de graças, ultra-alcandorado, em que entra de um modo especial uma visão confusa do ultra-maravilhoso e do ponto terminal bom, do ponto supremo, do auge; e o encantamento por esse auge.

Depois do auge bem visto, e de dar a ele tudo quanto naquele estágio da vida espiritual ele merece que se dê, então vem um período de aparente estabilidade; mas de fato é um período em que se vai “cozinhando” lentamente a explicitação.

Ao mesmo tempo — é como se dá concretamente comigo — um período de luta, em que a explicitação é ajudada possantemente pela contestação. Porque aquele conhecimento confuso, primeiro, vem acompanhado de uma implícita rejeição do que não é aquilo. E quando alguém afirma o contrário, vem a repulsa.

Na repulsa implicitamente fica mais conhecido aquilo que foi negado. E, ao mesmo tempo em que se prepara a apologética, elabora-se a explicitação. A apologética e a explicitação são fenômenos reversíveis um no outro. De maneira que eu me torno conhecedor das coisas por dois dados: por uma espécie de conaturalidade, e por uma espécie de repulsa daquilo que é contrário.

Num determinado momento, tudo o que se podia conhecer a respeito daquilo está conhecido, com os próprios recursos e com a observação concreta da vida. Aí chega a hora da leitura. Não antes.

Podem percorrer todos os livros de minha biblioteca, e encontrarão sinais disso. A leitura veio exatamente depois para ajudar esse processo, dando mais informações, fazendo com que a pessoa se situe ante o que diz o escritor e, portanto, julgue: é “sim”, é “não”, é “talvez”, é “conforme”, etc.

Depois de tudo isso feito, há mais uma vez uma nova aparente estagnação, em que todos esses elementos recolhidos são objetos de uma nova síntese. E vem uma visão final que depois cresce pouco, na aparência, mas que de fato tem muita intensidade. E prepara o ato de amor terminal.

Eu não sei se isso será assim em outros. Desconfio muito que não, e que varia muito de acordo com o caminho de Deus para cada pessoa.

A inocência é o princípio da sabedoria

Graças a Nossa Senhora, há nesse processo muita inocência. Porque não é só conhecendo a coisa em si, mas é conferindo os dados externos com a inocência. A inocência, nesse sentido, é um começar de sabedoria. Ela constitui uma espécie de ortodoxia.

O que eu disse agora, há um ano eu não teria tão claro a ponto de explicitar; neste momento estou explicitando com facilidade.

Na aparência, isso em mim se encontrava parado; mas, de fato, estava sendo preparada esta explicitação. O que indica que havia uma ação profunda — muito silenciosa, tranquila, discreta, mas não pouco ativa — para passar do último estágio de um conhecimento confuso para o conhecimento inteiramente definido.

Seria um crescimento contínuo sob a forma de estabilidade, mas na realidade trata-se de uma ação em profundidade. Mais ou menos como o desenvolvimento da árvore já crescida, que não cresce mais, mas suga da terra coisas que dão ao processo vital da árvore o meio de ir vivendo. Examinando bem, a árvore pode, durante muito tempo ainda, crescer em força e em volume por esse processo.

Então, o conhecimento da transcendência de Deus, por exemplo, depois de chegar a certo estágio, entra nessa fase de elaboração profunda, pouco perceptiva, que de repente dá um fruto muito mais sutil e melhor, que é fazer as correlações entre os conjuntos que se têm na mente, e daí nasce um determinado “unum”.

E esse é o píncaro do processo intelectual e moral. Porque esse píncaro já é a primeira nota, é a antífona do cântico que nós devemos entoar no Céu.

Procura do mundo dos possíveis

Esse é o processo de conhecimento das coisas que poderiam ou deveriam existir, algumas das quais existem. Por exemplo, quando vejo um belo castelo. Ele corresponde a ideias que todos tivemos na mente sobre um castelo inexistente. Então, minha primeira reflexão é: “Aqui está o inexistente que eu procurava!”

Muita coisa, que parece estar no mero mundo dos possíveis, existe. É questão de saber procurar. Em última análise, se fosse bem ordenado, o turismo perfeito seria uma procura pelo mundo dos possíveis que a pessoa não conheceu.

Essa procura é um pouco o que vai dando ânimo e movimentação à vida. O contrário é o tipo de velho que, no domingo, às três horas da tarde, junto com sua esposa, acabou de almoçar; ele está bem satisfeito e ela está aliviada porque o marido almoçou bem e gostou da refeição. Ele se senta numa cadeira e fica ruminando, com desapontamento, porque ele acha que não há mais possíveis.

Propriamente, a substância dessa velhice mal concebida é crer pouco nos meramente possíveis do Céu, e achar que na Terra não adianta conhecê-los, porque já se viu que todas essas coisas fanam. Então o velho fica sentado na cadeira, ruminando sua bronquite. Essa é a substância desse conceito de velhice.

Antigamente, como a senhora — de modo habitual, não necessariamente — era melhor do que o homem, ela ficava pensando um pouquinho no Céu e nas saudades do tempo que se foi.

O homem, pouco sujeito a saudades, não pensava no Céu, mas de vez em quando o relâmpago do Inferno lhe aparecia pela mente. E isso o levava a fazer a sua Confissão e Comunhão pascais. Assim era a velhice.

Havia uma casa — creio que não existe mais — na esquina da Rua Imaculada Conceição com a Rua Martim Francisco(1). Eu percebia, pela conformação do prédio, que existiam muitos quartos de dormir vazios; donde se deduz terem morado filhos ali, que depois tinham se mudado, e o casal residia sozinho.

Eu, então, imaginava o velho e a velha possível no nível daquela residência, que era uma casa mediana. Esse velho e essa velha eu os construía de vários velhos e velhas que tinha conhecido.

Como a ideia da Contra-Revolução foi elaborada no espírito de Dr. Plinio

Estou explicitando agora. Mas a explicitação é fruto de um trabalho lento, que a mim me dá a impressão de que não estou trabalhando, mas simplesmente vivendo. Eu diria que parei. Mas, de repente, saio com uma enxurrada de coisas que, assim, nunca pensei. É o lento trabalho terminal que deve aprontar na mente.

A Contra-Revolução, considerada no seu conjunto, teve exatamente esse papel no meu espírito.

Primeiro formei impressões, observei fatos, tomei conhecimento pela leitura de alguns tantos acontecimentos históricos, e também conheci muito pelas narrações, mais ou menos à Alexandre Dumas, que circulavam no ambiente familiar, a respeito desse ou daquele caso.

Por exemplo, Maria Antonieta. Na minha geração, o preconceito contra Maria Antonieta era uma coisa atroz: “Mulher dura, má, traidora, favorecia os austríacos! De uma beleza esplendorosa — era vista assim — que fazia com que todas as mulheres feias ficassem complexadas, pensando nela!”

Mas contavam que o povo faminto chegou a Versailles, e ela estava tão alheia às verdadeiras necessidades do povo que disse: “Então, se vocês não têm pão, comam brioche”. E ela nem sabia bem que brioche era mais caro que o pão; porque problema de dinheiro não existia para ela. Então deu um conselho que provava — assim diziam — como ela vivia alheia ao sofrimento do povo.

Eu me lembro de, ainda pequeno, perguntando para Dona Lucilia:

— Mas, mamãe, o que é brioche?

— Uns bolinhos excelentes.

Não cheguei a me perguntar por que ela não fazia brioche para eu comer. Até lá a gula não chegou… Mas vejam a provação para uma criança que ainda não sabe o que é brioche:

“Então as pessoas bonitas, alinhadas, estiladas, superiores não têm coração porque seguem demais regras e se endurecem com essas regras? Por que seguir a regra endurece e cega para a compaixão com os que não conseguiram seguir a regra? Então, seguir as regras é mau?”

Minha resposta interior:

“Não pode ser. Porque entre bem e bem não pode haver incompatibilidade.”

