Desponsórios com a beleza

Quando voltamos nossos olhos para o passado e consideramos certos momentos áureos da Cristandade, não nos é difícil compreender como a boa harmonia entre o espiritual e o temporal, entre o religioso e o social constitui a perfeita ambientação para a existência da Civilização Cristã.

Numa atmosfera assim formada, nascem costumes, tradições e instituições abençoadas pela Providência Divina, e cujas belezas, em que pese o volver dos séculos, ainda perduram na lembrança dos homens.

Um exemplo? Fins da Idade Média. Uma cidade à beira-mar, cercada de lagunas, recortada por canais. Durante o dia, as fachadas de seus edifícios góticos admiram-se a si mesmas, refletidas no imenso e irrequieto espelho de suas águas. Pela noite, as luzes que escapam dos interiores apalaciados se confundem com as cintilações das muitas lanternas acesas em pontas de estacas que se cravam no fundo do mar… É Veneza, a feérica! A célebre Rainha do Adriático tinha uma forma de governo peculiar.

Não era dirigida por monarquias hereditárias. A República Sereníssima de Veneza tinha por soberanos os chamados doges, que eram eleitos e ocupavam o cargo por um período determinado. Ora, essa instituição doganal é uma das jóias preciosas da História da humanidade. Em torno dela nasceram e desabrocharam diversas maravilhas que não existiriam se aqueles homens desistissem de ser doges, se quisessem ser reis ou príncipes como os de outros povos. Porém, como assumiam a sua qualidade especial de dirigentes, a bênção ligada àquela instituição prevalecia e se estendia sobre toda a sociedade veneziana.

A começar pelo próprio Palácio dos Doges, edifício magnífico como símbolo do poder público e da grandeza de um povo, com seus amplos salões ricamente decorados, suas paredes recobertas de tapeçarias e pinturas lavradas por mestres famosos, e com sua arquitetura externa que é um verdadeiro e quase insuperável requinte do estilo gótico.

Mas o doge era também o protagonista de um costume em que se pode perceber de modo particular a mencionada harmonia entre o espiritual e o temporal. Trata-se dos desponsórios de Veneza com o mar.

De longe se vê a movimentação na Praça de São Marcos, os sinos do Campanile dobram festivamente, a multidão se acotovela e vai abrindo passagem para o cortejo do doge que, após ouvir a Missa solene, deixa a Catedral com o seu séquito, cercado de toda pompa e esplendor.

De longe se vêem miríades de gôndolas dirigindo-se para o meio do
Adriático, com músicos tocando composições de Vivaldi, pessoas cantando e festejando. A melodia se faz ouvir cada vez mais perto, o som das vozes e cantigas torna-se mais intenso.

Dali a pouco esse cortejo de pequenas embarcações estaciona no mar alto, enquanto as águas continuam a ser remexidas pelas batidas pesadas dos remos de uma imensa nau que surge logo atrás. É o famoso Bucentauro, todo esculpido e todo folheado a ouro, todo elegante com suas tape çarias pendentes do tombadilho, trazendo a figura majestosa do doge em trajes de gala, revestido do barrete frígio, acompanhado do famoso Conselho dos Dez, dos altos membros do Clero, das damas e cavalheiros da aristocracia veneziana.

As batidas nas águas se tornam mais suaves, os remos se levantam. Expectativa geral. Então, de um escrínio precioso o doge retira um anel ainda mais rico e o lança ao fundo do mar. A música recobra intensidade,
ecoam vivas e aplausos, bandeiras e bandeirolas se agitam: estava afirmado, uma vez mais, o poder de Veneza sobre o Adriático e o Mediterrâneo.

Os remos do Bucentauro feriam novamente as águas e o barco imponente retornava para a Praça de São Marcos, entre músicas de violinos e os brados da população que aclamava o seu governante. A festa prosseguiria no Palácio dos Doges, nas luxuosas residências, nas praças e canais venezianos, até que se extinguissem os últimos ecos dos violinos, até que se emudecessem as vozes envolvidas na noite da velha e sereníssima República.

Quando, tempos depois, o advento das grandes navegações abaloua supremacia marítima e comercial de Veneza, esta se deu conta de uma outra realidade: perdera o império dos mares, mas ganhara o império da beleza.

Ela aproveitara o tempo de sua opulência para se encher de palácios, de obras-primas imortais, para fazer-se umas das cidades mais lindas e talvez a mais original de todo o universo. E no momento em que decaía comercialmente, as nações insaciáveis das maravilhas dela começaram a visitá-la, a freqüentar a feérica moribunda que ia expirando. E todos lhe traziam o tributo de sua admiração: o mundo inteiro ali se encantava e ali bastava, não querendo que Veneza morresse!

Então Veneza compreendeu que, continuando a vida de luxo, a vida de festa, a vida de arte, ela prolongava sua própria existência. Ela tinha uma beleza imorredoura.

Sim, mais do que casar-se com o mar, a venturosa Rainha do Adriático desposara-se com o pulchrum…

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 64 (Julho de 2003)

Nossa Senhora das Neves

É próprio de Maria Santíssima violar todas as regras de distância que há entre o Céu e a Terra e aparecer a um Papa. Como também é próprio a Ela indicar o lugar para algo maravilhoso, escolhendo para isso a neve, que representa o refrigério no meio do calor.

No verão horroroso de Roma, aparece um lugar coberto de neve. Ali Nossa Senhora quer que se construa uma igreja em seu louvor.

Este é bem o papel de Nossa Senhora em nossa vida: a neve em meio ao calor de nossas batalhas, provações e sofrimentos.

Em meio à poeira desta vida, a Santíssima Virgem é a neve alvíssima, imaculada, que refrigera e nos dá um antegozo do Céu.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/8/1965)

Ornato e simplicidade

As igrejas do Brasil colonial eram bonitas, nobres e muito dignas. Manifestavam o contraste entre a intensa ornamentação e a simplicidade, causando aos olhos uma impressão agradável.

A diferença entre York(1) e Olinda é manifesta. É quase um pouco desconcertante! Mas a igreja de Olinda, construída no século XVII, tem isso de agradável: sente-se melhor a doçura e a suavidade do “à vontade” do matagal brasileiro. Ela emerge toda branquinha, muito aprazível, desta abundância de verde, que no fundo é provavelmente o mato. A localização, portanto, é muito bonita.

Não é fácil fazer um comentário sobre esta igreja, porque todos nós conhecemos uma porção de igrejas parecidas com ela. Nunca se copiam, são sempre diferentes, mas o mais possível iguais. O que comentar a este respeito?

Atmosfera de grandeza

Ela possui duas torres. No corpo central alguma coisa é vagamente à maneira de um triângulo, com três janelas. E, por assim dizer, em cada andar da torre uma janela também. A fachada muito cuidada, mas a parte lateral da igreja meio lambida e sem nenhum ornato por fora; em geral, as igrejas deste estilo são muito bonitas por dentro. Não tem mais nada para comentar, exceto isto: há uma certa cor local, um certo ambiente de brasilidade, sobre o qual chamo a atenção para dois pontos.

Quando consideramos este edifício, temos a impressão de algo que, em comparação com a Catedral de York, é muito primitivo; e notamos que a igreja é bonitinha. Entretanto, fica por detrás uma atmosfera de grandeza que talvez não saibamos definir, e que julgo resultar da conjunção muito discreta de dois elementos: todo esse verde dessas árvores dá uma ideia da enorme fecundidade do solo, e de um país com uma natureza rica, generosa, dir-se-ia quase agressiva. A produção jorra de dentro do solo!

Percebe-se que ninguém trabalhou muito para que isso fosse assim… Qualquer grão que se joga na terra já disputa com outros o espaço vital, e lá vai germinando e crescendo, como uma promessa enorme de uma grandeza vindoura!

Por outro lado, vemos no fundo o mar imenso, de um colorido lindíssimo! Nesse ponto não percebo que esteja picotado por nenhuma ilha, por nenhum recife, por nada: é o mar, o mar, o mar! Duas grandezas juntas: vastidão e a ideia de grandeza.

