Ação angélica na História

Para compreendermos a perspectiva pliniana da História, devemos considerar que os acontecimentos históricos eram analisados por Dr. Plinio sob a luz do dom de Sabedoria, que lhe conferia um particular discernimento dos espíritos aplicado aos povos e às civilizações. Este carisma lhe permitia elaborar uma Teologia da História vista, por assim dizer, de dentro dos olhos de Deus, compreendendo e amando os planos divinos mesmo quando estes parecessem frustrados. Certa ocasião(*), comentava ele a este respeito:

Ao analisar a história de certos povos, tenho o conhecimento do que Deus teria querido para eles e de como estava na essência divina ordenar os acontecimentos de determinada maneira. Isso me dá, em relação ao que não se realizou, umas saudades que são o reflexo em mim daquilo que poderíamos chamar incorretamente a “tristeza” de Deus – n’Ele não há tristeza – porque aquilo não se deu.

Esse conhecimento não é uma composição minha, como um romance, mas um descobrir de olhos abertos fazendo a Teologia da História. Quer dizer, metendo-me nas ruínas da História para discernir as fórmulas que ela poderia ter tido, qual era o plano de Deus. Seria uma espécie de emanação – para usar uma palavra não muito adequada – da própria eternidade frustrada e atingida, se a respeito de Deus pudéssemos dizer “frustração”. São expressões antropomórficas para exprimir algo que sabemos não se passar n’Ele como se passa no homem.

As mais nobres cogitações de que o ser humano é capaz nessa ordem de coisas são impregnadas de saudades, porque a História quase sempre não realiza inteiramente aquilo que Deus quis dela. Assim, fica frequentemente uma faixa da História não realizada, não reparada ou não restaurada, que acompanha os passos da humanidade ao longo dos tempos como uma espécie de saudades.

A meu ver, certos planos não concretizados deverão voltar no Reino de Maria com Anjos que realizariam o plano original acrescido de algo.

As graças então recusadas pelos povos voltam aos esplendores do Pai celeste. Mas, o que significa voltar aos esplendores do Pai celeste? Não é cessar de estar presentes no mundo e nos acontecimentos da História. Os fatos se passam como se essa glória recusada, mas asilada nos esplendores do Pai celeste, ficasse representada por Anjos atinentes a essas perfeições, nos lugares por onde ela se irradiou.

De maneira que, rezando-se a esses Anjos, se obtenha um prolongamento da ação iniciada. Há, assim, uma espécie de batalha desses Anjos até o fim, no próprio território do país, contra os demônios, para que essas graças ressurjam. Aliás, nem é ressurgir, porque não estariam mortas, mas tornem-se sensíveis.

Nessa perspectiva, devemos admitir que refloresçam no mundo, até acrescidos, os Anjos que a Revolução foi enxotando. E porque esses espíritos celestes, por assim dizer, pairam no mundo, eles confluem nas nossas almas.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 232 (Julho de 2017)

 

* Excertos de conferências de 6/7/1980 e 13/7/1980.

 

Distinção e donaire

Uma ponte que exprime magnificamente duas virtudes cardeais, a temperança e a fortaleza; portanto, há por detrás dela uma beleza moral. Lampadários belos, esguios e nobres. Um palácio lindamente decorado por dentro e guarnecido de duas torres medievais pontudas, as quais constituem reminiscência de um episódio histórico.

 

Vejamos alguns monumentos, lugares, ambientes e objetos aos quais se podem aplicar o que eu disse a respeito da distinção, do donaire dos grandes personagens da História Católica(1).

Talento francês: graça e garra

Esta é uma ponte em Paris: Pont Neuf. Observem o material com que ela é construída: granito, um material bom, mas não caro. Trata-se de uma ponte comum que transpõe o Rio Sena. No entanto, ela poderia dar acesso a um castelo faustoso por causa de suas linhas, do seu lado artístico, o qual, embora sem enfeites, tem uma grandeza que a torna venerável.

A ponte é sustentada por colunas separadas entre si por arcos. Assim, cada arco é ladeado por duas colunas, de uma ponta a outra. São colunas grossonas – dão quase a impressão de pedaços, e não de colunas inteiras –, sérias. Os arcos são dignos, sérios, pesados e muito profundos, porque a ponte é muito larga. Quem a atravessa de barco tem a impressão de cruzar toda uma muralha espessa de um castelo mítico. Esses arcos simplesmente se repetem um ao outro, com uma seriedade e uma distinção completas. Não há aí nenhum brilhante, nenhuma safira; dinheiro se gastou pouco aí. O que entrou muito? A arte. Mas arte em que sentido? Alma. E alma em que sentido? Veem-se restos da seriedade grave, firme e forte da Idade Média.

No que se fundamenta essa impressão de firmeza e força? A ponte enfrenta uma porção de obstáculos. Ela tem, em geral, um fundo de leito de rio viscoso e precisa deitar as garras bem por baixo do lodo, na terra firme, para ter solidez. Por outro lado, ela carrega um peso muito grande, que é o tabuleiro da ponte, acrescido de tudo e de todos que passam por cima. A ponte precisa ser tal que se nós a imaginarmos, por uma razão qualquer, toda cheia de gente ou de veículos numa hora de trânsito muito obstruído, não há o menor problema: ela carrega com seriedade e com indiferença. A seriedade indiferente a obstáculos e agarrando as dificuldades, empunhando-as e impondo-se a elas, é o próprio aspecto da alma católica dotada da virtude da fortaleza. Essa regularidade nos fala da temperança, a qual é regular em tudo. Temos, assim, duas virtudes cardeais que se exprimem magnificamente nesse monumento. Logo, há uma beleza moral por detrás dessa ponte.

Vista à distância, o aspecto forte e pesado se dilui um tanto, e ela se torna mais graciosa, sem perder aquela garra e força própria às coisas que devem ser fortes. A mistura da graça com a garra é um dos traços do talento francês, um dos fatores do famoso charme. Observada por determinados ângulos, a ponte deixa ver uma parte do seu charme. Mas o que é esse charme? É o sorriso da alma católica.

Elegância aristocrática e majestade real  

Outras verdadeiras obras de arte que exprimem inteiramente o espírito francês são esses lindos lampadários localizados perto do Museu do Louvre, em Paris. Cada lâmpada, provavelmente de um cristal muito bom, é alta e encimada por algo que dá a impressão das flores de groselha, como as que se encontram nas coroas dos reis. Depois há um certo espaço e, por cima, umas coroinhas pequenas. Por fim, no ápice, a cruz.

É um misto de elegância aristocrática e de majestade real. Observem o braço dos lampadários: há um pino central e braços colaterais. Vejam a leveza com que cada braço desses carrega um lampadário num movimento natural, como quem está quase se distraindo e levando o lampadário na mão.

Para percebermos bem como isso é belo, imaginemos que o lampadário fosse preso à parte central por um eixo perpendicular o qual pegasse em baixo o lampadário. Ficariam três toquinhos pequenos e quadrados. Assim como foram concebidos, não são indiscutivelmente mais belos, esguios e nobres? Em uma palavra: não há Contra-Revolução dentro disso?

Duas torres históricas

Outro monumento ligado à História da França, à Contra-Revolução e a um determinado tipo humano é o Palácio dos Rohan.

A família dos Príncipes de Rohan era de descendentes dos Duques antigos da Bretanha, mas colateralmente. Os Duques da Bretanha tinham toda a categoria de príncipes, as princesas casavam-se com reis. Eram mais ou menos como os Duques da Baviera, de Württemberg, grandes ducados, que se casavam com pessoas da realeza, absolutamente de igual a igual. Os Rohan não eram dessa categoria, mas pertenciam a um ramo dessa categoria. Eles constituíam, com algumas outras famílias da alta nobreza francesa, um verdadeiro escalão intermediário entre a família real e o comum dos nobres da chttps://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/6/64/H%C3%B4tel_de_Soubise-Marais-Paris.jpg/800px-H%C3%B4tel_de_Soubise-Marais-Paris.jpgorte.

O palácio deles, belamente decorado por dentro, é guarnecido de duas torres medievais pontudas que estão em contraste com o estilo já completamente dos Tempos Modernos, isto é, do período que vai do fim da Idade Média até a Revolução Francesa. Trata-se, portanto, de um estilo marcadamente anterior à Revolução Francesa, mas não é o medieval.

Entretanto, encaixadas nesse edifício, encontramos as duas torres medievais com os tetos em cone muito alto. Disseram-me – não tive ocasião de confirmar – que essas duas torres constituem uma reminiscência do seguinte episódio:

Antigamente elevava-se nesse lugar o Palácio dos Príncipes de Lorena, ramo francês dessa Casa principesca. Tinham muito poder na França, possuíam feudos, dinheiro, eram muito bons políticos, estabeleciam alianças políticas muito poderosas. O palácio deles foi derrubado para dar origem ao Palácio dos Rohan. Estes provavelmente o compraram e construíram esse palácio, de uma regularidade clássica muito bonita e distinta. Conservaram, porém, do Castelo dos Príncipes de Lorena aqueles aposentos localizados no andar térreo e as duas torres.

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Estas são muito próximas uma da outra, e há uma sala que se espraia de uma torre para outra, formando uma só sala na base. Quando os Príncipes de Lorena, que foram os líderes dos católicos na luta contra os protestantes, tinham confabulações políticas importantes e muito secretas, iam para essa sala. A família toda se trancava ali e faziam as suas reuniões privadas, nas quais estavam presentes o que havia de mais decisivo do elemento político da ala católica da França, e que impediu a França cair no protestantismo. Então essas duas torres são históricas. 

Embora, dentre os Príncipes da Casa de Lorena, vários fossem objetáveis enquanto costumes, essa era uma Casa muito abençoada e que tinha no mais alto grau o charme. Basta dizer que pertenciam a essa Casa duas rainhas célebres na História, por seu charme único e ao mesmo tempo por seu infortúnio sem nome: Maria Stuart, Rainha da Escócia – que morreu decapitada, entre outras razões pelo fato de ser católica, e o Reino da Escócia ter passado todo para o protestantismo – e Maria Antonieta.    

(Extraído de conferência de 13/1/1989)

1) Ver Revista Dr. Plinio n. 231, p. 32-35.

 

Liberdade e igualdade, segundo a Doutrina Católica

A verdadeira liberdade não consiste em fazer o que nos apetece, mas na harmonia interior por onde a razão conhece a verdade e o bem, a vontade adere ao que lhe mostra a razão, e a sensibilidade submete-se ao que a inteligência e a vontade lhe indicam. Por natureza, os homens são iguais e todos têm os mesmos direitos e deveres essenciais. Entretanto, são desiguais quanto aos acidentes que podem ser de grande relevância.

 

Vínhamos tratando a respeito do socialismo, da democracia, do liberalismo e o papel do princípio de subsidiariedade na sociedade(1). Faltava-nos considerar no que consiste a verdadeira liberdade, segundo o ensinamento da Igreja e, ao se tratar da igualdade, discorrer sobre a aristocracia de sangue, de cultura e de trabalho e sua legitimidade dentro da democracia. Então vamos abordar essas matérias.

Os Mandamentos asseguram a liberdade do homem

No sentido comum da palavra, é livre quem faz o que quer. Por exemplo, quando alguém recebe uma visita e diz: “Você aqui esteja à vontade, tem toda a liberdade de dispor do que quiser”, isto indica que o visitante pode satisfazer todos os desejos. Então, se ele quiser pegar um objeto para examinar, sentar-se num quarto ou noutro para descansar, pode fazê-lo sem restrições. Nesse sentido, a liberdade é a faculdade de satisfazer os seus desejos.

Segundo essa acepção, deveríamos concluir que os Mandamentos da Lei de Deus limitam a nossa liberdade, porque todo homem, por ser concebido no pecado original, tem muitas tendências más, e se há Mandamentos que proíbem de atender a essas inclinações eles limitam a liberdade do homem.

Ora, a Igreja afirma precisamente o contrário: os Mandamentos divinos garantem, asseguram a liberdade do homem. Então, para ela a liberdade não tem o sentido atribuído pela linguagem comum? O que é, pois, a liberdade conforme a Igreja?

Em uma pessoa que conheça os Dez Mandamentos e, portanto, saiba que deve proceder de um determinado modo, mas tem uma inclinação de fazer alguma coisa oposta aos Mandamentos, a sua vontade oscila: ora ela quer cumprir o seu dever, ora deseja satisfazer a sua má tendência. Nessa oscilação, ao ter a faculdade de fixar a sua vontade onde quiser, nisto ela é livre. Esta é uma primeira noção de liberdade.

Não é, portanto, como um bicho que apenas segue seus instintos. Isso nem sequer merece o título de liberdade. Na liberdade do homem intervêm dois fatores que o animal não possui: a inteligência e a vontade. Pela inteligência, o ser humano compreende que deve fazer uma coisa, e a vontade leva-o a querer aquilo. Entretanto, ele pode vacilar, acabando por fixar seu ato de vontade ora numa coisa, ora noutra, ou em algo que ele segue a vida inteira, pouco importa. Nesse caso ele foi livre, pois, diante de uma alternativa, escolheu o que quis.

A liberdade dos Anjos  

Então, a liberdade é a faculdade que o homem tem de, entre a verdade e o erro, o bem e o mal, poder livremente optar pela verdade e pelo bem. Trata-se de um dom muito alto de Deus, porque é recusando o erro e o mal que o homem pratica, torna efetivo seu ato de amor e de fidelidade ao Criador, e merece por esta forma o Céu. De maneira que sempre que nós temos oportunidade de exercer este ato, devemos agradecer a Deus esta faculdade e precisamos exercê-la de acordo com a Lei divina.

Há, entretanto, um nível superior ao qual corresponde um conceito mais alto de liberdade. Por exemplo, a liberdade dos Anjos no Céu, os quais só querem a verdade, somente amam o bem e não sentem nenhum pendor para o erro e para o mal; eles fazem diretamente aquilo que sua inteligência manda, sem qualquer inclinação má.

Dir-se-ia, à primeira vista, que tendo o homem a possibilidade de optar diante de inclinações opostas, ele é mais livre do que o Anjo que, não estando sujeito a essas tendências, ruma diretamente para Deus. Vou demonstrar como isso é uma ilusão.

Nossa Senhora era muito mais livre do que cada um de nós

Considerem um homem habituado a fumar, e que acha isso extremamente agradável, ao qual o médico diz: “Você deve parar de fumar!” Esse indivíduo toma um choque ao pensar na violência que terá de fazer sobre si mesmo para deixar esse hábito. Cada vez que ele tenha vontade de fumar, é obrigado a travar aquela luta. Sem dúvida, o homem exercerá a sua liberdade dizendo “não” para o desejo de fumar.