A doutrina não é o ponto de partida, mas o de chegada

A importância que dou ao raciocínio faz com que eu não considere nada por acabado se não foi raciocinado. Porque todo esse processo de intuição tem que chegar a raciocínios que provem ou não provem aquilo que foi antes intuído, apalpado, pressentido.

Podem, então, imaginar o meu encantamento lendo o “Tratado de Direito Natural”, de Taparelli d’Azeglio, o “Tratado de Sociologia Católica”, de Albéric Belliot, um franciscano; enfim, uma flotilha de coisas que eu li e me provaram, por exemplo, a legitimidade do direito de propriedade, que era uma coisa instintiva, mas cuja legitimidade eu apanhei aí.

Quando vi que o direito de propriedade, a instituição da família, a indissolubilidade do vínculo matrimonial, a autoridade paterna — cuja liceidade era intuída por mim — se baseavam num raciocínio claro, límpido, perfeito, tive um entusiasmo enorme!

Isso deu ao meu pensamento uma estrutura que veio depois de mil apalpações.

Essa é uma característica do meu espírito: não começar por ler a doutrina, mas por pegar a realidade. Depois de ter intuído na realidade, ir ver a doutrina. E aí ter um contentamento, um gáudio enorme.

Estou longe de ser daqueles que julgam dever prescindir da doutrina, mas a questão é que para muitos a doutrina é o ponto de partida, e na conformação do meu espírito é o ponto de chegada.

Todas essas coisas com o tempo acabam formando um depósito primeiro de impressões maturadas, para raciocinar. E enquanto já vou raciocinando algumas de minhas impressões, continuo a maturar ou explicitar outras. Então, nós poderíamos dizer que esse processo é:

Primeiro: observar, captando e classificando subconscientemente.

Segundo: estabelecendo oposições, e começando por aí a explicitação.

Terceiro: fazer os primeiros raciocínios que constituem pontas de trilho para que, daí para diante, em contato com qualquer coisa nova o processo inteiro vai se movendo.

Concepção sacral da vida

Isso forma inclusive o progresso na vida espiritual.

Por exemplo, a noção de sacralidade, no começo, é muito mais vívida em relação à Igreja. Depois menos em referência à autoridade paterna dentro da família como entidade toda ela sacral, num certo sentido especial da palavra “sacral”. E também em relação ao mito monárquico dentro do Estado, que pode ser sacral se o indivíduo quiser vê-lo assim, oferecê-lo à Igreja e pedir as bênçãos dela a fim de sacralizá-lo.

Isso acaba dando lugar a uma noção de sacralidade adequada às coisas temporais, que é um desdobramento da noção do sacral — própria das coisas estritamente espirituais e sobrenaturais — e formando no espírito vários degraus e modos de ser da sacralidade, cujo auge sempre me pareceu como sendo a Consagração durante a Missa, mais do que a minha Comunhão.

Agora, uma coisa que é pessoal: sou mais sensível à sacralidade do ato da Consagração, enquanto considerado na Consagração do vinho e a apresentação do cálice para o povo adorar, do que na Consagração do pão e a apresentação para ser adorado.

Eu tinha a impressão — que soube, depois, não corresponder à realidade — de que a transubstanciação se dava no momento da elevação. E daí aquele respeito e aquela veneração! Porque nos fiéis há um redobrar de respeito e veneração, quando o Santíssimo é elevado. Compreende-se, porque é exposto para eles adorarem, então fazerem um ato interior que corresponde a essa exposição. Mas eu achava que era porque a transubstanciação estava se dando naquele momento.

A forma material do cálice é tão evocativa do que é o oferecimento da sacralidade! Uma alma que se oferece, ou oferece alguma coisa de dentro de si, é tão bem representada por um cálice que se abre e que dá tudo o que tem! Por outro lado, o vinho é tão mais parecido com o sangue, do que o pão o é com o corpo, que tudo isso me dava mais sensação — puramente física e analógica — de sacralidade.

A simples presença do Santíssimo Sacramento exposto me dava uma sensação de sacralidade colossal. Muito mais do que o Santíssimo guardado na capela-mor. Poder chegar perto d’Ele, adorá-Lo, produz em mim impressões de sacralidade que eu acho que possuem qualquer coisa de místico, muito maiores do que as que se têm em contato com a sociedade temporal.

Mas por esse progresso de alma de que estou falando, a pessoa vai compreendendo que em formas, termos e modos diferentes, a sociedade temporal inteira acaba tendo qualquer coisa de sacral. E, então, uma concepção toda ela sacral da vida vai se maturando lentamente, ao longo das décadas, para depois fazer uma conferição com os autores especializados.

Porque a palavra definitiva é deles. Eles representam a Igreja, que é infalível e, portanto, vamos ouvir o que a Santa Mãe Igreja ensina a esse respeito. E ensina, na força da palavra “ensinar”: quer dizer, ela é a Mestra infalível, eu sou o aluno bobo que posso ter feito um engano, e apresento a ela aquilo que pensei.

No princípio não estava o livro, mas o pensamento

É um processo que, em certo momento, entra numa aparente estagnação, e continua a elaboração em profundidade. De maneira que quem me conhece há muito tempo, é possível que tenha tido ideia de que em algumas coisas eu estou me repetindo indefinidamente. Mas se forem examinar de perto notarão que tem sempre alguma coisinha nova, que corresponde em profundidade a esse processo lento.

Mas isso levanta um problema: Esse não é — em suas linhas gerais, não nos seus pormenores — o próprio método de pensar legítimo do espírito humano?

Vamos formular a coisa assim: O primeiro livro foi escrito por um homem que não teve livros. Então, a cultura nasceu de um pensamento anterior ao livro. Logo, no processo intelectual, no princípio não estava o livro, mas o pensamento.

Então, eu volto ao ponto de partida.

O “unum” é o Sagrado Coração de Jesus, de uma majestade infinita, doçura infinita, sabedoria infinita, de um poder infinito e de uma bondade infinita; para dizer só alguns atributos. Tudo isso é uma síntese para chegar até Ele, compreendê-Lo.

A teoria geral das várias formas de crescimento, de desenvolvimento, que apresentei no começo da reunião, parece não ter relação alguma com Ele. Mas, no fundo, é a Ele que visamos. Ele é o alfa e o ômega; o “unum” é Ele! Ele é o começo e o fim de tudo. E se de algum modo todas essas reflexões não visassem o melhor conhecimento d’Ele, não teriam valor.

Numa conversa os espíritos vão evoluindo juntos, como num dueto musical

Em toda essa teoria, a conversa tem um papel enorme, porque ela, no fundo, requer certo discernimento dos espíritos e uma percepção do que convém ou não ser dito. Quando não convém, deve-se ter o suficiente desapego para não tratar.

Muita gente conversa sobre aquilo que tem vontade de conversar. Isso é a morte da conversação. A conversa boa nem é sobre aquilo que tenho, ou meu interlocutor tem, vontade de conversar; mas sim tratar daquilo em que nós dois podemos igualmente gostar de conversar. O resto é a morte da conversação.

À medida que uma conversa está bem travada, os espíritos vão evoluindo juntos, como num dueto musical. E quando se entendem bem, vão mudando de tema igualmente, muito mais por apetências do que por nexos lógicos. Entra em algo o nexo lógico, mas são nexos psicológicos, mudanças de temas vizinhos, que vão fazendo com que as duas pessoas gostem das mesmas coisas. Então a conversa aí se torna deliciosa.

É mais ou menos como, por exemplo, duas pessoas que passeiam juntas no centro de Roma, a caminho das catacumbas. Passam por uma loja qualquer que tem gravatas bonitas; os dois estão precisando comprar gravatas; param, olham, gostam, conversam. Depois transitam em frente a uma confeitaria, e comem algum doce. E assim chegam à catacumba.

A conversa só pega mesmo — ao menos é a impressão que eu tenho — quando na pontinha do que está sendo conversado há qualquer coisa que é uma graça de Deus, sobre alguma coisa de transcendente, maravilhoso, que, por uma pontinha de consolação sensível, ambos estão sentindo.