O tempo pode adornar e proporcionar certa dignidade

A Igreja de Nossa Senhora das Neves, no convento de São Francisco, em Olinda, é a construção mais antiga dos franciscanos no Brasil.

Há algo de imponderável aqui, ao menos para meu gosto, e que dá muito sabor a isto. Se essas telhas fossem todas vermelhinhas e novinhas, isto não perderia algo? Observem que é uma telharia velha e manchada. O que tem isto que, se fosse novinho, perderia? Se esta torre tivesse sido recentemente caiada, mas de tal maneira que desse ilusão de uma torrezinha novazinha em folha, não perderia também? O que há de beleza em uma coisa, quando sobre ela passa o tempo, para que, em última análise, o tempo a adorne, até mesmo quando ela fique estragada?

Vejam, por exemplo, essas pedras da torre. Em alguns lugares tem-se impressão que o tempo manchou, as intempéries mancharam. Calores de arrebentar, chuvas violentas, frescor nunca, pedra trabalhada, corroída, torrada pelo sol, mas íntegra! Percebe-se que o tempo passou sobre ela e lhe deu uma doçura, uma dignidade, um ar assim pensativo do ancião ou da anciã que está na cadeira de balanço, pensando e dizendo: “Fugite irreparabile tempus! Como eu, quando era jovem, não gostava disso! Mas o tempo fugiu mesmo…” Tem sua poesia.

Como poesia tem, a meu ver, esse tufo de palmeira que está embaixo.

Orações, sacrifícios, tentações, vitórias

As palmeiras são muito bonitas e não impedem que se veja esta espécie de portal, de uma linha um pouco fantasiosa, mas elegante e bonito, que esta aí. Não se pode ter uma ideia inteira dele. Quanto à fachada do convento, pode-se dizer que qualquer casa de fazenda do interior tem exatamente isto. É uma residência de fazendeiro antigo, com janela de guilhotina: três janelas embaixo, três janelas em cima. Dir-se-ia uma caixa, na qual alguém recortou à tesoura as janelas, e está feito o plano da casa.

Alguém dirá: “Apreciação severa!”

Não. Ela é feita para que nós compreendamos o que é o sabor das antigas eras. Como nós sabemos que aqui não residiu uma família, mas há bastante tempo mora uma Ordem Religiosa — que durante muitos séculos foi uma Ordem recolhida, de pobreza, impregnada pela doçura do Poverello —, podemos imaginar a continuidade, a sucessão de frades que se revezavam ao longo das décadas nesse convento, sempre servindo, sempre rezando, sempre trabalhando, sempre afastados das coisas da Terra. E começa-se a pensar: “Através de cada uma dessas janelas, que mundo de orações, que mundo de sacrifícios…” Não nos iludamos: que mundo de tentações, que mundo de vitórias, que mundo de ação de graças, que provações, que doenças, que preocupações!

Aí está a expressão que se desprende desse edifício.

A palmeira aristocrática e as plantinhas completam-se

Consideremos a Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres dos Montes Guararapes. O nome diz tudo! Nós não temos que acrescentar nada.

A fotografia situa num ângulo muito agradável e muito poético a igreja. Mas precisamos reconhecer que ela quase teve mais a preocupação de dar a moldura verde da igreja, do que a igreja propriamente dita. A moldura é muito agradável.

Eu nunca estive lá, mas tenho a impressão que embaixo deve haver um valo e um cursozinho de água qualquer ali. O elemento indispensável da paisagem brasileira, e sobretudo da paisagem nordestina, está presente: as palmeiras.

Chamo a atenção particularmente para aquela palmeira esguia, tendo no alto um mundo de folhas que o vento está sacudindo em todas as direções. Isso nos dá um pouquinho a ideia da hierarquia na criação botânica.

Há plantinhas mais comuns do que estas que se veem ali? Tenho a impressão de que, desde quando o mundo foi criado, há plantas destas. Como elas são vulgarzinhas, comunzinhas, apagadas em comparação com a palmeira aristocrática, esguia que ostenta as suas folhas como se fossem um brasão!

É inegável que, batidas pelo sol, consideradas no seu conjunto, estas plantinhas dão uma ideia de pujança, de fertilidade, de variedade, de grandeza, são indispensáveis para o panorama! Se imaginássemos que houvesse só palmeiras aqui, como o panorama seria nada! Se não houvesse palmeiras, mas só estas plantinhas, não havia panorama!

Assim são os grandes e os pequenos na Terra: completam-se aos pés de Deus. Como o mundo seria árido e sem graça se só existissem grandes! Como ele é vulgar quando só há pequenos! Pequenos e grandes conjugados dão a ordem que Deus quis.

Fato concreto é este: se alguém me sugerisse abater tudo isto, fazer um gramado lindo nas duas margens desse córrego, passar asfalto por debaixo do córrego para ficar bonito, eu diria: “Você não entendeu nada! Deixe assim, e acabou se!”

Lembrando as batalhas dos Guararapes

Em frente à Igreja de Nossa Senhora dos Guararapes vemos o clássico Cruzeiro. A igreja tem uma nota que não é de qualquer igreja do tempo colonial. Nessa época, as igrejas, com certa frequência, visam ao horizontal, não ao esguio, ao alto. Esta tem isto, que é para mim um grande mérito: ela visa ao esguio, ao alto!

Notem que ela é um pouco estreita em comparação com sua altura. As janelas dela também são de uma altura um pouco maior do que o comum, e um pouco desproporcionadas, mas no sentido louvável da palavra, em relação à altura de cada janela. E aquele ornato central, também todo ele se volta especialmente para o alto. Dir-se-ia que há uma sede do esguio, do ascético, do voltado para o Céu e para as realidades de além desta Terra, que aposta corrida com as duas palmeiras que se veem do outro lado, e que não conseguem ter a altura da igreja.

No chão, é preciso bem reconhecer que não existe apenas a mãe natureza, mas existe o “pai relaxamento”. É uma tristeza, mas é assim.

O todo esguio da igreja é mais propício a lembrar as batalhas dos Guararapes, a ascese, os heróis, a luta religiosa, etc., do que se fosse uma igreja atarracada e mais dada para as comodidades dos grandes domingos tranquilos.

Vejam que belo ladrilho reveste as torres! Ladrilho, uma arte dos portugueses – dos espanhóis também. Em Portugal especialmente atingiu uma beleza excepcional, e esses ladrilhos vinham de Portugal. Mas no Brasil também se começou a fazer ladrilhos, por vezes bem bonitos. Os jogos de cores desse ladrilho, sobretudo, me parecem muito agradáveis.

Observem o desenho. Parece uma coroa, e no alto tendo uma espécie de coroazinha. E coroando tudo isto, a Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Altaneira, ascética e com senhorio

Considerem também o arvoredo e a ideia de pujança da natureza que se tem aí. É o velho convento beneditino, muito simpático, respeitável, antigo da cidade de Olinda. Mas este é mais dado ao horizontal.

A Igreja São Pedro dos Clérigos, antiga catedral de Recife, levou o esguio até onde se podia levar. Agrada-me muito a arquitetura dela: é altaneira, ascética, tem senhorio…

A Igreja de São Cosme e Damião está precisando muito de uma renovação, pois se encontra muito mal tratada. Aqui o tempo fugiu muito irreparavelmente! Ela é venerável, mas para ser bela precisava de uns retoques!

Não há muito comentário a fazer sobre o interior da Igreja de São Pedro dos Clérigos. Vemos que o esguio e o esbelto ali se mantêm. Notem como a parte equivalente ao presbitério é profunda, alta e esguia. E toda a igreja é muito alta. Poder-se-ia dizer que tem três andares. O restante corresponde à configuração bonita, nobre, muito digna das igrejas antigas do Brasil.

