O que é a coragem?

É um erro pensar que a autêntica coragem consiste apenas em enfrentar os riscos com valentia, impulsionado por um entusiasmo sensível. Nosso Senhor Jesus Cristo nos dá o exemplo da perfeita coragem.

 

A coragem é, por definição, a disposição de alma, a virtude pela qual o homem enfrenta grandes provas, grandes dores, grandes dissabores, grandes desgostos, grandes perseguições, por um ideal que ele coloca acima de tudo.

Diversas formas de coragem, dois estados de espírito

Há diversos tipos de coragem. Uma coragem para aguentar os sofrimentos da alma, outra para suportar os padecimentos do corpo, outra para arcar com ambos os sofrimentos. Há modalidades de coragem para enfrentar os padecimentos da doença, e outras para os tormentos da guerra. Varia muito.

Entretanto, ao resolver enfrentar o sofrimento necessário para alcançar seu objetivo, o homem pode assumir dois estados de espírito diversos.

Um é o entusiasmo sensível. Ele se vê na contingência de sofrer muito por uma alta finalidade, e resolve, no seu arrebatamento: “Vou sofrer!” E vai para a frente.

Outras vezes, não. O homem não tem qualquer entusiasmo sensível em relação ao que vai fazer. Na sua mente, ele compreende que deve, e quer realizar aquilo. Mas a sua sensibilidade não está de acordo, encontra-se fraca, abatida. E ele tem que ir adiante, apesar de sua sensibilidade estar rumando para o sentido oposto.

A perfeição da coragem

O Corajoso dos corajosos, o Forte dos fortes foi Nosso Senhor Jesus Cristo, evidentemente. No Horto das Oliveiras, quando começou sua Paixão, Ele não tinha nada que representasse, na sensibilidade d’Ele, um “élan”, um gosto, uma satisfação para sofrer. Antes, pelo contrário, os Evangelhos nos contam que Ele começou a pensar em tudo o que ia acontecer, e a preparar sua Alma para isso. E, em vez de Se alegrar, diz o texto sagrado que Ele começou a sentir tédio, pavor, e a ficar triste(1).

Diante do que Lhe deveria acontecer, o seu celeste, admirável, perfeito instinto de conservação fê-Lo ter tanto medo, que as capilaridades das veias arrebentaram e Ele começou a suar Sangue.

É um fenômeno estudado na Medicina, conhecido perfeitamente. Há pessoas que, levadas por um grande receio, um grande temor, acabam transpirando sangue.

Nesse momento, Ele teve o supremo gesto de coragem, dirigindo-Se ao Padre Eterno e dizendo: “Meu Pai, se for possível afaste-se de mim esse cálice, mas faça-se a vossa vontade e não a minha”(2).

O auge da coragem estava nisso: Deus tem desígnios que, segundo a infinita perfeição d’Ele, às vezes remove, às vezes não remove. E apesar de tudo quanto levava o instinto de conservação perfeitíssimo de Nosso Senhor a ficar absolutamente tenso na perspectiva do que viria, Ele deliberou: “Eu vou, Eu aceito! Faça-se a vossa vontade e não a minha” É a perfeição da coragem!

O Evangelho conta que um Anjo baixou do céu e o fortaleceu(3)

Quer dizer, para essas almas que têm medo, tensões, e ficam dilaceradas pelo pavor do que pode acontecer, há uma misericórdia especial. Para umas almas a misericórdia consiste em dar essa sensibilidade para a luta; para outras, a misericórdia consiste em deixar a pessoa sentir-se desamparada. Mas, na hora H, vem uma ajuda e a pessoa avança.

Deus nunca abandona quem se mantém fiel

Não se deixem levar pelo erro que a linguagem corrente coloca — ao menos no português do Brasil —, de imaginar que coragem é a mesma coisa do que essa valentia sensível pela qual se enfrenta tudo. Não é esse o único corajoso. É uma forma de coragem, mas não é a única.

Esta coragem na dor, na desolação, na agonia, é uma forma de coragem esplendidíssima, porque é a coragem da qual nos deu exemplo, pessoalmente, Nosso Senhor Jesus Cristo.

Nas ocasiões comuns da vida, a pessoa pode não ter coragem para as coisas extraordinárias e, portanto, por causa disso ter um acesso de medo. Mas quando se trata de ser fiel à graça de Deus, não tem por onde escapar: a pessoa pode estar como for, vem para ela uma graça. E, no meio do medo, ela aguenta.

Santo Inácio de Antioquia, por exemplo — um mártir famoso —, foi para o martírio, chegou diante das feras, abriu os braços e exclamou: “Meu Deus, que meu corpo seja triturado pelos dentes das feras, e esmagado como se faz com o trigo usado na transubstanciação!” E realmente as feras caíram em cima dele e o estraçalharam; e ele, na alegria, foi para o Céu. É uma coragem admirável!

Os romanos levavam os cristãos, na véspera da execução, para o Coliseu ou para o Circo Máximo, e eles ficavam a noite inteira acordados, com medo do martírio do dia seguinte. E as feras que lhes deviam comer estavam ali perto, em outro cárcere, uivando. De maneira que, no silêncio da noite, de repente se ouvia o rugir de uma fera faminta. E o católico sabia que seria ele o alimento daquele animal.