Pode ser o “unum” ou não. Pode ser uma consolação, que todos têm juntos, sobre um ponto que Nossa Senhora quer glorificar. Então, a conversa em geral tem um fundinho comum de supremo. E quanto mais esse fundinho é sentido por todos, mais a conversa é animada.

Donde se tira uma conclusão linda: o principal interlocutor é o Interlocutor Divino, presente em nossa conversa, falando dentro das nossas almas e elogiando-se a Si próprio por nossos lábios.

A conversa, em sua natureza, tem algo de uma prece

Isso dá uma elevação ao conceito de conversa, em que Deus está sempre presente; não só — e já é muito! — através da Fé, mas também, no fundo, por alguma coisa comunicada diretamente pela graça, que se torna sensível e causa alegria. Esse é o sal da conversa, e que a Providência dá quando quer. É certa forma de sensível. Não é uma mera troca de ideias teórica, mas algo que vai mais alto.

Eu volto a dizer: pasma, mas é fato, o Divino Interlocutor é propriamente Aquele que fala. Ele fala pela boca de um, responde pela boca de outro e Se alegra pelo coração de todos. É uma coisa muito bonita!

Pode-se dar um fato parecido com esse, na ordem meramente natural. O exemplo mais característico disso é este: quando se está muito longe do país em que se nasceu, e vários co-nacionais se encontram inesperadamente em algum lugar, sai uma conversa animada.

O que há no gáudio de, por exemplo, vários brasileiros se encontrarem na Tailândia, inesperadamente, formarem uma conversa animada e serem capazes até de ir almoçar juntos?

Há um fato natural meio parecido com o sobrenatural — porque há muita analogia entre certos fenômenos naturais e outros sobrenaturais —, que é um ponto comum da alma do brasileiro e do ambiente do Brasil; o brasileiro, que se sente muito isolado quando está na Tailândia sem ter com quem conversar, quando encontra outros com o mesmo ponto comum, aquilo aflora com uma veemência extraordinária, e faz na conversação o papel natural, semelhante ao que a graça opera no tipo de conversa de que falávamos.

Outra coisa se dá quando alguns dos interlocutores, por serem bons católicos, são objetos de uma graça por onde os demais podem ficar deslumbrados. Isso pode ocorrer até no relacionamento entre um jovenzinho e seus colegas.

O que se passou nesse caso? É algo de Nosso Senhor Jesus Cristo, ou de Nossa Senhora enquanto canal necessário do Redentor, porque foi dita alguma coisa da Doutrina Católica, ou qualquer outra matéria por onde eles percebem, por um discernimento de espíritos que lhes foi dado no momento alguma coisa de maravilhoso e de celeste.

E isso pode determinar dois rumos diferentes: a conversão dos que estão ouvindo ou a perversão de quem está falando. Porque este fica sujeito ao seguinte raciocínio: “Aqui me compreendem mais do que nos meios católicos que frequento. Portanto, vou frequentar mais este ambiente porque aqui faço apostolado…” Mas, de fato, ele vai se atolando naquele ambiente mundano.

A conversa, em sua natureza, tem algo de uma prece. Quando está presente esse lado sobrenatural, é uma oração, uma coletiva elevação da mente a Deus.

Porém naqueles salões do período do “Ancien Régime”(2) — era uma coisa medonha! — havia uma graça propriamente sobrenatural, católica, de caridade fraterna, que dava na “douceur de vivre”(3), manifestamente presente lá, misturada com a frivolidade mais escandalosa e com a irreligião categórica.

Desde que o Divino Interlocutor esteja presente, a conversa é o verdadeiro prazer da vida

Uma pessoa frívola costumava dizer, na minha presença, que o verdadeiro prazer da vida era uma boa conversa. Também acho que conversar, desde que o Divino Interlocutor esteja presente, é o gosto da vida. E nenhuma outra coisa tem o valor da conversa.

E daí entra outro tema que quase justificaria uma conversa: não é compreensível a felicidade do Céu se não se admite o que estamos dizendo. Aquele co-louvor no Céu é uma conversa sumamente bem-aventurada, porque o Divino Interlocutor está presente, dando uma animação incomparável ao que dizem a respeito d’Ele, de si próprios, da História e do universo — sempre com vistas a Ele — todos os que estão ali participando.

Mesmo assim, é preciso tomar em consideração que o modo de ser apresentado o Céu por certas escolas espirituais deturpa-o e torna-o menos apetecível. Tenho a impressão — que é quase uma certeza, mas se a Igreja ensinar o contrário, no mesmo instante mudo de opinião — de que no Paraíso cada bem-aventurado conserva todas as características legítimas que teve na Terra.

E, no Céu, é interessante o fato de almas com personalidades tão diferentes estarem todas unidas na conversa, na interlocução a mais agradável, a mais amável, a mais nobre, a mais gentil, a mais elevada, a mais distinta, a mais recolhida e ao mesmo tempo a mais pseudo-dissipada que se possa imaginar.

De maneira que cada um ama muito que o outro seja de outro modo, e todos sentem as respectivas harmonias. E a presença de Deus se tornando continuamente sensível, conhecida e apreciável a todos, e sendo Ele, no fundo, o Divino Interlocutor dentro da alma de todos, há um tipo de conversa que é do gênero das conversações abençoadas aqui na Terra, mas com qualquer coisa que vai infinitamente além.

A conversa no Céu será como uma contínua oração

E aí compreendemos todo o gáudio que o Céu pode trazer, a partir do primado da conversa sobre todos os outros prazeres.

É uma coisa que nos é dada de vez em quando na Terra, um pouquinho, e que nos deixa fora de nós de contentamento. E no Céu nos é concedida contínua e plenamente, e com uma intensidade inimaginável. Donde a felicidade celeste.

Considerem as almas que certos estilos artísticos pintam como estando no Céu, todas elas têm a mesma personalidade, as mesmas características, e o co-louvor perde o sabor. Fica meio inimaginável um Céu saboroso.

Porém, imaginar que no Paraíso se está conversando, por exemplo, com um grande historiador e vemos São Tomás de Aquino que está passando, e lhe perguntamos:

— São Tomás, o que dizeis sobre este assunto?

Ele para extasiado, fica contente e responde com aquela simplicidade que lhe é característica:

— Olhe aqui, isso é assim…

Grande alegria! Ele passa, e ainda durante algum “tempo” — para usar nossa linguagem aqui da Terra — aqueles a quem ele ensinou ficam contentes por causa disso.

No “fim” do “dia” vão levar de presente para ele uma pedra linda que encontraram no Céu empíreo. Ele pega-a, fica encantado, e faz uma reflexão ultra-substanciosa sobre aquilo…

É a vida do Céu, vista com base na conversa tida como uma oração.

A conversa é uma coisa continuamente móvel. E como as perfeições de Deus são infinitas — Deus é insondável! — Ele é para nós, no fim de milhões, de trilhões de anos, tão novo como no primeiro instante.

Além disso, há o Céu empíreo, onde suponho que é dado ao homem fazer obras de arte, construir, organizar, arranjar, etc., e assim ter o gosto de realizar. Eu não acredito que um contemplativo tenha um verdadeiro gosto de contemplação se não tiver também o gosto da contemplação transformada em obra e deixada para outros.

Nesse sentido, por exemplo, quando li pela primeira vez aquelas palavras de São Paulo: “Combati o bom combate, etc.”(4), que ele pronunciou próximo da hora de morrer, aquilo me pareceu a morte por excelência, magnífica: “Eu pensei, eu fiz, eu deixei!” Quer dizer: “Aqui está!” E o ter feito é uma grande coisa.

Carlos Magno morrendo com a consciência de que ele fez um império, que coisa magnífica!

Bem, tivemos uma ótima conversa. Assim foi, porque o Interlocutor Divino estava presente.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/4/1989)

Revista Dr Plinio 207 (Junho de 2015)

 

1) Em São Paulo, bairro Santa Cecília.

2) Do francês: Antigo Regime. Sistema social e político aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.

3) Do francês: doçura de viver.

