União dos espíritos e dos corações

Um extraordinário poder concedido pela Providência às almas unidas por um verdadeiro amor à Cruz de Cristo. Assim entende Dr. Plinio o valor e a força desse profundo liame espiritual — ressaltado por São Luís Grignion de Montfort em sua Carta Circular aos amigos da Cruz —, capaz de infligir, por sua simples existência, tremendas derrotas ao demônio.

 

Escreve São Luís Grignion:

Uni-vos fortemente pela união dos espíritos e dos corações, infinitamente mais forte e mais temível ao mundo e ao inferno do que o são, para os inimigos do Estado, as forças exteriores de um reino bem unido.

Princípio valioso

Eis um belo trecho, que encerra um abismo de sabedoria e de realidade. União de espírito e de corações significa vínculo de princípios e de vontade, mais poderoso do que o liame no qual se aglomeram os soldados de um exército bem unido.

Cumpre observar que São Luís Grignion de Montfort viveu durante o reinado de Luís XIV e no período da Regência, quando a Europa se achava conturbada por guerras diversas. Assim, a imagem utilizada por ele, de um reino com tropas armadas invadindo outra nação, não era descabida, e ele a empregou para reforçar seu valioso pensamento.

 Aprofundando essa idéia de São Luís, podemos constatar que existe uma espécie de porosidade universal da sociedade humana — semelhante à osmose, que é um fato natural — por onde tudo que se passa em algumas almas acaba atingindo todas as outras, ainda que não se conheçam. Donde a força incalculável dessa união de espíritos.

Sentido profundo da união em torno da Cruz

Contra isso levantar-se-ia a objeção de que é uma fantasia. Respondo: antes da descoberta do rádio, se se afirmasse que através de uma caixinha seria possível ouvir, nos mais diversos idiomas, notícias do mundo inteiro, muitos sorririam e diriam tratar-se de fantasia. Quando surgiu o rádio, ficaram boquiabertos. Porém, diante do fato espiritual, continuam a pensar que dito fenômeno é contra o bom senso…

Se pensarmos na analogia com a osmose, percebemos a veracidade de tal princípio. Algumas almas que se unam de modo fervoroso em torno da Cruz de Nosso Senhor, junto à qual se encontra Nossa Senhora — que nos alcança e nos distribui as graças de Deus —, essas almas assim inteiramente unidas têm o dom de desferir um golpe no demônio mais terrível que as armas de todo um exército.

Foi o que se deu, por exemplo, com Santo Inácio de Loyola e seus primeiros discípulos. Ao se reunirem com o propósito de constituir a Companhia de Jesus, naquele momento tal união de almas repercutiu nas piores falanges de calvinistas e luteranos, infligindo um tremendo golpe no foco essencial do adversário da ortodoxia católica.

Esse é o sentido mais profundo do apostolado dos amigos da Cruz, unidos, com amor e enlevo, em torno do seu ideal, na forma como essa união deve ser organizada. Insisto: ainda que fossem cinco paralíticos num hospital, portanto pouco prestigiados, se tivessem essa união, representariam um fator de alta importância para os desígnios da Igreja.

Admirável poder dado pela Providência

Compreendamos como esse é um admirável poder que a Providência nos concedeu a nós, católicos e amigos da Cruz. Pois mesmo que nos faltassem os recursos materiais, que nos negassem todos os meios de ação, ou fôssemos perseguidos e lançados em cárceres diferentes, mas permanecêssemos unidos nesse vínculo de almas, estaríamos combatendo os adversários da Igreja e da Civilização Cristã de modo extraordinariamente eficaz.

É o que se depreende do pensamento de São Luís em sua Carta Circular. Um pequeno grupo de amigos da Cruz, fortemente unidos, são como um exército em marcha vitoriosa para derrotar o inimigo. Lembra-nos a afirmação de Nosso Senhor no Evangelho: o Reino dos céus está dentro de vós (Lc 17, 21). Embora eu não seja exegeta, creio não me enganar ao considerar que o corolário dessa verdade é: nossa vitória está dentro de nós. Sejamos o que devemos ser, o triunfo será como que automático. Ou seja, mais do que qualquer outra coisa importa procurarmos ser o que devemos ser.

Santa Teresa e suas freiras

Nesse sentido, chama a atenção que todos os historiadores mencionam a reforma do Carmo feita por Santa Teresa, a Grande, como um dos fatos dominantes da Contra-Reforma. Porém, a quase totalidade deles abstrai o fato da comunhão dos santos e consideram apenas os aspectos naturais dessa reforma. Ora, sob o ângulo meramente natural, tendo em vista uma reação, o erro estratégico por excelência consiste em fundar uma ordem contemplativa. Pois tomar um grupo de freiras que podiam estar agindo e pregando pela Espanha contra o protestantimo, trancá-las atrás de grades e obrigá-las ao silêncio, seria prestar um imenso favor ao adversário. Significava inutilizar os melhores instrumentos humanos do bem.

Entretanto, esses mesmos historiadores admitem o alcance concreto das fundações de Santa Teresa para o triunfo da Contra-Reforma. Quer dizer, de um pequeno grupo de freiras, no fundo de um convento, permeia, filtra e voa um dardo vigoroso contra o mal. E quanto maior for o amor a Deus e o ódio ao demônio com que essa união se faça, tanto maior será o golpe desferido no inimigo da Igreja.

Batalha invisível dos amigos da Cruz contra o mal

Em sentido contrário, é preciso considerar, não raro se vê famílias ou instituições desmoronarem moral e até materialmente. São muralhas da velha tradição católica que se desfazem. A causa próxima dessa ruína geralmente é indetectável. Mas o motivo remoto, profundo, é este: nos antros do demônio houve requintes de pecado, enquanto entre os católicos não houve requintes de virtude. E então o pecado também voa em sentido oposto ao bem. Essa é a grande batalha, invisível e superior, dos amigos da Cruz, dos que pertencem à cidade de Deus (para usar a imagem de Santo Agostinho), aqueles que levam o amor do Altíssimo até o esquecimento de si mesmos, contra os amigos da satisfação, do deleite desenfreados, filhos da cidade do demônio que levam o amor de si mesmos até o esquecimento de Deus.

Compreendemos, assim, como Nossa Senhora, os anjos e nossos santos padroeiros nos olham do Céu e nos acompanham em nossa trajetória espiritual, esperando que tenhamos esse impulso ardoroso de alma, capaz de contrariar as ações do demônio e seus sequazes.

Fundamento do apostolado da Contra-Revolução

As palavras seguintes de São Luís confirmam ainda mais tudo o que acima consideramos. Diz ele:

Os demônios se unem para vos perder. Uni-vos para derrotá-los.

Portanto, é a visualização da luta como o confronto entre duas uniões, as quais não significam coligações estratégicas de forças, mas de amores contrários, que definem a vitória ou a derrota, antes de tudo pela sua diferente intensidade. É o lado estático e superior da luta, supereminente em relação a seu aspecto dinâmico.

Os avarentos se unem para traficar e ganhar ouro e prata; uni vossos trabalhos para conquistar os tesouros da eternidade, encerrados na Cruz.

O avarento recolhe para si, sendo o oposto do que tem amor de Deus: este é o “avarento” das coisas da eternidade, dos tesouros encerrados na Cruz de Cristo.

Os libertinos se unem para se divertir; uni-vos para sofrer.

Eis um empolgante contraste! Se tantos se unem para se divertir, como vencer essa coligação de libertinos? Sofrendo sozinho? Não: sofrendo unidos. Formando dessa maneira o bloco coeso dos bons, desferindo o maior impacto que se pode infligir ao mal.

Creio que essas palavras de São Luís Grignion de Montfort contêm o fundamento do apostolado contra-revolucionário, pois essa união de espírito e de corações é a mais eficiente arma na luta entre a Revolução e a Contra-Revolução.

 

(Continua em próximo artigo.)

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 20/5/1967)

 

Garras na terra, "alma" no céu…

Torres fortes, presas ao solo como garras e sem medir os anos e os séculos, suportam com decisão e arrojo a grandiosa e feérica massa do Castelo de Saumur.

Assim robustas e firmes, erguem-se do chão até as primeiras janelas. À medida que vão se elevando, tornam-se mais leves e lá no alto parecem desaparecer, como que se dividindo num mundo de agulhas, de setas, num bimbalhar de cores e de flechas, todas elas tendendo para as etéreas vastidões do firmamento.

E todas arvoram no topo uma figura simbólica: ora é um galo, representação da França e da Igreja; ora uma flor de lis, emblema da monarquia francesa; ora alguma outra imagem, grande e dourada, de semelhante e pitoresco significado.

Quando sobre esse conjunto magnífico incidem os raios do sol do meio dia, o castelo dá a impressão de que, num supremo arroubo de suas flechas e agulhas, destacar-se-á de suas bases sólidas e voará em direção às nuvens tingidas de ouro como ele.

Poder-se-ia imaginar esse castelo durante a noite, com lindos vitrais de fundo de garrafa coruscantes, fazendo dele um escrínio de pedras preciosas luminosas, acesas na luz indecisa das velas.

Nos dias em que conheceram vida, glória e prosperidade, essas torres eram quase inacessíveis. Tão altas, tão protegidas, que quaisquer adversários, antes de lograrem encostar nelas seus aparatos de guerra, seriam repelidos e postos em derrota. Um castelo assim não se atacava.

O acesso de seus moradores e visitantes era feito por uma rampa e uma ponte levadiça. Sem essa passagem, o que se tinha era um fosso repleto de água, circunjacente a todo o perímetro da imponente construção. Castelo fortíssimo, mas de uma delicadeza maravilhosa, com as garras na terra — portanto, é pão-pão, queijo-queijo — mas a “alma” no  Céu.

Uma esplendorosa imagem de como deve se apresentar o espírito do católico. Nas suas culminâncias, cumpre ser sutil, pronto a se mover inspirado pela graça, impulsionado pelo serviço de Deus; elevado e tendendo para o Céu como a chama de uma vela. Porém, no que se diz de prático, é firme, decidido, agarra, pega, faz e ordena!

Dessa fabulosa jóia da arquitetura medieval e cristã, dessas torres de força admirável e de requintada beleza, restam apenas algumas partes cobertas de gloriosas reminiscências e evocações.

O castelo de Saumur, como no-lo faz conceber e imaginar as iluminuras e desenhos de outras épocas, não existe mais…

Os pequenos defeitos: obstáculos para a santidade…

Todo homem deve almejar a santidade; porém, concebidos no pecado original e débeis de vontade, temos enorme dificuldade em atingi-la… Como fazer para alcançar meta tão ousada?

 

O que poderíamos aconselhar a uma pessoa, não muito generosa, que se encontre encalhada na vida espiritual e dominada por uma porção de hábitos que lhe prejudicam o desenvolvimento e o progresso sobrenatural?