Porém se ele, em certo dia, põe-se diante de uma imagem de Nossa Senhora e pede a Ela que lhe tire a vontade de fumar e, sendo atendido, não tem mais aquela paixão que o arrasta quase animalescamente para o fumo, neste caso ele será ainda mais livre do que na situação anterior. Porque no primeiro caso o homem quer parar de fumar, sente uma força contrária à qual pode resistir, mas isso é para ele um embaraço. No segundo caso, não sentindo mais esse embaraço, ele vai inteiro para o que quer e, portanto, é maior sua liberdade.

Quer dizer, aquilo que constitui um obstáculo para a vontade seguir os ditames da inteligência diminui a nossa liberdade. Se nos libertamos desse obstáculo, nossa liberdade aumenta.

Temos, então, uma noção mais elevada e perfeita da liberdade, que é o conceito católico: a faculdade que o homem tem de agir de acordo com sua razão, e querer aquilo que deve querer. A adesão da sensibilidade a isso é a plenitude da liberdade.

Então, Nossa Senhora, concebida sem pecado original e, por isso, não tendo nenhuma inclinação para o mal, nenhuma paixão desregrada, era evidentemente muito mais livre do que um de nós, porque temos muitas inclinações e paixões que constituem entraves para a verdadeira via, que é o cumprimento da vontade de Deus de acordo com o ditame da nossa razão.

Liberdade: harmonia interior entre a verdade e o bem

A verdadeira liberdade, portanto, não está em fazer qualquer coisa que nos apetece, mas consiste nessa harmonia interior por onde a razão vê a verdade e o bem; a vontade, feita para seguir a verdade e o bem, adere ao que lhe mostra a razão; e a sensibilidade submete-se ao que a inteligência e a vontade lhe indicam. Esta é a perfeita ordem dentro do homem, que o torna verdadeiramente livre.

Assim, quando o homem hesita entre o bem e o mal, sua liberdade, embora exista, já está um tanto diminuída. Ao capitular e seguir o mal, ele perde a sua liberdade. É nesse sentido que Nosso Senhor disse no Evangelho: “A verdade vos tornará livres” (Jo 8, 32); porque quem viu e aceitou a verdade derrubou o primeiro obstáculo.

Por fim, em Deus Nosso Senhor, sendo perfeitíssimo, não pode haver a menor inclinação para o mal, nenhuma falha, Ele é a própria Verdade e o Bem. Assim, a liberdade de Deus é a maior de todas, abaixo da qual está a liberdade dos filhos de Deus, a nossa liberdade, pela qual nós também aderimos à verdadeira Igreja e a seguimos. Eis o verdadeiro conceito de liberdade.

A confirmação em graça é a liberdade completa 

A Doutrina Católica ensina que, depois do pecado original, o homem se tornou tão propenso ao mal que pelo simples recurso de sua natureza ele não é capaz de praticar duravelmente todos os Mandamentos. Mas por um auxílio de Deus, um dom sobrenatural criado, que é a graça, o homem tem um suplemento de forças por onde é capaz de ver a verdade inteira e de praticar todos os Mandamentos, tornando-se assim menos dominado pelo mal e pelo erro, ou seja, por satanás, do qual todos os homens ficaram escravos depois do pecado original, mas foram resgatados pela Redenção infinitamente preciosa de Nosso Senhor Jesus Cristo.

A graça, portanto, aumenta a nossa liberdade. O que é a confirmação em graça? É uma graça tão grande que a pessoa já não tem mais nenhuma inclinação para o pecado mortal. De maneira que ela nesse estado conseguiu a liberdade completa. É como a alma da pessoa que quando morre vai para o Céu. Ela no Paraíso está confirmada em graça, quer dizer, nunca mais pecará porque não tem nenhum entrave à sua liberdade.

Então, vemos aqui um modo completamente diferente de considerar a liberdade. Se um de nós detivesse autoridade, por exemplo, um cargo governamental ou policial eminente, mandaria tirar todos os cartazes imorais de propaganda comercial que existem pela cidade.

Alguém diria: isso é contra a liberdade. Nós responderíamos: não, é o contrário, defende a liberdade. Há uma porção de pessoas que querem ser castas e a quem esses cartazes agridem, despertando uma paixão tendente a arrastá-las para o mal. Sem dúvida, a pessoa só pecará se quiser, mas a sua liberdade de não pecar fica diminuída. Embora ela tenha culpa, há um peso que aquela sugestão má pode exercer sobre a imaginação, arrastando a pessoa para o pecado.

Então, acabar com os cartazes e toda espécie de propaganda da imoralidade defende e aumenta a liberdade. Este é o verdadeiro conceito de liberdade.

Uma concepção errada a respeito da liberdade

No campo político, os dois conceitos de liberdade projetam por sua vez uma diferença enorme nas concepções, porque o liberalismo político faz consistir a liberdade em que a lei permita aos cidadãos fazerem, o mais possível, as coisas agradáveis. Segundo essa concepção, propagar o erro e o mal é liberdade. Nós, católicos, não somos inimigos da liberdade, mas sim daquilo que os liberais costumam chamar de liberdade, porém na realidade é libertinagem, isto é, a deformação da autêntica liberdade.

Poder-se-ia objetar: Está bem, mas acontece que os homens se enganam facilmente. Como alguém pode dizer “esta é a verdade” e errar, o chefe de Estado não pode se enganar sobre a verdade?

A resposta é fácil: A Fé Católica Apostólica Romana é demonstrável racionalmente como sendo verdadeira. Pela graça nós aderimos ao que nossa razão nos mostra e fazemos um ato de Fé: “Esta é a Igreja verdadeira.” Ora, a Igreja não poderia ser verdadeira se não fosse infalível em seu ensinamento, ou seja, se a autoridade do Papa não estivesse protegida pelo Espírito Santo, de maneira a não cair em erro quando ensinar ex-cátedra e de acordo com condições conhecidas.

Conclusão: os homens podem cair em erro, mas a Igreja não. E quem segue o Magistério multissecular da Igreja também não cai em erro.

Liberdade e autoridade

Outro equívoco em relação à liberdade diz respeito à autoridade. Muita gente julga, por exemplo, que a polícia atrapalha a liberdade da população, porque captura os bandidos e os leva à prisão. De fato, ninguém seria livre de circular nas ruas se não fosse a polícia.

A autoridade – não só a da Igreja, mas toda autoridade legítima –, quando se exerce no campo que lhe é próprio, não viola, mas garante a liberdade. Portanto, entre autoridade e liberdade não há um conflito. O melhor apoio para a liberdade é a autoridade.

Uma objeção seria: Sendo assim, então o Estado socialista e, mais ainda, o comunista são supremamente livres, porque como a autoridade manda em todo mundo, a liberdade existe para todos.

A resposta é: Não, pois neste caso a autoridade saiu da esfera que lhe é própria. O campo próprio da autoridade é aquele no qual ela se exerce sempre que necessário, de maneira a completar em algo a liberdade de quem não tem meios para exercer uma determinada tarefa por si mesmo. O princípio de subsidiariedade circunscreve o exercício da autoridade harmonicamente.

Hierarquia de bens, condicionada aos fins do ser humano

Outro problema que se põe é o da liberdade da escolha entre diferentes graus de bem.

Absolutamente falando, diante dos diversos graus de bem o homem deve sempre preferir o maior. De maneira que quanto mais aderir ao bem maior, tanto mais ele é livre. Contudo, atendendo a certas circunstâncias, nem sempre o bem maior é aquele que deve ser escolhido ou feito no momento. Por aí intervém uma espécie de carrilhão de jogos de bens, com importâncias maiores ou menores, que se devem considerar.

Por exemplo, qual é o bem maior: rezar numa igreja ou comer? Absolutamente falando é rezar numa igreja; mas na hora de jantar, o bem maior é comer, porque Deus quer que eu conserve minha vida, e isso não farei sem alimentos. Preciso ter uma hora para alimentar-me. Nessa hora, o que é menos bom absolutamente falando, dadas as circunstâncias torna-se para mim um dever.

Há, portanto, toda uma hierarquia de bens condicionada aos fins do ser humano. O homem tem um fim celeste e um terreno, mas este é destinado para se conseguir aquele. Por isso, às vezes tenho que fazer uma coisa menos boa – fim terreno – para obter depois o melhor, o mais alto, que é o fim celeste.

Os bens, em geral, se relacionam à maneira de meios, uns para alcançar os outros. Assim, às vezes temos que buscar primeiro um bem menor que é o meio para chegarmos ao maior. Aí está a hierarquia.

Evidentemente isso não se aplica ao mal moral. Não se pode fazer um mal menor para evitar um maior. Por exemplo, não posso caluniar alguém para impedir que eu seja preso, nem cometer um pecado para obter uma determinada vantagem, porque em matéria de pecado não há tolerância. A ação pecaminosa é contrária a Deus e, como tal, não pode ser praticada.

Os homens são iguais em essência, mas desiguais nos acidentes

Passemos a tratar a respeito da igualdade.

Se tomarmos vários objetos fabricados em série, que acabaram de sair da fábrica, e os analisarmos com cuidado, embora à primeira vista pareçam idênticos, veremos que em alguns pormenores serão diferentes uns dos outros. Porque não é possível uma igualdade completa entre dois seres, mesmo sendo eles da mesma natureza.

Por vezes a desigualdade reside nos acidentes, enquanto que na essência há uma igualdade. Entretanto, os acidentes têm muita importância, principalmente se consideramos a natureza humana.

Por natureza, os homens são iguais e a todos competem os mesmos direitos e deveres essenciais. Entretanto, as diferenças acidentais entre dois homens podem ser de uma grande relevância.

Por exemplo, um soldado pode ser um herói de guerra, mas não sabe dirigir uma batalha; um general sabe. Foi ganha a batalha, e o general teve um papel enorme na vitória. O soldado, por sua vez, serviu de ordenança para o general durante a batalha: trouxe água, apontou lápis, espantou um gato que ia entrar na tenda do general, este pediu-lhe para pegar um lenço, ele o trouxe, etc. Ambos concorreram para ganhar a batalha, porém de modos muito diferentes. Na hora do triunfo, poderíamos imaginar as tropas passando e o povo aclamando, primeiro o general e depois o porta-lenço do general? “Viva, trouxe o lenço!” É uma ação comum, passível de ser praticada por qualquer pessoa, não supõe méritos nem dons especiais. Portanto, não se aplaude, não se faz uma apoteose para algo tão comum.

Consequência: para o general aplausos; ao passar sob o arco do triunfo, a multidão o ovaciona, depois é levado até a casa dele, onde recebe visitas de personalidades importantes. O soldado é esperado pela sua família, que o leva em uma charrete e vão comer uma feijoada em casa, na hipótese de a cena se passar no Brasil. É natural. Trata-se de um bom soldado que prestou seu serviço, um homem honesto, digno de toda a consideração que se tem aos homens comuns honestos.

É preciso tirar proveito dos dotes recebidos de Deus

Deus criou os homens com capacidades desiguais, por onde, se eles as exercerem, uns estarão muito mais propensos a receber grande galardão, honra, dinheiro, do que outros.

Recentemente eu estava vendo a fotografia da residência onde nasceu Winston Churchill, o famoso primeiro ministro inglês durante a II Guerra Mundial. É o lindo Castelo de Blenheim. O Rei da Inglaterra deu esse castelo a John Churchill, primeiro Duque de Marlborough, porque ele tinha vencido uma guerra para aquele país. E o que o monarca terá concedido para o soldado que combateu? Talvez uma condecoraçãozinha. Está muito bem, de acordo com a justiça, é o normal.

Essa desigualdade existe porque a Divina Providência assim promoveu e o homem tira o devido proveito dos dotes recebidos. Não basta Deus ter dado, é preciso que o homem saiba tirar proveito. Se alguém é muito inteligente, porém nunca estudou, e outro é menos inteligente, mas se aplicou nos estudos, este progredirá mais do que o anterior, é claro. O que ficou para trás será um contador de anedotas no botequim; o estudioso tornar-se-á professor de uma universidade. É muito diferente ser a glória de um botequim e a glória de uma universidade. Um tirou proveito do que Deus lhe deu, o outro não.

Portanto, essa desigualdade é nativa, mas por nossos meios podemos ainda nos colocar mais alto pelo aproveitamento daquilo que Deus nos deu, seja muito, seja pouco.

Nesta Terra, não podemos fazer uma hierarquia com base nas virtudes

Na questão da desigualdade há ainda dois aspectos a serem considerados: o moral e o dos dotes humanos.

Um homem pode ser muito bom do ponto de vista moral, mas pouco inteligente. Houve um santo famoso por ser pouco inteligente: São José de Cupertino. Há outros que são muito inteligentes e não são santos. Esta desigualdade como deve ser considerada?

De si, a superioridade moral vale mais do que todas as outras. No Céu, os homens não vão ser colocados conforme o grau de sua inteligência nem de qualquer outra qualidade, mas sim na linha do amor que tiveram a Deus. Esta é a única classificação eterna que Deus toma em consideração.

Contudo, circunstancialmente não. Como nesta Terra as virtudes não são visíveis a olho nu, não podemos fazer uma hierarquia com base nelas. Não posso, por exemplo, dispor as pessoas em um auditório por ordem de virtude. Eu tenho que colocar na frente os mais antigos, aqueles que naturalmente merecem destaque por seus dotes e pelos cargos e funções que exercem. Essa desigualdade existe e deve existir entre os homens, e é um ato de justiça respeitá-la.

Alguém poderia objetar: “Dr. Plinio, isso é bem verdade. Mas não vejo como essa desigualdade pode ser hereditária. Por exemplo, um homem ganhou uma guerra, e por isso o filho dele merece ser respeitado por mim. Ora, o filho dele não ganhou a guerra; eu não vejo por que devemos tributar uma consideração especial à pessoa de uma alta linhagem”.

Gratidão e respeito

Como se explica esse respeito devido às pessoas que fizeram um grande bem? Há várias explicações, porém a mais fácil de dar numa conferência como esta é a da gratidão.

Por exemplo, estou num naufrágio, prestes a perecer. Um vigoroso marinheiro entra num mar cheio de tubarões e, com risco de ser comido por um deles, me resgata e me leva para o barco dele. Evidentemente, fico lhe devendo um agradecimento.

Chegamos em terra firme e esse coitado morre em um desastre de automóvel. Vem a viúva dele, com seus filhos, e diz:

– Dr. Plinio, nós ficamos na miséria. Eu sou a viúva desse homem, esses são os nossos filhinhos. O senhor não tem uma ajuda para nos dar?