4) Cf. 2Tm 4, 7.

O fim da Idade Média inglesa

As palavras de Dr. Plinio abaixo transcritas, que versam sobre um dos mais importantes momentos da história inglesa, guardam profunda relação com seus comentários estampados logo a seguir, na seção “Luzes da Civilização Cristã”.

 

Antes de Henrique VIII, a Inglaterra era um dos baluartes da Igreja Católica. Em toda a vida intelectual, artística, política e social, a influência dos princípios católicos era profunda. O número de Santos nascidos em território inglês foi tão grande que a Inglaterra chegou a chamar-se-á “Ilha dos Santos”.

Características particularmente salientes desse espírito católico eram exatamente o apego profundamente sincero do povo à autoridade do rei e, ao mesmo tempo, a altivez com que se insurgia contra todas as tentativas da Coroa, tendentes a transformar a monarquia em tirania.

A luta dos ingleses por suas liberdades traz o estigma característico do espírito católico, um grande respeito à autoridade e um grande amor à justiça. Amantes da autoridade, os ingleses, antes de Henrique VIII, nunca chegaram a tentar a destruição da monarquia, mesmo quando lutavam pela sua liberdade. Amigos da justiça, sempre reivindicaram seus direitos, sem que seu respeito à autoridade lhes tolhesse a liberdade de ação.

A história medieval inglesa não conhece a maior parte das abominações que comoveram a história da França, da Alemanha ou da Itália no mesmo período (que, seja dito de passagem, são insignificantes perto daquelas às quais assiste o mundo contemporâneo).

As “jacqueries” em que os camponeses queriam exterminar os senhores feudais, as revoluções em que os nobres queriam exterminar a realeza, e as lutas em que a realeza procurava aniquilar os direitos do
povo e da nobreza, tiveram na Inglaterra um aspecto imensamente mais benigno e mais razoável que em outras partes. O feudalismo inglês, modelo admirável de inteligência administrativa, foi quiçá o mais perfeito regime político da Europa medieval.

Nas lutas dos barões e do povo com os reis, as desinteligências existentes a respeito do governo da Inglaterra acabaram por se resolver definitivamente. E surgiu, com o bafejo da Igreja, a estrutura política mais firme que a Europa tenha conhecido até hoje.

O pecado do outrora “Defensor da Fé”

Uma crise de caráter íntimo e passional veio pôr em jogo a estabilidade desse admirável edifício, todo ele alicerçado e cimentado nos princípios católicos.

Antes de a atmosfera político-religiosa se deteriorar, o Rei Henrique VIII, fazendo-se intérprete do sentimento do povo inglês, escreveu uma obra de refutação do protestantismo, que começava a incendiar a Alemanha. O Papa, reconhecido pela intervenção do Rei, outorgou-lhe o honroso título de “Defensor da Fé”. E Lutero, indignado com Henrique VIII, o chamava “o mais sujo de todos os porcos”.

Mas acontece que Henrique VIII sentiu em si a mesma fraqueza que arrastou David ao pecado e Salomão à perdição.

Um romance — expressemo-nos assim, para não dizer algo pior — havia se formado na vida do Rei. Desejava ele anular seu casamento com a Rainha para contrair núpcias com outra dama de sua corte. Não conseguindo do Papa a anulação do casamento, ficou colocado em um cruel dilema: ou renunciar à Fé, ou renunciar ao “romance”. Renunciou à Fé. Fez-se protestante o “Defensor da Fé”! E sua união ilícita foi abençoada pelo mesmo protestantismo que o alcunhara de “o mais sujo de todos os porcos”.

O fim da monarquia orgânica

É interessante notar que Henrique VIII encontrou em São Tomás Mórus, seu primeiro Ministro, um adversário irreconciliável da anulação de seu casamento. Profundamente católico, Tomás Mórus recusou-se a abjurar a Fé. Foi condenado à morte. Sofreu o martírio e hoje brilha nos altares da Igreja Universal com a auréola da santidade (*).

Pode-se dizer que, com o desaparecimento de São Tomás Mórus, extinguiam-se também os últimos bruxuleares da Idade Média — moribunda naquele século XVI — e da monarquia orgânica. Esta, como se sabe, baseava-se no princípio da subsidiariedade, pelo qual cada grupo social deve tirar de si mesmo os recursos para prover suas necessidades e solucionar seus problemas. Conta com o auxílio do grupo superior apenas na medida em que, por sua própria natureza, não lhe for possível suprir suas carências nem resolver suas dificuldades. De maneira tal que exista uma espécie de autonomia de todos os corpos e instituições dentro do Estado.

Era o que se verificava na organização da Idade Média, em que cada unidade social dispunha de uma vitalidade pela qual produzia o seu próprio impulso. Assim, os feudos tinham leis, costumes e até idioma característicos. Os pequenos se encaixavam nos maiores, que só intervinham na existência dos primeiros para remediar as violações da Lei de Deus e dos princípios da civilização cristã, ou para sustentá-los quando as limitações de sua pequenez assim o exigissem. As cidades se desenvolviam com vida própria e, dentro delas, as corporações levavam também sua existência particular, com regras e usos peculiares. Acima de todos, o rei, ápice dessa estrutura de subsidiariedades. Era ele o mantenedor de todas as liberdades e autonomias, o coordenador e estimulante de todas as atividades gerais.

Entre estas autonomias, a maior, a mais notável, era a da Igreja Católica. E quando se trata da Igreja, não se pode falar em autonomia, mas sim em soberania. Ela é uma entidade soberana, tanto quanto o Estado, e, na sua esfera própria, não pode ser dominada nem dirigida por nenhum governante civil.

Quando, porém, teve início a decadência da Idade Média, os monarcas passaram a se fazer absolutos, tomando como modelo os imperadores romanos, verdadeiros déspotas da antiguidade. Levados por essa mania de absolutismo, começaram a eliminar todas as autonomias inferiores, e se jogaram, com particular empenho, sobre a liberdade da Igreja. Desejavam transformá-la num instrumento para o governo de seus respectivos países, embora num âmbito próprio à força espiritual e, portanto, independente das funções do poder temporal.

Um fato de graves conseqüências…

Ora, Henrique VIII, a pretexto de legitimar seu divórcio, foi mais longe. Ao determinar a ruptura da igreja anglicana com Roma, teve por objetivo adquirir o mais pleno domínio sobre toda a Inglaterra, tornando-se, ao mesmo tempo, chefe do Estado e do poder espiritual.

Para se ter ideia das conseqüências desse fato na antiga “Ilha dos Santos”, basta tomarmos em consideração duas coisas.

Em primeiro lugar, o minguamento das Ordens religiosas, que começaram a se esvaziar em virtude da supressão do celibato. O rei, agora líder da igreja anglicana, permitiu que monges e freiras abandonassem seus conventos para contrair matrimônio, munidos de uma pequena dotação que o próprio monarca lhes concedia, a fim de iniciarem “a nova vida”. Semelhante disposição concernia também os padres seculares.

Em segundo lugar, os bens da Igreja Católica foram confiscados pelo monarca e, na sua maior parte, distribuídos entre os nobres — de tal sorte que, ainda hoje, muitas famílias residem em antigas abadias, transformadas em habitações particulares.

Ora, na velha e boa Inglaterra, os pobres viviam às custas da Igreja, sendo por Ela muito bem sustentados. A partir do momento em que foram fechadas e espoliadas as instituições eclesiásticas, os mendigos se viram privados daqueles meios de subsistência. Passaram, então, a confluir para Londres, no intuito de angariar esmolas junto às classes mais abastadas da capital britânica. Resultado, surgiram os primeiros decretos na igreja anglicana de repressão à mendicância, um dos tristes frutos do desaparecimento das instituições de caridade.

… que perduram até hoje

Não foram essas as únicas conseqüências do que se passou na Inglaterra do século XVI. Outras, igualmente graves, surgiram com o passar do tempo, e algumas delas se fazem sentir até os dias de hoje (**).