Então, diante dos leões, leopardos, tigres, panteras, que começavam a uivar, durante a noite, alguns católicos ficavam entusiasmados, outros se encolhiam, pois receavam não ter coragem. Chegada a hora do suplício, eles tinham uns procedimentos admiráveis.

Houve uma santa que pediu a Deus o seguinte: ela estava disposta a aguentar tudo, mas não tinha coragem de ser comida por um leopardo, por ter um medo especial desta fera. Apareceram as feras, entre as quais havia leopardos. A santa olhou aquilo e pensou na oração que fizera. Veio um outro animal, que não era leopardo, e atirou-se sobre ela, devorando-a.

Outras vezes, as feras se aproximavam, mas não ousavam fazer nada contra o santo. Então o imperador mandava lhe cortar a cabeça. E todos os mártires tinham atitudes admiráveis.

Os “lapsi”

Existia no meio do Coliseu um ídolo, junto ao qual ficavam uma espécie de tigela com incenso e uma pira com fogo. Os cristãos que se aproximassem do ídolo e jogassem incenso no fogo, indicavam por este gesto terem adorado o ídolo. Então, imediatamente eram soltos e podiam voltar para casa. Esses eram chamados “lapsi”.

Um monge relapso é um monge que não teve coragem de levar até as últimas consequências sua vida monacal. Um aluno relapso é o que não teve a coragem de aguentar o peso do estudo.

Os “lapsi” — a palavra “relapsos” vem de “lapsi” — tinham que voltar para a catacumba e apresentar-se com vergonha, como “lapsi”. E continuavam a viver a vida de todos os dias dentro do opróbrio.

Tanto mais que existiam outros meio estropiados porque tinham conseguido sobreviver aos tormentos, sendo depois resgatados, à noite, pelos outros cristãos que, durante a noite, recolhiam os corpos dos mártires, e os eventuais feridos com vida, levando-os para serem cuidados. Esses sobreviventes eram heróis, tinham enfrentado as feras!

Imaginem um daqueles “lapsi” olhando para uma moça frágil, que perdera os dois braços, e que está na catacumba, rezando. Ele, um atleta. Que vergonha! Dá vontade de sair correndo…

Às vezes os “lapsi” que voltavam eram novamente presos. E, na segunda vez, eles se mostravam corajosos. Apesar do pecado cometido, a graça de Deus ainda os apoiava na hora do martírio.

Vivamos e morramos como Deus quer

Quando chegar a nossa hora, devemos pedir a Nossa Senhora que nos dê qualquer forma de coragem, contanto que sejamos fiéis a Ela, custe o que custar. O resto não tem uma importância decisiva. Mas é preciso, nesta hora, ser corajoso.

Eu me lembro de ter ouvido falar de um santo que pregava muito sobre os novíssimos do homem, entre os quais está a morte. Mas ele tinha um pavor de morrer, que era uma coisa medonha! Quando ficou velho, chegou a vez dele. Veio a morte, e ele morreu com uma serenidade impressionante, uma coisa admirável!

São os diferentes desígnios de Deus para cada pessoa.

Queiramos viver a nossa vida e morrer a nossa morte como Deus quer. Vê-Lo no Céu, por toda a eternidade, é o que devemos pedir a Nossa Senhora. v

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 4/9/1989)

Revista Dr Plinio 193 (Abril de 2014)

 

 

1) Cf. Mt 26, 37-38.

2) Cf. Lc 22, 42.

3) Cf. Lc 22, 43.

Coragem e galhardia, disciplina e gentileza

Profundo conhecedor da simbologia dos animais e da psicologia dos homens, dos povos e até das civilizações, Dr. Plinio, com base na projeção de dois filmes(1), tece interessantes comentários sobre o cavalo, o touro, o pavão e o cisne, analisa os modos de ser dos latinos e dos não latinos ocidentais, focaliza as características do austríaco e do espanhol, e afirma que suas qualidades são frutos da civilização cristã e, no fundo, do Sangue de Cristo e das lágrimas de Maria.

 

Todos ficaram empolgados com o que se passou. A reação dos presentes neste auditório foi como a de um só homem: entusiasmados!

Agora, devemos como que passar novamente o filme em câmara lenta, dentro de nossas cabeças, para perceber quais são as razões desse entusiasmo.

O cavalo e o touro

A primeira razão é a impressão que se tem do risco que aquilo causa, e da marcha do cavalo e do cavaleiro diante do perigo. Há um gosto, uma espécie de alegria, de euforia de se atirar dentro do risco. Tem-se a impressão de que o risco produz psicologicamente, no cavalo e no cavaleiro, como que um arejamento fresco e agradável. Cavalgar dentro do risco e do imprevisto; improvisar, ali na hora, as coisas que devem ser feitas: avançar, recuar, etc. E tudo realizado de acordo com uma certa regra interior, que faz exatamente a beleza do jogo.

O cavalo corre muitíssimo bem! Ele tem um passo lindo e audacioso. Esse cavalo mereceria ter o nome de Relâmpago ou de Corisco. Dir-se-ia — não é assim, porque é puro instinto — que o animal possui uma noção raciocinada do que está se passando, e que acha uma verdadeira beleza jogar-se para a frente e raspar no perigo. Tem-se a impressão de um bem-estar do cavalo — não estou falando do cavaleiro — na hora em que o touro avança contra ele, quase raspa… e ele sai com elegância!