Imaginem que eu respondesse:

– Não, nem a senhora nem essas crianças me salvaram do tubarão. Rua com vocês, não me servem para nada! Aquele homem, sim, era de valor. Não vejo grandes qualidades em vocês. Os méritos que ele possuía vocês não têm, pois estes não se herdam. Fora!

Quem acha que isso faz sentido? Quem não percebe que isso é uma asneira? É claro que se eu tinha uma dívida de gratidão para com esse homem, como ele queria a sua esposa por ser sua esposa, e os filhos por serem seus filhos, simplesmente por esta razão devo, embora ele tenha morrido, por gratidão, fazer pela esposa e pelos filhos o que ele me pediria se estivesse vivo.

Se estivesse vivo ele não me pediria que ajudasse a sua família? Pediria. E eu não era obrigado a ajudar? Era. Está bem, tendo ele morrido, devo fazer o que me pediria.

Não é verdade que essa mulher e esses filhos herdaram a gratidão que eu deveria ter a esse homem? Então, gratidão se herda. Se se herda gratidão, herda-se o respeito também.

A viúva desse homem entra numa sala, onde se encontra uma série de outras senhoras do mesmo nível. Vendo-a, eu digo: “A todas as senhoras dispenso a minha consideração, mas aqui está uma das senhoras que tem um privilégio raro, ela é viúva de um herói.” E dirigindo-me a ela, acrescento: “Em atenção ao heroísmo de seu marido, minha senhora, ocupe aqui o primeiro lugar!” Quem não acha isso uma coisa razoável? Sendo a viúva, ela herdou, é natural.

Quer dizer, há esse vínculo pelo qual a luz daquele heroísmo como que passa para uma senhora que não tinha aquele heroísmo, mas que, por ser viúva do herói, possui um prolongamento.

Sob certo aspecto, os méritos e as desigualdades são hereditários

Por causa disto é que antigamente quando uma pessoa se tornava benemérita para o Estado, este não só dava um auxílio para a pessoa, mas para os seus descendentes. Então, um general ganhava uma guerra ou um diplomata fazia um grande tratado, o Governo concedia presentes em dinheiro e títulos de nobreza para sempre, nos Estados cuja organização política comportava isso. Aquela descendência ficava garantida contra o infortúnio para sempre. Era uma coisa justa.

Outrora, na Civilização Cristã, não se erigiam monumentos em honra dos grandes homens. Os monumentos em praça pública começaram a aparecer mais ou menos no século XVII. Antes disso, na Idade Média, não eram feitos. Punham-se, às vezes, monumentos nas igrejas, mas não em praça pública, nem se dava a uma rua o nome do personagem; essas consagrações não existiam. Doava-se, isto sim, uma ajuda para a família do grande homem. Ele e sua descendência eram elevados à nobreza, dava-se dinheiro, etc. A partir do momento em que os auxílios para as famílias foram caindo, os governos sentiram a necessidade de fazer monumentos para pagar o sujeito. Mas o que adiantava?

Temos um exemplo disso no Largo dos Guaianases, em São Paulo, onde há um super-monumento ao Duque de Caxias, uma coisa colossal. O que foi feito da sua família? Caiu numa tal pobreza que o Governo teve que dar para as filhas dele uma pensão, pois estavam na miséria.

Será que o Duque de Caxias se daria por bem pago vendo suas filhas na miséria e aquele monumento no Largo dos Guaianases? Não seria muito mais justo se tivessem dado para ele um bom patrimônio?

Isso nos conduz à conclusão de que as grandes ações conferem às famílias de quem as realizou o direito a uma benemerência especial. Portanto, não só a quem as praticou, mas às suas famílias também. Portanto, debaixo de certo ponto de vista, os méritos e as desigualdades são hereditários.

A impassibilidade de Talleyrand

Ainda a respeito da desigualdade hereditária há um ponto interessante a considerar. Por uma série de razões que não são bem conhecidas da Genética, os dons de uma família muitas vezes são hereditários. Assim, veem-se linhagens inteiras de pessoas com determinados dotes. Então, certas famílias são muito inteligentes, outras muito dotadas para certa forma de arte, há famílias de diplomatas, de advogados, de parlamentares, enfim, há toda espécie de transmissão hereditária assim, onde entra sem dúvida algo da educação passada de pai para filho, mas também qualquer coisa de temperamental que a profissão exige e que a constituição física dá ao homem.

O diplomata, por exemplo, tem que ser impassível.

Talleyrand foi Ministro do Exterior de Napoleão e um diplomata, enquanto tal muito maior do que Napoleão enquanto militar.

Certa ocasião, Napoleão teve uma discussão com Talleyrand e, na presença de muita gente, disse-lhe desaforos horrorosos para ver se o levava a revoltar-se contra ele, encontrando assim pretexto para pôr Talleyrand na cadeia.

Talleyrand era um homem de grandes atitudes, grandes elegâncias e mantinha-se impassível, como uma estátua, apoiado distintamente junto a uma lareira, enquanto Napoleão perdia a paciência e espumava furioso.

Quando o Imperador terminou de deblaterar, Talleyrand olhou para as pessoas que estavam em volta e disse: “Que pena que um tão grande homem tenha recebido uma tão pequena educação…”

Acabou! Napoleão ficou tão pequenino com aquilo, que não tinha mais o que responder.

Napoleão sentia-se tão inferiorizado diante da impassibilidade de Talleyrand, que, com raiva, costumava dizer a seu respeito que se lhe dessem um murro nas costas, sua fisionomia não mudava.

Sem dúvida, entra nisso algo de temperamental. Pode haver famílias temperamentalmente assim.

A organização social não pode ser fechada

Então, algumas famílias já foram destinadas pela Providência de pai para filho, a desempenharem determinados papéis na História, se elas aproveitarem seus dotes. Esta é também uma razão da hereditariedade.

Compreende-se, pois, como é normal que em uma organização social bem feita, tendo como base a família, célula-mãe da sociedade, haja famílias mais ricas e outras menos, conforme tenham trabalhado mais ou menos, ou de acordo com os dotes recebidos da Providência, e algumas famílias que mereçam mais honras por possuírem talentos mais insignes, ou por terem feito no passado maiores coisas.

Por certo haverá pelo meio injustiças: alguns roubaram e por isso subiram na vida. Mas aquela regra geral, numa sociedade normal, é justa.

Portanto, essa desigualdade não é apenas dos indivíduos, mas das famílias, e deve ser tal que permita a ascensão das famílias. Não pode ser como na Índia, onde havia cinco castas e nunca ninguém podia passar de uma casta para outra, absolutamente. Fizesse o que fizesse, nasceu numa casta, ali tinha que morrer.

O fato de alguém pertencer a uma determinada condição provém de seus méritos e de sua capacidade, e se numa família nasce alguém com mérito ou capacidade excepcional, ou especialmente trabalhador, este tem o direito de subir. Quer dizer, esta organização não pode ser fechada, mas deve ser tal que os que vão adquirindo méritos subam, e os que vão perdendo desçam.

Porque as famílias são susceptíveis de apodrecer como as frutas, e ao longo da História algumas se conservam mil anos e até mais, e outras não duram três gerações; e quando uma família apodrece, é preciso que ela volte para a penumbra.

Quer dizer, deve haver, portanto, uma renovação gradual, como mais ou menos seria numa piscina – não num rio onde a água corre –, na qual a água se renova aos poucos e está sempre limpa. Não quero dizer com isto que todas as famílias devam decair. Mas o que decai deve sair e o que nasce deve ter condições de subir; não pode ser uma organização fechada.

Respeito devido a cada ser humano

Por fim, outra condição para haver legítimas e equilibradas desigualdades é que estas sejam proporcionadas ao respeito devido a cada ser humano.

Outro dia, eu estava lendo um livro das memórias de uma filha do Kaiser, último Imperador da Alemanha, onde ela contava uma viagem que fez à Turquia, durante a qual teve contato com o sultão daquele país. Chamou-lhe a atenção o modo pelo qual os sultões eram tratados por seus servos. Estes utilizavam a seguinte fórmula: “Meu senhor, este vosso servo, indigno de oscular os vossos pés, oscula a poeira em que vossos pés pisaram”.

Isso me fez lembrar imediatamente de uma fórmula que li quando mocinho e achei tão chocante que nunca me saiu da memória. Tratava-se de um egípcio, agente comercial do Faraó do Egito na Síria, que mandava ao Faraó uma carta onde eram tratados assuntos comerciais, mas cuja introdução era esta: “Fulano, vosso servo, indigno de beijar vossos pés, indigno de beijar as patas dos vossos cavalos, beijo no chão o pó em que as patas de vossos cavalos pisaram”.

Ora, ambos são da mesma natureza, têm alma, descendem de Adão e Eva! Ele, que é um homem como o Faraó, não é digno de beijar a pata de um cavalo?! Tenha paciência, isto aqui é um exagero, viola o princípio da fundamental igualdade existente entre todos os homens!

Temos, assim, uma noção a respeito do que é a igualdade e a desigualdade, e a verdadeira liberdade segundo a Doutrina Católica.               v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/1/1975)

Revista Dr Plinio 244 (Julho de 2018)

 

1) Revista Dr. Plinio, n. 243, p. 20-30.

 

Teoria do Amor à Cruz

O mundano, conforme seu feitio e o ambiente em que foi formado, admira quem é cheio de honras, dinheiro e conforto. O verdadeiro católico, dotado de sabedoria, desapegado de seus bens e que os utiliza por amor a Deus, possui uma dignidade, um decoro, uma distinção, uma compostura, que são o brilho da Cruz de Cristo.

 

São Luís Maria Grignion de Montfort(1) apresenta o seguinte elemento para praticarmos perfeitamente o amor à Cruz:

“Renuncie a si mesmo!”

Longe dos Amigos da Cruz os orgulhosos e os sensuais!

Se, pois, alguém quiser vir após Mim, assim aniquilado e crucificado, que só se glorifique, como Eu, na pobreza, nas humilhações e nas dores de minha Cruz! “Abneget semetipsum”, renuncie a si mesmo! Longe da Companhia dos Amigos da Cruz os sofredores orgulhosos, os sábios do século, os grandes gênios e os espíritos fortes, que são teimosos e convencidos de suas luzes e talentos! Longe daqui os grandes tagarelas, que fazem muito ruído e colhem apenas o fruto da vaidade! Longe daqui os devotos orgulhosos e que levam para toda parte o “quanto a mim” do orgulhoso Lúcifer, “non sum sicut ceteri” (Lc 18, 2), que não podem suportar que os censurem sem desculpar-se, que os ataquem sem defender-se, que os rebaixem sem exaltar-se!

Tende bem cuidado para não admitir em vossa companhia os delicados e sensuais, que temem a menor picadela, que se queixam da mínima dor, que nunca provaram a crina, o cilício, a disciplina e, entre as suas devoções em moda, misturam a mais disfarçada e refinada delicadeza e falta de mortificação.

Mudança completa de mentalidade

Há aqui umas pequenas observações a fazer. Em primeiro lugar, essa ideia claríssima, de Nosso Senhor:

“Se, pois, alguém quiser vir após Mim, assim aniquilado e crucificado, que só se glorifique, como Eu, na pobreza, nas humilhações e nas dores de minha Cruz!”

Essas são palavras já tão conhecidas e referidas, com tanta superficialidade e banalidade de espírito, por pregadores de segunda classe, que elas tomam aspecto de chavões. Ora, Nosso Senhor não poderia ter dito chavões. E não é possível que o Espírito Santo tenha inspirado chavões. De maneira que, chavões não podem ser. Existe uma pátina de trivialidade por cima dessas coisas, que não se pode confundir com a substância delas, porque do contrário seria admitir que Nosso Senhor diria banalidades, o que é o absurdo dos absurdos.

Como nós podemos atender esse conselho de Nosso Senhor?  Tal conselho de algum modo toca o preceito e até o âmago do preceito: “Se alguém quiser vir após Mim, renuncie a si mesmo…”; e deve ser aniquilado e crucificado, de tal maneira que só se glorifique na pobreza, nas humilhações e nas dores.

Em primeiro lugar, isso supõe uma espécie de metanoia, uma mudança completa de mentalidade. Porque o homem, pelas forças, pelas tendências de sua natureza, admira o contrário dessas coisas. Ele tem admiração pelo sucesso, pela riqueza, pelas glórias, pelo bem-estar. E quando ele vê uma pessoa nos píncaros da fortuna e das honrarias, gozando do sumo bem-estar, é levado a querer admirá-la. Pelo contrário, quando um indivíduo não tem isto, ele tende a não admirá-lo.

Honras, dinheiro e conforto

É por causa disso que os amigos do mundo procuram cercar de glória, de dinheiro, de bem-estar os homens que eles querem prestigiar; e buscam evitar o acesso a essas coisas às pessoas cujo prestígio desejam evitar. Porque eles sabem que uma grande glória, uma grande fortuna, a ostentação de um bem-estar mais nítido, são tribunas do alto das quais um homem afirma a sua superioridade perante os outros, e se transforma num doutor deles; o que ele diz, os outros acreditam facilmente, ele se torna um símbolo e um guia para os outros. Quer dizer, ele representa a própria plenitude da humanidade. Doutor, símbolo e guia são as três formas pelas quais um homem pode arrastar a opinião pública atrás de si.

Alguém me dirá: “Mas Dr. Plinio, isso é igualmente sabido”.

Eu afirmo: “É verdade, porém não é tão lembrado”. Além disso, é preciso dizer o seguinte: devo retificar em mim esse modo de pensar, e aí está o aspecto metanoia. Quer dizer, preciso agir internamente em mim mesmo, pedir a Nossa Senhora que me dê a graça de ser de tal maneira, que essas coisas não contribuam para que eu tome alguém como meu mestre ou doutor, meu símbolo e meu guia. Mas que eu seja capaz de compreender que isso não são credenciais para ninguém, debaixo de nenhum ponto de vista, e devo tomar outros critérios para julgar os homens.

Por exemplo, o mundanismo não é senão isso. Toda forma de mundanismo acaba tendo esses sintomas. A pessoa que é mundana, conforme seu feitio e o ambiente em que foi formada, admira o homem cheio de honras, ou de dinheiro, ou de conforto.

Erva daninha em nosso espírito

Eu lhes garanto o seguinte: se fizermos um exame de consciência cuidadoso, corremos o risco — não digo uma certeza, mas um risco sério — de encontrar resquícios disso dentro de nós. Quer dizer, há pessoas que admiramos e exercem império, se não sobre a nossa razão, pelo menos sobre as nossas vivências, porque elas têm algum desses três títulos. E isso de tal maneira nos fascina, que não somos capazes de abalá-lo, de derrubá-lo. Mais ainda, quando desejamos nos credenciar à consideração dos outros, em vez de procurarmos brilhar pelo esplendor da Cruz, intentamos dar-lhes ideia, ou de que somos ricos, ou cercados de muitas honras, ou de que temos um bem-estar esplêndido.