Com efeito, as sementes de protestantismo que o anglicanismo adotou, produziram os frutos de anarquia que lhe são próprios. Destes foi um prelúdio a Revolução que destituiu e decapitou o rei Carlos I.

De lá para cá, lentamente, a desagregação das instituições políticas inglesas se tem acentuado mais e mais. A luta entre o fator “ordem católica” e o fator “anarquia protestante” na doutrina anglicana, se projetou no terreno político. As duas tendências se têm combatido num confronto de todos os momentos, e é por elas que se explica a grandeza e a decadência da monarquia britânica.

Grandeza, porque nenhum domínio temporal está, hoje em dia, colocado mais alto. Firmado em um princípio, o poder do monarca inglês não se alicerça sobre um entusiasmo de momento, mas sobre um profundo amor da multidão a uma dinastia ligada à história do País.

Decadência, porque este poder, de aparência tão magnífico, é apenas um vestígio do que ele foi outrora, uma reminiscência histórica, nos quadros constitucionais ingleses. Poucos são, atualmente, os homens que recebem tantas reverências e manifestações de respeito quanto a Rainha da Inglaterra. E, no entanto, poucos são os chefes de Estado mais privados de reais atribuições na vida política de seu país do que ela…

Pulcritudes na vida de pobreza

Dissociar a pobreza da beleza é um erro, infelizmente, comum em nossos dias. Analisando ambientes pobres moldados pela Civilização Cristã, Dr. Plinio explicita a beleza, dignidade e nobreza existentes na modesta condição em que o próprio Rei dos Céus quis nascer.

 

O homem de hoje tem dificuldade em compreender bem qual a beleza que pode haver na pobreza. É mais fácil conceber o belo na riqueza. Como pode ser a pulcritude da pobreza?

Vamos tratar deste assunto, analisando algumas fotografias(1).

A beleza da velhice

A primeira apresenta uma praça, na Itália, na qual está um poço. Aquele arco dá o ponto de partida a uma corda que desce e, com um recipiente, se pega água lá embaixo. Porque a água encanada não existia nessa favela de pedra que ali se vê.

Junto a essa praça há vários arcos que dão acesso a uma rua, mas ela é toda fechada e seu ambiente é diferente do da rua. As passagens são tais que preservam a praça da entrada e saída de ônibus. Creio mesmo que a movimentação de automóveis não é muito fácil, a não ser por aquela porta grande que fica aberta. Mas nenhum dos presentes neste auditório gosta de imaginar um automóvel entrando ali.

Um carro puxado a cavalo, desde as esplêndidas carruagens conduzindo príncipes, até qualquer carro movido por um cavalinho que, ao trotar, bate com as patas na pedra dura, enfim, tudo isso agradaria, exceto um veículo motorizado, cuja entrada na praça nos daria a impressão de profaná-la.

Essa construção é toda de pedra, feita para durar sempre e que não pede pintura. A pedra é de um jeito que, quanto mais fica suja e velha, mais se torna bonita.

Notem que a construção é feita de tal maneira que se vê que ela é suja. A pátina do tempo passou sobre ela, está meio ensebada, mas não nojenta. Ninguém teria nojo de encostar-se em uma dessas paredes, nem de morar dentro de uma dessas casas. Tudo é pitoresco e tem algo de fortificado.

Nas cidades italianas desse tempo as guerras internas, de bairro contra bairro, eram frequentes. Vê-se que a torre tem no alto uma espécie de terraço, maior do que a própria torre, com uns suportezinhos em forma de arco embaixo. Esses suportes são vazados, de maneira que deles se jogavam chumbo derretido, azeite e água fervente, disparavam-se flechas, etc., sobre os miseráveis que quisessem entrar ou sair, sem licença dos donos da torre.

A pobreza aí é evidente; nada fala de riqueza. O que, entretanto, é bonito dentro disso?

Antes de tudo, é bonita a velhice. Isto, reconstruído, seria muito menos bonito. O vento soprou, o Sol dardejou de modo inclemente sobre essas pedras, fazendo ferver as pessoas que moram ali. As dificuldades da vida, acontecimentos importantes se passaram nesse municipiozinho, e que tudo isso como que deu uma fisionomia a essas portas, janelas e a esses arcos.

Cada lar era um lugar sagrado

Tem-se a impressão de que essas janelas e portas não têm uma fisionomia inexpressiva de uma criança no berço, mas a fisionomia expressiva de um homem que já viveu muito, e no qual a sua biografia mudou o aspecto da boca, dos olhos, da carnatura; enfim, tudo mudou no choque da vida. Olhando para ele, vê-se sua história estampada em sua fisionomia.

Vê-se que essas torres e casas passaram por convulsões da vida e apresentam a beleza forte da História. Durante muito tempo — queira Deus que até hoje — moraram ali populações com Fé, cientes de que a pobreza pode ser uma bênção, mas que é preciso lutar para que ela não nos jogue nos braços da morte. Sabiam que a vida é dura, difícil, mas que tudo isso aponta para o Céu e encontra nele a sua explicação, o seu prêmio. Compreendiam que a verdadeira vida de família, imbuída de sobrenatural, a dignidade e a respeitabilidade do chefe de família e de sua esposa face à prole numerosa que os venerava, tudo isso fazia de cada alvéolo, de cada lar, um lugar sagrado, respeitado, venerado. De vez em quando se ouve numa casa: “Papai está em cima, mamãe desceu, mas já vem.” E onde estão papai e mamãe, está o lar, a respeitabilidade, a sabedoria, a confiança na vida. Em última análise, o Mandamento que preceitua a castidade perfeita aos solteiros e a fidelidade entre casados paira como se fossem dois Anjos sobre essa casa.

Na parede, uma Madonna, uma vela gasta. Mais adiante, um pequeno objeto esculpido por alguém e um presente dado por outrem. Sobre um móvel, uma campânula de vidro e dentro uma coroa de noiva. Era a coroa que a noiva — hoje anciã cheia de rugas e de cabelos brancos — levava, altaneira e digna, ao casamento, como símbolo de sua pureza, e que, a pedido do marido, se conservava lá por toda a sua existência.

Quanta pulcritude na vida de pobreza!

Isso todos o sentiam, o entendiam, e não havia essa ferocidade para escapar da vida de pobre como de dentro de um inferno. Tratava-se, do contrário, de entender o sabor que a vida de pobre tem, saber fruí-lo; isto era o segredo da vida dessa gente.

A vida é, antes de tudo, uma caminhada para o Céu

Comparem isso com algum aspecto de uma cidade contemporânea: prédios enormes visando dar uma impressão de monumental e de riqueza. Mas não têm graça, ninguém se detém para olhar nada, todo mundo passa depressa.

Aqui não! É evidentemente uma rua pobre de um bairro pobre. As casas estão meio espremidas uma na outra. Nas paredes, de um lado e de outro, nada traz sinal de riqueza. Tudo é pobre, mas bonito, tem fisionomia, expressão. É muito mais atraente do que, por exemplo, qualquer dos grandes hotéis modernos, que se encontram mais ou menos por toda parte das grandes cidades.

Nesse ambiente modesto o homem se sente em casa. E existe a alegria do conforto, mas principalmente o conforto da alma, do aconchego de pessoas que se entendem porque participam da mesma Fé e têm o mesmo modo de entender a vida, que é antes de tudo uma caminhada para o Céu; onde as almas restauram suas forças para voltar para a luta, ou ir para a oração, participar da Missa e comungar na igreja mais próxima.

Nesse tipo de cidades há muitas igrejas, e não se dão dois passos sem encontrar com uma. Em todas elas, silencioso, invisível, está sempre Nosso Senhor realmente presente. Há muitas imagens de Nossa Senhora e de outros santos. A igreja é o palácio dos pobres. Eles entram e veem a riqueza da Santa Igreja, a beleza da Liturgia, se regalam com aquilo, seus horizontes se abrem, suas almas voam até o Céu.

Quando se ama a Deus, tende-se para a beleza

Analisemos agora uma fotografia de uma aldeia alemã, na noite de Natal.