Imaginemos uma situação hipotética, de alguém que dissesse o seguinte: “Eu tenho o hábito de comer demais. Não quero mudar esse hábito, porque acho que é extremamente desagradável e penoso o sacrifício que eu faria para alterá-lo. De outro lado, porém, quero de algum modo progredir. Como fazer, numa situação em que eu, ao mesmo tempo, sinto que não quero progredir e quereria progredir? O que fazer para que o pobre barco de minha vida espiritual desencalhe?”

A esta pergunta que se pode fazer no nível da vida espiritual de alguém que, de certo modo, procura manter-se em estado de graça, responde-se, entretanto, muito melhor se imaginássemos um nível mais baixo, ou seja, de uma pessoa que vive habitualmente no estado de pecado mortal. Como ela deveria proceder perante seu próprio pecado mortal?

Assim, poderemos compreender melhor como uma pessoa deveria viver em face de hábitos ou de defeitos que, sem constituírem pecados mortais, entretanto podem retardar singularmente a santificação da alma, para que, de fato, ela atinja aquele alto nível de perfeição.

Como sair do vício da embriaguez?

Vou começar a tratar da questão de como deveria ser no nível de pecado mortal, para depois me transpor ao plano que é próprio, normal e natural aos membros de nosso Movimento.

Imaginem que um diretor espiritual conhecesse um homem que tivesse, por exemplo, o hábito da bebedeira e se embriagasse sete vezes por semana, e de uma embriaguez profunda.

Esse homem procura o diretor espiritual e diz-lhe: “Padre, eu lamento ter esse vício. Mas o deixar a bebida para mim é abandonar um prazer ao qual estou ligadíssimo; significa fazer um sacrifício que não sinto vontade de realizar”.

O indivíduo poderia acrescentar: “Fiz uma porção de esforços para largar a bebedeira e o máximo que consegui foi de parar de beber três vezes por semana. Achei tão horrível que, na semana seguinte, bebi mais ainda; embriaguei-me duas vezes por dia. De maneira que estou inteiramente sem saída. Não vejo em mim recursos para parar com o vício da embriaguez”.

É claro que é uma situação horrível, não própria a um membro de nosso Movimento, mas estou imaginando um caso muito pior para depois supor um muito melhor, para fazer a aplicação da analogia de um para outro.

Evitar um inferno horrorosíssimo

Um sacerdote sensato precisaria começar por explicar-lhe o seguinte: “Meu filho, você precisa tomar em consideração que a embriaguez, sendo um pecado mortal, é própria a levar a pessoa para o inferno. E, portanto, deve fazer o seguinte raciocínio: se você está na perspectiva de ir para aquele lugar de tormentos, procure ir para um inferno menos horroroso”.

No inferno há vários graus de tormento e de infelicidade. E também entre os próprios demônios. Certos demônios estão no inferno porque foram chefes da rebelião no Céu. Outros ainda não foram mandados para lá porque não chefiaram a revolta, mas foram sequazes que se deixaram arrastar e ficam vagueando pelos ares, fazendo mal para todo mundo, completa e perpetuamente infelizes, porém não com a desdita horrorosíssima que, desde já, têm os demônios precipitados no inferno.

Então o padre poderia aconselhar ao viciado em bebedeira: “Você procure pelo menos diminuir a sua pena eterna. Ora, há um ponto que não custa nada, ou custa muito pouco, para a maior parte dos pecadores, e isto você pode descontar do seu inferno. Eu, como sacerdote, estou disposto a ajudá-lo nesse passo para sair das perspectivas de um inferno mais profundo. É um modo muito modesto de caminhar rumo ao Céu, mas tudo aquilo que orienta para o Paraíso é bom. De maneira que vamos dar esse primeiro passo”.

Reconhecer o que a embriaguez tem de mau

Explicando melhor, o padre continuaria: “Você, pelo menos, reconheça claramente tudo quanto sua embriaguez tem de ruim. Faça uma análise, caia em si, e diga de si para consigo, com toda a sinceridade, de um modo o mais positivo e o mais firme: ‘A minha bebedeira é má por tais e tais razões. Eu, quando estou bêbado, sinto o horror de minha própria degradação e me lamento de ficar nesse estado’.”  

É uma coisa que não custa nada, porque não quer dizer que o bêbado vai deixar de beber; ele apenas dá um passo, reconhecendo o mal de sua embriaguez. Mas, entre dois pecadores, um que reconhece o mal de seu pecado e outro que nem o reconhece, este último vai para um inferno muito mais profundo. O pecador que não lamenta o seu pecado dá uma adesão da inteligência ao mal, está empedernido e comete uma forma de pecado péssimo, pior do que aquele que, pelo menos, reconhece o mal de seu pecado e quereria não praticá-lo.

Dever-se-ia, então, pedir ao bêbado que ele tivesse a franqueza de reconhecer de modo taxativo, explícito, tudo quanto sua embriaguez tem de ruim. Em primeiro lugar, o desequilíbrio do espírito que ela produz e como é degradante para um homem ficar voluntariamente nesse desequilíbrio; o mal pelo fato de que a inteligência, sendo tão nobre, se degrade por vontade própria; depois, o papel de palhaço que o indivíduo faz quando está bêbado, a risada de todo mundo ao vê-lo; a desordem de um embriagado, as mil manifestações degradantes que dá de si: ele vomita, faz coisas horrorosas, torna-se parecido com um porco. Depois, num nível menor, mas que tem sua importância, o comprometimento da saúde, a degradação do corpo, além da degradação do espírito.

Que o bêbado ponha claramente isso diante dos olhos, seja pelo menos um embriagado franco e humilde em relação à sua própria bebedeira.

Admirar aqueles que não têm esse vício

Depois que esse bêbado estivesse habituado a reconhecer o mal de sua própria bebedeira, o padre poderia convidá-lo para dar mais um passo: “Aprecie os que não são bêbados e veja como é bonito não se embriagar. Fique na rua e preste atenção num homem que vai para casa com sua família: ele passou por uma porção de botequins e nem teve vontade de beber. Guardou dinheiro e, por exemplo, comprou roupas para as crianças dele. Compare com seus filhos, que andam malvestidos e sujos porque você bebe. Admire os homens sóbrios, que fazem o contrário do que você faz. Procure amar esses homens porque eles têm uma qualidade que é oposta ao seu defeito. Não estou lhe pedindo que você deixe de beber uma gota; quero apenas que você admire quem não bebe uma gota, ou bebe moderadamente, equilibradamente, sadiamente. Mas admire com toda a sua alma. Veja como isso é bonito e humilhe-se.”

Fazer apostolado para evitar que outros caiam na embriaguez

Depois disso, o padre deveria pedir ao bêbado que desse um terceiro passo: “Por que você não faz apostolado junto aos que são bêbados? Quando você vir, nesses ambientes miseráveis em que se bebe, um jovem que está começando a se embriagar, procure-o e diga-lhe: ‘Fulano, como é triste ser bêbado! Não entre no caminho em que estou!’ Procure orientar outros para não caírem no vício que você tem”.

Se conseguisse isso de um viciado em bebida, sem que este tivesse deixado seu vício, o sacerdote o teria transformado, de algum modo, de bêbado miserável, naquele bom publicano de que Nosso Senhor fala no Evangelho, que entrava no Templo, batia no peito, mas nem ousava chegar perto do altar. E dizia: “Senhor, eu não sou digno de estar em vossa casa, de que Vós sequer olheis para mim, mas dizei uma palavra; dai-me essa graça para que eu sare do mal no qual estou”.

Quer dizer, embora sem arrancar uma gota de álcool de dentro dos maus hábitos desse indivíduo, o padre tê-lo-ia preparado para, não só na hora da morte ter a contrição, mas desde já começar a pedir com empenho que uma graça do alto do Céu o modificasse. Dessa forma, teria sido feito um trabalho prévio precioso, pois, de algum modo, começou a transformar esse homem. E isso sem lhe custar nenhum sacrifício, porque ele não teria, por enquanto, renunciado a nenhuma gota de álcool.

Depois se iniciaria a regeneração. Somente assim estariam criadas as condições para esse homem se resolver a fazer um sacrifício. Enquanto ele não visse todo o mal da bebedeira e toda a beleza que há em não ficar embriagado; enquanto não tivesse admiração pelos que não são bêbados e nojo dos que o são, a começar por si mesmo; enquanto esse estado de alma não fosse criado nele, seria mais ou menos inútil procurar arrancar dele os grandes esforços que conduzem à regeneração.

Fazer sacrifícios para deixar de beber

Mas, a partir do momento em que o bêbado se encontrasse nesse estado de alma, estavam criados nele, se não a virtude da humildade inteira, pelo menos os pressupostos, os primeiros elementos dessa virtude, por onde o homem agrada a Deus. Esses elementos são: reconhecer e detestar o seu próprio defeito, amar a virtude dos outros e trabalhar para que as pessoas não tenham esse defeito.

Garanto que uma alma assim estaria preparada para começar a orar. E, a partir do momento em que ela iniciasse a rezar, e rezar para Nossa Senhora, com humildade e empenho, estariam criadas as condições para ela iniciar a fazer os sacrifícios por onde se deixa de beber.

Então, o viciado poderia fazer a resolução de beber apenas seis dias por semana. Aos domingos, por exemplo, dia de Deus, ele se absterá; depois, nas sextas-feiras, em homenagem à Paixão de Nosso Senhor; em seguida, aos sábados, em louvor da Santíssima Virgem.

E assim, aos poucos, ele iria se curando de sua bebedeira. O mais empedernido dos bêbados poderia deixar esse defeito, desde que um diretor espiritual tivesse tomado o cuidado de preparar na alma dele os pressupostos da conversão.

O ponto de partida não consiste em exigir imediatamente o sacrifício, mas em criar as condições de alma propícias para o sacrifício, para que depois este seja praticável, factível.

Essa é a conversão em câmara lenta de um pecador em estado de pecado mortal; tal preparação se aplica também à conversão das nações.

Como a Igreja combateu o excesso de espírito guerreiro dos bárbaros

Quando analisamos a luta da Igreja contra o excesso de espírito guerreiro dos bárbaros que haviam invadido o Império Romano do Ocidente, vemos que a Esposa de Cristo fez exatamente assim.

A Igreja incutiu nesses bárbaros, ou em seus descendentes, a ideia de que o assassínio era um mal; e de que a guerra injusta era, portanto, um mal muito maior porque uma espécie de assassínio em larga escala. Depois, a Igreja foi dulcificando a guerra. Em primeiro lugar, criando leis de honra da guerra, pelas quais não só não se matava um inimigo ferido, mas ele deveria ser conduzido a um hospital onde se lhe proporcionava um padre para ajudá-lo a se emendar; leis ordenando que em certos dias do ano não se combatia, em louvor da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo; depois as leis segundo as quais o homem plebeu não era obrigado a guerrear, a não ser dentro de certo perímetro em torno de sua própria cidade.