Contraste entre o entalhado e o liso

Também conheço o Mosteiro de São Bento, em Olinda. Vemos aí o contraste que a arquitetura desse tempo às vezes explorava de modo muito feliz, entre o altar todo muito carregado e a simplicidade das paredes caiadas. Depois, estalas de novo muito carregadas. E esta justaposição do extremamente carregado e do extremamente simples causa para os olhos uma impressão agradável. Essa impressão é visada e atingida pelo artista que fez isto!

Está primorosamente conservada. Chão muito limpo, muito bem arranjado, e tudo muito bem adornado.

Chamo a atenção para a beleza dessas cômodas, com enormes gavetas de ambos os lados, para guardar paramentos, e que toma toda a parede. Provavelmente tomam as quatro paredes da sacristia. Quadros muito interessantes, encaixados na própria “boiserie”, e não só acima das cômodas, mas no teto, como é o estilo.

Vê-se um quadro no teto. Deve haver mais de um quadro, ao longo da imensa sala.

 Uma mesa esguia, elegante se deixa ver ali, e um grande candelabro. Realmente uma bela peça.

Um púlpito. Os púlpitos naquele tempo ficavam bem altos e muito mais para o centro da igreja. Porque, como não havia esses aparelhos de som, o pregador tinha que ficar o mais alto possível para a sua voz alcançar de modo cômodo, ou relativamente cômodo, todo o edifício sagrado. Mas o púlpito alto dava outra majestade ao pregador, que ficava pairando nas nuvens, por assim dizer, para pregar o seu sermão.

O púlpito é todo muito trabalhado, revestido de ouro e com uma parede por detrás, caiada e extremamente lisa. Podemos sentir aqui melhor, talvez, o agrado do contraste entre esses dois elementos: o entalhado e o liso.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/5/1985)

 

1) Referência aos comentários à Catedral de York. Ver Revista Dr. Plinio n. 161, p. 32-35.

 

Reflexões sobre um café

Há muito tempo, muitíssimo até, tenho acerca do desenvolvimento de nosso País uma impressão a comunicar.

“Desenvolvimento” é um termo tomado aqui num sentido que tem parentesco apenas longínquo com o que habitualmente se entende por tal. Não falo do desenvolvimento econômico-financeiro. Este é o sentido ápice – e não raras vezes até único – que se atribui ao vocábulo em nossos dias empapados de hedonismo burguês e de materialismo comunista.

Na perspectiva em que me coloco, tal forma de desenvolvimento tem seu lugar. Este não é, entretanto, o ápice. Pela simples razão de que o homem não é principalmente estômago. O desenvolvimento-ápice não consiste pois na promoção das coisas do corpo, do “irmão corpo”, segundo a linguagem franciscana. Consiste, isto sim, no desenvolvimento do homem todo, postos na devida hierarquia os vários elementos deste todo. E, assim, a alma em primeiro lugar. Entre as coisas da alma, quero destacar aqui uma das mais nobres, isto é, a aptidão de relacionar as coisas da matéria com as do espírito, e umas e outras com Deus.

Todo o universo foi criado à imagem e semelhança de Deus. De onde existirem analogias entre todas as criaturas. Pois seres análogos a um terceiro são, por isto mesmo, análogos entre si. Daí as coisas materiais terem o poder de exprimir as espirituais. E um dos usos mais nobres que se possa fazer de cada uma, e de todas no conjunto, consiste em lhes conhecer essa expressão espiritual. Através dessa expressão, a inteligência conhece melhor as coisas do espírito. Serventia excelsa que tem a matéria até para os bem-aventurados após a ressurreição, quando entretanto verão Deus face a face.

Uma pessoa penetrada destas grandes verdades, e habituada a fazer do relacionamento matéria-alma-Deus uma atividade-réctrix de seu espírito, pode desta maneira chegar ao ápice de sua personalidade. Ou seja, atingiu o desenvolvimento ordenado e inteiro de seu próprio eu. Seu desenvolvimento-ápice.

Essas verdades, precisamente porque muito abstratas, têm contudo relação com o que há de mais profundo e decisivo na realidade concreta. Assim é fator da grandeza, do bem-estar e da “force de frappe”, de um país o relacionamento íntimo entre os recursos naturais e a paisagem do território, de um lado, com as características do espírito nacional, de outro lado, a ponto de o observador notar afinidades entre a configuração dos montes, o curso e o rumorejar dos rios, as mil cores e formas da vegetação, os perfumes das flores, os sabores da culinária local, as harmonias das músicas e das danças populares, das formas e das cores dos trajes típicos – com o espírito da população, por exemplo com o estilo dos gracejos e das brigas das crianças, dos feitos dos homens maduros e da experimentada sabedoria dos anciãos. Tudo isto forma um emaranhado de elementos que se entrelaçam por mil afinidades indissociáveis. E é a diferença entre estes – mais até do que os limites territoriais – que distingue as nações. Que diferença entre a França e a Alemanha, por exemplo! Salta aos olhos que cada uma dessas nações forma com o respectivo “emaranhado” um só todo. Não se pode conceber uma França habitada só por alemães, nem uma Alemanha habitada só por franceses.

A tradição clássica, e mais tarde a influência profunda da Igreja, ensinou esses homens a “serem” muito mais alma do que corpo, a procurarem nas coisas da matéria analogias e ensinamentos supremos sobre a alma e sobre Deus. Daí essa admirável consonância entre o corpo e a alma dos grandes povos. Assim, tais povos foram conduzidos, numa imensa ação conjunta, a interpretarem o respectivo quadro material, encontrando nele mil afinidades com suas próprias almas. Afinidades com suas próprias almas. Afinidades estas que a cultura acentuou e pôs em relevo.

Tenho a impressão de que, dentro da tormenta contemporânea, a maioria dos homens, descaracterizados, massificados pela civilização moderna, mecânica e cosmopolita, já não sabe sentir os significados espirituais e “divinos” das coisas. Nem perceber os vínculos que os ligam entre si, nem às paisagens em que nasceram. E em países novos como o nosso, a interpretação simbólica dos panoramas, da flora, da fauna, o saboreio ou olfateação dos produtos da terra, a audição de seus ruídos ou dos cânticos da natureza, tudo se reduz, para muitos dentre nós, às vagas recordações de infância que o progresso esmagou já na adolescência por meio do rolo-compressor do “senso prático”.

Essas considerações me vieram ao espírito ao saber de um pitoresco fato que ocorre em Londrina, cidade que há cerca de trinta anos não visito. Mas sinto satisfação em contar o que a tal respeito me narraram amigos residentes na capital do café.

Um homem de espírito e iniciativa instalou ali um café, em quiosque todo de vidro. Não porém um café qualquer. No modo de preparar nossa rubiácea, usou ele de nada menos do que vinte e cinco variedades. Entretido, corro os olhos em diagonal pela lista desses modos. Entre os cafés quentes não podia deixar de estar o “café com chantilly”, seguido entre outros por um enigmático “café escocês”, daquela Escócia que não produz café. Um pomposo “café royal” e um espirituoso “café society”. Os cafés frios vêm comandados, como também é natural, pelo “café vienense”. Mas o batalhão é menor. São seis, ao passo que os quentes são doze. Depois dos frios e dos quentes, figuram sete rotulados como “outros”. Como será o “licor creme de café”? No que se diferenciará dos simples “licor de café”? E como serão os “confeitos de café”? O fato é que tudo isto encantou o povo. E o estabelecimento vive cheio.

A diversificação que um homem de generosa fantasia soube fazer com o café, em que larga medida se poderia fazer com tantas de nossas frutas e, mutatis mutandis, com nossas incontáveis flores? E quantas riquezas de nossa alma assim mais facilmente se explicitariam?

À luz das analogias de um verdadeiro simbolismo católico, num simultâneo e glorioso labor de alma de nosso povo, quanta magnificência diante de nós se desenrolaria!

E se alguém me dissesse que tudo isto não passa de devaneios porque não resolve o problema do combustível, eu responderia com uma boa gargalhada. Pois um Brasil cristãmente desenvolvido não se define principalmente como uma imensa frota de motores, mas como uma imensa família de almas.