Esses grupos de pessoas percorrem de casa em casa para cantar alguma canção relativa ao Menino Jesus. São, em geral, pessoas de uma mesma família. Eles cantam e o dono da casa vem para o lado de fora e ouve a canção. Depois, os de dentro respondem com uma outra música conhecida. Posteriormente, os visitantes são convidados a participar da ceia, comem, agradecem e saem cantando. E os donos da casa, terminada a ceia, vão percorrer outras casas, fazendo o mesmo. E, de alegres em alegres visitas, a noite inteira se canta a glória do Divino Infante.

Eu pergunto: isso não traz consigo uma manifestação de como se pode ser pobre e ter alma feliz? Pode-se ser pobre e ter Fé? Isso não nos leva a compreender a beleza da condição pobre em que o Menino Jesus, Príncipe descendente de Davi, quis nascer? Aí está outro aspecto poético da vida do pobre de antigamente.

Onde está o lado poético da vida do pobre hoje? Mas também, onde está o aspecto poético da vida do rico? Onde há poesia neste mundo de mecanicidade da revolução industrial?

Para entender inteiramente essa outra fotografia, precisamos tomar em consideração que essa casa alemã passa uma parte do ano na neve, e que nesse período não há flor. O único sinal de vegetação é o pinheiro, com seu formato triangular, verde-escuro, e mais nada. Todos os outros vegetais “estão de luto”, e apenas uma camada de “açúcar com água” recobre a terra: é a beleza da neve.

Mas na primavera explodem as flores magnificamente. Não posso me esquecer de quando estive na Europa, pela primeira vez, depois de adulto, em 1950. Fui preocupado com tudo, menos com flores. A primeira nação onde comecei minha viagem foi a Espanha.

Desci no aeroporto de uma cidade cujo nome não me lembro. De repente, um vermelho explosivo que parecia sangrar me chamou a atenção. Eram gerânios. Mas uma cor bonita! Todo entusiasmo da Espanha parecia transbordar no gerânio. Em toda a Europa, na primavera, a vegetação explode. Então os donos das casas têm muita alegria em poder exibir para os transeuntes essa sua felicidade, sua alegria: as flores que possuem.

Nessa fotografia, veem-se flores que ornamentam uma casa visivelmente pobre. É evidente que a família fez florir assim a residência para que todos participem da beleza das flores que ela possui; e há gente que, passando por ali, para, comenta, entra, felicita, depois segue adiante. Existe uma participação de todos na procura e no gosto da beleza.

Vemos na outra foto habitações modestas, cujo ornato é feito por traves de madeira comum e flores nas janelas, e onde tudo está disposto de um modo apenas um pouco artístico. Percebe-se que as pessoas que ali vivem não passam fome, mas não levam uma vida folgada.

É a arte do pobre: tomar materiais simples, fazer com eles desenhos simples. Por que causa tanta admiração? Porque, quando uma população tem amor à verdade e ao bem, ama a Deus — que é a Verdade, o Bem, a Beleza —, todas as pessoas, desde as mais modestas até as mais elevadas, tendem a pensar, imaginar e realizar coisas belas. E, enquanto é próprio dos ricos fazer palácios magníficos, é característico dos pobres tirar de materiais simples uma beleza que ninguém imaginava.

Como é nobre ser católico!

Tudo leva a crer que, na parte de baixo dessas casas, haja um estabelecimento comercial, e mais provavelmente um dos inúmeros restaurantes saborosíssimos existentes pela Alemanha. Posso imaginar os pães, as salsichas, as delícias… evidentemente as cervejas. Comida simples. Cada dona de casa tinha sua fórmula de fazer pão e, portanto, essa loja tinha um pão que não se encontrava em nenhuma outra. As salsichas, a linguiça, eram feitas pela própria casa, e todas elas tinham sua modalidade.

Nesse presumível restaurante havia um homem do bairro, pago para cantar, à noite, e outro tocava violino; era uma coisa original do lugar, tinha seu atrativo.

Hoje não. As salsichas, as linguiças, os pães, tudo é fabricado aos milhares, e vendido igual por toda parte, não tem originalidade nenhuma. Que graça tem isso? Ora, atualmente isso é a vida, inclusive do rico. Minguando o amor de Deus, o pecado e a feiura vão invadindo a vida dos homens.

Em geral, o interior dessas casas modestas é ornado com móveis e utensílios confeccionados pelos próprios moradores. São as tais esculturas domésticas que, colocadas na residência, ficam para sempre. Os bisnetos vão saber que tal bisavô fez isso. E não se vende, é uma lembrança. O artesão que a realiza sabe estar dando uma nota de beleza a mais ao seu lar, e quando ele morrer, sua família terá para sempre um ornato a mais na sua pequena casa.

Formam-se, assim, verdadeiras dinastias de trabalhadores manuais, dentro das quais se aprecia a recordação dos avós como na nobreza tem-se respeito pela ancestralidade. Não são nobres, mas operários que sentem quanto é nobre ser católico, ainda quando não se faz parte da nobreza.

Por outro lado, como Deus é o Senhor, o Rei, o Criador do Céu e da Terra, e a igreja é a casa onde mora Deus no Santíssimo Sacramento do Altar, a igreja é o palácio do lugar. Por causa disso, quando a família ia para a Missa — o ato mais augusto que se possa realizar na Terra, onde se renova de um modo incruento o Santo Sacrifício da Cruz — todos usavam seus trajes de ornato, de festa.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 16/8/1986)

Revista Dr Plinio 195 (Junho de 2014)

 

1) As ilustrações desta seção não correspondem às fotografias analisadas por Dr. Plinio nesta conferência.

 

A felicidade celeste – II

A Revolução odeia as desigualdades existentes na sociedade e, visando extingui-las, fomenta nos homens o vício da inveja. O contrarrevolucionário ama a hierarquia e se alegra em ver pessoas superiores a si mesmo; assim, ele se prepara para o Céu, onde os bem-aventurados estão colocados hierarquicamente, constituindo uma magnífica unidade em que todos se estimam por amor a Deus, e não há lugar para a inveja.

 

Cornélio a Lápide cita uma carta de São Jerônimo a uma santa do tempo da decadência do Império Romano do Ocidente: Santa Eustáquia, que pertencia à nobreza romana, era muito rica e distribuiu sua fortuna aos pobres. Ela abandonou tudo e abraçou a pobreza por amor a Nosso Senhor Jesus Cristo.

São Jerônimo escreve a esta santa descrevendo-lhe como seria a entrada dela no Céu, quando ela morresse.

A inveja provoca devastações nas almas

Para explicar a alegria da entrada e da permanência no Céu, Cornélio desenvolve muito um ponto que supõe uma explicação.

Há muitos anos, conversando com um bispo, falávamos de vários assuntos e, a certa altura, tratei da questão da inveja. Ele, então, me disse: “Se você fosse confessor, saberia o que é a inveja e a devastação que ela faz nas almas. Pelo que você está dizendo, calculo que não tenha ideia disso”.

Naquele momento, isso me chamou um pouco a atenção e pensei: “Vou refletir depois”. Posteriormente comecei a pensar… Na obra Revolução e Contra-Revolução faço referência à inveja quando falo da desigualdade. O homem inferior, que não tolera a desigualdade do superior, é um invejoso; fica com tristeza pelo fato do outro ter uma coisa que ele não possui.

E no Céu, se inveja coubesse, haveria um título especial para ela se exercer. E é desse ponto que eu queria tratar para entendermos o mal da inveja, a tristeza e a acidez com que ela enche a vida do homem, e compreendermos a alegria do Céu.

Por isso vou fazer apenas um pequeno parêntesis para chegarmos depois até lá.

Uma hipotética ocasião de inveja no Céu

Não é possível a inveja no Céu. Mas, numa hipótese imaginária, irreal, o que poderia dar ocasião à inveja no Céu? As pessoas, no Paraíso, estão com seu futuro marcado para todo o sempre, e nunca mais mudará. Ora, alguns veem Deus mais excelentemente do que outros, e os que veem menos sabem que outros veem mais.