Posteriormente, a Igreja, por um consenso geral, obteve que não houvesse combate nos domingos porque era o dia de Deus. Depois, nas sextas-feiras, em memória da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo; e aos sábados, dia de Nossa Senhora. Assim, de dia em dia, acabaram as guerras privadas.

Aquelas guerras particulares de indivíduos contra indivíduos, famílias contra famílias, foram desaparecendo em todo o Ocidente, pouco a pouco, tendo realizado a Igreja com o conjunto das almas aquilo que um bom diretor espiritual deveria fazer com um pecador empedernido.

Método aplicável para lutar contra os pecados veniais

Isso que se aplica às regiões sombrias, negras, tristes, do hábito do pecado mortal, aplica-se também para o pecado venial e aos defeitos de alma que, mesmo sem levar o indivíduo ao pecado mortal, às vezes, estão radicadíssimos. Por exemplo, o hábito da “megalice”(1), ou seja, de querer ser o primeiro, mandar em todo mundo, ser saliente; ou o hábito da agressividade, de a todo propósito agredir os outros; o hábito da preguiça. De todos esses, creio que a preguiça é o mais difícil de extirpar. Como uma pessoa que tem um desses hábitos deve combatê-lo?

Como o pecado original ferve e ruge em nós, comentar qualquer um desses hábitos tem sua atualidade.

A “megalice” não é um defeito tão alheio a nós que se possa dizer que o exemplo seja tirado do mundo da lua… De maneira que vou tratar desse hábito.

Seria interessante chegar junto a um mega(2) e dizer-lhe: “Reconheça que é mega; em que ponto e até que ponto é mega”.  

É muito fácil o indivíduo afirmar que é mega. Pode até ser uma forma de “megalice”… Ele declara numa roda de pessoas: “Bem, eu, mega…” Outro comenta: “Coitado, como ele é humilde!”

Se um diretor espiritual lhe pergunta: “Fulano, você tem de si uma muito boa opinião, não tem?”, ele responderá: “Sim, padre, sei que tenho tal defeito”.

Ele pensa que está fazendo um ato de humildade. Continuando a falar, ele indicará um décimo dos defeitos que possui e as qualidades que se atribui, mas de fato não tem. A coisa mais dura para se apontar a um homem não são os seus defeitos; porque às vezes eles saltam aos olhos. O mais duro é dizer-lhe de frente: “Você pensa que tem tais qualidades? As que você possui são menores do que imagina, e tais outras, as quais julga ter, você não possui. E tem até o defeito oposto”.  

Recebendo as confidências de um mega

Fazer isso é de uma dureza extrema, porque o apego que o indivíduo tem a certas qualidades é incrível.

Lembro-me de uma pessoa, na qual eu tinha notado uma insuficiência de inteligência realmente fora do comum. Considerem que o comum é bem pouco inteligente… Ela sentou-se diante de mim e, com um ar modesto, depois de esfregar um pouco os olhos — e eu pensando o que sairia dali —, olhou para mim, como que para me sustentar diante do que era obrigada a dizer, e afirmou: “Bem, Dr. Plinio, para começar, o senhor não leve a mal que eu ponha o dedo no ponto… mas a dificuldade que me causa, do ponto de vista da “megalice”, é isto que o senhor já deve ter notado: a minha excepcional inteligência”.

Era uma pessoa notavelmente inferior à média. E, supondo que eu tinha alguma percepção psicológica, ela estava certa de que eu ficara extasiado diante de sua penetração intelectual. E foi preciso ter paciência para tocar o assunto nessa base. Eu me perguntava: Como ser mega da inteligência que ela não tem, e nem mesmo possui qualquer coisa que se pareça com o que ela imagina?

Como esse, há imensidades de horrores!

Se reconhecesse sua “megalice”, diminuiria seu purgatório

Seria conveniente que cada um procurasse fazer esse exame bem claro, aos pés de Nossa Senhora: Que qualidades eu tenho? Que qualidades não possuo? Quais os reais tamanhos de minhas supostas qualidades?

Procurar ter uma ideia exata a respeito disso diminuiria enormemente o purgatório do mega. Ele foi mega, é verdade, mas ao menos reconheceu sua própria “megalice”. Não se trata absolutamente de fazer o sacrifício de não ser mega, mas sim reconhecer no que a pessoa é mega. Ter a coragem de, em determinado momento, ouvir alguém lhe dizer todas as verdades.

Depois de reconhecer no que não deveria ser mega, como é bonito que a pessoa tenha uma ideia certa do mal que há na “megalice”.  

Para se ter um pouco a noção do que pode haver de mal na “megalice”, imaginemos o que seria a vida financeira de um homem que se supõe cinquenta vezes mais rico do que é. Então ele funda indústrias, bancos, com base em um dinheiro que não tem. Haveria desastres, um em cima do outro.

Geralmente o indivíduo é mega imaginando qualidades que não possui

Muita gente fracassa na vida por ter tido uma ideia exagerada de si mesmo. Conheço casos de pessoas que se metem em estudos e se percebe que aquilo não é para elas. Não têm êxito, e o caminho da Providência fica à espera delas.

É quase a regra geral que o indivíduo é mega imaginando qualidades que não tem, e não é mega das qualidades que possui. Se ele aproveitasse estas últimas, as quais às vezes são maiores do que as qualidades que ele imagina ter e de fato não possui, ele daria mais. Mas não: devido à “megalice” ele começa a sacar sem fundo. Resultado: sua vida é um desastre.

Muitas pessoas afirmam que não se encaixam em nenhum serviço. A cada uma fico com vontade de dizer: “Você não será um pouco mega? Você já fez bem seu balanço para verificar qual é seu ‘capital’? Quem sabe se você dá para mais do que pensa? Mas você quer menos… Busque um pouco o papel da “megalice” dentro disso, que você encontrará. Veja em torno de si os que são humildes e procure admirá-los, observe como a Providência os protege e como as coisas dão certo para eles; quando não dão certo, é para o bem deles; e nesse caso dão certíssimo, porque lhes fazem bem espiritual.

“Procurando ver de frente a sua “megalice”, o mal que ela lhe traz e, de outro lado, admirando quem não é mega, mas admirando sinceramente, com toda a alma, estará criada a condição para começar a pedir a Nossa Senhora, de um modo mais vivo, para libertá-lo da “megalice”. Então faça isso: aos sábados, em louvor de Maria Santíssima, não seja mega. Depois o resto o anjo da guarda lhe dirá”.

“Peccatum meum contra me est semper”

Feito com suavidade, não de maneira bruta, esse é o modo de se curar da “megalice” e de tantos outros defeitos: um reconhecimento confiante na bondade, na misericórdia e no auxílio de Nossa Senhora.

No Magnificat está dito: “Depôs de seu trono os poderosos e levantou aqueles que são humildes”. O poderoso é o mega, e o humilde aquele que não é mega. Poderoso é o fariseu e humilde o que bate no peito e reconhece o seu próprio defeito.

Aqui estaria um modo de tornarmos curáveis defeitos em nossas almas, que, à primeira vista, parecem incuráveis: caminharmos pouco a pouco.

Alguém dirá: “Mas, Dr. Plinio, eu não sou assim. Curei-me de tal defeito maravilhosamente, de um momento para outro”.

Respondo: “É verdade, eu conheço casos semelhantes, dou graças a Nossa Senhora, admiro e me alegro muito com isso.” Entretanto, essa não é a regra geral. Enquanto Maria Santíssima não nos conceder exceção, vamos andando pelas vias da regra geral. Nada nos prepara mais para sermos tratados no caminho da exceção do que nossa fidelidade à regra geral. Caminhamos devagarzinho, nos colocando ao pé da montanha e dizendo: “Aqui está o meu defeito, Senhor, e eu Vos peço perdão por ele”.

Gosto muito dos Salmos de David. Ele via claramente os seus próprios defeitos e reconhecia que eram graves. Sobretudo aprecio aquela frase dele: “Quia peccatum meum contra me est semper”(3). Como quem dissesse: “Vós estáveis na minha presença quando eu pequei. Portanto, tudo se passou como se no universo só houvesse Vós e eu. Diante de Vós pequei, e o meu pecado está continuamente diante de mim, me acusando. Eu reconheço o tamanho do meu pecado, bato no peito por ele, quero me emendar”.

Peçamos que Nossa Senhora faça com que estas palavras tenham alguma penetração em nossos espíritos, e que saibamos aplicar isso para a mudança de nossas almas.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/9/1969)

 

1) Termo cunhado por Dr. Plinio para designar o defeito de quem exagera as próprias qualidades ou imagina qualidades que não possui.

2) Assim Dr. Plinio designava a pessoa que tem o defeito da megalice.

3) Sl 50.

A Belle Époque

À semelhança de um teatro onde todos os expectadores fazem parte da peça, a vida era “representada” com profundidade pelas pessoas durante o período da Belle Époque. Com efeito, naquele tempo as atitudes tomadas eram proporcionadas à essência dos fatos.

 

A Bela Época, ou Belle Époque na linguagem francesa, é o período que vai, mais ou menos, de 1870 a 1914. Foi uma época festiva, alegre e brilhante da vida europeia, que terminou com a Primeira Guerra Mundial. Esta marcou uma diferença nas atitudes, nos trajes, na decoração, nos estilos de vida e, portanto, na mentalidade dos personagens; tais coisas valem em si mesmas, mas sobretudo enquanto expressões de uma mentalidade; quando tudo isto muda é porque a mentalidade mudou.

O que caracterizava a mentalidade anterior à Guerra era a persuasão de que a vida não existe só para o seu sentido prático, para que a pessoa se cuide e prolongue a própria existência, evite as doenças incômodas e ganhe dinheiro para divertir-se. A vida não existe apenas para o prazer, mas é um universo; e o existir do homem dentro desse universo coloca-o mais ou menos como se ele estivesse num teatro para ver uma grande peça.

Um teatro onde todos os expectadores fazem parte da peça

Imaginemos um teatro enorme, onde os que estão presentes, de vez em quando, entram na cena, representam um papel mais apagado ou menos, depois saem e continuam a assistir à peça. Quer dizer, todos são artistas da grande peça, ainda que façam parte, como atores anônimos, de uma multidão que aplaude, ou vaia, ou boceja; qualquer que seja a situação, todos em algo condicionam a cena.

Então, o indivíduo posto nessa situação hipotética é levado a ter a preocupação com o papel passageiro que deve exercer, e só poderá desempenhá-lo bem se entender a peça de teatro que está sendo representada; ele é obrigado a fazer da peça o seu principal foco de atenção.