Parece que o cavalo diz: “Touro, você não é senão touro; eu sou cavalo, sou elegância, força e garbo; você é massa bruta, mera força. E, por causa disso, posso raspar-me em você e até permitir, se for o caso, que seu chifre me risque, e eu ter a alegria de ter raspado pelo perigo e saído vitorioso!”

Realmente, o cavalo possui uma série de reações que lembram as do espírito humano. Certos tipos de homens, colocados diante do perigo em várias circunstâncias da vida, têm atitudes assim; e não só quando correm risco de vida, mas numa argumentação, numa jogada política, ou qualquer outra coisa. O touro, não. Ele é forte, e agrada-nos ver aquela força, mas não tem expressão; não possui nada de “humano” na atitude dele. No cavalo há qualquer coisa pela qual, por algum lado, ele parece transcender — não transcende — a mera condição de bicho e entrar um pouco no reino dos homens, pelas atitudes que demonstra.

O pavão e o cisne

Aliás, isso se dá com mais de um animal. É muito bonito perguntar-se quais os desígnios de Deus, tendo feito isso assim. Por exemplo, o pavão, com aquela sua roda e atitudes. Prestem atenção quando ele abre a roda. Não percam muito tempo olhando para a cauda dele, que é lindíssima; reservem para outra ocasião. Observem o pescoço dele e os ares que toma: ares de superioridade, como quem diz: “Eu sou dono desta roda magnífica atrás de mim; mas não é somente uma exposição de penas que levo comigo: sou superior; olhem a minha marcha, o meu pescoço todo feito de joias, a posição de minha cabeça! Observem o meu olhar, o meu bico! Eu sou o pavão!” Há qualquer coisa nele que demonstra uma expressão para-humana.

Uma muita bonita expressão tem também o cisne, entretanto tão menos ornado do que o pavão, o qual, com aquela sua joalheria toda, é um dos animais mais belos que Deus tenha criado. O cisne é de uma cor só: branco ou preto. Mas vejam o seu jeito de deslizar sobre as águas! Quando quer se mover um pouco, nota-se que ele faz um leve movimento por debaixo d’água, e desliza… Tem-se a impressão de que ele se contempla nas águas, e que estas ficam contentes de refleti-lo.

São duas formas de beleza — a beleza ornada do pavão e a beleza singela do cisne — levadas pelo Criador a uma perfeição que nos deixa pasmos.

O delicioso licor do risco

Quanto à cena a que acabamos de assistir, vê-se que o cavalo participa do heroísmo de quem o monta. O verdadeiro cavaleiro sabe transmitir alguma coisa de sua personalidade ao cavalo. Este é destro, esguio, cheio de movimentos ágeis e, quando raspa pelo perigo, tem euforia. Quando o cavalo dá aquela volta diante do touro para que o cavaleiro crave a “banderilla”, e em que o touro quase raspa nele, seria comparável a um homem que está bebendo um licor e dá seu melhor trago. É o delicioso licor do risco!

Aqui entra um ponto do qual, embora um pouco à margem do tema, pode-se tratar dele muito de passagem.

Em geral, o homem contemporâneo quer proporcionar para si e aos outros uma existência deliciosa. E para isso quer afastar o risco e levar uma vida boa, evitando ao máximo que alguém seja ferido, contundido. Pessoas assim não compreendem que a criatura humana, por sua natureza, tem um certo gosto do risco, o qual é um dos elementos para tornar feliz a vida. E afastar o risco da existência de homens que sentem apelo ao risco, significa lhes prejudicar a vida.

O bonito na cena que vimos não é só o avanço do cavaleiro, mas também quando ele dá umas investidas e sai fugindo. A atitude do cavalo e do cavaleiro não é de fugir, dando as costas ao touro e sair correndo. Vão de lado… E um ir de lado procurando tornear o touro, para fincar mais uma “banderilla”! É a imagem da distância psíquica(2).

Olhando-se o toureiro e o cavalo, nota-se que os dois estão numa posição em que não têm medo; não perderam a noção da realidade e só estão procurando dar uma volta com elegância e com distinção, para espetar mais uma farpa!

O homem tem necessidade de lutar

Aí entra outra coisa: o prazer de vibrar um golpe. É um gáudio superior!

Naturalmente, não pode ser um prazer bárbaro. Não é o gosto do homem justo que vibra o golpe em outro homem justo. Mas há ocasiões em que o justo se vê numa luta com o injusto, em que ele tem obrigação de dar o golpe. É belo que o homem, em presença do mal, goste de calcá-lo aos pés. Na sensação de ter dado o golpe que atinge o alvo, o homem se realiza inteiro.

Eu não estou a par dos programas de ensino hoje em dia, mas acho muito provável que nos assuntos escolhidos para composições, os temas do golpe, da força, da luta contra o mal não entram nunca. Julga-se com isso proporcionar uma infância e uma adolescência desanuviada e alegre.