Os que veem Deus menos excelentemente poderiam fazer o seguinte raciocínio:

Como seria mais deleitável eu ver ainda mais do que estou contemplando! Porque se o que estou vendo, que é menos, já é tão deleitável que eu quase racho — racharia se Deus não me sustentasse — como seria desejável eu arqui-rachar!

Ora, eu que vivi, pelo menos até agora, 72 anos neste exílio, entrando no Paraíso posso notar a alma de um menino que, logo após ser batizado, morreu e foi chamado ao Céu. E Deus, porque quis, deu a ele mais do que a mim. Como é isso?

Então temos que entender o razoável disso, para compreendermos como no Céu não existe a inveja. E, a partir disso, fazer uma aplicação sobre as relações nesta Terra. Esse seria o curso desta exposição.

Diversos modos de ver a Catedral de Orvieto

Tomem pessoas de sensos artísticos de vários graus que, todas juntas, vão olhar a fachada da Catedral de Orvieto, gótica e dourada, adornada por vitrais e mosaicos. Digamos uma família, ou um grupo de amigos, que vá à Itália.

Em certo momento, o veículo que os conduz entra na praça de Orvieto. Maravilhamento! Todos veem a catedral no seu conjunto. Mas, se prestarmos atenção, nem todos a veem do mesmo jeito. Porque, em primeiro lugar, o grau de agudeza de vista pode ser maior em um e menor em outro, de maneira que a imagem que, pelos olhos, chega até a retina seja melhor num e pior no outro.

Em segundo lugar — e isso importa incomparavelmente mais —, um tem o senso dos conjuntos, pega e sente aquela quintessência de sabor própria a quem compreende a fundo a catedral. Enquanto outro, ao ver o conjunto, apenas balbucia: “Quanto dourado, quanta escultura, hein!”

Depois, passada essa primeira impressão, todos se aquietam, um diz: “Olha que bonita aquela imagem, e aquela outra!” De repente, um outro se entusiasma com uma escultura ou com um mosaico e, dentro deste, com uma figura e fica olhando-a.

Isso é legítimo? Está bem?

Pormenores que merecem toda a admiração

Sim! Porque a catedral é uma tal obra-prima que, na ordem das coisas, é proporcionado haver algumas inteligências privilegiadas que vejam ali tudo. Mas é proporcionado também que cada um daqueles pormenores extasie tanto algum homem, que ele teria ido a Orvieto só para ver um detalhe. O pormenor merece isso! É um direito, por assim dizer, do pormenor que haja alguém que vá à Itália só para vê-lo.

Por exemplo, uma cena a qual não lembro que esteja em Orvieto, mas provavelmente está: as mãos de Nossa Senhora, num mosaico, quando Ela recebe a saudação do Anjo. Só por aquilo um homem atravessaria o oceano, para ver as nervuras, os dedos, a piedade. Dir-se-ia: aquelas mãos liriais merecem isto!

E está de acordo com a ordem das coisas que haja uma família de almas feita para apreciar aquilo. O gênio do artista, o valor da obra que ele deixou realizada merecem admiração, isso está na ordem querida por Deus. E o homem que admira só as mãos de Maria Santíssima ou, por exemplo, está encantado com as asas multicolores de um Anjo, diz o seguinte: “Eu não tenho talento para ver tão bem quanto um outro a catedral toda, mas possuo uma alegria: presto justiça a essas asas! E, para admirá-las, poderia dedicar minha vida inteira!”

Dou muita importância a isto para se ter paz de alma. Mas também para ser contrarrevolucionário e poder afirmar: “Eu, enquanto homem, sou proporcionado a isto; esse detalhe artístico merece que um homem consagre sua vida para admirá-lo, e este homem particularmente sensível a isso sou eu”.

Enquanto um homem não concordar que sua vida está bem empregada assim, nele há um fermento ativo de Revolução.

A “fortiori” é com Deus Nosso Senhor, que possui todas as perfeições em todos os graus possíveis. E, quem vir a Ele num todo — isso todos veem — e depois ficar eternamente para contemplar apenas um grau desta perfeição, este será bem-aventurado por toda a eternidade, e perfeitamente aquinhoado porque Deus merece. Aquele grau da perfeição do Criador merece isso e muito mais. Nossa Senhora se daria por feliz de passar a eternidade contemplando o que se poderia dizer o grau mais acessível de uma das perfeições de Deus.

Como não poderíamos nos dar por felizes? Seria, no fundo, negar a perfeição do próprio Deus! Quer dizer, passando do exemplo de Orvieto para o que se dá com Deus Nosso Senhor, compreende-se, então, como no Céu não há inveja.

Devemos nos alegrar ao vermos a superioridade de outros

Assim, entendemos o quanto a inveja é irracional, estúpida.  Alguém dirá:

— Mas Doutor Plinio, eu tenho pesar de ser burro.

Eu lhe respondo:

— Meu filho, você devia ter pesar de ser bobo!

No Colégio São Luís de meu tempo de menino — não sei como fazem nos colégios hoje — havia nota de comportamento e aproveitamento no ensino. Mamãe me dizia: “Desejo que você tire boas notas em aproveitamento, mas não faço tanta questão, porque pode ser que meu filho seja burro, e nesse caso eu também o estimo muito. Mas, em comportamento, não! Nota de comportamento tem que ser dez e raramente nove. E quando não for dez, você precisa explicar a sua mãe o que ocorreu. Porque nesse caso entra a culpa. E neste ponto não transijo”. E eu achava que ela tinha razão.

Então, eu digo àquele que se afirma burro: “Tenho pena de você porque tem nota cinco de comportamento e fica triste por causa do aproveitamento. Com sua pouca inteligência, quando você morrer dará para ver em Deus uma perfeição tão admirável, que justificaria a vida de um coro de Anjos! Isso você vai ver, e está choramingando?”

Para não falar de outras coisas mais ordinárias… “Fulano é tão engraçado, e eu não sei contar nada de jocoso! Fico com inveja de Fulano”.

Dá vontade de dizer: “O palhaço do circo é mais engraçado do que Fulano. Vá lá para admirar o palhaço! Na realidade, você não acha graça no outro, mas tem inveja das palmas que ele obtém, da popularidade que ele forma em torno de si.”

Então deveríamos ter um cuidado muito grande em ficarmos com alegria, notando a superioridade de outros. Precisamos ser almas famintas de admirar essa superioridade. Vendo que uma pessoa tem mais do que eu, digo: “Mas que bom!” E se possui uma coisa que não tenho: “Mas que ótimo! Que satisfação!” E se é mais virtuosa: “Lamento não ser tão virtuoso quanto deva, mas me alegro que tal pessoa seja mais virtuosa do que eu!”

A alma faminta de ver outros superiores é contrarrevolucionária. Se ela não é assim, não minta para si nem para Deus, e reconheça humildemente que tem um grave fermento revolucionário. Bata no peito e peça emenda. Não minta para si, porque a Deus não se mente. Ela carrega duas mentiras: uma para os homens e outra para si mesma. Deus vê! De maneira que isso deve ser analisado bem de frente.

Recepção de uma virgem no Céu

Vejamos agora como São Jerônimo cuida da questão. Na carta a Santa Eustáquia, diz ele:

Qual será o dia em que Maria, Mãe do Senhor, virá a teu encontro, acompanhada pelos coros das virgens?

Ela era uma virgem que entrava no Céu, e o coro das virgens viria recebê-la. Pensemos um pouquinho que coro nos receberá no Paraíso… Será uma pessoa de quem tínhamos saudades e que virá nos abraçar? Nós, mais velhos, morreremos antes dos mais moços. Já temos membros de nosso Movimento que morreram e estão no Céu. Nós podemos esperar que eles nos recebam na orla do Paraíso, como São Domingos Sávio, com certeza, acolheu São João Bosco. E serão os primeiros amplexos, o primeiro entusiasmo, a primeira alegria… Que gáudio para nós ver os que estão na glória dos Céus, e há muito tempo rezando por nós! Que coisa magnífica!