Na grande peça teatral da vida, ou somos atores ou espectadores

A vida foi entendida desse modo até o fim da Belle Époque — é claro que o foi muito mais na Idade Média; foi assim desde que houve no mundo almas verdadeiramente cristãs; foi assim para os que receberam a Revelação do Antigo Testamento e eram os justos de acordo com a Lei de Deus.

Na realidade, essa concepção da vida existiu desde o momento em que o homem começou a viver sobre a Terra, e existirá até o fim do mundo. Por sua própria natureza, a vida é um cenário imenso, colocado num panorama imenso, onde a pessoa contempla uma imensa peça. Esta — que se vai desenvolvendo sob as mais diversas formas — é de uma grande clareza quando se presta atenção e se quer entendê-la; confusa e com aspectos até de caos, quando não se deseja entendê-la. E nessa peça a pessoa é espectador ou ator, mas tudo gira em torno da peça.

Terminada a Belle Époque, começa outra concepção da vida. O indivíduo, que está no teatro, de vez em quando entra na cena para representar um papel; entretanto, já não se preocupa com a peça, mas consigo: “Minha cadeira está bem cômoda? Estou com fome? Eu não posso mandar vir um menino que está vendendo bala, bombom, chocolate, para comer alguma coisa? Esse vizinho não está pondo o cotovelo no lado do braço da poltrona que é o meu? Não estarei querendo dormir? Quem sabe se eu me espicho agora e tiro uma soneca? Ou, então, me levanto e dou um passeio? Será que vou viver muito nessa cadeira ou morrerei logo? Ai, ai! Não quero morrer, estou sentindo uma dor e vou mandar vir um remédio para mim.”

O indivíduo passa a ser o centro do teatro, e a peça para ele é uma coisa secundária. Os próprios momentos em que entra para participar da representação, são para ele fugazes e sem importância.

Daí apareceu o Homo economicus, o Homo medicalis, o homem financeiro, o homem preocupado com assuntos médicos. Ou seja, a era de Bios, na qual o homem se preocupa em viver gostosamente, longamente, e a serviço de Mamon, julgando que, se tiver dinheiro, ele faz o que quer. Esse foi outro aspecto da vida que se inaugurou, de modo estrepitoso, espalhafatoso, depois da Segunda Guerra Mundial; e estendeu-se pelo mundo inteiro.

As grandezas de Deus são refletidas nessa enorme peça de teatro que é a Criação

Essa peça tem uma grandeza que nos faz pensar no seu Autor.

O próprio enredo, o próprio cenário nos fala de seu Autor; os atores — imagens e semelhanças do Autor — têm seu papel e até todo o seu ser planejado, intencionado, pelo Autor. A peça nos fala de Deus; e cada coisa que se vê no cenário, nos homens e no desenvolvimento do enredo — ou seja, no desenrolar da História —, bem interpretada, nos fala de Deus.

Deus enquanto vitorioso, resplandecente; enquanto punido e perseguido: o Filho de Deus bradando do alto da Cruz Eli, Eli, lamma sabactani; enquanto puniente: as catástrofes estrepitosas; enquanto reconstituinte: as auroras das grandes épocas históricas em que Ele foi servido; Deus vingando toda a História em torno de seu eixo: a Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana.

Essa é a visão que a metáfora nos dá. E é evidente que fazer abstração da peça, no fundo, significa abstrair de Deus; é um modo de ser do ateísmo prático. O indivíduo vive e sente à maneira de ateu, ainda quando reze todas as noites. É um ateísmo efetivo, concreto, mais ou menos subconsciente, mas que vai corroendo o senso sobrenatural, a Fé, até o momento em que o indivíduo fica de fato ateu.

Os ateus não têm vontade de intervir na peça, não são anti nada, são pró eles. Enquanto nós transbordamos do desejo de intervir, para realizar os desígnios do Divino Autor, eles, pelo contrário, procuram tirar o corpo.

As atitudes tomadas eram proporcionadas à essência dos fatos

Até a Belle Époque se tomava diante dos fatos da História uma atitude que era proporcionada à essência de cada um deles. Quando se passavam fatos muito graves, as pessoas tomavam atitudes graves diante da respeitabilidade dos fatos: da investidura e da coroação de um papa, a sagração de um bispo, a ordenação de um sacerdote, ou mesma a Primeira Comunhão de uma criança!

Tudo isto era sumamente grave e pedia esplendor, nobreza, pompa, luxo; pedia, sobretudo, compenetração da gravidade do que estava acontecendo. Terminada a Primeira Guerra Mundial, veio a onda da americanização. Na aparência, a França e a Inglaterra venceram a Alemanha; no fundo, a América do Norte “psy-esmagou” a Europa.

O resultado é que tudo isso decai; a pessoa está na cena pensando em si. Por exemplo, uma Missa de sétimo dia: o indivíduo é levado a pensar não no Santo Sacrifício, nem na alma do morto, nem no augusto e trágico da morte, mas quanto tempo durará, se o padre não vai atrasar, se não vai perder o metrô, o ônibus, o avião, a hora marcada em tal banco onde ele tem que tratar tal negócio; ele não conseguiu uma cadeira para se sentar, está com os pés doendo, inclina o corpo de um lado e do outro, porque a Missa está demorando muito; depois fura a fileira dos pêsames para conseguir sair mais depressa. Ele, ele, ele…

Por que essa atitude? Porque os fatos perderam seu significado.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 21/11/1980)

Revista Dr Plinio 172 (Julho de 2012)

 

O perigo e a glória

Como é bonito ver um navio navegar pelo mar tranquilo e refulgente que espelha o Sol, com belas ondas que apenas o fazem balouçar e brincam com ele sem ter vontade de tragá-lo. Entretanto, quão mais gloriosa é a condição do navio após atravessar os perigos da tempestade e continuar sua trajetória.

 

O beleza de um navio transparece inteiramente quando ele demarra do cais e navega longe do porto, afastado de qualquer golfo, em circunstâncias onde não se vê a terra firme. Pois é nesta circunstância que ele se apresenta em seu isolamento grandioso.

Imaginemo-lo num mar onde, de todos os lados, os confins do horizonte se fecham em torno dele. Aí sim, se percebe como o navio é pequeno diante do mar que ele singra, e, ao mesmo tempo, como é grande porque ousa singrá-lo. Que vitória singrar o mar!

O homem não cessa de se encantar e de se surpreender com a navegação. A arte procura exprimi-lo reproduzindo navios em toda espécie de mares.

Muitos pintores se têm esmerado em representar navios na tempestade, quando o infortúnio se abate sobre ele; ele resiste, ameaça soçobrar, mas continua até lhe sobrevir a tragédia… Até o soçobro do navio é belo, a agonia e a morte dele são bonitas, de tal maneira é bela a navegação.

Na realidade, todo o infortúnio da navegação faz ver aspectos da vida náutica que dão a glória do navio até nos dias de bonança. Porque se não houvesse o perigo do soçobro, ninguém acharia tão bonito o navio atravessando o mar. E a beleza da travessia que o navio faz está no perigo do soçobro e na vitória sobre o risco.

Realmente, o perigo é a condição da glória do navio. Por assim dizer, o perigo espreme o navio e ele deita o melhor de sua beleza neste suco da dor.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 20/3/1982)

Revista Dr Plinio 172 (Julho de 2012)

 

Os homens providenciais

Incumbidos por Deus de uma missão especial para benefício da sociedade, os homens providenciais têm uma compreensão de sua vocação que ultrapassa as capacidades humanas.

 

Pediram-me que comentasse uma ficha de Léon Gautier, muito bom historiador da Idade Média, a respeito do papel dos homens providenciais na História1. Escreve ele:

Alguns espíritos apoucados de nosso tempo se comprazem em escarnecer dessas almas vastas e elevadas existentes entre nós, que ainda acreditam nos homens providenciais. Entretanto, nada é mais natural, quando se crê na ação de Deus sobre os homens e os povos, do que admitir a missão de certas pessoas na História e que, a este título, ficam consagradas.

Deus, que poderia governar o mundo diretamente sem intermediários, Se digna fazer-nos participar da administração de seu imenso império. Para conduzir homens feitos de espírito e de carne, Ele se serve de homens feitos de espírito e de carne. Ele os envia na hora devida, os modela desde toda a eternidade e, sem nada lhes tirar do seu livre arbítrio, deles Se serve utilizando suas virtudes para agir sobre toda uma nação, toda uma raça e todo o mundo.

Homens incumbidos por Deus de uma missão especial para benefício da sociedade

Acho que a ficha, embora não contenha tudo, com uma precisão acadêmica ao gosto do século XIX, diz muito do essencial a respeito dos homens providenciais.

Em sentido amplo, todos os homens são providenciais, pois foram suscitados por Deus para alguma coisa. Mas há um sentido mais especial. Existem homens que Deus não incumbe apenas de levar uma vida comum, para servirem a si próprios, mas que são marcados para realizar uma missão em benefício da sociedade, seja ela temporal ou espiritual.

A missão providencial sempre é maior do que o homem

O que caracteriza um homem providencial?

Ele deve, em primeiro lugar, desempenhar uma tarefa muito maior do que si próprio. Não há homem providencial cuja estatura esteja à altura daquilo que ele precisa realizar, pois o que Deus exige do homem providencial, em geral, é uma coisa tão grande, que não cabe em termos de capacidade humana.

Em segundo lugar, essa ação providencial tem sempre um aspecto sobrenatural, que é a operação da graça sobre as almas para a qual o homem pode ser um canal, mas não autor. E aquilo que a graça faz, nenhum homem pode realizar, de maneira tal que a ação é sempre muito maior do que o homem.

Há grandes homens providenciais. Deus toma pessoas de grandes capacidades e Se serve delas para realizar tarefas ainda maiores do que elas. Entretanto, Ele pode escolher também almas que não sejam grandes, mas até pequenas, das quais tira o fruto para algo de providencial; a escola de Santa Teresinha do Menino Jesus, da infância espiritual, tem algo neste último sentido.

Santa Teresinha não foi propriamente, no sentido humano, uma grande pessoa. Mas ela foi grande no que teve de aparentemente pequeno, e daí saiu a doutrina espiritual da pequena via, que é uma imensa realização na história da espiritualidade, e, portanto, daquilo que há de mais central na História do mundo, que é a História da Igreja.

Compreensão, apetência e sensibilidade do homem providencial para com sua missão

Outra característica do homem providencial é a seguinte: ele tem uma compreensão, uma apetência e uma sensibilidade para a sua missão que os outros não possuem. Ele tem a percepção da coisa, de seu sentido, de sua importância, de como ela deve ser, dos fins que é preciso alcançar, dos meios para coligar as pessoas para os realizarem; possui as táticas, os golpes, os jeitos para conseguir aquilo.

Na vida de Carlos Magno, por exemplo, vemos isso de um modo esplêndido. Ele era o imperador possante, o patriarca magnífico, que entusiasmava; era o guerreiro que metia medo em todos os adversários da Igreja.