De maneira que há uma verdadeira necessidade de meditarmos a respeito disso, para evitar o desenvolvimento de uma erva má, que a todo o momento está renascendo no espírito de todos nós, ou de quase todos nós; corta-se e renasce, corta-se e renasce.

Por exemplo, conversas mundanas, tratando sobre pessoas que têm qualquer evidência na classe à qual pertencemos. No fundo, tais conversas são sempre seguidas de um preito de admiração à pessoa de quem se fala, por causa desses títulos. Daí vem o efeito debilitante do mundanismo sobre nós. Porque, admirando essa gente, imediatamente em nosso espírito forma-se uma posição falsa a respeito de nós mesmos. Começamos a nos sentir pouca coisa, inibidos, a duvidar do alcance dos grandes lances que nós jogamos. Por quê? Porque não temos dinheiro, honras, em quantidade suficiente para deslumbrar os outros. Possuímos o suficiente para aparecer com dignidade, com decoro, se quiserem, mas para deslumbrar não. Temos o nosso bem-estar nessas proporções. E muitas formas de insegurança em nós resultam da pujança dessa erva daninha no nosso espírito.

Dignidade, desapego e amor de Deus

Se os que estão neste auditório dessem orientação espiritual, compreenderiam melhor o mal que pode fazer a uma alma, numa hora errada, a evocação de um mundano. Aquilo entra como uma picada de uma mosca venenosa e pode estragar um dia, exatamente por causa do mundanismo.

Alguém poderia dizer: “Dr. Plinio, o senhor está preconizando que nós não procuremos nos vestir bem, ter um decoro, uma compostura! E que sejamos uns trapos, ao contrário do que o senhor toda a vida ensinou! Porque se é para ostentar só a Cruz de Jesus Cristo, não se pode fazer brilhar as outras coisas que a pessoa tem”.

O princípio se transmuda da seguinte maneira: como faço brilhar a Cruz de Cristo em mim?

Há uma expressão fisionômica do verdadeiro católico que lhe dá compostura, dignidade e beleza. É um quê pessoal indefinido, o qual resulta da intimidade ou da compenetração da alma com os mais altos princípios da doutrina católica. As expressões mais elevadas do pensamento se tornam para ela como que naturais. A posse da virtude da sabedoria, incluindo em si todas as outras virtudes adequadas, adaptadas ao próprio temperamento; com aquele senso da dignidade sobrenatural do que a pessoa é de fato; com o desapego das coisas no que diz respeito à vaidade, e com aquele puro amor, desejando que essas coisas brilhem, porque são dons de Deus, e para que agradem ao Criador, mas desinteressado em que façam pôr em relevo a miserável pessoinha de cada um de nós; quando isso entra numa alma dá-lhe uma dignidade, uma honestidade, um decoro, uma distinção, uma compostura que é o brilho da Cruz de Cristo.

A Cruz de Cristo é o conjunto de sofrimentos necessários para adquirir a sabedoria. É o conjunto de renúncias, de asceses, de aplicações contínuas e, portanto, muitas vezes esses sofrimentos são sentidos nos pontos fundamentais, com os devidos equilíbrios, contrafortes, as devidas hierarquias; a alma pena para ter amor à Cruz de Cristo. E o esplendor da Cruz de Cristo é uma certa nota de desapego, que vem junto com todos esses dons, e é condição para que esses dons se tornem suscetíveis de serem amados por outros.

Quando uma pessoa tem uma superioridade qualquer, é difícil fazer com que os outros aceitem a própria inferioridade. Mas o modo pelo qual isso ainda é possível, com o auxílio da graça, consiste em fazer com que os outros notem o desapego. Mas se notam uma satisfação vibrante, apegada àqueles dons, e o olhar oblíquo para ver se outros estão admirando ou não, e uma efervescência se não for admirado, os outros notam o apego. Apego gera apego, e nada torna um inferior tão apegado quanto o apego do superior.

Prestígio verdadeiro e sacrossanto

Então, a posse de todas as qualidades de uma determinada alma — que a graça ou a natureza lhe concedeu —, consideradas pelo aspecto sapiencial, nas proporções sapienciais, com renúncia a qualquer coisa contrária e sendo a posse desapegada, isto dá à alma algo que é fator de prestígio verdadeiro e sacrossanto, incomparavelmente maior do que o prestígio de ter automóvel ou qualquer outra coisa.

Esse autêntico prestígio vale mais do que o da Ciência. Há um mundanismo dos homens livrescos e outro dos fúteis. E, no fundo, um é tão fútil quanto o outro; apenas o segundo é um mundanismo mais deslumbrado e ensebado.

Há uma espécie de honestidade, de dignidade, de grandeza de alma, em comparação com o qual tudo mais é resto.

Senso aristocrático e sabedoria

Alguém me dirá: “Dr. Plinio, o senhor parece fazer uma exclusiva glorificação da virtude. A glória do homem é a virtude e nada mais. Ora, isso está em contradição com o hábito que o senhor tem de realçar muito os valores aristocráticos”.

Não é verdade. O que é aristocracia? O senso aristocrático é o aspecto da sabedoria pelo qual o homem sábio nota o que é mais excelente e o que é menos excelente. E dá às coisas com que ele trata um valor que está de acordo com as hierarquias delas. E, quanto a si mesmo, se mostra compenetrado do valor que lhe toca nessas hierarquias, tudo por amor de Deus. De maneira que nada pode produzir um senso aristocrático tão “raffiné”, tão requintado, quanto a verdadeira sabedoria.

O espírito hierárquico não é senão um amor sapiencial à desigualdade, que leva o homem a ter um amor próprio — não de quem está pensando em si mesmo —, mas um amor adequado ao seu próprio grau, tanto quanto ao grau dos outros. E a respeitar cada coisa, não porque é sua, mas por amor de Deus.

Vê-se em muitas pessoas que têm, por exemplo, qualquer grau aristocrático, se entra o amor de Deus ou o amor de si mesmo pelo meio, e a vivacidade com que se interessam pela instituição nobiliárquica, quando não diz respeito a elas.

Então o amor à Cruz não é em nenhuma hipótese o “débraillé”, o desarranjado, o esmolambado, nem o sentimental. Mas é qualquer coisa que prepondera sobre isto.

Segurança e insegurança

Quanto às seguranças e inseguranças, isso dá no seguinte: quem tem esse espírito condenado por São Luís Grignion de Montfort, ou que pelo menos possui “vegetações” subconscientes desse espírito, no conflito ou no contraste entre as duas formas de esplendor — a da Cruz e a do mundo —, chega a sentir-se inseguro. Quem ama verdadeiramente essa hierarquia de valores compreende a força dela e que essa insegurança não tem razão de ser. Pode-se ir para a frente, e aguentar o confronto com toda a firmeza, porque em si a superioridade da Cruz é simplesmente incomparável.

Se nós tivéssemos sempre a compenetração disso, como a nossa vida se tornaria mais fácil! E como todas as nossas atividades se tornariam mais compreensíveis! Por exemplo, um dos segredos de nosso apostolado, do nosso modo de nos apresentarmos em público, consiste em realçar isso. Aqui está a nossa grandeza.

Pôr em ordem a consciência

Alguém perguntaria: “Mas então o senhor considera que o dinheiro, o traje e outras coisas são inúteis para a apresentação?”

Eu não disse que essas coisas são inúteis. Afirmo que elas são de uma utilidade real, mas secundária, para serem assumidas por essa superioridade de espírito e representá-la. Elas existem para sublinhar o prestígio da virtude junto às pessoas com menos profundidade de vistas. Elas representam, em relação ao esplendor da Cruz, o papel do pedal do piano em relação à nota musical, aumentando sua sonoridade. E, como a força do mundo está continuamente procurando acalcar o pedal que diminui a sonoridade, é normal que se acalque o pedal oposto. Mas não é indispensável e nem o principal.

Que vantagem há em explicar isso? Os que se encontram nesta sala não apreenderam nada de novo pelo que eu disse. Mas se lembraram de alguns princípios úteis, tiveram ocasião de se embevecer e de amar mais uma vez a doutrina católica diante de uma reexposição de tudo quanto ela tem de bonito, e sobretudo puderam pôr em ordem a sua consciência, em face a alguns desses chavões, que sempre constituem umas pedrinhas nos sapatos da pessoa.

Aí está uma pequena teoria do amor à Cruz, num comentário muito livre desse texto de São Luís Maria Grignion de Montfort.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 29/7/1967)

 

1) Carta-Circular aos Amigos da Cruz, n. 17.

 

Amigo da Cruz

Uma das consequências mais prejudiciais do “American way of life”, difundido por todo o mundo por Hollywood, talvez tenha sido incutir nas mentalidades a ilusão de que é possível uma vida sem Cruz; e de que a felicidade está em gozar todos os prazeres — lícitos e não lícitos — que o mundo proporciona. Posteriormente, a televisão e a internet não fizeram senão exacerbar essa ilusão ao máximo. Assim, estamos hoje colhendo os amargos frutos dessa utopia. Como a vida real não corresponde ao mito representado nas telas, “as pessoas inauguram uma série de fraudes psíquicas para levar uma vida como se não sofressem”, alerta Dr. Plinio. Vem daí a frustração seguida, tantas vezes, pelo desequilíbrio mental, pelo desespero, resultando na fuga para as drogas e para a criminalidade, ou ao menos para a extravagância, de parcelas crescentes da população de todas as idades.

Desconhece-se uma faculdade da alma humana: a capacidade e a necessidade de sofrimento, a que Dr. Plinio chamou “sofritiva”. Quando ela não é atendida pelo padecimento efetivo, a pessoa sente uma frustração no fundo da alma, mais dolorosa do que o próprio sofrimento. Na realidade, “a felicidade da vida consiste em sofrer com conta, peso e medida, em vista de um determinado fim e ter o bom sofrimento que justifica esse fim. […] Como o homem tem essa espécie de capacidade ‘sofritiva’ que precisa se esgotar sofrendo, e como ele sofre mais não sofrendo, a questão é ter um sofrimento que seja, por assim dizer, adequado e proporcionado a ele, que tenha razão de ser e um fim que ele compreenda, e que a alma dele seja capaz de aguentar. Então ele o dá por bem empregado e, com isso, realizou o seu fim”.

Este é o ponto: “a única forma de felicidade verdadeira da vida é conseguir o fim para o qual se existe. Por mais que custe, por mais que doa, por mais que seja difícil, alcançado o fim, a pessoa está feliz!”

Em suma, “não há nada mais adequado para conferir nobreza à alma do que o sofrimento; sem este, não pode haver nobreza para a alma. Depois do pecado original, não há faculdade da alma que adquira a plenitude sem o sofrimento”.

O otimismo metódico pelo qual se quer viver como se o mal e o erro não existissem, é uma das formas de evitar o sofrimento.

Portanto, “o conceber a vida como uma série de sucessos é completamente falso, frustro e errado. A vida não é ter sucesso ou não, a vida é ter feito o dever, o qual, às vezes, é o de não ter sucesso. É o de representar um dos maiores papéis: o do infortúnio digno, do insucesso com elevação de alma, e com isso habituar os outros ao próprio infortúnio. Ser o mestre dos outros no infortúnio é um dos mais nobres papéis na vida!”

Altivez e humildade

Na Idade Média esplendorosa, os cavaleiros eram ufanos e briosos na luta, mas cordeiros da obediência, mostrando a justaposição das virtudes opostas do verdadeiro  católico, levadas até o extremo.

 

Encaminharam-me uma nota referente a Ordens militares de Cavalaria, mais especificamente da Ordem Militar de Santa Brígida. O texto é tirado da “História das Ordens  Monásticas Religiosas e Militares”, do sacerdote franciscano Pierre Hélyot(1).

Dois modos de se tornar herói

Assim nos diz a referida obra: Lemos nas revelações, quando da origem da Ordem de Santa Brígida, que Jesus Cristo lhe fez conhecer quanto Lhe eram agradáveis os votos daqueles que, sob o nome de cavaleiros,

se engajavam para dar a sua própria vida pela d’Ele, e para defenderem e manterem pela força das armas os interesses da Igreja e da Religião Católica.

Mas o mesmo Salvador queixou-Se também à Santa de que esses mesmos cavaleiros se haviam afastado d’Ele, desprezavam as suas palavras, faziam pouco caso dos males que Ele havia suportado na Paixão e, conduzidos pelo espírito de soberba, amavam mais morrer na guerra com a única ideia de obter a glória e atrair para si a estima dos homens, do que viver na obediência dos seus Mandamentos.

Esse foi sempre o defeito da Cavalaria. Um indivíduo pode ser herói por duas razões. Uma delas é uma grande razão: ser herói por amor de Deus. Outra corresponde a uma das maiores provas da estultice humana que possa haver: por vaidade ou faceirice. Porque é incompreensível qual a forma de faceirice que possa compensar ao homem a perda de sua própria vida. Do que me adianta morrer supondo que os outros estão me julgando um colosso, se perco a vida  e  não ouço as palmas  que  me  são dadas por ocasião da morte?

Manifestação da estultice humana

Uma coisa que eu nunca pude compreender é o fato de cavaleiros da Idade Média decadente se revestirem completamente de metal, e investirem um contra o outro naquela luta violentíssima de torneio, na qual eles podiam ser gravemente feridos, apenas para ficar bonito diante dos outros.

Imaginem que num embate desses o cavaleiro ficasse cego . Do que adiantou ficar bonito? Todo mundo exclama: “Ah, que coisa extraordinária!”, e o indivíduo no escuro, apalpando . . . Que sentido tem isto? É uma coisa literalmente incompreensível porque viola todas as regras da lógica. Se for feita a um cego a seguinte proposta: “Você pode ficar curado de sua cegueira. Mas se continuar cego, todo mundo vai achar lindo”. Ele quererá continuar cego? Ele escapole de dentro da cegueira de todo jeito. E, se puder, arranja o lindo de outro jeito ou consola-se sem o lindo, mas ficar cego, não.

Contudo, o espírito humano é passível de tantas deformações que, embora parecesse fácil encontrar heróis que o fossem por amor de Deus, de Nossa Senhora, por fé na vida eterna, e impossível conseguir heróis que o fossem por uma razão terrena e estúpida, a verdade é o contrário.

O homem está tão degradado pelos efeitos do pecado original, tão diminuído, que ele facilmente, em certas épocas da História, dá para herói sem sentido religioso. E quando ele entra numa Ordem de Cavalaria, o difícil não é ser herói, mas manter o verdadeiro motivo pelo qual se deve ser herói.