Então vêm Nossa Senhora, o coro das virgens, e também o coro dos guerreiros para receber essa virgem de alma varonil.

São Jerônimo continua:

Virá o próprio Esposo…

Num perfeito cortejo, o rei vem no fim.

…da alma dela e dirá: “Levanta-te, vem, minha irmã…”

Ele imagina Nosso Senhor Jesus Cristo dizendo a Santa Eustáquia:

“…vem minha bela, minha pomba; porque passou o inverno e a chuva.”

São palavras tiradas do Cântico dos Cânticos(1).

 Imaginem que Nosso Senhor diga a um de nós: “Venha, meu filho, venha meu guerreiro! Passou a luta. E agora, por toda a eternidade, triunfarás”.

Vendo a alma que entra, os bem-aventurados se admirarão e dirão: “Quem é esta que se ergue como uma aurora, bela como a Lua, eleita como o Sol?”

Esta última frase é da Escritura(2) e costuma ser aplicada a Nossa Senhora. São Jerônimo a aplica a Santa Eustáquia, e nós poderemos empregá-la aos contrarrevolucionários que entram no Céu. “Quem são estes que se erguem como a aurora, pulcros como a Lua, luzidios e escolhidos como sóis?”

E São Jerônimo acrescenta:

As donzelas te verão e te louvarão.

As graças rejeitadas pelos réprobos serão concedidas aos bem-aventurados

Então, terminada a recepção, da qual estou encurtando partes, afirma São Jerônimo:

Os 144 mil que estão diante do trono e os anciãos tomarão cítaras e cantarão o “canticum novum”, em louvor da nova bem-aventurada que entrou!

Cento e quarenta e quatro mil é um número simbólico. Quer dizer, feita toda a recepção, os bem-aventurados cantam em louvor daquela que chegou! Lá não cabe a inveja, ela não existe!

São Jerônimo continua:

Deus, no Céu, entregará aos bem-aventurados todos os dons, todos os dotes e todas as graças.

E Cornélio a Lápide comenta:

Todas as graças, também aquelas que os réprobos tiveram nesta vida.

Quer dizer, as graças que os réprobos tiveram e rejeitaram são entregues aos que forem, pelas orações de Nossa Senhora, levados ao Céu. Essas graças recusadas esperam aos justos. Tudo isso não se perderá.

Porque a beatitude é o estado perfeito, pela agregação de todos os bens, como diz Boécio.

Vem citado, depois, um dito de Santo Ambrósio:

Cada um dos bem aventurados goza de tal maneira com a glória de cada um dos outros…

Ainda que seja uma glória maior. É o contrário da inveja!

…como se esta glória dos outros fosse a sua própria glória!

Assim devemos ser na Terra com relação aos outros. Quando eles se realçam, precisamos ficar alegres como se fosse um dom para nós; dessa forma nos preparamos para o Céu. Não se pode ser de outra maneira! Eu sei que a Revolução ensina o contrário! Pior do que isso, vicia com o contrário! Porque é um vício o que ela estimula.

Maravilhosa união entre os bem-aventurados

Pelo que é bem-aventurado, não uma vez, mas milhares e milhares de vezes.

Quer dizer, o indivíduo tem a bem-aventurança de milhares e milhares, porque ele frui a glória do outro como se fosse dele. Então, o menorzinho no Céu desfruta a glória de São Miguel Arcanjo, no píncaro dos píncaros, como se fosse a dele. E literalmente ele “racha” de contemplar São Miguel Arcanjo!

E agora vem a metáfora apresentada por São Jerônimo:

Na recompensa há uma torrente de gozo e o ímpeto de um rio que não corre e nem se retira.

É chamado de rio não porque passa, mas porque abunda.

É uma beleza de metáfora! Quer dizer, os bem-aventurados vão chegando ao Céu como um rio; um rio que não escorre, mas deságua numa eternidade para a qual não há mais movimento nem inércia. Está tudo na perfeição. E cada vez mais, cada vez mais, cada vez mais! Um invejoso que estivesse lá veria um concorrente no novo que chega. Não sendo invejoso, ele tem alegria e exclama: “Mais gente! Que maravilha! Para Deus, eu nunca serei anônimo. Todos que estão aqui me conhecem pelo nome. E me querem até na minha pequenez”.

E os maiores que passam perto dele, vendo-o na sua pequenez dizem: “Como esta perfeição de Deus merece que fosse criado este, e O adorasse especialmente neste grau!  Meu caro, como estou alegre que tu existas!”

Os menores serão o gáudio dos maiores e os maiores serão a alegria dos menores. Tudo numa união maravilhosa, sem igualitarismo. O maior gosta do menor porque é menor. E o menor gosta do maior, porque é maior.

Feito este périplo por tão belos textos, deixo-os aos pés da Catedral de Orvieto.

Imaginem um homem que melhor entendeu Orvieto, o qual passa e vê de repente um que está olhando fixo para uma asa de um Anjo, um arco-íris, ou qualquer outra coisa da Catedral de Orvieto. Ele olha e diz o seguinte: “Sou feito para ver o todo, mas se eu contemplasse só o que ele está vendo, daria minha vida por justificada, porque aquilo merece”.

Passa perto dele e diz: “Meu caro, como você está bem aquinhoado em admirar esse detalhe! Somos irmãos!”

Terminou, meus caros, a nossa visita à Catedral de Orvieto, e nós nos dirigiremos, com a bênção de Nossa Senhora, para outros e novos rumos. Estes não são nem novos nem antigos; são eternos! v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/2/1981)

Revista Dr Plinio 195 (Junho de 2014)

 

 

1) Ct 2, 10-11.

2) Ct 6, 10.

Maravilhosa “neta” do Criador

Mais de uma vez temos considerado como o senso do maravilhoso é algo que possui profundo vínculo com o amor a Deus, pois se trata de um meio superiormente apropriado para conduzir nossa alma ao desejo das grandezas divinas. Noutras palavras,  Deus criou maravilhas para elevar o homem até Ele.

Por exemplo, ao contemplarmos um lindo pôr-de-sol, é-nos dada a oportunidade de louvar, de modo especial, ao Criador. Razão pela qual um São Francisco de Assis cantou o “irmão sol”: porque é maravilhoso, e na sua maravilha ele ergue o coração humano até o Eterno, mais do que o poderia fazer, digamos, um grão de poeira reluzente ao brilho do mesmo sol.

O maravilhoso é a arte produzida por Deus para externar a sua própria magnitude aos nossos olhos.

Acontece, porém, que o nosso maravilhamento não incide apenas sobre as belezas saídas diretamente das mãos do Onipotente, mas também sobre aquelas engendradas pelo próprio homem. Este é a obra-prima criada por Deus, e os esplendores arquitetados pela humanidade ao longo dos tempos, “filhos” do homem, são “netos” de Deus — como disse Dante na Divina Comédia. E, portanto, através da análise desses “netos” podemos nos enlevar com esse imperecível e perpétuo avô que jamais envelhece, Deus Senhor nosso.

***

A natureza foi feita por Deus. As obras de arte foram feitas pelo homem, criado e redimido por Deus. Como igualmente já o dissemos, tudo quanto há de bom, de grande e de belo na Terra é fruto do preciosíssimo Sangue de Cristo, efundido no alto do Calvário para a regeneração do mundo. Desta fonte de méritos infinitos e de graças inapreciáveis nasceram as maravilhas do engenho humano. As águas do batismo concorreram para ordenar e requintar o senso do maravilhoso naqueles que as receberam e que passaram a desenhar o perfil admirável — e até hoje admirado — da Civilização Cristã.

Citar um exemplo?

O que sempre nos vem à mente, quando se trata de ilustrar o maravilhoso, o sonho transformado em realidade nesta Terra. O que tanto nos toca a alma, por ter sabido unir de forma insuperável essas duas criaturas divinas: céu e água.

Simplesmente, Veneza.