Ele intervinha nos concílios, discutia com os bispos, sem ser tido por anticlerical, e muitas vezes era a opinião dele que prevalecia, embora nunca tivesse estudado Teologia. Eram concílios regionais de bispos da Gália, onde ele aparecia para exigir que a coisa andasse bem.

Por outro lado, Carlos Magno era ao mesmo tempo um guerreiro formidável; não apenas um guerreiro individual, um general, mas chefe de uma família de almas dentro de seu exército. Ele coligou em torno de si os seus famosos pares, que eram outras tantas reproduções dele; e esses pares, por sua vez, coligavam em torno deles todo o exército. E seu exército era para ele quase como uma Ordem religiosa para o seu superior, que caminhava rezando e cantando de encontro ao inimigo, com Carlos Magno à frente brandindo a espada, expondo-se a todos os riscos, e sempre pela Igreja Católica e pela Civilização Cristã.

Ao contrário do que pensa a mentalidade moderna, o homem providencial sempre passa por reveses

Há outra caraterística do homem providencial, que é muito diferente da mentalidade moderna. Muitos têm ideia de que o homem providencial é um herói de histórias em quadrinhos; tudo o que ele faz dá certo, tem um olho mágico, e é semelhante a um drácula que, não tendo por onde escapar, fica em apuro, mas com um dedo sobe num teto e resolve o problema de cima. E, no fim, tudo dá certo, ele nunca tem revés.

Ora, o homem providencial é o contrário disso. Ele passa sempre por apuros horrorosos, onde, de fato, muitas coisas correm o risco de não darem certo, se não se esforçar e, sobretudo, se não rezar muito, e se não depuser em Nossa Senhora toda a sua confiança. E esses apuros, em que as coisas quase arrebentam, fazem dele muitas vezes um homem humilhado, perseguido, desprezado e até com todas as aparências de um derrotado. Ele não é sempre um homem vitorioso, que transformou a cabeça dos outros no solo sobre o qual ele anda, mas muitas vezes sua cabeça é o solo para os outros andarem.

Mas ele confia na Providência e Esta o assiste, o ampara, o reergue, o anima e acaba fazendo com que a obra dele dê certo. Uma exigência, à qual o homem providencial está absolutamente sujeito, é que a desproporção entre a sua tarefa e ele aparece claramente aos olhos dos outros, e ele se encontra muitas vezes em tais situações nas quais se torna inteiramente claro que, se não fosse a graça, ele não conseguiria nada. E que se não fosse sua fidelidade, ele estava arrasado.

As margens da História estão cheias de homens providenciais que não cumpriram sua missão

Alguém dirá: “Mas, Dr. Plinio, não sei se isso é bem verdade, porque vejo todos os homens providenciais na História darem sempre certo.”

Isto porque a História só apresenta os homens providenciais que deram certo. De quantos homens providenciais as margens da História estão cheias! Homens que fraquejaram, se venderam, amoleceram, se deterioraram de qualquer maneira e por isso se arrebentaram.

A pessoa poderá acrescentar: “Entretanto, há alguns tão favorecidos pela Providência que eles não podiam dar errado.”

É verdade! Os Apóstolos, por exemplo. Mas, como isto é raro! E de quantos homens providenciais, volto a dizer, estão cheias as estradas!… Numa dessas estradas há uma figueira, na qual está um enforcado. E esse enforcado era um homem providencial, que se chamava Judas Iscariotes…

A missão do homem providencial aparece aos olhos de todos, às vezes desde o berço

Poder-se-ia dizer que há uma característica imponderável no homem providencial. Em geral, ele tem uma certa aura, e as pessoas que tratam com ele, desde os seus primórdios, percebem nele uma espécie de predestinação, um fator invulgar, que o coloca meio separado e diferente dos outros.

Assim, aparece algo de imponderável no homem providencial, fazendo com que a sua missão se mostre aos olhos de todos, tocada pela Providência às vezes desde o berço.

Entretanto, devemos tomar cuidado com o orgulho, porque o orgulhoso pensa que desde o berço foi preparado para qualquer coisa, e tem a tendência de bancar para si mesmo o homem providencial, e de fabricar as características da aura.

O que diferencia o orgulhoso do homem providencial? É algo que poucos veem, mas é uma coisa segura. O orgulhoso é todo feito de vontade de aparecer, e a causa para ele é uma bandeirola que ele agita diante dos outros para impressionar bem. O homem providencial, por mais fraco que seja, às vezes até por mais miserável que seja, vê e entende que tem alguma missão da Providência, a qual ele ama de fato; são o entender e o ver do amor.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/12/1965)

Revista Dr Plinio 172 (Julho de 2012)

 

1) Não possuímos referência a respeito da ficha utilizada por Dr. Plinio nesta ocasião.

 

Convívio entre as almas no Céu empíreo – II

Além dos Anjos e da Santíssima Virgem, no Céu empíreo os bem-aventurados terão a presença do próprio Nosso Senhor ressurreto. Comentando a respeito do convívio das almas, Dr. Plinio trata sobre o idioma em que se exprimirão; julga que cada um falará sua própria língua levada ao apogeu, e todos entenderão, por um dom de Deus.

 

Padre Cornélio a Lápide, descrevendo o Paraíso em seus vários degraus, fala d’Aquela que é o suprassumo de tudo: Nossa Senhora.

Continuamente em presença de Nossa Senhora

O Evangelho diz: “Maria via todas essas coisas e sobre elas cogitava”(1).

A cogitação de Nossa Senhora, como seria? Quando o Anjo A saudou, Ela ficou perturbada e pensava “qualis esset ista salutatio(2)— qual seria o significado dessa saudação.”

Muito mais do que em São Tomás — nem tem comparação! — era a elevação do pensamento de Maria Santíssima. Podemos imaginar que agora, no Céu, enquanto conversamos sobre isso, Nossa Senhora tem conhecimento de que estamos juntos rememorando com veneração essa cogitação d’Ela. E é possível que, neste momento, vários bem-aventurados sejam favorecidos por Ela com um “lumen” especial, por onde A vejam especialmente enquanto cogitativa!

Não digo que isso seja certo, mas é possível. Compreendemos assim a beleza que o inter-relacionamento dessa natureza pode oferecer, e o que será no Céu estar continuamente na presença da Virgem Maria.

Os pés divinos de Nosso Senhor tocam o solo do Céu empíreo

Mas Cornélio a Lápide faz uma consideração ainda mais alta. 

A humanidade santíssima de Nosso Senhor Jesus Cristo, unida hipostaticamente à sua natureza divina, está presente no Céu empíreo, porque Ele tem corpo, o qual se encontra junto com os outros bem-aventurados. No Céu empíreo, também estarão os Anjos, mas de um modo diferente; sendo puros espíritos, eles têm presença, quer dizer, atuam ali. Tal será que não esteja no Céu empíreo Nosso Senhor Jesus Cristo, o Rei do Céu e da Terra!

Porém, afirma Cornélio, Nosso Senhor, na sua humanidade santíssima, é supereminente em relação a todas as criaturas e apenas toca, com os pés divinos, o chão empíreo, pois Ele — nunca ouvi dizer isso — enche com a sua presença os espaços vazios.

Quer dizer, Cornélio a Lápide imagina, provavelmente, um ser esférico ou plano, sobre o qual Nosso Senhor está, e além do qual há outras coisas e depois, digamos, o nada; mas, sendo Ele a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, isto faz com que Deus esteja presente por toda parte.

Compreendemos a grandeza augusta disso! E a planta divina desses pés, só em pousar sobre o Céu empíreo, lhe dá mais alegria do que todas as coisas que lá estão. Sem comparação com nada! Podemos imaginar esses pés, tão machucados durante a Paixão e, por fim, atravessados por um prego atrocíssimo; segundo a melhor versão, parece que um prego transpôs os tornozelos, que estavam cruzados um sobre o outro, e esse mesmo prego teria perfurado os pés divinos, os quais irradiam de glória, de um modo magnífico. E nós, nesta luz, vendo o melhor da luz que em coisas físicas se pode ver.

E ele faz uma comparação: Nosso Senhor Jesus Cristo é a lâmpada de Israel; é a luz por onde se vê a Criação. Mas que a humanidade d’Ele está para sua divindade como uma lâmpada para o Sol. E a Pessoa divina de Nosso Senhor, em união com a Santíssima Trindade, ali está irradiando a luz.

Uma orquestra deslumbrante que toca uma partitura improvisada a cada instante

Eu deveria falar alguma coisa a respeito do convívio dos Anjos, que é outro modo de nos aproximarmos de uma ideia sobre o convívio com o Altíssimo, do que seja a visão de Deus face a face. Os Anjos conhecem perfeitamente as almas dos bem-aventurados. E como estas conhecem o que se passa nas outras almas, elas conhecem os Anjos. E nessa cognição veem toda a perfeição de cada Anjo.

Sucede que o Anjo, como ser espiritual, é simplicíssimo e tem uma nota dominante que o define. Então poderíamos dizer que há um Anjo da pureza; outro da coragem, da fortaleza; outro da sabedoria; outro da temperança; e daí para adiante. E imaginar as várias virtudes em suas mil modalidades possíveis, e os milhões de Anjos refletindo de Deus uma determinada virtude, de um modo acentuadíssimo.

De maneira que, considerando o conjunto dos Anjos, ter-se-ia um panorama do conjunto de todas as virtudes. E, cogitando sobre os Anjos enquanto se relacionam entre si, não esquematicamente, mas pelos movimentos do que acontece no Céu, teríamos um quadro de conjunto de uma orquestra assombrosa, que toca uma partitura improvisada a todo momento, dizendo uma coisa que não se esperava e é magnífica a seu modo.

Assim, as várias virtudes se entrelaçam, se desenlaçam, se agrupam e se reagrupam, mas com uma força de personalidade, de afirmação e uma plenitude da qual nós, simples criaturas terrenas, absolutamente não podemos ter ideia. Um Anjo só já nos deixaria deslumbrados. E para termos uma ideia disso, basta dizer que, se conversássemos com um só Anjo durante um milhão de anos, teríamos a sensação de que ele tem algo de novo para nos contar.

Os Anjos são muito mais numerosos do que os homens; nós devemos preencher lugares deixados pelos anjos malditos, quando caíram. Na natureza angélica devem ser contados, portanto, os bons e os maus.

 Podemos assim vislumbrar o que será essa convivência durável e admirável com essa quantidade incontável de Anjos; e será preciso a memória que se terá no Céu, para não confundirmos uns com os outros e ficarmos conhecendo a todos. É um mar de deleites.