Pensamentos sobre o Céu

Vivendo neste “vale de lágrimas”, por vezes levantamos nossos olhos
para o Céu, e a esperança de alcançar a felicidade eterna nos consola
e anima. Entretanto, não raro, uma dúvida nos assalta: como serão essas
alegrias perenes?
Certa feita, diante de um auditório repleto de jovens ouvintes, Dr. Plinio
se dispôs a elucidar essa interessante questão, tecendo ricas e belas
considerações sobre as alegrias celestiais.

Sempre tive uma impressão singular a respeito de certas descrições ou representações do Céu. Pela fé, eu sabia tratar-se de um lugar onde existem todas as delícias, mas quando estas me eram delineadas, tinha a sensação de serem deleitosas para os outros e não para mim.

Uma iconografia incompleta Por exemplo, alguns quadros retratavam o Céu muito azul, com uma nuvem branca em forma de sofá no qual se achava sentado um anjo tocando violino.

Claro, no Céu não há nuvem material, mas essa forma de pintá-lo mostra um símbolo da realidade celeste. Essa não é, entretanto, a realidade inteira: seria necessário acrescentar outros elementos para se ter uma noção completa sobre ele.

Compreendo que aquelas pinturas apresentavam algo de mais agradável
do que este vale de lágrimas.

Mesmo assim, se eu tivesse de passar a eternidade num Céu azul, sentado em uma nuvem branca e tocando violino, confesso que não sentiria esse lugar como sendo a pátria de minha alma.

Também me causava estranheza a idéia pouco feliz de esboçar o Céu imerso numa espécie de imobilidade. Conforme a doutrina católica, no
Paraíso o homem não pode crescer em grau de glória. Ele permanece ali or toda a eternidade como foi premiado após a sua morte, gozando de elicidade plena.

Eu tinha, então, a sensação de que no Céu tudo parou para sempre, e todos os eleitos estão olhando para um Deus igualmente imóvel. Ora, posto que o movimento e a comunicação fazem parte de nosso modo de ser, deparava-me com a dificuldade em compreender a atração de um Céu assim parado.

Essas eram algumas impressões equivocadas as quais, não fossem corrigidas, podiam diminuir minha esperança e interesse pelos bens celestes.

Movimento no Céu pelos acréscimos da felicidade acidental

Passei então a empreender um trabalho de análise do Céu, baseado em comentários de santos, a fim de formar uma verdadeira imagem dele e torná-lo mais apetecível.

Tratemos mais especialmente daquilo que se poderia chamar a imobilidade celeste.

É exato afirmar que, na eterna bem-aventurança, a felicidade de uma alma não é passível de aumento, e por essa razão tudo ali se encontra tão parado quanto se é levado a imaginar? Ou há acréscimos de intensidade dessa alegria?

Em outros termos, haverá no Céu movimento e vida — e até vigorosíssimos
— como não fazemos idéia? Como será isso?

Para construirmos de maneira paulatina uma imagem real do Céu, consideremos que quando um homem pratica determinado ato bom ou mau, mesmo depois de julgado e ter recebido seu prêmio ou castigo, esse ato às vezes continua a produzir repercussões até o fim do mundo.

Um par de asas para rumar a Deus

Uma autêntica formação filosófica faz-nos, ao contrário do que muitos julgam, voar para Deus. Sem dúvida, a consideração das limitações do raciocínio do homem e o anseio dos mais altos valores constituem o estímulo para a vida sobrenatural.

Ao longo da vida, todo homem adquire uma experiência interna de si mesmo, das suas próprias limitações, fraquezas e carências. Entretanto, ao experimentar essa insuficiência, ele sente desabrochar em seu interior um intenso desejo de voltar-se para algo de absoluto e divino, que compreende ser exterior a si. Essa necessidade, que é também uma carência, determina uma apetência e um desejo de ordem instintiva, que jorra possante e plenamente em sua integridade e pureza original, rumo ao Divino, no mais profundo da alma humana.

Esse fenômeno é denominado Instinto do Divino, algo que de si mesmo é inteiramente conforme à natureza.

À procura de Deus

Como fruto do Instinto do Divino, surge um conhecimento ainda anterior ao raciocínio, que é conhecido como Senso do Divino.

Movido pelo Instinto do Divino, o homem tem sua atenção voltada para alguns princípios de ordem filosófica, ainda quando subconscientes, que o fazem excogitar algo a respeito de Deus enquanto ser transcendente. Esses princípios induzem sua alma a aplicar as verdades já conhecidas também a este senso, permitindo-o entrever muito do divino nas coisas, facilitando assim a pesquisa feita pelo raciocínio rumo ao encontro do Divino. Este conhecimento anterior ao raciocínio explícito, capaz de guiá-lo e estimulá-lo, chama-se Senso do Divino.

O Instinto e o Senso do Divino são, portanto, de ordem natural. Porém quando corroborados por uma ação de Deus ou pelos dons do Espírito Santo no sentido de guiá-los e aguçá-los, podem passar facilmente da ordem natural para a ordem sobrenatural. Isso afirmava São Tomás de Aquino, utilizando-se de Aristóteles, acerca da ação do Espírito Santo no Instinto do Divino.

Formação autêntica

Compreende-se, então, como a autêntica formação católica deveria começar, desde suas mais básicas raízes, no estímulo ao Instinto do Divino como também ao Senso do Divino. Caso contrário este instinto atrofia-se, ainda nos anos da infância dos indivíduos, devido a mil circunstâncias desfavoráveis da educação moderna.

Considerando valores mais altos…

À luz destas noções, torna-se possível considerar o conceito de nobreza de espírito.

Para uma pessoa que não possua uma luz primordial1 especificamente metafísica, tanto o Instinto do Divino como o Senso do Divino se fazem sentir através da procura do que há de mais elevado e arquetípico em cada ordem de coisas criadas por Deus. De tal forma que o espírito busca, em tudo, o que é mais nobre. Essa é, então, a verdadeira nobreza de alma. E é na consideração ou procura de valores superiores, que vive o homem de alma nobre.

Essa nobreza constitui uma condição para que o Instinto do Divino obtenha o que anseia, que vem a ser propriamente Deus.

O Instinto do Divino predispõe a alma para receber a Revelação. Além de proporcionar uma docilidade em relação à Doutrina Católica, o que serve posteriormente como prodigioso argumento apologético. Pois o conhecimento da Doutrina Católica sacia de tal modo a alma humana e, em consequência, o Instinto do Divino, que se torna desnecessário um argumento apologético que prove as verdades da Fé.

Obstáculos a vencer

Entretanto, ao longo da vida, inúmeros são os obstáculos que nascem contra o Instinto do Divino. Esses empecilhos caracterizam-se, sobretudo, por um amarfanhamento ou um desuso desse instinto, que são diretamente provenientes do ateísmo e do egoísmo.

Outro obstáculo ocorre pela repressão do senso metafísico e do Instinto do Divino, causando uma “opacidade” de alma no indivíduo. Sua concepção do Divino limita-se, então, ao revelado, e sua posição de alma perante a Revelação torna-se mera recepção indiferente. Não repercute mais a Revelação nele se é de uma de outra forma.

Existe ainda a deformação do indivíduo que racionaliza esse senso. Ao fazer o estudo de Filosofia ou de Teologia, realizam-no de tal forma cartesiana, que julga dever reduzir o Instinto do Divino a tábula rasa, fazendo desse instinto um simples jogo de razão afastado de Deus, e portanto, indiferente às maravilhas das quais poderá tomar conhecimento.

Raciocínio humano

Lembro-me de um professor e filósofo do qual tomei conhecimento, que afirmava algo que me causava profunda estranheza. Porém eu ainda não possuía elementos sólidos para refutá-lo. Dizia ele o seguinte: “A verdade que eu concebo como corolário de meu raciocínio, é a verdade contra tudo e contra todos. Será verdade até contra a Igreja. Contudo creio que a Igreja nunca errará.” Ou seja, sempre concordaria com ele… “Mas a verdade, absolutamente entendida, não abro mão dela.”