Não é o que conseguem… porque há no homem, concebido com o pecado original, e posto em presença do mal, uma necessidade pessoal de enfrentar riscos, de lutar e de golpear. Bem entendido, na ocasião justa, quando há propósito, não levado por um furor estúpido, mas por altos desígnios da Fé, e de maneira sumamente equilibrada. São impulsos que, quando dominados pela Moral católica e orientados para o bem, dão vazão a tendências da natureza humana que precisam ter a sua vazão! Portanto, está direito. É o lado que me parece esplendoroso dessa luta.

Há um outro aspecto. Todos sabem que se o homem não toma cuidado, facilmente se torna teatral. E o lado fraco do homem é quando ele sofre alguma coisa qualquer e procura chamar a atenção dos outros sobre si. Entretanto, no filme a que acabamos de assistir, três ou quatro homens estiveram deitados no chão, logo após ter entrado na arena um touro particularmente excitado. Mas mantinham-se com dignidade, pois em nenhum momento tiveram uma atitude de drama, esperando que todo mundo estivesse torcendo por eles, como se fossem uns colossos.

Nada disso! Estavam deitados no solo, o que era razoável, e sabiam que o socorro viria. Cada um deles, quando entrou nessa espécie de corrida, sabia que isso podia acontecer. Aconteceu, não deve espantar-se! Agora, aguente com dignidade! Não comece a gritar: “Ai, ai, ai!” Fique deitado, porque o socorro médico vai chegar. Não há a dramaticidade romântica do século XIX.

O latino e o não latino

Existe um dado que caracteriza os latinos em geral, filhos da Península Ibérica — espanhóis e portugueses igualmente —, embora com tonalidades diversas.

Mas falemos antes dos não latinos. Estes possuem uma construção de espírito pela qual têm uma espécie de desconfiança da própria sensibilidade. A razão desconfia que a sensibilidade possa levar a qualquer desordem. E não há tourada de não latino. Eu não conheço…

O não latino entraria na tourada com medo do medo, portanto estrangulando-se para não ter medo. Assim ele avança. É uma coisa digna, mas que toma a sensação como inimiga da razão, e esta sempre dirigindo a sensibilidade com aquela força para evitar que, de repente, a sensação tome conta.

No latino, isso é necessário também, mas de outro modo. Nele a sensação já nasce, muitas vezes, na linha em que vai nascer a razão. Esse conflito da sensação e da razão não se verifica no latino, em quase todas as ocasiões, exceto em algumas…

Vemos que esse toureiro não está prestando atenção em si. Nada existe nele que o faça ter medo de que a coragem lhe pregue uma. Naturalmente, conhece bem o seu ofício, está muito bem treinado; mas todas as sensações que nascem nele são enriquecedoras da razão e tomam uma atitude de impulso, dando a impressão de ser irrefletido, por não se compreender bem como uma coisa se liga à outra.

Eu vi uma vez uma fita, há muitos anos atrás, representando uma história de Júlio Verne. Havia um homem que sobrevoava a Europa num balão. Era um desses ingleses do século XIX, ultra-seguro de si, muito bem vestido, que estava na cestinha do balão, com chapéu coco, bengala e gravata borboleta grande, como se usava naquele tempo.

Ele acabara de sobrevoar a França, com seus castelos maravilhosos, e olhava com certo cuidado, como quem diz: “Castelo, vou te analisar depois, porque se o fizer agora, perco a distância psíquica…”

Depois, o balão desce na Espanha, e o inglês vai andando por uma cidade pequena. Em certo momento, entra numa praça onde se veem mesinhas, cadeiras e uns dançarinos bailando aquelas danças espanholas não muito diferentes das touradas, como, aliás, estas também não são muito diferentes da dança. No meu sentir, há uma inter-relação entre as duas coisas. É um depoimento de um não espanhol que quer muito bem à Espanha.

O visitante senta-se junto a uma das mesinhas, manda vir uma bebida e fica olhando, fleumático e de braços cruzados, aqueles homens e mulheres a dançar. Em certo momento, a animação é tanta que ele se deixa contagiar, a face dele inteira amolece um pouco e uma lágrima sai de um olho. Pouco depois, cessa a dança, ele paga a conta e se levanta pensativo. O inglês procurara o tempo inteiro defender-se contra a sensação, para depois pesar a coisa como era. Nessa cena se mede bem a diferença entre os povos.

Existe até mesmo uma certa analogia entre o modo pelo qual o espanhol cavalga ou dança, e a maneira do espanhol ou português fazer uso da própria palavra. Nós, latinos, vamos falando e não é necessário que seja devagar, para fazê-lo refletidamente. Há uma interação por onde se fala, e a própria palavra produz o pensamento.

Quem visse isto de dentro dos olhos de um inglês diria que entra a irreflexão. Quem observa de dentro da pele de um brasileiro, de um hispano, de um português ou de um espanhol, nota o contrário. Com a pressa daquele cavalo cavalgando, assim também o pensamento percorre aos saltos o tema, nas suas mais variadas diretrizes. E, no fim, tira o chapéu e saúda!

Sou insuspeito para dizer isso, porque costumo afirmar o seguinte: creio que se eu fosse passar seis meses na Alemanha, ao cabo desse tempo estaria tão habituado que me sentiria nascido naquele país. Portanto, por conaturalidade; e na Inglaterra também. Eu gosto muito dos ambientes onde se fala pouco, se pensa antes de falar, se bebe um trago antes de pensar, onde as coisas andam devagar. Eu aprecio e sei entrar dentro desse papel.