É uma das manifestações mais aflitivas da imbecilidade humana, mas essa expressão foi muito crua no tempo da decadência da Cavalaria e, portanto, das Ordens de Cavalaria também.

Destruir os inimigos de Deus e proteger os seus amigos

Entretanto, Jesus declarou  a Santa Brígida que se quisessem retornar a Ele, estava pronto a recebê-los e, ao mesmo tempo, Ele prescreveria a maneira que Lhe seria mais agradável, e as cerimônias que se deveriam observar quando eles se engajassem em seu serviço.

Vemos nisso o amor de Nosso Senhor às Ordens de Cavalaria, o perdão e o convite para restaurá-las.

O cavaleiro deveria vir  com o seu cavalo até o cemitério da igreja, no momento em que ele assumia a condição de cavaleiro, onde, tendo apeado  e  deixado  o seu  cavalo, devia tomar o seu manto, cuja ligadura precisaria se pôr sob a fronte, para a marca de milícia e da obediência na qual ele se engajava para a defesa da Cruz.

O estandarte do príncipe devia ser levado diante dele, para indicar que precisa obedecer às potências da Terra em todas as coisas que não são contrárias a Deus.

Tendo entrado no cemitério, o clero deveria vir diante dele com a bandeira da Igreja, sobre a qual estivesse representada a Paixão de Nosso Senhor, a fim de que ele aprendesse que precisava tomar a defesa da Igreja e da Fé e obedecer aos seus superiores.

Entrando na igreja, o estandarte do príncipe precisaria permanecer na porta; no templo só devia ingressar a bandeira da Igreja, para mostrar que o poder divino excede o secular e que os cavaleiros precisam se preocupar muito mais com as coisas espirituais do que com as temporais.

Ele devia ouvir a Missa e, à Comunhão, o rei ou aquele que o representasse, aproximando-se do altar, precisaria colocar uma espada na mão do cavaleiro, dizendo-lhe que lhe dava a espada a fim de que não poupasse a sua vida pela Fé e pela Igreja, para destruir os inimigos de Deus e proteger os seus amigos. Entregando-lhe o escudo, deveria dizer-lhe que este era para se defender contra os inimigos de Deus, para dar socorro às viúvas e aos órfãos e para aumentar a honra e a glória de Deus. Em seguida, colocando-lhe a mão no pescoço, precisaria dizer-lhe que ele estava submetido ao jugo da obediência.

Prioridade da Igreja sobre o Estado

Para compreender essa cerimônia, é preciso lembrar que na Idade Média houve sempre o problema de situar bem as relações entre a Igreja e o Estado, e, por causa disso, nos países ou nas ocasiões em que prevalecia o bom espírito, havia uma preocupação extrema de marcar a prioridade da Igreja sobre o Estado.

Estávamos na era bem-aventurada na qual a Igreja, crendo firmemente em si mesma e afirmando-se uma instituição de direito público, se afirmava superior ao Estado e proclamava o papa como o mais alto dignatário de toda a Terra, Vigário de Jesus Cristo e superior ao imperador e a todos os reis. Vemos, nessa descrição, uma cerimônia perfeitamente elaborada para indicar isto. É muito frequente na Europa os cemitérios ficarem ao lado das igrejas, verdadeiras matrizes paroquiais.

Então, no cemitério – provavelmente para indicar a proximidade e a resignação com a morte –, dava-se a primeira cena desse encontro.

O cavaleiro ia precedido com a bandeira do príncipe, mas quando vinha a bandeira da Igreja, representando a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, tudo desaparecia. O cavaleiro como que deixava o serviço do príncipe, ou seja, do Estado, em tudo quanto contrariasse à Igreja; colocava-se inteiramente ao serviço da Esposa de Cristo e ia ser, a partir daquele momento, um religioso sujeito aos três votos: pobreza, castidade e obediência.

Então, a bandeira do príncipe ficava na porta da igreja, por ser inferior, por nem ser digna de presenciar a cerimônia . Mas um representante do príncipe dava a espada, para indicar como o rei aprovava aquela cerimônia. Nota-se nesses pormenores o íntimo conúbio entre a monarquia e a Religião existente naqueles tempos.

Obediência: diminuir-se aos olhos dos homens, crescer diante de Deus

Vê-se também em outros lugares das mesmas revelações a fórmula dos votos de profissão dos cavaleiros, que deve  ser  concebido nestes termos: “Eu, enferma criatura, que não suporto os meus males senão com dificuldade,  que só amo a minha própria vontade e cuja mão só tem vigor quando é preciso bater,  prometo obedecer a Deus e a vós que sois o meu superior, obrigando-me com juramento de fazer o bem às viúvas e aos órfãos, de jamais realizar qualquer coisa contra a Igreja Católica e contra a Fé, e me submeto a reconhecer a correção, se acontecer que cometa qualquer falta, a fim de que a obediência à qual estou ligado me faça evitar o pecado e renunciar à minha própria vontade, e que possa, com maior fervor, prender-me somente à de Deus e à vossa”.

É uma fórmula linda, que exprime o conteúdo da obediência. O cavaleiro aceita a obediência para renunciar à sua vontade própria, que o inclina para o erro e para o mal. Então ele, sob a obediência de um superior que o guia para o bem, está defendido contra esta inclinação. Ele assumiu o compromisso de só fazer o que quiser uma pessoa mais firme no bem do que ele próprio. De maneira que, pelo voto de obediência, ele fica protegido contra os extravios de sua natureza enfermiça.

Ele, cavaleiro fogoso, valoroso, herói, renuncia a dispor de si mesmo e, com isso, se diminui aos olhos dos homens, mas cresce aos olhos de Deus, porque fazendo a vontade do superior não faz a vontade do superior, mas de Deus, que fala por meio do superior.

Assim, o cavaleiro tem a alegria, durante a vida inteira, de conhecer a vontade de Deus sobre ele e segui-la, porque a vontade de Deus é a vontade do superior. A todo momento, então, o cavaleiro sabia o que Deus queria, conhecendo o que o superior desejava dele.

Justaposição de virtudes opostas

Vejam o contraste de alma: de um lado, cavaleiros tão ufanos e briosos na luta; de outro lado, verdadeiros cordeiros da obediência, mostrando a justaposição das virtudes opostas no autêntico católico, e levadas até o extremo. De um lado, varonis de maneira a se tornarem os maiores guerreiros da Europa e do mundo; de outro lado, humildes a ponto de renunciarem à sua vontade própria.

Isso me faz lembrar de um fato que li em Montalembert(2), que me causou uma impressão profunda e do qual gostei muito.

Um árabe prisioneiro viajava pela Europa e viu aquelas catedrais serem construídas por irmãos leigos de Ordens religiosas . Ele então perguntou a alguém: “Explique-me os segredos dessas almas. Como é que podem construir catedrais tão altivas homens tão humildes?”

Para ter a verdadeira altivez é preciso ser verdadeiramente humilde, e para ser verdadeiramente humilde é necessário ser verdadeiramente altivo.

Eis a alma, não do cavaleiro decadente, herói por razões humanas, mas do verdadeiro cavaleiro segundo os anelos de Nosso Senhor quando se manifestou a Santa Brígida.

Na Idade Média tantas vezes houve exemplos admiráveis de cavaleiros que chegaram à honra dos altares.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 16/2/1967)

 

 

1- HÉLYOT, Pierre. Histoire des Ordres Monastiques Religieux et Militaires, et des Congregations Seculières. Paris: Nicolas Gosselin, 1715 . v . 4, c . 6, p . 44-45.

2- Charles Forbes René de Montalembert (*1810 †1870) . Escritor, político e polemista francês.

O princípio de subsidiariedade

A sábia organização que o espírito católico tinha dado à estrutura social da Idade Média se baseava no princípio de subsidiariedade, o qual vivificava todas as classes, inclusive o operariado. O próprio Karl Marx afirmou que a era de ouro do operário europeu foi a Idade Média. O liberalismo e o socialismo, obcecados pelos erros da Revolução Francesa, desprezaram esse sapiencial princípio, o que causou graves desgraças.

 

As duas formas mais conhecidas, mais consagradas de democracia são a socialista e a individualista. A democracia individualista, também chamada liberal, considera que o tríplice lema sobre o qual a Revolução Francesa pretendeu construir o mundo moderno – liberdade, igualdade, fraternidade – se executa por meio de um regime em que todo o poder vem do povo, onde, para os homens serem verdadeiramente livres, o Estado tem a menor interferência possível.

Lema da Revolução Francesa: uma contradição

Os socialistas, pelo contrário, julgam que esse lema não se realiza bem no liberalismo porque, uma vez que se dê liberdade, aparece necessariamente a desigualdade. Dado o fato de que os homens, por seus predicados, suas qualidades, são desiguais, cria-se a possibilidade de um enriquecer-se, tornar-se célebre mais do que o outro; depois naturalmente transmitem isso aos filhos por via de hereditariedade, e por esta forma se estabelecem desigualdades também de famílias e de educação.

Então é preciso haver um Estado muito autoritário que intervenha para assegurar a igualdade, obrigando as pessoas a terem mais ou menos o mesmo nível.

Chegar-se-ia, assim, à conclusão de que o lema da Revolução Francesa existe apenas na aparência, havendo uma contradição por onde quem quer realizar a igualdade com a liberdade não consegue, pois uma traz o sacrifício da outra: quem quiser a liberdade prejudica a igualdade, quem desejar a igualdade lesa a liberdade.

Essa situação deu origem, já no século XIX e depois no século XX, a discussões, polêmicas, lutas partidárias e até guerras civis sem fim. É de se perguntar como no século XIX as pessoas não viam os absurdos dessas duas formas de governo.

Antes de entrar, então, na exposição do que seria uma democracia equilibrada, verdadeiramente católica, devo mostrar um pouco qual é o fundamento último dessas duas posições, de maneira a compreendermos como cada uma, levada por uma unilateralidade, pode não ter visto o absurdo da outra posição. Assim entenderemos melhor o que há de sensato, de criterioso na postura católica.

Segundo o liberalismo, o Estado somente deve zelar para que não haja crimes

Para entendermos bem o individualismo precisamos considerar os princípios fundamentais do liberalismo, um dos quais é o seguinte: o homem é naturalmente bom e, portanto, concedendo-lhe a liberdade, ele faz o bem. Aplicado ao nosso País, por exemplo, o bem do Brasil é o bem dos brasileiros. Ora, cada brasileiro entende melhor do que ninguém qual é o seu próprio bem. Logo, se deixarmos a cada brasileiro a liberdade, ele vai providenciar do melhor modo possível seu próprio bem. Conclusão: se dermos toda a liberdade a noventa milhões de brasileiros, o Brasil realizará a sua própria felicidade. Portanto, liberdade é igual a felicidade.

A isso se faz a seguinte ressalva: esse raciocínio está exagerado, pois há conflitos de interesses nos quais a liberdade absoluta pode chegar até ao crime.

Ao que o liberal responde ser verdade, e por isso a função do Estado consiste exclusivamente em assegurar um governo que evite as ações de caráter criminoso, as injustiças. Desde que sejam evitadas as injustiças e os crimes, dê liberdade a todo mundo para tocar para a frente sua vida como quiser. O Estado é principalmente policial e judiciário, faz leis para impedir crimes, tem uma polícia para pegar os criminosos, um aparelho judiciário para julgar, prender, ou matar, conforme a legislação, as pessoas que tenham cometido crimes.

Fora isso, o Estado não deve fazer nada. Então, dirigir o comércio, ter escolas, indústrias, estimular a cultura, as belas artes, é sair de sua tarefa. O Estado precisa exclusivamente evitar o crime o que, na expressão dos liberais, se chamava zelar pela ordem pública e os bons costumes. Assim, evitada qualquer infração à ordem pública e aos bons costumes, o Estado realizou sua tarefa.

Países prósperos, modelos de liberalismo

Para os liberais, a maior prova da eficácia desse sistema é o fato de que as nações onde há uma ampla liberdade alcançam uma grande prosperidade, e argumentavam com os Estados Unidos, os quais, na época em que essas questões se punham, estavam em plena fase de progresso.

Esse exemplo da América do Norte se justificava da seguinte maneira: se o homem é feito para ser livre, então o melhor modo de explorar os recursos naturais deve ser a liberdade, porque a natureza não pode conter uma contradição. E se está na natureza do homem ser livre, deve estar também na natureza da agricultura, da pecuária, do comércio, da indústria que sejam exercidas por homens livres, do contrário haveria um choque na ordem natural.

Então, a essa bondade do homem correspondia uma bondade da ordem da natureza. A ordem natural é boa, o homem trabalhando à vontade não pode causar colisão. Viva os Estados Unidos, essa é a experiência!

Compreende-se facilmente que essa doutrina pode ter provocado no século XIX muita admiração, porque ela também foi praticada pela outra grande potência industrial de então, a Inglaterra. Durante grande parte do século XIX, a Inglaterra foi fundamentalmente liberal e, sendo a rainha dos mares, constituía o maior império financeiro da Terra, de maneira que a vida econômica do mundo se regia muito mais a partir de Londres do que de Washington. As duas nações mais liberais da Terra estavam no ápice da conquista, do liberalismo, do progresso.

Havia outra nação super-liberal também que, embora pequena, funcionava como um relógio: a Suíça. Então, argumentava-se: A Suíça é uma nação liberal, reunindo povos de três línguas diferentes – o alemão, o francês e o italiano – convivendo perfeitamente uns com outros; não há problemas entre eles porque se deu liberdade. A liberdade é a fórmula!

Convulsão social nas relações entre patrões e empregados

Contudo, essa impostação durou apenas algum tempo porque, sobretudo na Inglaterra e nos Estados Unidos, começou-se a constatar que, pela própria pressão do desenvolvimento econômico, a liberdade tão falada estava gerando absurdos. O primeiro deles era na relação entre patrões e operários.

Com efeito, verificou-se da parte dos patrões uma tendência a oprimir os operários, pagando-lhes o menor salário possível. Isso ocasionou na Europa as primeiras crises sociais.

Essa tendência encontrava sua causa no próprio progresso. Quando começaram a ser introduzidas nas fábricas europeias as primeiras grandes máquinas, decorrentes do progresso da metalurgia no século XIX, isso ocasionou a demissão de dezenas e até de centenas de operários, conforme as capacidades e as características da máquina e da indústria. Lançados assim na miséria, esses operários passavam a constituir mão de obra facilmente explorável pelos patrões que, devido à grande quantidade de desempregados, contratavam operários pagando salários muito baixos.

Essa tremenda opressão do patronato sobre o operariado se generalizou por todos os países que possuíam indústrias.