Com o passar do tempo tornou-se-me clara a explicação para o problema: qualquer homem sente em si debilidades e fraquezas inumeráveis, por onde se torna inviável que ele mantenha uma confiança plena em seu próprio raciocínio. Por isso, conhecendo razões extrínsecas ao seu pensamento que o levem a duvidar dele, ele tem de fazê-lo. Pois o raciocínio humano não é, de modo algum, inerrante.

O Instinto do Divino indica-nos que toda conclusão a que possamos chegar, que em algo o contrarie, deve ser eliminada e negada, devido a uma verdade superior diretamente conhecida, que é incapaz de se equivocar: Deus.

Quem não toma esta atitude diante de suas convicções, faz do Instinto do Divino uma coisa absurda, transformando a Sabedoria em mera ciência.

E os verdadeiros voos do espírito?

Não será que a utilização dos brinquedos como entretenimento único e normal da criança, não contribui em algo para a eliminação do Instinto do Divino, sobretudo quando os brinquedos não possuem algo de elevado, ou tendente ao sobrenatural?

Todavia, não menor é o erro da formação universitária, quando realizada com o pressuposto de prescindir dos instintos sobrenaturais, proporcionando uma exclusividade científica. De modo que o indivíduo é obrigado a calcar aos pés todas as formas de Instinto do Divino e nobreza de espírito, para colocar-se em um patamar puramente racional, transformando-se, como se diz em latim, em um ente diminutae rationis.

Os verdadeiros voos de espírito ficam excluídos da equivocada formação universitária para dar lugar apenas ao raciocínio que se pode pôr no quadro negro.

 Núcleo da vida sobrenatural

Sendo um elemento reto e ordenado, o Instinto do Divino acompanhado pelo Senso do Divino são o núcleo em torno do qual se estrutura a vida espiritual e mental do homem.

Tal é o auxílio que prestam à alma em busca de Deus, que agem diretamente sobre as virtudes, tanto teologais quanto cardeais, proporcionando temperança, equilíbrio e sensatez àqueles que deles desfrutam.

Não há fortaleza maior do que a do homem que busca energicamente a plenitude do Senso do divino. Não há justiça maior do que a do homem que se põe em face do Senso do Divino e por isso julga com justiça todas as coisas. Não há temperança maior do que a do homem que possui a distância adequada a cada coisa, pelo fato de viver em função do Divino.

Considerados no plano sobrenatural, o Instinto do Divino e o Senso do Divino são os principais elementos para uma adequada vida espiritual. De tal modo que seria mister desempenhar uma formação moral e consequentemente intelectual que proporcionasse um contínuo estímulo a esses sensos, em vez de os amarfanhar.  v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/7/1972)
Revista Dr Plinio 148 (Julho de 2010

1) Luz primordial: assim Dr. Plinio denominava a virtude ou o conjunto de virtudes que cada alma é especialmente chamada a admirar.

Lutas e vitória pela inocência

Conforme o ensinamento de Dr. Plinio, o valioso discernimento
do homem que conserva ou recobra a inocência batismal, permite-lhe selecionar de modo judicioso a realidade ao seu redor — preterindo
as coisas secundárias em favor das essenciais — e o leva a modelar, assim, uma personalidade rica e universal.

Quando alguém conserva a inocência batismal, o seletivo de que falamos em ocasiões anteriores1 funciona com acerto e lhe proporciona grande argúcia, discernimento, a fim de construir um mundo retamente selecionado para si mesmo.

Uma constante seleção das coisas

Continuamente, as pessoas escolhem o que lhes passa pelos sentidos, embora muitas vezes sem perceber.  Por exemplo, assistindo a essa exposição, alguns ouvintes apreciam ou se sentem concernidos mais com certos trechos do que com outros. E a alternância de doutrinas e fatos concretos faz com que todos descansem um pouco, porque tais episódios falaram a uma parte mais externa e inferior da alma, entediada de não poder se movimentar. Então prestaram atenção nos acontecimentos, e essa zona do espírito emergiu, fazendo com que o meu público “soltasse as rédeas”. Não fosse eu retomá-las afetuosamente, era de se duvidar que voltassem ao tema…

Em última análise, ouvindo as várias partes da conferência estão fazendo seleções. Por causa disso, alguns trechos lhes ficarão mais na memória do que outros, pois aquele não pode conter uma exposição doutrinária inteira.

Imagine-se uma pessoa viajando de automóvel, porém não o dirige. O veículo passa junto a casas, anúncios luminosos, árvores, etc. Terminado o percurso, um companheiro lhe pergunta:

— Você observou alguma coisa no trajeto?

— Não!

Na realidade, a questão é muito mais sutil do que parece à primeira vista. A pessoa aceitou algumas coisas e rejeitou outras. E isso poderia ser atestado por alguém sentado atrás dela no carro. Este notou, por exemplo, que a primeira acompanhou com o olhar certas residências bonitas, e virou o rosto quando se deparou com um prédio notável por sua feiúra. Quer dizer, ela selecionou algo que lhe causou impressão e, de certo modo, permanece em sua memória, embora às vezes de forma muito tênue.

Aquilo que selecionamos nos marca, e continuamente vai nos formando ou deformando. Tudo o que passa por nossos sentidos — digamos, os gestos e expressões fisionômicas de um interlocutor nosso — influencia-nos de uma maneira ou de outra. Portanto, se não nos defendermos contra o que possa haver de mal, em vez de nos aperfeiçoarmos, ficaremos como cachorros sem dono andando pelas ruas.

Sem seletivo, sofremos as más influências

Tomemos um cãozinho pequinês que perambula pelos lugares públicos. Passa o caminhão de lixo e o animal se assusta, adquire um tique nervoso que pode durar até o fim da vida dele. Mais adiante há um lago para o qual ele olha, se lambe, não pensa, só o conhece fisicamente e torna-se um tanto calmo. Mas as coisas cacofônicas predominaram sobre as harmoniosas. Quando volta para a casa da dona, ele ronrona mais agitado porque foi passear na rua, recebeu muitas impressões maléficas e não apenas as do sedoso da almofada e do macio do tapete. Seu sono será conturbado. Por analogia diremos que ele não controlou seu seletivo, e por isso foi prejudicado.

Se isso acontece com um pequinês, quanto mais com um homem, dotado de inteligência!  Se não formos capazes de selecionar, mesmo instintivamente, empurrando de lado as coisas contrárias aos restos de nossa inocência e assimilando as favoráveis, seremos como uma peteca nas mãos dos homens que conhecem e exploram os movimentos desordenados das almas que se abriram para a contradição.

Poder-se-ia conceber a idéia de alguém planejando influenciar maldosamente o hipotético Abel inocente no Paraíso?

Na primeira contradição, este reagiria: “O que é isso?!”. E diante do sussurro mais velado e disfarçado do mal, ele o perceberia: “O que se esconde nessa coisa estranha?”. E, de imediato, uma categórica rejeição. Abel seria o santo vigilante, discernindo entre a verdade e o erro, o bem e o mal, o pulcro e o feio que se manifestassem ao seu redor.

Com o estado de graça, a harmonia renasce em nós

Se não pecarmos, conservando-nos no estado de graça, procurando em tudo ser lógicos e coerentes, e agirmos de acordo com a Lei de Deus, essa harmonia começa a renascer em nós, e assim nosso seletivo vai aceitando as coisas boas e recusando as más.

Reporto-me ao exemplo dado por nós em outra exposição: uma criança passeia aos braços da mãe e se agrada com o carinho que lhe faz uma bondosa camponesa, mas não gosta dos afagos que lhe dirige uma moça da cidade. Se essa criança, ao completar cinco ou seis anos de idade, perdesse a inocência batismal,  poderia vir a desprezar a mulher do campo e aprovar a jovem citadina, dizendo que esta é cativante, porque estava toda enfeitada e lhe sorriu.  Ora, a camponesa a olhou com bondade; e isso vale mais do que um sorriso comercial  ou qualquer atavio.