Estilo holandês… Lembro-me de um quadro representando o interior de uma casa de pescadores flamengos. Numa cabana estão quatro homens, lobos do mar, conversando… Todos estão quietos e têm nas mãos umas taças com alguma bebida típica. O quadro poderia chamar-se: “Conversação de quatro amigos”.

Eu compreendo e entraria dentro disso. Mas como sei estar também dentro do meu papel natural, entendo as diferenças e vejo as belezas nas obras de Deus. Acho que é uma tolice querer daí fazer com que um caçoe do outro. Não! É preciso que cada um entenda bem como é o jogo, qual é o papel do outro.

É debaixo desse ponto de vista que eu interpreto a tourada.

[A seguir, Dr. Plinio passa a comentar a projeção sobre a Escola Espanhola de Equitação de Viena.]

Alemanha guerreira e Áustria diplomática

Para interpretar esse filme, há que conhecer um pouquinho as linhas gerais da História da Áustria e do seu temperamento.

A Áustria é uma parte do mundo ocupada pelo povo alemão, mas com características próprias. Uma das particularidades do povo alemão é a expansão: tendem a se prolongar para além de suas fronteiras. Basta folhear um livro de História da Alemanha para se perceber as várias tentativas de satisfazer essa tendência.

Quando se quer conquistar a casa de alguém, há duas possibilidades: uma é a força e a outra o jeito. Quanto a este, a pessoa chega à residência e diz, com amabilidade, por exemplo: “Olhe, vim aqui fazer uma conversa.” Senta-se, inicia uma prosa muito agradável, muito gentil… Depois, em última análise, percebe-se que o homem calculou que havia naquela casa uma moça, única herdeira da família, com quem ele se poderia casar. De maneira que, chegando lá e conversando muito amavelmente, o indivíduo acaba casando com a jovem e herdando a casa. Então, sem brigar, e de um modo aveludado, ele ficou dono da casa, como outro que tivesse brigado. É a diplomacia.

Outro modo seria: bater com a coronha do fuzil na porta até que se abra, e dizer: “Olhe aqui, isso tudo está mal arranjado, mal administrado. Eu sei como fazer melhor. Vá para aquele canto! Agora, eu vou organizar…” E organiza superiormente bem.

O que diferencia a Áustria da Alemanha é que esta é mais guerreira, enquanto a primeira é mais diplomática. A diplomacia é propriamente um traço distintivo da Áustria. Não que ela não tenha tido muito bons guerreiros — ela os teve —, mas não é sua nota dominante.

O lema da expansão da dinastia austríaca, a Casa de Habsburg, em latim, numa época em que todo mundo falava essa língua, se reduzia a todas as vogais: “A, E, I, O, U. Austriæ est imperare orbi universo” — Compete à Áustria mandar no mundo inteiro. Para isso há um método que se exprime assim, em latim: “Bella gerant alii, tu felix Austria, nube!” — Que os outros façam guerras à vontade; tu, Áustria feliz, casa-te.

Imperatriz Leopoldina e Dom Pedro I

Na Áustria havia uma família imperial muito numerosa e prolífica, de maneira que sempre existiam príncipes e princesas para casar onde conviesse. E estes eram educados, desde há muito, por um princípio: o membro da Casa d’Áustria não se casa com quem quer, mas acaba querendo bem a pessoa com quem se casou. Quando recebe ordem da diplomacia austríaca, ele deve, pois, aceitar casar-se com quem for, qualquer que seja o sacrifício ou a dificuldade.

Podemos imaginar o que era a heroica e gloriosa cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, em 1816. Foi nesse ano que D. Pedro I, ainda Príncipe Regente do Reino Unido de Portugal e Brasil, se casou com a Imperatriz Dona Leopoldina. Comparem o Rio com Viena daquela época: era uma diferença fenomenal!

Isso se passou da seguinte forma: em determinado momento, o Rei de Portugal, D. João VI, mandou pedir a mão de uma das filhas do Imperador da Áustria para se casar com o filho dele. Convinha-lhe ter toda essa orla do Atlântico dominada por uma princesa da Casa d’Áustria; e entrar esse sangue na dinastia dos Habsburg era conveniente à Áustria. Por causa disso, era preciso executar. Então, o Imperador da Áustria, Francisco II, chamou Dona Leopoldina e lhe disse: “Recebeste do Príncipe do Brasil, D. Pedro de Alcântara, herdeiro do trono de Portugal, este convite de casamento. Teu pai resolveu que deves ir.” Não houve dúvida: ela veio, viveu e morreu aqui. Adaptou-se à vida no Brasil, entrava na floresta para caçar borboleta, e gostava daqui. Habituou-se.

Uma filha do Imperador da Áustria e Napoleão

Outro caso. Uma irmã dela brincava, em pequena, no quarto de brinquedos dos principezinhos, de enforcar uns bonequinhos chamados “Napoleões”. O grande inimigo da família do pai dela e de seu país era Napoleão.