Contato das almas no Paraíso

Suponhamos que pudéssemos viajar para terras distantes. O mais agradável, com certeza, é conhecer diversos lugares, com ambientes geográficos e panoramas vários, onde há homens variados com os quais nos entendemos, todos bons, mas, sobretudo, apresentando formas diferentes de beleza e de bondade. De maneira que com todos temos harmonia. Esta variedade somada, dos homens e das coisas, constitui o maior prazer.

Mas imaginemos que alguém dissesse a um de nós: “Você só pode fazer duas formas de turismo: uma é visitar os vários lugares do mundo, vazios e sem homens; outra é estar num lugar onde, a todo momento, lhe aparecem homens das várias partes do mundo com suas diferenças, mas perfeitíssimos, boníssimos, com seus trajes regionais, seu espírito, sua linguagem, e cada um deles tem com você uma prosa excelente.”

O que preferiríamos? Os lugares vazios ou os homens? Os homens, a perder de vista! Porque, por mais que os panoramas sejam excelentes, a parte mais importante do homem é a alma, e “similis simili gaudet ” — o que é semelhante se regozija com o que lhe é semelhante —, e a alma se alegra no contato com outra alma. Evidentemente!

Isso posto, o convívio das almas no Paraíso é mais precioso e mais valioso do que o contato com a matéria do Céu empíreo, com sua magnificência e com todas as outras maravilhas que descrevi; tudo isso é pouco em relação à conversa e harmonia incomparável que nós teremos no Céu.

Que idioma falam os bem-aventurados?

A esse respeito lembro-me de um ponto curioso que Cornélio a Lápide levanta. Ele pergunta o seguinte: No Céu, as pessoas entenderão apenas vendo, ou falando também? Quer dizer, será uma espécie de telepatia permanente ou uma pessoa fala à outra? E responde: falam!

E depois apresenta outra questão: que língua falam?

Cornélio dá três soluções possíveis. A primeira é surpreendente: falam hebraico. E ele afirma, pura e simplesmente, que Adão — não sei com que fundamento, pois não li sua obra, mas apenas um resumo —, no Paraíso, falava hebraico. E que todos os povos, até a confusão das línguas, falavam hebraico, o qual depois continuou no povo eleito. De maneira que todos os santos do Antigo Testamento falaram o hebraico; portanto, este é o idioma que se deve falar no Céu.

A outra opinião é a seguinte: como os bem-aventurados terão o carisma das línguas, cada um falará o seu idioma próprio no respectivo apogeu, e todos entenderão a língua de todos.

Há uma terceira hipótese: Deus concede ao homem um novo idioma para se exprimir.

Eu acho essa terceira hipótese a mais razoável, mas a minha simpatia vai para a segunda. E a primeira me parece a menos provável, porém não a excluo.

Por que motivo julgo mais razoável a terceira hipótese?

No Céu, o homem verá coisas que não viu na Terra. Como pode a língua terrena bastar para designá-las adequadamente?  Há tanta coisa para dizer, que a língua terrena só conseguirá exprimir um pouquinho das coisas celestes.

Seria arquitetônico que empregassem o idioma através do qual lutaram e rezaram

Além dos neologismos, haveria uma solução que teria sua beleza: para muitas coisas, conforme a entonação dada, a mesma palavra no vocabulário humano é empregada para significar uma coisa e para designar algo de semelhante. E no Céu empíreo existiria algo de específico nos eleitos, nos Anjos, em Nossa Senhora e na humanidade santíssima de Nosso Senhor Jesus Cristo, e depois em Deus. De maneira que, conforme a entonação, se saberia, pelo jogo da semelhança, o que vai sendo falado. Essa solução deporia a favor da segunda hipótese, mas é um pouco árdua, imaginosa.

Então, me parece mais razoável a terceira hipótese. Ou seja, para exprimir as coisas magníficas que faz ver ao homem, Deus lhe dá um idioma mais perfeito.

E aqui surge outra questão. Os idiomas atuais nasceram da confusão das línguas, e não vejo como é que no Céu possam permanecer os restos dessa confusão. Entretanto, minha simpatia vai para a segunda hipótese. Por quê?

Porque se o homem viveu, lutou e rezou num idioma, não parece inteiramente arquitetônico que ele relegue isto de modo total!

Os amigos do meio-termo diriam: poder-se-ia acrescer um idioma novo à língua já falada. Então cada pessoa seria bilíngue: o que não exprime na língua antiga, exprime na língua nova.

É postiço. Entretanto, é possível que Deus, o Qual pode e sabe tudo, queira fazer assim, de maneira a nos deixar deslumbrados, mas não parece.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/1/1981)

Revista Dr Plinio 184 (Julho de 2013)

 

 

1) Lc 2, 51.

2) Lc 1, 29.

Guardas pontifícias

A honra, a nobreza e a alegria em dedicar-se ao Papado estão refletidas no esplendor dos uniformes e nos símbolos das Guardas do Vaticano.

A Guarda Suíça é um dos organismos existentes no Vaticano, responsáveis pela defesa. É recrutada entre suíços desde o século XV(1), e seu uniforme foi desenhado por Michelangelo.

As Guardas Suíça, Nobre e a Gendarmeria

Aqui encontramo-la em grande aparato(2). Todos os soldados estão de couraça e com uma espécie de gola feita de um tule frisado, que se usava muito no tempo em que essa farda foi desenhada.

Em outra foto os guardas suíços estão em cortejo, portando alabardas e uma bandeira, provavelmente da corporação deles, atravessando um lugar muito bonito. Notam-se algumas colunas e um pedaço de muro completamente trabalhado; talvez seja aquele portão que fica ao lado direito de quem entra no Vaticano, na colunata de Bernini.

Na cena da Guarda pontifícia prestando juramento veem-se dois magníficos estandartes, um deles com as armas papais e o outro com as cores da Guarda, e um dos militares que faz o juramento.

Podemos observar os guardas com seus tambores. Que bonitos tambores!

O Papa tem outro destacamento, que é a Guarda Nobre, composta exclusivamente de nobres com categoria de oficiais, cujo traje é naturalmente muito mais próprio ao nobre.

Existe também a Gendarmeria pontifícia, cujos soldados portam trajes do tempo de Napoleão: um gorro de pele bem alto, com um ornato vermelho na parte de cima, e calças brancas colantes; o paletó tem vagamente a forma de um fraque; as botas sobem muito alto. É um muito bonito uniforme. Em geral, escolhem para essa Guarda pessoas com alguma relação com a Santa Sé, não diretamente nobres, mas que voluntariamente prestam esse serviço. Por exemplo, em 1950, quando estive na Europa, um sobrinho de São Pio X pertencia a essa Guarda.

Numa das fotografias, vemos um destacamento da Guarda Suíça marchando.

Eu me entusiasmei com os elmos da Guarda Suíça — que são lindíssimos! — e fiz o possível e o impossível para trazer um para a Sede de nosso Movimento.

Júbilo em dedicar-se ao Papa

Podemos ver em outra fotografia dois uniformes: da Guarda Suíça e da Gendarmeria. Trata-se de uniformes com três séculos de diferença; um é do século XVI, o outro do século XIX.

O uniforme do século XVI é, como todas as coisas antigas, muito mais vistoso, alegre e brilhante do que o uniforme do século XIX. No do século XVI, observem o elmo com um ornato de pluma vermelha, e a beleza da couraça, que traz uma reminiscência medieval, e as luvas, as quais têm ainda a manga de couro vermelho. Eles não usam propriamente botas, mas meias muito aderentes à perna e presas ao joelho por uma liga dourada, com um laço.

Tudo isso lembra melhor o esplendor das antigas cortes, a alegria e a doçura de viver. Mas a Revolução é feita de tristeza. E sempre que ela se introduz, vai obscurecendo as cores, os risos, entristecendo a vida. O próprio da Revolução é procurar concentrar toda a alegria da vida na concupiscência, de maneira que a existência não tenha outros gáudios.

A farda da Guarda Suíça possui muitos valores católicos. Qual é a alegria que exprime essa farda? É um gáudio que não tem nada de sensual; é o júbilo de ser soldado, de combater, de ser dedicado ao Papa.

A Religião tem o direito e o dever de se servir da força, em determinadas circunstâncias, para realizar os seus fins. De maneira que essa Guarda não foi feita apenas para custodiar os tesouros do Vaticano; eram as tropas dos Estados Pontifícios no tempo em que o Papa tinha um dos Estados mais importantes da península itálica. Quando os Estados Pontifícios foram ocupados, em 1870, por Garibaldi e pela Casa de Saboia, algumas dessas tropas foram aproveitadas para guarnecer o Vaticano, que era um resto de território soberano, o qual o adversário não ousou invadir. Porém, na realidade, trata-se de tropas de combate, com um tipo de uniforme — com maior ou menor diferença — usado pelos soldados dos príncipes soberanos daquele tempo. Temos aqui, portanto, um tipo e um ideal militar, em que muito da graça da vida de corte e da leveza da cavalaria antiga estavam associadas.

Dragonas: símbolo da honra militar

O uniforme da Gendarmeria é caracteristicamente napoleônico. Se compararmos com os uniformes de nossos dias, que diferença! Quanto adorno ainda existe! A farda é mais triste do que a da Guarda Suíça, de uma cor escura, mas esse escuro é quebrado de quando em quando por algo. Nota-se uma pluma vermelha, que dá impressão de uma última nota de alegria, em comparação com a abundante pluma vermelha usada pela Guarda Suíça. É o último penacho de alegria que ainda resta. E para quebrar o que esse gorro de pele tem de muito pesado, foram postos dois cordões brancos com uma borla.

Nota-se nessas fardas algo que está desaparecendo ou desapareceu do ornamento militar moderno: as dragonas, utilizadas para dar uma bonita forma ao corpo. Modelam o ombro e realçam muito o uniforme. Por vezes, são douradas como as da Guarda Nobre vaticana. Antigamente, e até o momento em que deixaram de ser usadas, as dragonas eram, junto com a espada, o símbolo da honra militar. Conspurcar as dragonas de um soldado ou de um oficial era o mesmo que esbofeteá-lo.

Vemos na gola da farda da Guarda Nobre um ornamento claro, mais abaixo uma faixa e os botões dourados que combinam com um cinturão também dourado e muito bonito, de boa qualidade.

Considerem a beleza da espada, as bonitas borlas que acompanham a bainha, e algo de análogo na copa. As mangas da casaca têm um retroussé(3) bonito; observem as luvas brancas, a alvura imaculada das calças e, depois, as botas.

Comparado com os uniformes modernos, este é de um esplendor tal, que tenho impressão de que se mandássemos, em nossos dias, um regimento desfilar assim pelas ruas, o povo bateria palmas e sairia correndo atrás.

Podemos imaginar, por exemplo, o sucesso que faria a Guarda Suíça, desfilando e tocando músicas características nas ruas de diversas cidades do Brasil. Que beleza seria! Verdadeiramente uma maravilha!