Contudo, a criança resolve seguir a moça da cidade para ser depois espancada por ela. Pelo contrário, se conservasse a inocência, ganharia experiência e saberia escolher a melhor dentre as duas pessoas.

Observando as fisionomias de meus ouvintes, percebo que muitos dizem de si para consigo: “Tudo isso é belo, mas também uma imensa complicação. Para se entender bem esse assunto, seria como desejar segurar um monumento de cristal cujas colunas possuem tantos ornatos, detalhes, e dá tantas voltas, que nem se compreende como constituem um só todo. Em certo momento julga-se ter entendido e que se pode pôr em prática; mas em outros, tem-se a impressão de se estar achatado! Isso é magnífico, mas como vou chegar até lá?  Dr. Plinio terá visto como estou longe desse ideal? Não estará me chamando para o alto do Monte Everest, sem saber que não consigo escalá-lo?”

Minha resposta: sem a graça de Deus, a qual só obtemos pela intercessão de Nossa Senhora, não conseguimos conservar nem recuperar a inocência batismal. É doutrina da Igreja que um homem, sem o dom divino — um auxílio vindo do Céu e superior à nossa natureza — é incapaz de praticar duravelmente os Dez Mandamentos.

Inocente completo era o homem no seu estado de integridade nativa, antes do pecado original. Depois deste, nascemos apenas com uma semi-inocência. E embora nossa alma constitua um todo, teoricamente pode-se dizer que metade dela é abalada pelas paixões desordenadas, as quais precisamos regrar. A outra parte é reta, mas só domina a pior através de um verdadeiro milagre. Mesmo para controlar a metade boa, necessitamos da graça do Céu, e devemos pedi-la. Não queiramos ser auto-suficientes, mas humildes, compreendendo que por nossas próprias forças nada conseguiremos. Somos falidos, na bancarrota nascemos, como diz o Salmo: “Eis que minha mãe concebeu-me no pecado” (Sl 50, 7). Há, porém, o reverso da medalha: pela oração alcançaremos as forças necessárias para atingirmos nosso objetivo.

Queiramos ser como o verdadeiro Abel

Peçamos, então, a Nossa Senhora que nos conceda intenso desejo dessa inocência, e uma santa inconformidade com o vaivém, o caos, tumulto e desordem existentes em nós. Não desejemos ter (como dizia o Chanceler alemão Bismarck) duzentas almas, mas apenas uma.

Sejamos como o verdadeiro Abel que, embora concebido no pecado original, continuamente lutava contra seus defeitos, comparáveis a uma cobra. Ele a estrangulava dia a dia, com severidade inflexível e inclemente, impedindo-a de lhe fazer qualquer mal, apesar de não conseguir extingui-la. Mas, agindo dessa forma, no momento de exalar seu último suspiro, Abel desferiu na serpente o mais violento dos seus golpes.

Assim é a vida do homem nessa luta interna contra ­suas próprias desordens.  Se nos conduzirmos dessa maneira, teremos realizado inteiramente o programa de nossa existência, e estaremos preparados para comparecer diante de Maria Santíssima. Ela sorrirá para nós e nos dirá: “Meu filho, és como te desejei, te pedi e te ajudei a ser”.

Essa será para nós a glória das glórias. Caminhemos com passo resoluto nessa direção.

1 ) Cf. “Dr. Plinio” números 86, 87 e 88.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 88 (Julho de 2019)

Um hino a Nossa Senhora

A Catedral de Notre-Dame é tão bela que se pode olhá-la indefinidamente, cheio de enlevo, de veneração e de ternura. Quem a aprecia muito passa a amar a ordem sublime das coisas, que conduz ao amor de Deus.

 

Notre-Dame de Paris. Eis a catedral de uma beleza perfeita, alegria da Terra inteira!

Para sentir o equilíbrio da fachada, notemos que há três partes distintas. Uma vai dos portais de entrada e termina com a galeria enorme de estátuas, as quais dão as costas para um terraço que vou analisar daqui a pouco.

Um resplendor em torno da Santíssima Virgem

Percebe-se ali o corrimão do terraço e se vê, logo atrás, uma imagem de Nossa Senhora sustentando nos braços o Menino Jesus. É a segunda parte do edifício, que vai do terraço até uma série de colunas que separa o terraço da torre. Há uma grande rosácea central, toda feita de vitrais. Nela nota-se uma parte mais central, delimitada por um trabalho de pedra. Dentro há um círculo menor ainda, onde está a cabeça de Nossa Senhora. A ideia que fica insinuada é a seguinte: toda essa rosácea é o resplendor da cabeça de Maria Santíssima. E sendo a rosácea o centro da catedral, a ideia que fica meio confusa, mas realmente verdadeira, é que a catedral é um hino a Nossa Senhora.

Contrastes harmônicos na relação entre os diversos elementos da fachada

Ela tem nos braços o Menino Jesus e, com o mais inefável sorriso de Rainha e de Mãe, olha para seu Divino Filho. A alma fica assim transportada de entusiasmo e com vontade de subir. O que ela encontra em cima? Uma série de colunas, mas que dão para o vazio!

Essas colunas têm uma função que parece um disparate: sendo tão frágeis, elegantes e harmoniosas, parecendo irmãs que se tocam pelas mãos, elas sustentam o peso de duas torres. Porém, ninguém tem a impressão de que as torres vão esmagar a colunata. Parece tão natural, com um contraste tão agradável, que se uma pessoa mais atenta não nos mostrasse, talvez nem notaríamos.

Por detrás, vemos a flecha que se ergue, bem no meio das duas torres. O resto é o céu…

É certo que não foi terminada a construção das torres, as quais teriam uma parte mais alta. Ninguém pode imaginar como seria, nem ousa completar uma coisa que, quando se olha, tem-se a impressão de não pedir complemento. Onde está o talento para completar uma obra admirável como essa? Não foram encontradas as plantas que os arquitetos deviam seguir, ninguém ousou mexer nisso.

Considerem como a relação desses vários elementos dá uma impressão de harmonia. Qual? Embaixo, três portais; o do centro é um pouco maior do que os outros dois. Mas não se percebe bem, pois é discretíssima a diferença. Contudo, se os portais fossem da mesma altura, seriam sem graça.

A ogiva é a nota do andar térreo. O andar de cima começa com a galeria de estátuas e acaba com a colunata. No meio há uma rosácea e duas ogivas, uma de cada lado. Cada ogiva é dividida em duas. E, no ponto em que as duas se encontram, há outra rosácea.

Assim, o redondo é a nota mais saliente nesse andar, contrastando com o pontiagudo de tantas outras partes. Mas observem a harmonia, o bom senso e o equilíbrio de coisas tão diversas e tão bem reunidas. Notem como fica leve, quase como um brinquedinho, a estátua colossal de Nossa Senhora ladeada por duas figuras de Anjos.

Por cima, vê-se a massa enorme das torres, cada uma com duas notáveis ogivas, onde os sinos tocam gravemente nas grandes horas do ano litúrgico e, às vezes, nas grandes horas da História da França, que são as grandes horas da História do mundo.

A galeria dos reis

Essa galeria com estátuas de reis tem sua história. A Revolução Francesa, sempre ela mesma, decapitou todas essas esculturas porque, como os bandidos tinham guilhotinado o rei e a rainha, quiseram “guilhotinar” também todos esses reis do Antigo Testamento.

Recentemente, nos alicerces de um banco próximo a Notre-Dame, quiseram fazer construções e encontraram essas cabeças, que a Revolução Francesa tinha arrancado, enterradas no subsolo do banco. Fizeram-se estudos e verificou-se que foi um homem piedoso, residente nas cercanias, que enterrou essas cabeças ali, porque ele não se conformava com essa decapitação.