Quando houve a grande derrota da Áustria, em Austerlitz(3), os austríacos pensavam que Napoleão exigiria condições arrasadoras, porém apresentou-as suaves. Não era próprio àquele homem apresentar nada de suave, mas ele tinha um interesse que explicou: “Faço as condições suaves, contanto que eu receba em casamento a mão de uma das filhas do Imperador da Áustria”.

O Imperador chamou a filha e lhe disse: “Vais casar-te com Napoleão”. Ela se casou com ele, e representou o papel de Imperatriz na perfeição.

Quando Napoleão foi mandado para o exílio, ela retornou a Viena. Depois viveu no Norte da Itália, num pequeno principado que o pai lhe arranjou, e levou a vida que ela quis. Contudo, enquanto existiu o interesse da Casa d’Áustria, ela foi a esposa de Napoleão.

Então essa diplomacia era completada por um grande senso de sacrifício, uma grande disciplina sobre si mesmo, uma grande seriedade. Mas, no lado exterior, muita delicadeza, muita gentileza, muita elegância e muita disciplina.

Carlos V e Filipe II

Dessa forma aconteceu que o maior império reunido sob a direção de um europeu, na História do mundo — maior que o Império Romano —, foi o de Carlos V, Imperador da Áustria. E, depois, Filipe II e os demais reis espanhóis da Casa d’Áustria.

Carlos V era filho de uma princesa espanhola, Joana, a Louca, e de Filipe, o Formoso, Arquiduque da Áustria. Foi Imperador do Sacro Império Romano-Alemão, dominando praticamente, para simplificar, toda a Europa Central, com possessões importantes na Itália; senhor do reino da Espanha, que herdara por parte de mãe; e, com a Espanha, herdou todas as suas colônias.

Filipe II, filho dele, além de ter herdado todas as colônias da Espanha, herdou a coroa de Portugal. Durante algumas gerações, os Imperadores da Casa d’Áustria foram Imperadores do Sacro Império, Reis da Espanha, senhores de todas as colônias espanholas, Reis de Portugal e do Brasil. Portanto, toda a América, desde o México até a Patagônia, do Pacífico ao Atlântico lhes pertencia.

Carlos V dizia com ufania que era o Império onde o sol não se deitava nunca. Como isso foi conseguido? Muita diplomacia, muito jeito e umas tiradas guerreiras de primeira ordem. Em Lepanto, o comandante era D. João d’Áustria, um príncipe espanhol. Assim, vários outros feitos.

O modo de ser nobre do austríaco e do espanhol

É isso que se nota neste filme sobre os cavalos de Viena. Aqueles homens, os cavaleiros, estão numa atitude perfeita, nobre, distinta e elegante. Mas de homens bastante sérios para, sendo necessário, partir para a guerra, e lá serem corajosos.

Eles poderiam ser guerreiros, entretanto vestidos sem uma espada, sem qualquer arma. Entram com solenidade, não numa arena, mas numa sala de palácio, com lustres de cristal lindos e arquibancadas. É uma sala de espetáculos, cujas galerias estão ornadas com flores e faixas vermelhas e brancas, que são as cores da Áustria.

Quando entram, a primeira preocupação é saudar o povo. O público fica logo encantado e bate palmas. Depois disso, começam a dar exercícios sucessivos de disciplina aos cavalos. As atitudes destes, como se estivessem num salão, são próprias a fazer sorrir o homem. O cavalo tem todas as cortesias, gentilezas e atenções de um homem de salão: levanta-se, cavalga com leveza, enfim, faz tudo, no mundo dos cavalos, o que uma pessoa bem educada faria. Reduzir a brutalidade do cavalo ao mimo do salão é uma obra-prima, em certo sentido maior do que formar um homem para ser bem-educado.

Há, por detrás disso, um senso de direção, de sacrifício, uma distância psíquica para poder ser amável, agradável e gentil, que é exatamente próprio a um diplomata, a um bom político e ao homem fino.

Vemos, por aí, como há várias maneiras de ser nobre. Esta é a maneira do austríaco. A do espanhol é ser corajoso. Se deixasse de haver Espanha ou Áustria, a cultura mundial perderia irremediavelmente.

Mais ainda, as duas coisas se compensam. Um mundo só à austríaca ficaria adocicado; um mundo só à espanhola lucraria em ter uma certa doçura. A composição de ambos os aspectos dá uma espécie de plenitude da alma humana, que verdadeiramente alegra.

Portanto, uma coisa completa a outra. É o garbo, a galhardia, a coragem, o desassombro, o esplendor da distância psíquica e da varonilidade que enfrenta o perigo; e, ao mesmo tempo, a disciplina, a gentileza. Essas qualidades se completam e são frutos da civilização cristã.  Detrás de tudo isso está o Sangue infinitamente precioso de Nosso Senhor Jesus Cristo e as lágrimas de preço inestimável de Maria. v

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 16/9/1989)

Revista Dr Plinio 192 (Março de 2014)

 

1) Um sobre uma tourada (rejoneo) a cavalo, e outro a respeito da Escola Espanhola de Equitação de Viena.

2) Expressão utilizada por Dr. Plinio para significar uma calma fundamental, temperante, que confere ao homem a capacidade de tomar distância dos acontecimentos que o cercam.

3) Na Morávia (hoje parte oriental da República Tcheca), em 1805.