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/1/1970)

1) Embora o recrutamento de mercenários suíços para tropas tenha começado no século XV, a Guarda Suíça do Vaticano foi formada no início do século XVI (1506), por solicitação do Papa Júlio II.

2) As fotos que ilustram esta seção não são as mesmas comentadas por Dr. Plinio.

3) Do francês: arregaçado.

AS VIRTUDES DE MARIA, remédio para nossa alma

Tesoureira das dádivas do Senhor e Mãe de Misericórdia, Nossa Senhora pode obter para nós a graça da santificação, apesar de todas as nossas carências e debilidades. Ao  comentar uma bela oração escrita por São Luís Grignion de Montfort, dirigida a Maria, Dr. Plinio evidencia uma importante realidade: a devoção à Santíssima Virgem como  meio necessário para a nossa salvação.

Atendendo o filial pedido que me fazem, passo a comentar um trecho da prece composta por São Luís Grignion de Montfort, “Oração a Maria para seus fiéis escravos”:

Ó Maria, minha querida Mãe, (…) dou-me a vós todo inteiro na qualidade de escravo perpétuo, sem nada reservar para mim ou para outrem. Se vedes em mim qualquer coisa que não Vos pertença, eu Vos suplico de tirá-la agora e de Vos tornar Senhora absoluta de tudo o que possuo; de destruir e desarraigar e aniquilar em mim tudo o que desagrada a Deus; de implantar, promover e operar tudo o que Vos agrada. Que a luz de vossa fé dissipe as trevas de meu espírito; que vossa humildade profunda tome o lugar de meu orgulho; que vossa contemplação sublime suste as distrações de minha imaginação vadia; que a vossa vista contínua de Deus encha minha memória de sua presença; que o incêndio de vosso Coração dilate e abrase a tibieza e a frieza do meu; que vossas virtudes substituam meus pecados; que vossos méritos sejam meu ornamento e suplemento perante Deus.

Enfim, mui querida e bem-aventurada Mãe, fazei, se for possível, que não tenha outro espírito senão o vosso para conhecer Jesus Cristo e suas divinas vontades; que não tenha outra alma senão a vossa para louvar e glorificar o Senhor; que não tenha outro coração senão o vosso para amar a Deus com um amor puro e ardente como Vós.

Foco de virtudes que sanam nossos defeitos

Nesse trecho transparece a unção e o fogo dos melhores textos de São Luís Grignion. Ele se apresenta e fala como se fosse uma alma pecadora, contendo em si inúmeros defeitos que deseja corrigir, e cuja solução se apóia no seguinte princípio: Sendo Nossa Senhora, por disposição divina, o receptáculo de todas as virtudes que possam reluzir numa criatura humana, Ela é o canal dessas excelências a serem distribuídas pelo universo. Dessa sorte, cada perfeição de Maria produz como que um efeito medicinal sobre a nossa lacuna moral oposta: sua pureza é dotada de uma capacidade de extinguir nossa impureza; sua humildade, de extirpar nosso orgulho; sua piedade, de erradicar nossa falta de devoção; seu recolhimento, de eliminar nossa dissipação.

Portanto, Nossa Senhora se assemelha a um foco do qual se difundem graças invulgares e dons especiais, próprios a vencerem nossas mazelas. Então, é legítimo dirigirmos uma oração a Ela pedindo-Lhe infunda em nós suas virtudes, para que estas nos transformem.

Como as curas do Divino Mestre no Evangelho

Revela-se-nos aqui o princípio da atuação intensa e sanativa da graça nas almas.

De fato, obedecendo aos desígnios de Deus, a graça pode descer sobre uma alma e num minuto modificá-la por completo, assim como, na expressão da Escritura, uma pedra é capaz de se tornar outro filho de Abraão. Quer dizer, pode tomar a pessoa mais radicada num defeito, mais tíbia, mais entregue a um vício, na situação mais aflitiva e miserável, e num momento livrá-la de todos esses males, desde que peça e seja ouvida por Nossa Senhora.

Assim, desejosa de se corrigir, mas acovardada diante da imensidade de suas imperfeições, contra as quais se verificam vãos todos os seus esforços, ela se volta para Maria Santíssima, rogando o socorro de graças superabundantes e necessárias para a sua conversão.

Daí São Luís Grignion formular essa prece pela qual o homem fraco, tíbio, pecador, em cujo fundo de alma lateja o anseio das mais altas virtudes, pode realmente resolver seu problema e encontrar os meios para galgar a elevada montanha da santidade.

Devemos, pois, pedir a Nossa Senhora uma atuação d’Ela em nosso coração, como eram as de Nosso Senhor no Evangelho ao curar os doentes. Na verdade, cada milagre daqueles significava uma ação divina sobre um organismo que apresentava um defeito, uma disfunção ou algo do gênero, remediando-o num instante. E quando os evangelistas narram tais curas, deixam ver que Nosso Senhor, restabelecendo os corpos, fazia entender que Ele podia sanar as almas, sendo cada uma daquelas debilidades físicas o símbolo de uma carência moral.

O socorro de Nossa Senhora, quando menos se espera

Exemplo magnífico dessa influência do sobrenatural numa alma temos no fato da conversão de São Paulo Apóstolo. Ferrenho perseguidor da Igreja nascente, em determinado momento, na estrada de Damasco, é ofuscado por uma luz, cai ao chão e, recompondo-se, a primeira pergunta que brota de seus lábios é: “Senhor, que quereis que eu faça?”. Quer dizer, ele se pôs inteiramente às ordens da graça para operar de acordo com a vontade dela.

Como este, inúmeros exemplos há na Igreja de pessoas que se convertem e mudam radicalmente, por uma ação fulminante da graça. Ouviram uma palavra, perceberam um gesto, tiveram um pensamento que as tocou e transformou por inteiro.

Então, se confiarmos na oração, se compreendermos a sua necessidade e sua eficácia, temos a possibilidade de obter os frutos espirituais mais inesperados e magníficos. Sobretudo se nos compenetrarmos de que essa prece é dirigida a Deus por meio de Maria, nossa Mãe de misericórdia e nossa vida. Sem Ela não haveria valor, nem doçura nem esperança em nossa existência. Com Ela, nossa vida é plena de vida, nossas doçuras são repletas de doçura e nós, em qualquer situação na qual nos achemos, devemos ter esperanças superabundantes e imensas. Nossa Senhora se compadece de nós e nos atende, pois é nossa Mãe. Em dado momento, nos tomará pelos braços e nos conduzirá à santidade a que somos chamados.

Cumpre considerar, entretanto, que o modo de Nossa Senhora exercer sua bondade para conosco é insondável. Assim, não raro as almas que recebem graças fulminantes são as mais provadas, depois de caminharem de provação em provação até um ponto onde não entendem mais o que se passa com elas, encontrando-se numa espécie de beco-sem-saída da perplexidade e do sofrimento. Nessas horas se dão as ações admiráveis de Maria em nosso favor.

Quantas vezes tenho visto almas nessas encruzilhadas da vida espiritual, tão aflitas e atormentadas que chegam a chorar. Observando-as, sinto o desejo de dizer a cada um: “Meu caro, espere, Nossa Senhora virá quando você menos imagina e vai socorrê-lo”. E com freqüência, no momento em que se tem a impressão de não haver saída para mais nada, a pessoa recebe uma graça magnífica e tudo se resolve pelas mãos de Maria, de um modo mais esplêndido do que jamais se poderia esperar.

Sacrossanta importunidade

É necessário, pois, tomar em consideração essa preciosa verdade: podendo rezar e possuindo uma Mãe como Nossa Senhora, nunca, nunca, nunca se deve ter desespero nem sequer a menor dúvida a respeito do auxílio do Céu. A quem bate, se abrirá; a quem pede, se dará. A nós de sermos insistentes na oração.

Lembremo-nos da célebre parábola do Evangelho, onde um homem se achava deitado na cama com seus filhos e aparece um vizinho importuno a lhe bater à porta, pedindo pão. O que já havia se recolhido não queria atender. Porém, o pedinte tanto insistiu que o pai de família se levantou, abriu a porta e lhe deu o pão. Comentário de Nosso Senhor: “Se esse homem não fosse importuno, não teria sido atendido”.

Portanto, a virtude aconselhável ante essas palavras é a da sacrossanta importunidade. Precisamos fazer violência ao Céu: pedir, pedir, pedir; bater, bater, bater. Seremos ouvidos, por maiores que sejam nossas dificuldades.

Pedir as graças próprias à nossa vocação

E o seremos, de maneira especial, no tocante ao nosso desejo de corresponder à vocação de perfeitos servos de Nossa Senhora.

Nesse sentido, poder-se-ia perguntar se caberia algum pequeno aditamento, repassado de enlevo, veneração e ternura, a essa prece de São Luís Grignion. Parece-me que sim, entendido nos seguintes termos.

Em uma instituição ou movimento católico semelhante ao nosso, o conjunto apresenta mais virtudes do que a soma das qualidades morais de seus membros. Compreende-se, pois ele recebeu uma série de graças que costumam estar em nosso ambiente, pairar em  nosso meio, como patrimônio do grupo. Elas são o tesouro do qual vivemos, e não significam outra coisa senão a própria projeção da misericórdia de Maria Santíssima entre nós, comunicando-nos suas virtudes e nos convidando continuamente a pedir essas graças.

Então, se Nossa Senhora nos chama para pertencer ao movimento, é natural que supliquemos a Ela nos obtenha os dons e dádivas celestiais específicos para o cumprimento dessa missão à qual fomos destinados. Dádivas e dons estes de que seu Coração Imaculado está repleto, aguardando nossa prece feita, como disse, com ternura, veneração e enlevo profundos.

Essa seria, a meu ver, uma forma magnífica de completar essa linda oração de São Luís, de maneira a alcançarmos as graças para sermos conformes a Jesus Cristo e a Nossa Senhora, atingindo o auge da perfeição em fazer a sua sacrossanta vontade enquanto seus filhos e servos amorosos.

O papel do belo sensível no conhecimento humano

No ambiente medieval, iluminado pela luz da Igreja Católica, o “pulchrum” sentia-se em casa, como a lamparina no candelabro. Os primeiros sintomas da decadência da Idade Média se manifestam quando o belo, em vez de servir à pureza e à ortodoxia, começa a ser empregado nos romances de amor e coisas análogas.

 

O  homem tem em comum com o anjo uma cognição intelectiva, a qual faz com que seja capaz de ver o “pulchrum” em certas coisas pelo raciocínio. Como considerar o “pulchrum”, na distinção entre a visão angélica e a humana?

Necessidade da beleza sensível para o conhecimento humano

Há no homem algo inferior ao anjo por onde essa cognição meramente intelectiva não lhe satisfaz, e precisa ser completada com a beleza sensível.