Considerando tão somente esse campo da vida social, já se nota como uma liberdade completa não é possível. E os socialistas tomavam essa impossibilidade – que realmente deu origem a agitações sociais, conflitos graves de toda ordem na Europa e nos Estados Unidos – para tentar impor a igualdade por meio de leis niveladoras.

Por exemplo, diminuindo a diferença entre o salário do trabalhador manual e o do trabalhador intelectual, dirigindo a economia de maneira a fazer com que, nas relações capital-trabalho, a distinção entre patrão e operário tenda a desaparecer também.

Nessa luta entre patrões e operários criaram-se os sindicatos de trabalhadores que passaram a se revelar mais poderosos do que as associações de patrões, pois os operários, fazendo uma greve, o governo socialista os mantém, mas se a empresa ficar parada durante a greve, quem perde é o patrão porque ele é obrigado a manter toda uma estrutura custosa, correndo o risco de ir à falência.

Esses sindicatos começaram a tomar a direção e a impor a proletarização das indústrias e a transformar-se no maior poder no Estado, de maneira que já Pio XII assinalou o perigo de governos se tornarem dominados pela pressão sindical.

Mito comunista à maneira de uma religião fanática

Compreende-se perfeitamente que liberais e socialistas não tenham visto o seu próprio erro durante algum tempo, pois uns e outros estavam obcecados pelas máximas da Revolução Francesa: liberdade, igualdade, fraternidade. Máximas fundamentalmente falsas na perspectiva em que aquela Revolução as tomava. Por outro lado, também porque, antes de pôr em prática essas teorias, tudo parecia bonito; quando se ia aplicá-las, davam num verdadeiro desastre.

Desastre do socialismo, por exemplo, é a queda da produção. Em todos os países socialistas a produção cai porque não há estímulo para o progresso. Imaginem um bom datilógrafo consciente de que, se ele trabalhar muito, será bem remunerado, quiçá promovido, e permanecerá vários anos numa empresa como excelente profissional. Ainda que não passe de um datilógrafo, o ordenado vai subindo, porque ele será disputado por outras empresas e, por causa disso, poderá impor o salário que queira.

Suponhamos um outro datilógrafo ciente de que, por mais que ele trabalhe, não vai ganhar mais do que determinado valor, pois o socialismo nivela os ordenados. Esse homem não vai trabalhar com afinco. Pelo contrário, vai produzir o mínimo possível.

Vemos o resultado dessa política nos países comunistas, onde não há promoção alguma e os salários são todos nivelados. Consequência: as produções decaem, todo mundo faz corpo mole. Daí a pobreza desses países.

Qual a razão pela qual os comunistas, levados pelo mito da igualdade, querem impor a todo custo esse regime ao mundo inteiro, apesar do fracasso? Evidentemente porque eles têm um mito à maneira de uma religião fanática, por onde a igualdade na miséria é melhor do que a desigualdade na prosperidade.

Necessidade da autoridade

Vejamos agora, em linhas gerais, a posição da Doutrina Católica diante desse problema.

O homem foi constituído por Deus de tal maneira que até no Paraíso terrestre haveria necessidade de uma autoridade. Se Adão e Eva não tivessem pecado, seus descendentes continuariam no Paraíso e ali constituiriam a sociedade humana.

Naturalmente seria tudo diferente do que é hoje. Por exemplo, isentos do pecado original, os homens não estariam sujeitos à doença e à morte. Seu trabalho seria um exercício agradável de suas faculdades para atingir objetivos equilibrados de progresso, com o emprego de tempo deleitoso e, portanto, ninguém procuraria sonegar o trabalho. Por outro lado, o homem teria um domínio e um conhecimento extraordinários da natureza. Isso determinaria uma organização da vida completamente diferente do que é hoje. Não obstante, os homens organizariam uma civilização.

Ora, apesar da grande inteligência e da vontade reta de todos os homens no estado de inocência com a graça, a Igreja nos ensina que seria necessária a existência de uma autoridade, não para reprimir os crimes, pois estes não existiriam, mas a fim de mandar. Porque as pessoas têm pontos de vista diferentes e é preciso haver quem olhe para a esfera de ação coletiva, preste atenção não apenas no bem privado, mas diga a cada um como agir em favor do bem comum.

Essa autoridade, portanto, decorre da natureza das coisas. E como Deus é o Autor da natureza, toda autoridade vem de Deus e é preciso respeitá-la. Considerar que a autoridade existe só para a mera repressão do crime é um verdadeiro disparate.

Então, nos perguntamos qual é o limite da autoridade, como podemos limitá-la de maneira que ela não dê nos absurdos do liberalismo nem do socialismo.

No sapientíssimo princípio da subsidiariedade se conciliam a liberdade e a autoridade

Para isso a Doutrina Católica usa um princípio muito empregado na Idade Média e que deu, naquela época, os melhores resultados: o princípio da subsidiariedade.

Com efeito, há diversas situações para as quais o homem, ou mesmo um grupo, não basta a si próprio, necessitando ser auxiliado, subsidiado.

Poderíamos exemplificar com várias famílias morando em torno de uma fábrica ou de uma igreja. Em certo momento, o número de famílias torna-se bastante grande para entenderem a necessidade de um governo que fizesse o que nenhuma família realiza: cuidar das ruas, do calçamento, da iluminação pública e de uma porção de coisas análogas. Como uma família não pode fazer isso, constitui-se um município que dá às famílias o que elas sozinhas não poderiam ter.

O mesmo se poderia dizer dos municípios. Vários municípios de uma mesma zona se congregam para formar um Estado porque, ligados entre si, melhor tratam dos interesses comuns. Cada município é tão livre quanto possível, mas o que ele não pode fazer só, o Estado realiza para vários municípios.

Para dar o exemplo brasileiro, a Federação ou os Estados Unidos do Brasil existem para assegurar ao conjunto dos Estados aquilo que cada um não consegue só por si: exército, marinha, aeronáutica, relações exteriores, uma série de outros recursos que só a federação pode obter em quantidades e proporções suficientes.

O princípio de subsidiariedade se compõe dos seguintes elementos: primeiro, a ideia de que a sociedade é constituída de membros vivos; segundo, cada membro deve tender livremente a se bastar a si próprio; terceiro, essa autossuficiência tem limites; quarto, esses limites conduzem a uma hierarquização que rege os limites da liberdade e da autoridade da seguinte maneira: o que cada um não consiga realizar por si, o grau superior supre. Assim, tanto quanto possível, liberdade na base; tanto quanto necessário, autoridade na cúpula. Por esta forma se conciliam liberdade e autoridade. Este é o sapientíssimo princípio da subsidiariedade que não dá nem em liberalismo nem em socialismo.

Observem como os revolucionários quase não falam disto. Os socialistas e liberais discutem ente si como se o princípio de subsidiariedade não existisse, embora ele venha mencionado nas encíclicas do Magistério da Igreja, pelos bons sociólogos católicos de todos os tempos; foi largamente praticado na Idade Média. Esse princípio não é considerado, nem pelos liberais nem pelos socialistas, porque estraga com a mania dos dois. Quer dizer, ele não dá lugar nem à liberdade completa nem à igualdade total com que sonhava a Revolução Francesa, pois esse princípio estabelece uma hierarquia, limita tanto a autoridade quanto a liberdade, e isso irrita os revolucionários.

Como surgiu o feudalismo

Na Idade Média, esse princípio teve aplicação no feudalismo. Compreende-se bem isso considerando como surgiu a maior parte dos feudos.

Imaginemos as terras lavradas, cultivadas, no tempo de Carlos Magno. Começam a aparecer as invasões dos hunos, normandos, sarracenos, etc. As comunicações entre as várias partes de um país eram muito difíceis por causa das estradas más; aparecem de repente os hunos. O resultado é que todos os trabalhadores tendem a reunir-se em torno da casa maior, mais forte, mais rica, e dali lutar para se defender contra o invasor.

Sendo a casa do patrão de interesse de todos, ela foi se transformando aos poucos em castelo: construíram-se as torres, primeiro de madeira e depois de pedra, para de longe poderem ver se o inimigo vinha. Avistado o inimigo, do alto da torre tocavam o sino ou o olifante para se reunirem todos na casa do patrão, e na torre eles resistiam.

Aos poucos também foram fazendo muralhas cada vez maiores e também com suas torres, os valos de água, tudo construído em comum acordo entre os donos da propriedade e os trabalhadores, para não serem mortos ou aprisionados pelos bárbaros invasores. O castelo nasceu, portanto, da necessidade de todos de se defenderem.

Era necessária uma autoridade para dirigir o castelo e a resistência contra o adversário. Ora, a autoridade é o patrão.

Na época de paz, o patrão acabava servindo de juiz e de prefeito na zona onde o castelo está construído, e se tornava um senhor, ou seja, o agricultor com funções de juiz e delegado no lugar onde morava.

Mas as invasões normandas, hunas, eram muito grandes, e tornava-se conveniente e até necessário estabelecer ligações entre vários donos de castelos. A resistência se põe em torno do mais poderoso e, quando um castelo é ameaçado, levam todas as tropas para defendê-lo. Criava-se, assim, uma hierarquia de senhores feudais, por cima dos quais estava o rei.

Qual é o princípio de um feudo? Um senhor feudal manda em sua terra e faz nela tudo quanto pode. O senhor feudal superior só intervém ali para realizar o que senhor feudal menor não consegue fazer. O rei só intervém na esfera da autoridade do senhor feudal superior pelo mesmo mecanismo.

O feudalismo não foi planejado, não houve um sociólogo que se sentou, começou a desenhar um “f” bonito, escreveu “Feudalismo” e, tendo inventado uma palavra, pensou: “Agora vou inventar uma realidade.” Nasceu naturalmente das invasões e das aplicações do princípio de subsidiariedade.

Aplicação do princípio de subsidiariedade às cidades, universidades e condições de trabalho

Em alguns lugares formaram-se cidades que por esse mesmo mecanismo se fortificaram. Mas como não nasceram da agricultura, essas cidades não tinham nenhum proprietário para seu chefe, e começaram a eleger autoridades. Essa organização eletiva nasceu da ordem natural das coisas, e ia tão longe que, em várias cidades, cada bairro possuía seu governinho, um prefeito para governar o bairro. De tal maneira eles amavam esse princípio de subsidiariedade do poder público pequeno e próximo ao indivíduo que está sendo governado.

Um exemplo disso foram as universidades que eram colossais. Uma universidade ocupava um bairro, no qual o reitor da universidade mandava em tudo. Ele era o prefeito, o delegado de polícia, o juiz, e ninguém mandava dentro da universidade a não ser o reitor.

Essa estrutura se aplicava também para o trabalho. Na Idade Média as condições de trabalho davam muito mais valor ao homem e menos à máquina; a época era pouco mecanizada e as máquinas existentes primitivas, pequenas e em geral de madeira. O operário valia mais do que a máquina e não havia propriamente o capitalista como existe hoje, que entra com o dinheiro para montar uma fábrica. Todos eram artesãos e os operários entravam como aprendizes; o talento deles concorria muito mais para a produção do que a máquina. Os melhores tornavam-se mestres.

A fábrica era, em geral, um quarto ou dois no mesmo prédio onde morava o dono da empresa, e os operários comiam com a família do dono. Aquilo formava uma espécie de família grande em que o mestre mandava porque era o mais competente, e se ele saísse também se retirava a freguesia. Era esta a preeminência, baseada, portanto, no trabalho.

O costume tinha na Idade Média uma importância enorme. Os medievais tomaram o costume de reunir todos os estabelecimentos de um mesmo ofício, o que naquelas cidades pequenas era muito fácil. Assim, quem quisesse comprar uma joia ia à rua dos ourives, quem estivesse à procura de sapatos dirigia-se à rua dos sapateiros, e assim por diante.

Os homens que exerciam uma determinada profissão foram se constituindo em corporação, com direção própria. Assim, tão logo se formasse um todo, esse todo se organizava e reivindicava a sua autonomia. Era o princípio de subsidiariedade.

Um grande hospital como a Santa Casa de Misericórdia, em São Paulo, na Idade Média seria autônomo à maneira de um pequeno município: teria suas próprias leis, autoridades e até polícia, juiz e cadeia.

A família era o modelo da sociedade humana

A célula principal, o fundamento da sociedade era a família, considerada o modelo da sociedade humana. Na França, os juristas empregavam uma expressão muito bonita para definir o que era a família em função do Estado: diziam que o pai era o rei dos filhos, e o rei o pai dos pais. De maneira que o regime era paterno.

Sente-se muito isso em velhas gravuras brasileiras do tempo da colônia, nas quais se veem famílias portuguesas ou luso-brasileiras saindo aos domingos. Em geral, na frente vai o pai, um “portuguesão”, às vezes com um cigarrão, uma bengala, um chapéu de dois bicos e andando como quem não se preocupa com nada. Atrás dele vai a esposa, depois os filhos em ordem de idade, depois dos filhos os escravos. Por onde ia o pai, caminhava a família inteira.

Em geral, o pai de família deixava o patrimônio para o filho mais velho que deveria gerir a propriedade, sem descuidar do indispensável auxílio aos irmãos mais novos. Aqui vemos uma vez mais a aplicação do princípio de subsidiariedade.

Os filhos mais novos do castelão iam tentar a vida em outras terras, mas se lhes advinha o fracasso, a tragédia ou a doença, tinham direito a voltar ao castelo com sua família, encontrando ali uma espécie de instituto de aposentadoria e pensões.

Entretanto, aquele pessoal estava habituado à aventura, tanto mais que a monotonia da vida agrícola os impelia a isso. Então, a maior parte deles fazia um esforço tremendo para progredir, lançando-se na aventura. Daí aquela atmosfera que mais tarde se refletiria em D’Artagnan e os três mosqueteiros – Athos, Porthos e Aramis –, ou Cyrano de Bergerac, filhos mais moços que deixaram a vida monótona do campo na esperança de que, se batalhassem como leões, poderiam galgar altos postos e se tornar, eles mesmos, donos de grandes castelos.

A sede de aventura era assim estimulada pela seguinte ideia: “Se eu for para a cidade, ainda mais apoiado pelo meu maioral, posso fazer uma grande carreira. Que delícia! Se eu ficar no campo, não mando, sou um puro pensionista. Que monotonia! Então vou me arriscar. Mas de outro lado, sei que se eu fracassar tenho onde me refugiar”.

O mesmo se dava, a seu modo, com os trabalhadores manuais. Por vezes estes eram arrendatários hereditários de uma parte das terras do senhor feudal, e trabalhando ali podiam viver bem. Se os seus descendentes ou colaterais viessem morar ali por necessidade, naturalmente se apertavam mais, porém tinham o mesmo direito; correspondia à situação do castelão, em ponto menor.