Veio o dia em que mãos justiceiras tiraram do subsolo todas essas cabeças e tentaram colocar nos troncos dos reis. Mas, infelizmente, as autoridades decretaram que não ficavam bem, não havia meio de prendê-las. Entretanto, eram belas obras de escultura e foram levadas para o Museu de Cluny, que é o museu de coisas da Idade Média.

Contemplação que conduz ao amor de Deus

Todas essas coisas tão diversas se unem de um modo tão tranquilo, mas tão interessante, que se fica olhando indefinidamente, cheio de enlevo, de veneração e de ternura. Porém, se colocarmos diante desse monumento um frenético, um indivíduo que baila essas danças modernas, nasce uma batalha, porque ou ele, à força de gostar do monumento, perde o frenesi, ou recusa a santa influência do monumento e o abandona. Entretanto, para almas predispostas a aceitar essa tranquilidade, essa estabilidade, a catedral quer dizer enormemente! Quem começa a gostar daquilo, por novato que seja, passa a amar a ordem sublime das coisas que conduz ao amor de Deus.  

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 28/6/1986)

Os homens, as nações e a Lei de Deus

A humanidade anda sôfrega à procura da paz. Em número cada vez maior pululam em torno de nós movimentos, associações, campanhas que tentam levar as pessoas a se conscientizar da necessidade de um mundo melhor.

 Os meios propostos para se alcançar esse fim são muito variados, mas traduzem, na sua maioria, o mesmo estado de espírito no qual o homem ocupa o centro e Deus nem sequer é mencionado.

Ora, o que são as obras humanas dissociadas de Deus? Nada mais do que vaidade. Tudo se torna carente de significado quando não é feito em função do ideal primeiro traçado para o homem: amar, glorificar e servir a seu Criador.

Eis a meta que deve nortear a humanidade, como nos ensina o Catecismo da Igreja Católica:

“Deus, infinitamente perfeito e bem-aventurado em Si mesmo, num desígnio de pura bondade, criou livremente o homem para o tornar participante da sua vida bem-aventurada. Por isso, sempre e em toda parte, Ele está próximo do homem. Chama-o e ajuda-o a procurá-Lo, a conhecê-Lo e a amá-Lo com todas as suas forças” (n. 1).

A propósito desta fundamental doutrina, comentava certa vez Dr. Plinio(1):

A ordem, a paz, a harmonia, são características essenciais de toda alma bem formada, de toda sociedade humana bem constituída. Em certo sentido, são valores que se confundem com a própria noção de perfeição.

Todo ser possui um fim próprio e uma natureza adequada à obtenção deste fim. Por exemplo, uma peça de relógio tem uma finalidade específica, e, por sua forma e composição, é adequada à realização dessa finalidade.

A ordem é a disposição das coisas segundo sua natureza. Portanto, um relógio está em ordem quando todas as suas peças estão dispostas segundo a natureza e a finalidade que lhes são próprias. Assim também se diz que há ordem no universo sideral porque todos os corpos celestes estão ordenados segundo sua natureza e fim.

A ordem, por sua vez, engendra a tranquilidade, e a tranquilidade da ordem é a paz.

Quando um ser está inteiramente disposto segundo sua natureza, encontra-se em estado de perfeição.

Logo, o acerto, a fecundidade e o esplendor das ações humanas — quer individuais, quer sociais — também estão na dependência do conhecimento de nossa natureza e fim.

Ora, as regras desta perfeição se encontram na Lei de Deus, que Nosso Senhor Jesus Cristo não veio abolir, mas completar(2), nos preceitos e conselhos evangélicos.

A Lei divina, que depois do pecado original tornou-se um jugo muitas vezes difícil de ser carregado pelos homens, é, na verdade, inerente a seu ser e a mais alta expressão da lei natural(3), formando, por conseguinte, a única e verdadeira bússola para o reto desenvolvimento da humanidade e do progresso da sociedade(4).

O Decálogo — continua Dr. Plinio — não poderia ser contrário à natureza que o próprio Deus criou em nós, pois sendo Ele perfeito, não pode haver contradição em suas obras.

Por isso, os Dez Mandamentos nos impõem ações que a nossa própria razão nos mostra serem conformes com a natureza.

Através da prática dos Dez Mandamentos os homens não só reverenciam, amam e glorificam a Deus, mas também alcançam para a nação a verdadeira paz e ordenação(5), como faz notar Santo Agostinho:

“Imaginemos um exército constituído de soldados como os forma a doutrina de Jesus Cristo; governadores, esposos, pais, filhos, mestres, servos, reis, juízes, contribuintes, cobradores de impostos como os quer a doutrina cristã! E ousem [os pagãos] ainda dizer que essa doutrina é oposta aos interesses do Estado! Pelo contrário, cumpre-lhes reconhecer sem hesitação que ela é uma grande salvaguarda para o Estado, quando fielmente observada.”(6)

Em outros termos — comenta Dr. Plinio —, a posse da verdade religiosa é a condição essencial da ordem, da harmonia, da paz e da perfeição.

Foi esta luminosa realidade, feita de uma ordem e uma perfeição antes sobrenatural e celeste, do que natural e terrestre, que se chamou a Civilização Cristã, produto da cultura cristã, a qual por sua vez é filha da Igreja Católica.

Neste sentido, a cultura católica é o cultivo da inteligência, da vontade e da sensibilidade segundo as normas da Moral ensinada pela Igreja. Já vimos que ela se identifica com a própria perfeição da alma. Se ela existir na generalidade dos membros de uma sociedade humana — embora em graus e modos acomodados à condição social e à idade de cada qual —, ela será um fato social e coletivo, e constituirá o mais importante elemento da própria perfeição social.

De onde decorre com evidência cristalina que não há verdadeira civilização senão como decorrência e fruto da verdadeira Religião.

 

1) Excertos adaptados do artigo “A Cruzada do século XX” publicado em Catolicismo n. 1, janeiro de 1951.

2) Cf. Mt 5, 17.

3) Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 2070.

4) Ver nesta edição “A Lei de Deus e a boa ordenação da sociedade – I”, p. 12-17.

5) Ver nesta edição “O tecido social perfeito”, p. 18-23.

6) Epist. CXXXVIII al. 5 ad Marcellinum, cap. II, n. 15, in PL 33, 532.

Vocação para harmonia e síntese

Agraciado pela Providência com um cordial e generoso “savoir faire”, o povo brasileiro desponta na História para exercer a importante missão de harmonizar as mais diversas nacionalidades. É o que, através de vívidos exemplos, nos mostra Dr. Plinio na exposição abaixo transcrita.

Quando consideramos o futuro do gênero humano e nos colocamos diante da idéia da unidade das nações1, nos referimos um tanto aos dias de hoje, mas, sobretudo, voltamos nossos olhos para o dia de amanhã. Poderíamos nos perguntar, então, se já existem povos que constituam essa unidade e qual o papel deles no concerto universal.

América Latina e o mundo vindouro

Creio que, por algum lado e de certo modo, esse plano está se realizando na América Latina, a qual representa o mundo de amanhã. Sua história é ainda tão recente que seu próprio passado é o dos outros povos europeus. Quando estes começam a decair, brotaram as nossas raí­zes e desabrocharam de forma incipiente as nossas glórias.

O século XX foi dos Estados Unidos; o XIX da Inglaterra; o período (quase mil anos) desde Carlos Magno até fins do século XVIII, da França. Espanha e Portugal não chegaram a ter primazia, mas deram origem à América Latina, e a história daqueles terá sua continuação nesta última, conforme os planos da Providência. Isso ocorrerá no século XXI, o qual, indubitavelmente, será do subcontinente latino-americano.

Em função desse acontecer histórico, vale dirigir nossa atenção para o brasileiro e o hispano.

Atualmente, fala-se muito e se cogita em estender o Pacto Andino desde o norte dos Andes até a Patagônia, abrangendo também o Brasil, embora ele nada tenha de andino. É um modo sul-americano de constituir uma grande unidade. E nos causa não pequeno entusiasmo a idéia de que essa magnífica unidade religiosa, étnica, cultural, eu diria lingüís­tica, estabeleça uma espécie de superestrutura arqui-política.