Inocência e estado de espírito

Fazendo novas explicitações a respeito de um tema que lhe era tão caro, a inocência, Dr. Plinio mostra como ela gera um estado de espírito do qual procede a história de um homem, de uma instituição, de uma nação e até mesmo de uma época, como por exemplo, a Idade Média, cuja autenticidade dependeu da fidelidade ao estado de espírito irradiado a partir da pessoa e obra de São Bento.

 

Segundo a boa doutrina, vistas as coisas como elas devem ser, acho que tudo quanto o homem tem realizado na Terra procede originalmente daquilo que, em linguagem comum, se chama estado de espírito.

Estado de espírito sereno, matriz da qual todo o resto procede

Há um estado de espírito inicial a partir do qual nasce uma série de critérios para ver e analisar as coisas, rejeitar umas e aceitar outras, e depois batalhar contra umas e a favor de outras, construir algumas e demolir outras. Há um critério fundamental no homem, que parte desse primeiro estado de espírito.

O que chamo aqui o estado de espírito?

É a inocência vista na posição tomada por ela quando contempla as mais altas verdades que é chamada a contemplar. Mas é um estado de alma tranquilo, sereno, uma espécie de matriz fundamental, central, da qual todo o resto parte.

Desse estado de espírito procede depois a história de um homem, de uma instituição, de uma nação. A História do mundo pode proceder sucessivamente disso. Mas, quando o homem toma esse estado de espírito originário?

Vou descrever em profundidade esse assunto, o quanto eu consiga.

Uma ideia de conjunto…

Um homem, por exemplo, que está andando, fazendo, mexendo etc., em certos momentos, sem se dar conta, ele deita um olhar de conjunto sobre as coisas. Eu tenho pouca oportunidade de ver isso hoje, porque os meios de transporte públicos são mais velozes e fechados do que os antigos bondes. Mas se via muito no tempo em que na cidade de São Paulo existiam bondes completamente abertos. Havia muito menos trânsito e esses veículos andavam devagar, de modo que os passageiros ficavam dentro deles durante um longo tempo. E eu gostava enormemente de ver o bonde passar e analisar as pessoas que nele estavam.

Em frente à minha casa — situada na esquina da Rua Barão de Limeira com Alameda Glete — havia uma linha regularmente movimentada. E ali era um ponto de parada importante para a São Paulo daquele tempo. As janelas de algumas salas de minha casa davam diretamente para a rua, de maneira que quando eu tinha tempo e conseguia estar sozinho ficava olhando os bondes passarem, pararem e seguirem de novo naquele vagar.

Na maior parte dos bancos desses veículos havia dois, três ocupantes muito largados, e o bonde ia avançando, com seu ruído característico, sobre os trilhos de ferro. Os passageiros não tinham o que fazer e, em pouco tempo, deixavam de olhar para as margens da rua, porque aquela sucessão de coisas era mais ou menos igual, e ficavam pensando num assunto qualquer. Essas são as horas em que vêm as ideias mais variadas à cabeça, e às vezes uma ideia de conjunto.

…que culmina em Deus

Quando o espírito é inocente os temas mais ou menos se revertem uns nos outros formando a ideia de conjunto. A pessoa se volta para si mesma e deixa falar aquela apetência que ela tem de um certo “unum”, de um certo estado de espírito. Então ela examina, se lembra desta ou daquela coisa, mas por associação de imagens, sem fixar o espírito. Depois se recorda também do que era o contrário, faz um certo contraste, mas aos pedacinhos. Não é nada raciocinado, em ordem como se fossem soldados marchando. Imaginemos cardumes de peixes no mar: as ondas vão e vêm, e eles as acompanham. Assim também o pensamento humano, mesmo quando é reto, flutua em certas horas.

Em certo momento, quando o homem encontrou, mediu, sentiu bem um ponto e o relacionou com vários outros, antes de essa ideia se tornar inteiramente nítida, ele adquire a respeito da vida uma visão geral na qual considera os aspectos favoráveis e contrários. É a hora em que o homem forma o conjunto de afinidades e de repulsas em torno de um determinado assunto.

Depois vem a análise desse conjunto em relação ao que está fora dele. Surge, então, de modo por vezes indefinido, a ideia de Deus. Nem sempre se pensa claramente n’Ele, tanto mais que não se ensina às pessoas que, quando isso vem ao espírito, é a própria ideia de Deus que está mais próxima e se trata de colher. Aquilo fica assim, no lusco-fusco, mas de fato é a ideia de Deus.

Uma alma em ogiva: séria, sólida, recolhida, procurando sempre subir

Se disséssemos a um homem neste estado de espírito que o Céu é como se costuma pintar em certos quadrinhos, ele teria uma vontade muito maior de ir para o paraíso terrestre do que para esse Céu tão pouco atraente. Porque neste último ele sente a morada de todo mundo, mas não a sua própria. Ora, o Céu é a morada de todos, mas também a morada individualíssima de cada um. E é preciso sentir ambas as coisas.