O que falta na cognição do homem para o belo sensível ser necessário? O anjo conhece a essência da coisa, enquanto o homem precisa do “pulchrum” sensível para ter uma ideia exata. O ver dá um conhecimento direto que o espírito angélico possui, e a nossa inteligência não tem.

Não se trata de um defeito do homem, mas é uma característica por onde ele é inferior ao anjo. “Minuisti eum paulo minus ab angelis… — Fizeste-o pouco menor do que os anjos…”(1). Mas o homem não é, por isso, um aleijado, um estropiado. 

Há, contudo, uma coisa na influência do “pulchrum” sobre o homem que é especialmente interessante.

Em nossa natureza concebida no pecado original, a capacidade que a vontade tem de se revoltar contra a razão — capacidade defectiva, má — é diminuída e, às vezes, como que congelada pelo “pulchrum”. Quando o homem se encontra diante de certas formas de beleza, ele fica como que paralisado, sem poder agir mal. Isso indica que esse modo inferior de conhecer dá à inteligência uma superior capacidade de controlar sua serva, a vontade.

E aqui entra um ponto muito importante para a perseverança do homem: até onde o “pulchrum” pode ser levado, em todos os seus aspectos, de maneira a garantir uma estabilidade, a maior possível, secundando a ação da graça?

É preciso notar que, a partir do Renascimento, certas formas mais ativas de beleza fugiram do acampamento católico e começaram a luzir no acampamento da Revolução.

No ambiente medieval o “pulchrum” sentia-se em casa, como a lamparina no candelabro. Antes de a Idade Média começar a decair, o mal era feio. Os primeiros sintomas da decadência se dão quando o belo parece ter mudado ligeiramente de acampamento e, em vez de servir à pureza e à ortodoxia, começa a ser empregado nos romances de amor e coisas desse gênero.

A beleza existente no Paraíso terrestre ajudava o homem a resistir à tentação

Imaginemos um Paraíso terrestre do qual o ser humano não tivesse sido expulso. Pelo fato de tudo ali ser belo, o homem teria uma certa dificuldade para cometer alguma falta, reduzindo ao mínimo a probabilidade de pecado, pois as condições terrenas fariam com que o aspecto e o modo pelo qual as coisas atingiriam os sentidos, tornasse notório para o ser humano o absurdo que havia no uso não reto ou no conhecimento superficial das criaturas.

O homem, no Paraíso, conhecia os animais pelo que havia mais de interno na natureza deles, e dava-lhes o nome. Como corolário disso, suponho que ele possuísse também um conhecimento, muito mais profundo do que tem hoje, de todo o resto da natureza. Esse conhecimento não podia ser uma mera notícia, mas um conhecimento analítico, ordenado a conhecer melhor a Deus, a ver a imagem e semelhança do Criador nas criaturas.

Isso tornava a sabedoria natural sumamente apetecível pelo homem nos seus impulsos naturais. E o ser humano inteiro caminhava para a sabedoria natural, não só levado por sua inteligência, mas também pela atração, que fazia com que todo o jogo de sua personalidade se sentisse atraído para isso. Mas também o mau uso da coisa natural tornaria muito mais patente ao homem que ele estava violentando e prejudicando aquilo, agindo contra a natureza.

Tomemos, por hipótese, um descendente de Adão que fosse tentado pelo demônio a agir irrefletidamente diante de uma ave bonita, digna, por exemplo, um faisão, e desse um pontapé no faisão e o machucasse. Tornar-se-ia muito mais sensível aos seus próprios olhos e de todos os outros homens, o horror da intemperança e o que esta deixou de feio nele.

A beleza da temperança e o pânico de pecar contra a temperança protegeria muito esse homem contra o risco de tentação, embora ele estivesse em estado de prova. Quer dizer, ele podia ser tentado, mas seria muito protegido contra o risco de cair na tentação.

Deus quis que o homem estivesse em estado de prova, e que no momento da tentação houvesse uma ilusão possível no espírito humano, como existiu no caso do fruto proibido. A tal ilusão maldita por onde o homem tem uma convicção de razão de que não deve fazer uma coisa, mas acompanhada de uma espécie de vivência por onde lhe parece que a razão está sendo desmentida por uma experiência imediata, e, por mais evidente que seja o fato de que aquilo é mal feito, alguma coisa lhe diz que, se ele fizer, age bem. Essa evidência é dada por um descolamento entre o mundo das realidades sensíveis exteriores e a realidade profunda.

Minha impressão é de que, no Paraíso, isso se daria muito menos, pois talvez o homem só pudesse ter essa queda por uma tentação do demônio, porque sua natureza íntegra não estaria inclinada ao pecado.

Devido ao pecado original rompeu-se o equilíbrio no homem

Com o pecado original, quebrou-se o equilíbrio e o homem ficou habitualmente tentado a não ver o belo como corolário normal do” verum” e do “bonum”. E, por causa disso, sujeito a toda espécie de arbitrariedades: fazer o belo que não é “verum” nem “bonum”; ou, pelo contrário, optar pelo “verum” e “bonum” e rejeitar o belo.

Com isso, ele conhece menos e está muito mais sujeito a uma revolta, porque fica propenso a amar um “pulchrum” que não é “verum” nem “bonum”, sujeitando-se, assim, a toda espécie de desordens.

Põe-se, então, a pergunta: o que o conhecimento do “pulchrum” acrescenta ao conhecimento do “verum” e do “bonum”? Nos eclipses do “pulchrum”, a que o homem fica sujeito?

Eu seria levado a dizer que a verdade só é cognoscível inteiramente quando se a conhece também bela. Há qualquer coisa no conhecimento puramente intelectivo da verdade, por onde falta algo.

Daí vinha o interesse com que eu sustentava a conveniência do Céu Empíreo. É para que o homem pudesse ter algo na sua natureza por onde ela inteira fosse apta, orientada propriamente a degustar.

Como temos uma natureza animal, embora nossa cognição intelectual seja inteiramente suficiente, a nossa natureza aspira por ter a notícia animal, a qual equivale, para a natureza animal, ao que para a natureza intelectual é o conhecimento racional. E essa notícia animal tem que estar em correlação com o conhecimento intelectual. Se faltar uma correlação nesse ponto, há qualquer coisa de psicologicamente rompido dentro do homem. E a notícia animal do “verum” e do “bonum” só pode ser o “pulchrum”.

A meu ver, essa distinção entre o conhecimento animal e intelectual no homem pode ser feita didaticamente, mas cada homem constitui uma pessoa integral, e não um anjo vivendo dentro de um animal, como a lâmina de uma espada no interior da bainha. Nós não estamos embainhados no animal. Deve haver, portanto, na nossa capacidade intelectual, um certo ponto por onde a notícia animal, enquanto tal, lhe acrescenta algo; como deve haver algo na notícia animal, susceptível de algum melhoramento pelo fato de ter sido compreendida.

A riqueza do instinto materno

Para exemplificar, eu mencionaria o seguinte: os Anjos têm entre si a relação maravilhosa que nós sabemos, mas não possuem a relação da paternidade e da maternidade, nem podem ter. Ora, esta relação acrescenta à nossa inter-relação uma beleza.

O papel do Anjo da Guarda com cada um de nós é lindo. Mas, por algum lado, o amor materno é mais bonito enquanto causador, porque o Anjo não nos causou. E, no amor materno, é muito belo fazer a distinção entre o papel desse amor enquanto virtude, conhecida pela razão e seguida pela vontade, e enquanto instinto. O instinto materno faz parte da animalidade, mas acrescenta algo ao amor como é no homem, que faz com que Nosso Senhor tenha se comparado a uma galinha que quer reunir seus pintinhos sob as asas.

No momento em que se percebe o instinto materno humano pôr-se junto com a razão para defender o filho, há uma riqueza que, por algum lado, é mais bonita do que o próprio Anjo da Guarda quando defende outra criatura. Então chegamos à conclusão de que, como o “pulchrum” é o deleitável da coisa, ele é indispensável ao instinto para que funcione.

O que se passa, por exemplo, com o instinto materno?

Ele conduz à tendência de imaginar o filho mais belo do que é; em atribuir-lhe qualidades mais altas para poder desenvolver-se inteiramente, enquanto instinto. De tal maneira as qualidades são necessárias num ser razoável, para que o próprio instinto possa exercer-se plenamente.

Ademais, o instinto materno faz descobrir no filho algumas qualidades que outros não descobririam. Por outro lado, ao sublimar o filho, mas de um modo virtuoso, a mãe cria o ideal da educação.

Poderíamos deduzir, então, que os símbolos, as pessoas, e tudo o que nos fala à nossa natureza humana integral, corpo e alma, devem fazê-lo, tanto quanto possível, consociados com a beleza e com o deleitável da coisa, de maneira a atrair a vontade inteira.

Isso é um postulado do que a ordem natural das coisas tem de mais profundo, porque quando o “verum” e o “bonum” são vistos naquilo que é deleitável pela natureza humana, em virtude dos instintos, há um ato mais completo. E, debaixo de certo ponto de vista, poder-se-ia dizer mais inteiro do que o angélico.

Temos uma melhor noção dessa realidade ao considerarmos, como acima fizemos, o modo pelo qual o amor angélico — em si, muito maior que o humano —, carece de qualidades que só o amor de mãe possui.

Encarnando-Se, Deus quis honrar toda a Criação

Uma pergunta muito bonita seria a seguinte: Tendo o Verbo de Deus, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, Se feito carne para habitar entre os homens, não haverá conexo com isso um dizer de Deus aos homens que é, por alguns lados, mais alto do que o dizer de Deus aos Anjos?

Fico muito na dúvida, porque não refleti ainda sobre isso e, infelizmente, não tive tempo de ler sobre a Encarnação do Verbo o suficiente para dar uma resposta. Mas acho que é possível haver aí um caminho muito fecundo para uma série de interpretações das relações Deus-homem, a partir da Encarnação, de que não se tenha uma ideia exata.

Por exemplo, uma outra questão: Muita coisa que Nossa Senhora sabe a respeito de Deus não foi dada aos anjos conhecerem, em parte e a um título secundário, por causa da natureza humana d’Ela?

Que Deus pode ter revelado a Ela coisas que não revelou aos anjos, isso eu dou por certo. Entretanto, algo disso teria sido em consideração à natureza humana d’Ela? Aí vem todo o mistério da Encarnação.

Quem sabe se Lúcifer, ao tomar conhecimento da criação dos homens, e sendo-lhe revelada a Encarnação, revoltou-se ao saber que uma criatura tão inferior quanto o homem seria capaz de alguns conhecimentos que ele, anjo, não poderia ter…?

A afirmação de que Deus, encarnando-Se, quis honrar toda a Criação, contém uma profundidade talvez meio inexplorada para um bom número de estudantes de Teologia. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/3/1984)

Revista Dr Plinio 196 (Julho de 2014)

 

1) Sl 8, 6.