Mas também entre eles a linhagem não correspondente ao primogênito saía em busca de novas terras a explorar, por vezes recebidas do senhor feudal ou do rei mediante um pagamento que as colheitas deviam proporcionar. Por esta forma a família se espraiava, e em torno dela se constituía esse princípio de subsidiariedade.

Era, novamente, a linha primogênita da família ajudando a não primogênita, mas esta devia dar tudo quanto pudesse. Se fracassasse, a linha primogênita ajudava.

Daí serem contrários à partilha igual do patrimônio, porque então ninguém pode garantir nada para ninguém. Enquanto que, por esse sistema, funcionava um verdadeiro instituto de aposentadoria e pensões, em base pequena e doméstica.

Poder público influenciável pelos indivíduos

Esses princípios existiram na Idade Média e foram praticados com tão grande êxito que o próprio Karl Marx, numa de suas obras, afirmou que a era de ouro do operário europeu foi a Idade Média. Eis a sábia organização que o espírito católico tinha dado à estrutura social. Essa estrutura era baseada no princípio de subsidiariedade.

Trata-se, nessa organização, da formação de inúmeros corpúsculos que dirigem a vida do homem na medida em que ele precise de uma direção, e esses corpúsculos se encaixam constituindo uma verdadeira malha de autoridades.

Um desses “prefeitos” da rua sofre muito mais a influência daqueles em que ele manda do que um prefeito de uma grande cidade, como São Paulo, com milhões de habitantes. A distância é grande demais.

O prefeito da rua mora naquela mesma via pública; e quando algum morador está descontente, sem pedir audiência vai na casa dele e diz: “Fulano, tem sujeira diante de minha casa, porque o Serapião não limpou. Agora você vai mandar o Serapião limpar!” E vão os dois juntos chamar o Serapião. Quer dizer, toda relação é próxima e pessoal. Então se exerce a influência do indivíduo no governo, e ao homem interessa muito mais influenciar a própria rua do que o Estado, porque ele não mora no Estado, e sim naquela via pública.

Também o fabricante ou o industrial. O operário tem um contato direto com sua corporação com dezenas ou centenas de operários ou industriais. Na hora da eleição, o voto dele terá importância, pois o voto de um em cem ou duzentos pesa na balança. O poder público é, assim, muito influenciável pelos indivíduos, e essa é uma forma de democracia.

O costume

Outro aspecto democrático é o costume. Quando se estabelece um costume, cria-se um direito. Por exemplo, numa rua tal certo homem, desde tempos imemoriais, tem o hábito de amarrar o cavalo dele numa determinada argola, que está do lado de fora de seu prédio. Se numa ou duas gerações se fez assim, ninguém mais pode ir contra isso; é um direito adquirido porque foi aprovado por todos e, a menos que se prove que isso começou a ser nocivo para todos, esse costume subsiste. Não são leis gerais feitas para milhões de homens, mas situações individuais que o costume vai criando para este ou aquele. A tal ponto que havia famílias, às vezes da plebe, que por lei o sistema de herança dos bens era diferente do que vigorava nas outras famílias. Provavam a existência do costume, e o juiz o aplicava; por quê? “Porque na nossa família o temperamento, o gosto é assim”.

Havia, por exemplo, numa região da França um costume curioso: quem herdava a fortuna do pai falecido não era o mais velho, e sim o mais moço, por julgarem que este teria melhores condições de levar adiante a fortuna da família. É um ponto de vista que, uma vez constituído o costume, era acatado pela legislação. Assim, a grande maioria das leis era feita de costumes que o rei só anulava quando estes se tornavam injustos.

Não existia a classe dos políticos profissionais

Isso tem como resultado curioso impedir o aparecimento da classe dos políticos profissionais, porque ninguém faz carreira sendo diretor de uma pequena unidade. A pessoa só dirige essa unidade porque os outros pedem. Isso lhe dá um pouco de prestígio, mas é uma atividade colateral.

Mesmo um senhor feudal, que governa toda uma extensa região, não é principalmente governador, mas um agricultor, vive de suas terras que ele tem que fazer valer para ter o prestígio necessário e manter sua família. Ele é secundariamente o governador daquelas terras e, portanto, não é um político profissional.

Esse sistema de governo não tem os defeitos do liberalismo nem do socialismo. Todos possuem uma influência no Estado, mas no âmbito em que entendem, e está no seu campo de ação mais imediato. Há até eleições livres, mas não existe a figura do político profissional. A política como tal está ligada à profissão de cada um, à vida de todos os dias, e todo mundo cuida da sua própria existência.

É profundamente diferente do Estado liberal democrático onde há uma classe de políticos que vive de fazer leis e de ocupar cargos públicos, eleita uma vez a cada quatro anos por uma grande massa pública que quase não se conhece e que, fora da ocasião da eleição, não tem nenhuma ou quase nenhuma influência no panorama político.

A situação anteriormente descrita eu reputo mais democrática, no bom sentido da palavra. Um regime no qual, embora não seja igualitário nem liberal, existem a igualdade e a liberdade legítimas.        v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 4/1/1975)

Revista Dr Plinio 243 (Junho de 2018)

Lírio entre os espinhos

No Pequeno Ofício da Imaculada Conceição há o seguinte responsório: “Como o lírio entre os espinhos, assim é a minha predileta entre os filhos de Adão”.

Estas palavras podem ser aplicadas também a uma porção de coisas boas que, em nossas vidas, restam no meio dos espinhos, os quais temos que aturar para podermos nos deleitar com o perfume de um lírio.

Existe, por detrás, uma verdade enternecedora: Nossa Senhora quer que tenhamos pena daqueles que representam os espinhos em torno do lírio d’Ela. E tendo paciência com eles, sabendo perdoar até o estapafúrdio, sendo inalteravelmente os mesmos, nós transformamos os espinhos em lírio.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/2/1988)

Como corresponder com gratidão ao infinito dom da Eucaristia?

Havendo conhecido o célebre livro do Pe. João Pinamonti sobre a Sagrada Eucaristia, com base nos exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola, Dr. Plinio considerou ter encontrado um tesouro. Damos continuidade aos comentários tecidos por ele a este respeito.

 

Continua  o Pe. Pinamonti:

“Que dirão os anjos do Céu, que conhecem muito bem de um a outro extremo a suma liberalidade de Cristo, e a excessiva estreiteza do teu coração?”

É algo que nos deixa confundidos! Nem os anjos da mais alta hierarquia celeste têm com Nosso Senhor a forma de união que nós homens possuímos, recebendo a Eucaristia. Os anjos não podem comungar, pois não têm corpo. Gozam até da visão bea­tífica, vêem a Deus face a face, estão inundados de dons celestes. Mas, a Sagrada Eucaristia eles não recebem, e nos olham como que “invejando” esta graça.

E nós não haveríamos de recebê-la com maior respeito, meditação, consideração prévia?

Imaginemos uma pequena capela onde um sacerdote dá a algum de nós a Eucaristia. Visíveis apenas o padre, um de nós, e um discozinho de farinha e água. Porém, a fé nos ensina que todos os anjos e santos do Céu adoram cada partícula do Santíssimo Sacramento existente na Terra; e portanto presenciam aquela comunhão, cantando e louvando o Divino Redentor. Nossa Senhora, por sua vez, louva a Nosso Senhor porque Ele está Se dando a nós. De maneira que o Céu inteiro está olhando para aquela cena e pede a Nosso Senhor misericórdia por aquele que está recebendo a Eucaristia.

Pode-se conjecturar algo mais alentador? Quanta alegria e que beleza nessa cena!

Se antes de comungar, pensássemos um pouco nisto, não é verdade que iríamos receber a Eucaristia com mais esperança, mais confiança, mais alegria? É evidente!

Cada comentário  do Pe. Pinamonti ao exercício inaciano é tão denso, que qualquer um deles daria para um sermão. Porém, ele os apresenta esquematicamente. Por isso, não posso deixar de ser também esquemático.

Afirma ele:

“Confunde-te da tua ingratidão: lembra-te que à medida dos benefícios, se abusares deles, serão castigos: propõe de dar tudo a quem te dá tudo sem reserva. Dá graças ao Senhor duma magnificência tão excessiva para contigo e roga-lhe que a tão excessivos benefícios acrescente este de te dar um novo espírito e um novo coração para os estimares e lhes corresponderes quanto deves”.

O pensamento aqui expresso é muito profundo.

Diz ele:

“Confunde-te de tua ingratidão”. O que é “ficar confundido”? É propriamente não saber o que dizer. Entretanto, segundo a doutrina católica a confusão por nossas faltas deve ser cheia de confiança, como quem se ajoelha aos pés do Divino Salvador e diz:

“— Meu Senhor, andei mal e não tenho o que Vos dizer. Mas confio em Vós porque sois a solução de tudo. Vós sois o caminho, a verdade e a vida. Com confiança prostro-me aos Vossos pés, como Santa Maria Madalena. Sei que não me repelireis, nem me abominareis. Vós sois Aquele que a todos emendais e curais. Curai-me e emendai-me a mim também. Estou aqui como o cego, o paralítico ou o leproso do Evangelho: sanai-me das minhas doenças de alma, como sanastes aqueles corpos. Por Vossa Mãe, a quem nunca negastes nada, e a qual nunca recusa de atender ao pecador que a Ela recorre, eu Vos suplico: curai-me!”

Essa é a confusão confiante, cheia de certeza de ser atendido, com a qual se deve comungar.

Inspirado em Santo Inácio, recomenda  o Pe. Pinamonti ainda pedirmos a Deus que mude o nosso espírito. Nosso Senhor pode transformar o espírito de uma pessoa de um momento para outro. A História conhece inúmeros casos de conversões súbitas. Ou aos poucos, gradativamente, convertendo-a ao longo dos anos.

Se em cada comunhão pedirmos a Nosso Senhor que nos converta e nos mude, em determinado dia Ele nos atenderá.

Conta-se que São Francisco de Sales durante trinta anos deu diariamente comunhão a um homem, ao qual precisava ouvir todos os dias em confissão, pois este era muito débil e fraco. O santo o absolvia e lhe ministrava a Eucaristia. Ao cabo desse tempo, o indivíduo se emendou e levou depois vida modelar.

Esse homem recebia a comunhão com confusão confiante. Em cada dia ele ia melhorando e progredindo. Isto porque a Eucaristia é o centro, o foco e a alma de nossa vida espiritual. Assim devemos considerar cada comunhão que recebemos.

Após analisar o dom — que é o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo — Pe. Pinamonti comenta o afeto de quem concede.

“Considera o afeto com que Jesus Cristo te dá este soberano dom. Nisto mais propriamente consiste o benefício, por ser o amor a alma dos dons, sendo o que se dá como o corpo de cada um deles. Foi pois, tão excessivo este amor de Cristo em nos dar a divina Eucaristia, que chegou a tocar o último termo.

“E assim como uma fornalha, pelas chamas que lança fora, dá a conhecer os ardores que em si contém, assim a imensa caridade com que Cristo instituiu este Diviníssimo Sacramento, se dá a conhecer pelo tempo e modo de o instituir, e pelas dificuldades que venceu para esta instituição.”

Para explicar o amor com que Nosso Senhor nos concedeu o Sacramento da Eucaristia, ele mostra o tempo, o modo e as dificuldades que teve para instituí-Lo.

  1. a) O tempo em que O instituiu:

“O tempo foi aquele mesmo em que os homens tratavam de Lhe dar uma morte crudelíssima; então é que quis dar aos homens este manjar de vida, achando modo de ficar sempre conosco, quando os seus inimigos, mais do que nunca, tratavam de O tirar deste mundo.”

A reflexão é das mais comovedoras que se possa imaginar!

A Sagrada Eucaristia foi instituída na Quinta-Feira Santa. E autor cita um trecho de uma epístola de São Paulo: “in qua nocte tradebatur, accepit panem” – “Na noite em que foi traído, Ele tomou o pão”. (1 Cor. 11, 23). Quer dizer, enquanto era traído e os judeus planejavam matá-Lo, Ele instituía um modo de ficar com os homens ininterruptamente.

É um fato muito bonito: Nosso Senhor, depois da instituição da Sagrada Eucaristia, não mais deixou de estar na Terra por um instante sequer.

No momento em que os judeus pensavam armar uma cilada para expulsá-Lo da Terra, O Redentor preparava uma sacratíssima rasteira contra eles. Instituiu a Eucaristia e, quando morreu, Ele ficou sob forma eucarística em Nossa Senhora, assim não abandonou o mundo em nenhum momento.

Vemos o amor dele ao gênero humano, através da maravilha que engendrou para estar com os homens o tempo inteiro: quando os Apóstolos puderam celebrar a Santa Missa, a presença eucarística começou a se multiplicar pela Terra.

Tal maneira de proceder denota uma inteligência suma, um grande amor desejo de estar conosco!

  1. b) O modo como foi instituído:

O Padre Pinamonti explica então, o modo pelo qual Nosso Senhor instituiu a Eucaristia:

“O modo com que instituiu este Divino Sacramento é debaixo das espécies de manjar para se unir tanto a nós que, assim como não há arte que possa separar da nossa substância o nutrimento que se tem já distribuído por todo o nosso corpo, assim não haja arte nem força que possa separar-nos do mesmo Cristo.”

É um raciocínio belíssimo! Jesus quis estar conosco sob a forma de alimento. Quando alguém come um pão, este se integra de tal forma ao corpo, que não se pode separar um do outro. Analogamente, através da Eucaristia, o Divino Salvador quis estabelecer uma íntima união conosco.

  1. c) As dificuldades que venceu:

“Mas sobretudo se manifesta a sua caridade nas dificuldades que venceu para nos fazer tanto bem; porque prevendo uma inumerável multidão de irreverências, de desprezos, de sacrilégios dos infiéis para com o seu Santíssimo corpo, e de tantos cristãos, ou tíbios ou malignos, contudo se expôs a tolerar tudo para chegar a unir-se com tua alma; e a esta mesma tolerância acrescentou desejos, e desejos veementíssimos: “Desiderio desideravi” — ‘Com grande desejo desejei comer esta Ceia convosco’(Luc. 22, 15). E ainda que para vir ao mundo e encarnar-se, se tenha feito desejar e esperar por tantos séculos; agora para vir ao teu coração Ele mesmo te solicita a ti com um desejo digno somente do seu Coração Divino.”

É outro pensamento belo como o sol! Para compreendê-lo é necessário colocar-se no estado de espírito de Nosso Senhor, no momento anterior à instituição da Sagrada Eucaristia.

O Redentor conhecia o passado, o presente e o futuro, previa todos os sacrilégios que iriam ser cometidos até o fim do mundo contra o Santíssimo Sacramento.