A índole do brasileiro, ideal para a unidade das nações

Quanto ao Brasil — onde nosso movimento foi fundado — percebo perfeitamente este fato: Deus criou suas características geográficas e a índole de seu povo de tal maneira que este adquirisse uma mentalidade a fim de servir idealmente para essa obra resumitiva do futuro. E a grande originalidade do brasileiro está em fazer compêndios dessa natureza. É sua missão na História.

Para auferir esse talento de sintetizar, recordemo-nos dos clubes de Carnaval no Rio da década de 40, quando essa festa estava num auge e se apresentava menos como folia do que desfile do maravilhoso, feito pelo povinho dos subúrbios. Este é propriamente o sentido nobre e bonito do Carnaval. Então havia salões freqüentados por homens de cor vestidos à maneira das cortes de Luís XIV e Luís XV, cabeleira empoada e sapatos de fivela, acompanhados de “marquesas” de ébano! Aquilo que poderia parecer sumamente ridículo, era contudo elegantíssimo.

Essa gente é de tal modo unida a Portugal que somos um povo luso-brasileiro, dotado de intensa cordialidade, vivendo num território imenso, e sempre de braços abertos para acolher os mais diversos imigrantes: desde o africano com seus costumes que adotamos, ao francês com sua cultura pela qual nos deixamos embeber. África e França se encontram harmoniosamente no ambiente brasileiro, em que a mulher de ébano se veste de Pompadour…2

Por expressar esses valores, o Carnaval carioca conquistou a admiração do Brasil inteiro, e obteve certa fama no mundo todo. É uma arte bem brasileira conseguir algo que pareceria impossível, isto é, conciliar duas coisas tão opostas: a simplicidade da neta das selvas e a cultura da marquesa. E tal arte é alcançada sem estudar, sem usar laboratórios ou levantar problemas teóricos e resolvê-los, mas remexendo coisas com uma indolência naturalmente sábia, por onde elas vão se colocando no lugar próprio e de modo acertado.

No fim das contas, o brasileiro nem percebe bem o que fez; boceja, alimenta-se de uma fruta e prossegue a toada normal de sua vida. Ele agiu com esse particular savoir faire [saber fazer] que possui, muito valioso por ser mais subconsciente do que consciente.

Temperado pelo “azeite português”

O Brasil descende de uma nação representativa para a Europa daquilo que esta precisava. Poder-se-ia comparar o continente europeu a uma carruagem magnífica — como as do museu do Palácio de Versailles que me deslumbraram em menino — cujas molas estivessem quebradas e o entrosamento dos eixos com as rodas pouco lubrificado. Por essa razão, ela andaria penosamente, sacudindo as plumas, quebrando os vidros, chiando por toda parte. Seria uma caricatura de carruagem.  Se alguém a azeitasse e consertasse o molejo, as plumas voltariam ao normal, os vidros não se partiriam, os passageiros não se segurariam nos damascos por receio de cair, e os rangidos grotescos desapareciam. E novamente se ouviriam a corneta dos postilhões, o trote elegante dos cavalos e os chicotes estalando no ar.  Era a carruagem que passava…

Portugal é propriamente a nação-azeite da Europa, ele a complementa, mas seu florescimento não foi inteiramente conhecido por esta última. Ele possui a doçura, o afeto, a serenidade, afabilidade e uma acolhida que não se sente em nenhum outro lugar do velho mundo. Sua expansão, através da influência, teria dado à história do pensamento, do sentimento e da ação dos europeus o imbricamento e o contexto que lhes faltou.

A Europa empurrou Portugal para um canto. Porém, ao mesmo tempo que plantava uvas para fabricar seu esplêndido vinho, a nação lusitana dentro de sua própria alma produzia azeite, o qual foi derramado pelo Brasil inteiro, embebendo-o e o transformando no povo “azeitado” por excelência. Suave, amável, compreensível, voltado a admirar os outros, comprazendo-se de encontrar neles uma qualidade, encantando-se quando aprende uma moda, um estilo e um arranjo novos. Não pensa em se comparar com ninguém. Senhor de uma vastidão de terras continental, distribuindo-as para os que as desejam, com toda naturalidade, como quem não está fazendo favor.

Além disso, recebe no seu imenso território as mais variadas raças, penetrando-as no mais íntimo da alma e realizando isso de curioso: qualquer povo radicando-se neste País, ainda que sem miscigenação, ele “embrasileira”. É o resultado do “azeitamento”. De um modo inteiramente ordenado, o estrangeiro, sem perder as suas características originais, acaba passando por uma mutação na essência de seu espírito.

Mais italiano no Brasil que na Itália…

É fato notório que no Sudeste do Brasil a imigração italiana verificou-se torrencial.  Se compararmos o ítalo-brasileiro com o argentino, chileno ou uruguaio de ascendência italiana, ou até com o próprio filho da cantante Península, julgo realizar-se mais no Brasil do que na Itália, Argentina, Chile ou Uruguai a figura convencional e folclórica do italiano.

A “Canaã” deles é o Brasil, para onde se mudam em grande quantidade. E posso dar o testemunho pessoal de que encontrei o autêntico ítalo no Brás, na Mooca, no Belenzinho3, e não comi na Itália uma pizza tão genuína como as elaboradas em certas pizzarias de São Paulo.

Percebe-se dessa forma como a brasilidade penetra e muda algo nos povos, mesmo não havendo a mistura de raças. E tal mutação, que é indizível, efetua-se acrescentando e azeitando. A imagem adequada desse fato é a de uma gota de azeite espalhando-se sobre uma folha de papel, deixando intacta a substância desta, que nem sequer fica mais grossa, porém se faz transparente à semelhança de um vidro.

Grandiosa missão de harmonizar os povos

Assim é ação de presença do povo brasileiro, que torna afáveis as coisas, encaminhando-as para a síntese.  Um exemplo peculiar: os imigrantes vêm para o Brasil com a idéia de, quando ricos, voltarem a viver na mãe-pátria. Entretanto, muito antes de granjear fortuna, já estão resolvidos a retornar ao seu país natal — para uma visita e não para morar lá outra vez. Querem residir no Brasil, e aqui morrer.

Quer dizer, há uma nova forma de imperialismo, exercida pelo azeite, que domina, penetra e se faz sentir nas mais diversas localidades do ­País. Se o imigrante se fixa no Rio, torna-se carioca; se em São Paulo, fica paulista; em Minas, se “amineira”; no Rio Grande do Sul, se “engaúcha”.

Assim, devido ao modo de ser de seu povo e ao ambiente por ele criado, o Brasil é um pólo de atração. Pode-se dizer que essa gente está preparada para contemplar com amor todas as etapas do passado e as variantes do espírito humano. E isso ela o faz simplesmente olhando, apreciando os valores, descartando os defeitos, destilando: tal coisa é má, não está de acordo com os ensinamentos da Igreja; tal outra, apesar de pagã, se encaixa na doutrina católica; e aquela outra foi predisposta por Deus para, em certo dia, servir aos interesses da Esposa Mística de Cristo.

O brasileiro consegue apanhar e acertar todas essas coisas para constituir no fim do mundo a grande síntese da História. Seria o compêndio da doçura, abarcando a Terra com amor, compreendendo todos os valores humanos num só olhar, e usando de seu território de proporções continentais para alojar e harmonizar tudo, com vistas a uma síntese final.

Essa missão encerra uma grandeza superior e mais bela do que as legiões de Júlio César avançando e estendendo as fronteiras do império romano… 

1 ) Cf. “Dr. Plinio” número 87.

2 ) Marquesa de Pompadour (1721-1764). Uma das mais prestigiadas damas da corte francesa, então estabelecida no Palácio de Versailles. Apesar de uma vida moral pouco louvável, destacava-se pelo luxo e elegância de seus trajes.

3 ) Bairros paulistanos.