Pois bem, diz o autor:

“Nem todos esses pecados foram capazes de impedi-Lo de proceder a esta instituição.

“Um número incontável de injúrias, indiferenças e tibiezas foram as dificuldades que Ele quis vencer para te dar, ó católico, o Santíssimo Sacramento nessa hora.”

É um pensamento esplêndido!

Nós desmaiaríamos diante da perspectiva de receber por Nosso Senhor, um centésimo das injúrias que Ele recebeu por nós… Seu amor e sua bondade são tão grandes, que apesar disto, desejou sofrer tudo quanto sofreu, a fim de que o Santíssimo Sacramento viesse até nós. É algo impressionante!

Insisto sobre o respeito e a confiança que isto deve suscitar em nós na hora da comunhão: quanto é poderoso o Deus capaz de tal maravilha, mas também quanto é bom! Devemos pois imaginá-Lo entrando em nossa alma com o afeto correspondente a esta bondade, e não fazendo uma inspeção seca e aborrecida: “Tal defeito, tal falta… Esse tipo não deveria ter-me recebido!…”.

Não! Devemos pensar o contrário.

Quando Jesus entrava na casa dos doentes para curá-los, não tapava o nariz com receio do mau-cheiro; pelo contrário, ia com afeto, vontade de fazer o bem, semblante sereno, ar bondoso, disposto a ouvir. E depois concedia a graça, operando o milagre. Devemos imaginar a Nosso Senhor sempre transbordante dessa bondade.

É impossível não reconhecer a limpidez e o acerto de tais raciocínios.

Então, quando comungarmos, digamos a Nossa Senhora — porque não podemos perdê-La de vista um só instante: “Minha Mãe, estas são razões por demais elevadas para eu compreendê-las inteiramente. Mas Vós, quando comungáveis, as entendíeis plenamente. Vinde espiritualmente à minha alma e tratai a Nosso Senhor como o fazíeis na Terra. Adorai a Deus em meu lugar”.

Assim, com confiança, devemos receber o Redentor alegremente. Se Nossa Senhora O está tratando Ele está sendo esplendidamente recebido em minha alma, e eu estou oferecendo-Lhe uma festa régia.

Por fim, a utilidade:

“Considera a utilidade deste dom da Eucaristia. Por isto se chama comunhão, para significar que faz comuns à alma todos os bens de Jesus Cristo; de sorte que aquele capital imenso de merecimentos, em toda a sua vida e na sua morte, se aplica todo neste Divino Sacramento, no qual pretende o Senhor renovar em cada pessoa particular os efeitos que a sua Santíssima Paixão tem produzido em todo mundo.”

É outro pensamento diante do qual a pessoa não cabe dentro de si.

Imagine-se, cada um de nós, aos seus pés.

Considerando aquele sangue que verte, é uma bonita oração dizer: “Meu Senhor, fazei com que uma gota de Vosso sangue caia sobre mim e me transforme”. No entanto, uma comunhão é muito mais do que isto! Porque através dela, todos os méritos de Nosso Senhor Jesus Cristo são oferecidos por mim para redimir os meus pecados.

Devo, pois, ir confiante à comunhão. O sangue de Cristo pode tudo e, recebendo-O, estou adquirindo o remédio para todos os males e a solução para todos os problemas.

Devo também dizer a Nossa Senhora: “ Oh! Minha Mãe, fazei com que os méritos de Nosso Senhor se apliquem a mim de modo semelhante como se aplicaram a Vós, para que minha alma se entranhe continuamente deles”.

Podemos estar certos de que assim ficaremos “milionários” de méritos, por uma simples comunhão. Se uma pessoa passasse numa gruta a vida inteira sozinha, rezando, e fazendo penitência, ela não adquiriria tanto mérito quanto o obtido em uma só comunhão. Percebemos assim de que dom inapreciável dispomos.

Conclui o Pe. Pinamonti:

“Oh Deus sempre admirável em nos amar e fazer bem! Que coisa te poderá Ele negar, depois de te ter já dado tanto? E tu, que coisa lhe poderás negar a Ele?”

E sugere, que no final da comunhão se faça uma oração a Nosso Senhor Sacramentado. Nós, que somos escravos de Nossa Senhora segundo o método de São Luis Maria Grignion de Montfort, a fazemos por meio d’Ela. Poderia ser uma prece na qual pedíssemos ao Redentor que nos concedesse, dentre Seus inumeráveis dons, mais este: o de darmos tudo a Ele.

 

Nobreza, distinção, boas maneiras: frutos do preciosíssimo Sangue de Cristo

A distinção católica, contrarrevolucionária, evidencia a superioridade do Ocidente sobre o Oriente, embora este seja tão mais rico em pedras preciosas, tecidos e outros ornamentos.

 

Folheando uma coleção de fotografias de pretendentes a tronos em diversas nações, constatei haver pelo meio uns marajás, um sultão do Afeganistão e outros personagens assim. Então, chamei a atenção dos circunstantes para a diferença entre a atitude, o porte e a posição dos monarcas ou dos pretendentes a trono ocidentais – descendentes, portanto, das antigas dinastias históricas do Ocidente –, e os do Oriente.

Um preconceito revolucionário: ter medo de parecer por demais maravilhoso

No Oriente as pedras preciosas são muito maiores, mais bonitas, de melhor quilate, o subsolo é muito mais rico desse gênero de esplendores. Também as pérolas que se pescam em alguns lugares do Oriente são de uma beleza incomparável. De maneira que eles podem constituir para si ornatos muito mais ricos do que os príncipes do Ocidente. Além disso, dispõem de tecelões que trabalham com tecidos a mão, e podem encomendar tecidos manufaturados de uma qualidade muito superior à dos industrializados, comuns no Ocidente. Por isso, sob o ponto de vista de indumentária, os dignatários orientais se apresentam muito melhor do que os do Ocidente. Tanto mais quanto eles têm uma certa fantasia e não são inibidos por preconceitos revolucionários, pela ideia de ter medo de parecer por demais maravilhosos.

Um ocidental tem receio de parecer por demais maravilhoso. Examinem, por exemplo, os uniformes oficiais dos diplomatas e dos militares de alto grau – generais, marechais, etc. – do século XIX e os do século XX. É uma degringolada medonha. No século XIX, havia aquele chapéu de dois bicos, com abas que se reuniam em cima, e dentro tinham “aigrettes” brancas; as roupas eram bordadas com alamares e outros adornos muito bonitos, com condecorações, uma coisa que tende ao lindo. Mas o homem de hoje tem vergonha de se apresentar nesses trajes porque o espírito da Revolução achatou todas as tendências para o belo.

Pelo contrário, no Oriente isso não era assim; havia uma classe que sonhava com o maravilhoso. Então, marajás, rajás, xás, sultões, etc., que aparecem com essas roupas lindas. Mas se analisamos os homens, vemos serem eles muito inferiores, como porte, maneiras, posturas, do que os do Ocidente. Por quê? Porque durante séculos, desde que a Igreja Católica penetrou no Ocidente, começou a germinar a Moral católica. E quando consideramos alguém que observa em todos os seus pormenores essa Moral católica, essa pessoa – se não ela, seu filho ou seu neto – acaba sendo de uma educação e de um porte perfeitos.

A Moral católica gera a educação, a distinção e a correção perfeitas

Para uma pessoa que pratica a Moral católica perfeitamente, é instintivo, mesmo não tendo recebido uma educação de salão, praticar, por exemplo, atos como o seguinte: está à mesa tomando refeição com um convidado que merece uma especial honra e atenção, serve o convidado antes de se servir a si própria. Ora, isso que é ensinado como uma regra de educação – “Você, na sua casa, seja o último a se servir; quando estiver na presença de mais velhos, faça com que eles se sirvam antes; diante de pessoas mais graduadas do que você, reconheça de boa vontade essa maior graduação, preste-lhes honras, faça com que se sirvam antes” – são aplicações de princípios de Moral a questões de bom procedimento.

Se numa primeira geração de católicos muito bons não houve tempo de modelar todos esses costumes de acordo com os princípios morais, ao cabo de algum tempo esses princípios filtram e nasce daí uma atitude, uma distinção, uma amabilidade, uma cortesia, que no fundo faz parte da Moral católica. A Moral perfeita deve gerar necessariamente a educação, a distinção e a correção perfeitas.

Às vezes até acontece que uma pessoa pratique a Moral perfeita, mas não tenha uma educação perfeita, porque não houve tempo de aquilo filtrar no ambiente onde ela foi educada, de forma a começar a prestar atenção nessas pequenas questões de boas maneiras e praticá-las. Questões que, evidentemente, em matéria de Moral, estão num plano secundário, não são a essência dela. Mas ao cabo de algum tempo aquilo filtra. Pode acontecer que uma pessoa, pelo contrário, não tenha boa Moral, mas possua uma educação perfeita. Porém ainda aí é um resto de Religião Católica. Ela, sem perceber, cumpre regras da Religião Católica porque percebe ser bonito na prática, na atitude concreta. Infelizmente ela com isso não tem intenção de dar glória a Deus, mas imita os que dão glória a Deus. Imitando-os, involuntariamente ela glorifica a Deus.

O Kaiser Guilherme II e a Sissi  

Em suas memórias, o Kaiser Guilherme II, último Imperador da Alemanha, faz uma descrição que me impressionou muito. Ele estava num jardim do palácio do avô dele, então Imperador da Alemanha. Como a Imperatriz tinha morrido, a mãe do futuro Guilherme II, esposada com o então Príncipe Herdeiro, estava fazendo as honras da casa para uma visitante muito ilustre, a Imperatriz da Áustria, princesa bávara casada com Francisco José, Imperador da Áustria. Esta, além de ser dotada de uma beleza famosa, tinha uma distinção de maneiras, uma linha, uma categoria extraordinárias! 

O Kaiser conta que ele estava no jardim do palácio, vendo sua mãe que, pouco adiante, de costas para ele, recebia a visita da Imperatriz da Áustria. Em certo momento, esta deu sinais de querer partir, e a mãe dele se voltou para trás à procura de alguém para carregar a cauda do vestido da nobre visitante. Não vendo ninguém além do filho, o futuro Imperador Guilherme II, ela disse: “Meu filho, venha portar a cauda do vestido de Sua Majestade, a Imperatriz da Áustria.”

Quando ele se aproximou, a Imperatriz Elisabeth – a famosa Sissi – estava apenas se levantando muito devagarzinho, com as maneiras e todo o protocolo da antiga corte. Guilherme II descreve a inesquecível impressão que ela causou sobre ele. Todo esse protocolo dava a ela uma elegância, uma distinção, realçava de tal modo sua beleza que ele ficou deslumbrado. Todas as regras seguidas por ela – a corte austríaca era muito conservadora –, de perto ou de longe, relacionavam-se com a formação católica, com o ideal de perfeição moral ensinado pela Religião Católica.

Deve-se fazer prevalecer as qualidades do espírito 

Isso se refletia em coisas insignificantes. Houve tempo em que era contrário às regras da boa educação encostar-se no espaldar das cadeiras, em determinadas circunstâncias. Era a imagem da ascese católica, levando a pessoa a dominar-se a si mesma.

Dou outro exemplo: há pessoas que têm o hábito de estalar os dedos. Na intimidade se compreende, mas não se faz isso diante de outros, porque chama demais a atenção para o corpo, quando todas as atitudes de porte, de linha e de distinção do homem devem lembrá-lo de que ele é principalmente alma, fazendo ver com isso o elemento mais nobre de seu ser, que é o elemento espiritual e não o físico.

Isso leva as coisas do Ocidente a serem assim: um engenheiro ou arquiteto católico, ao planejar a decoração externa e interna de um palácio para um rei também católico, que exercerá o poder catolicamente sobre um povo igualmente católico, o próprio “élan” de sua alma católica leva-o a ornamentar de maneira a fazer prevalecer as qualidades do espírito, os elementos que possuem categoria, finura, distinção, nos quais a alma humana aparece na sua excelência. Pelo contrário, o homem sem essa assistência da graça e essa inspiração da Fé não é capaz disso.

Então, vemos marajás, sultões e outros tipos assim refestelados, chupando indefinidamente aquele narguilé, porque não aprenderam da Religião Católica as boas maneiras. Isso se retrata evidentemente também nos prédios, no urbanismo; enfim, em mil coisas de mil modos isso se manifesta.

É o que faz a superioridade do Ocidente, o qual tem menos rubis, pérolas, esmeraldas, safiras, brilhantes; não possui rajás nem marajás, mas tem a distinção católica, contrarrevolucionária, que domina todo o resto.

O resplandecer da graça

Lembro-me de outro episódio ocorrido com a própria Sissi, Imperatriz da Áustria. Antigamente, os potentados do Oriente quase nunca vinham à Europa, porque eram viagens muito longas e sujeitas a risco. Mas quando se estabeleceram, com os meios de comunicação moderna, a possibilidade de viagens seguras e com relativo conforto, nos primeiros transatlânticos, nos primeiros trens do século XIX, os potentados orientais começaram a vir ao Ocidente, trazendo todo o luxo oriental.

Ao recebê-los, as cortes europeias seguiam todo o protocolo com que se acolhia um chefe de Estado estrangeiro. Portanto, cerimonial muito bonito, esplendoroso, rico. Os orientais, por sua vez, vinham com riquezas fabulosas e iam às festas com seus trajes peculiares.

Então, o Xá da Pérsia foi visitar as principais capitais da Europa, entre as quais Viena. A festa se desenvolvia e, em certo momento, chegou a Imperatriz da Áustria, a quem o potentado persa foi apresentado. Ele fez uns salamaleques à moda oriental e ela respondeu com distinção, com graça, um pouco sorrindo, como diante de um “conto de mil e uma noites”, de uma fábula.

Ele ficou deslumbrado com a beleza e a distinção da Imperatriz. Provavelmente ele, um homem, tinha joias muito mais bonitas do que ela, que era uma dama. Entretanto, ela era uma joia da Cristandade! Tudo isso são frutos da Civilização Cristã.

Na Civilização Cristã os homens, possuindo pela graça a virtude da Fé e as demais virtudes teologais e cardeais, acabam tendo toda essa grandeza pessoal que é o resplandecer da graça.

Mas quem nos obteve a graça? Foi Nosso Senhor Jesus Cristo no momento de morrer na Cruz, e já quando Ele começou a sentir tédio e pavor diante do que Lhe aconteceria durante a Paixão, naquela meditação sumamente majestosa e linda no Horto das Oliveiras. Quando a graça penetra nos homens, conquistada para nós pelo Sangue de Cristo, produz todo o resto.                v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/1/1989)

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 231 (Junho de 2017)