Suponhamos alguém com apetência por certa forma de seriedade que abrange esses vários aspectos da vida e se compraz em notar a grandeza, a majestade, a distinção, bem como a lógica interna que eles têm. Esta pessoa se toma a sério e se respeita a si própria. Dir-se-ia que é uma alma em ogiva, séria, sólida, pensativa, levando tudo para cima, calma, pesando e analisando tudo de modo inflexível, muito propensa a se recolher e estando disposta a redarguir os que afirmam o contrário deste estado de espírito, ou mesmo a usar de qualquer meio legítimo de luta para fazer triunfar a verdade contra o erro. Mas isso sem agitação, sem trepidação, sem excitação, com naturalidade.

Torres que convidam para o sonho

Dão essa impressão, sobretudo, certas catedrais medievais.

Outro dia comentei com um membro de nosso Movimento um desenhozinho a bico de pena — feito pelo famoso Viollet-le-Duc(1) e publicado numa revista — da Catedral de Notre-Dame, vista um pouco de lado e imaginada de cima para baixo; era fruto de uma grande reflexão. E eu gostava de ver Notre-Dame toda feita de seriedade, gravidade, estabilidade, pensamento, grandes considerações das linhas gerais, mil pormenores e detalhes harmônicos, panorama, mas as torres vão para o céu.

Tão magnificamente se dirigem para o céu, que nenhum artista se atreveu a completar aquelas torres, porque só quem planejou tem alma para completá-las. E as torres estão ali, ao mesmo tempo tragicamente incompletas, mas fazendo cada um imaginar, no subconsciente e segundo o seu próprio feitio, torres ideais. Dir-se-ia que aquelas torres terminam num pontilhado, de acordo com o espírito de cada um. De maneira que se nos dissessem: “Olha, sabe de uma novidade? Completaram as torres de Notre-Dame!” Tomaríamos um susto: “Será que completaram errado?” Ou seja, não de acordo com aquele pontilhado que, subconscientemente, fazemos olhando aqueles dois magníficos fragmentos de torre, que nos convidam para o sonho.

O ”bimbalhar” do Castelo de Saumur e a estabilidade contemplativa de Notre-Dame

Esse estado de espírito que acabei de descrever, tão fundamentalmente católico, eu o encontro refletido em parte na Basílica de São Pedro e em outros edifícios civis e religiosos. Eu elogio tanto o Castelo de Saumur(2), que é magnífico e do qual gosto imensamente. Mas esta grande seriedade ele não tem. Ele termina, não num bimbalhar de sinos, mas num bimbalhar de cores, de flechas, meio festivo. E este estado de espírito que descrevo não é inimigo da festa, mas olha a festa de cima.

Enquanto para o comum dos homens a festa é o epílogo das coisas, para este estado de espírito ela é apenas um dos aspectos da vida. Há muito mais do que isso: a grande estabilidade contemplativa, satisfeita, disposta a qualquer luta. E eu a vejo maximamente expressa em Notre-Dame.

Sainte-Chapelle: uma das refrações de Notre-Dame

Alguém dirá: “Mas e a Sainte-Chapelle?”

São vitrais lindos, encantadores, é uma “bonbonnière” feita para ter almas em seu interior e não bombons; é o que pode haver de magnífico. Mas não noto na Sainte-Chapelle esse estado de espírito solene e único. Ela é admirável! Já lhes contei que quando entrei na Sainte-Chapelle foi a única vez em minha vida que me lembro de ter tido uma surpresa tão agradável que exclamei: “Ah! Eu não imaginava tanta beleza!”

Pois bem, esse estado de espírito é uma das refrações de Notre-Dame.

Não sei explicar o que eu sentia dando a volta em Notre-Dame! É certo que me vinham ao espírito aquelas palavras da Escritura: “Cidade de uma beleza perfeita, alegria do mundo inteiro”(3). Ela é a igreja de uma beleza perfeita, alegria do mundo inteiro.

Ponto de partida da Idade Média

Tenho certas razões para afirmar que esse estado de espírito foi o ponto de partida da Idade Média, a qual foi ela mesma na medida em que cavalgou, rezou, lutou, construiu rumo a isso. E tudo o que contemplamos de belo no mundo medieval se reduz a esse estado de espírito. Quando algo não o possui, está em discrepância com a Idade Média.

Então, a armadura do cavaleiro, a coroa de um rei, o “pulchrum” de uma aldeia, a estabilidade de uma corporação, a majestade de um castelo, enfim qualquer coisa medieval é um dos estados de espírito secundários, derivados deste grande estado de espírito central.

E julgo que este estado de espírito viveu e se expandiu a partir de Cluny(4). E mais remotamente a partir da pessoa de São Bento.

Peguei nesgas deste estado de espírito no mosteiro de São Bento em São Paulo. Numa tarde, estando lá com dois membros de nosso Movimento, tivemos uma impressão singular de que a Igreja de São Bento revivia inteira. A impressão que eu tinha era essa: aqui há esse estado de espírito.

Passeando dentro de um olhar

E no atual Jardim São Bento(5), todos ou quase todos os nomes de ruas são ligados à história beneditina no mundo ou no Brasil, por exemplo, Rua Dom Domingos de Silos. Trata-se do velho abade Dom Domingos que conheci bem e era um homem respeitável. Esse bairro era uma antiga chácara, na qual estive várias vezes. Por cima da vegetação tropical pairava esse estado de espírito.

Estive neste prédio(6), no tempo em que era observatório astronômico. Olhei o prédio por alto e pensei com meus botões: “Aqui está mais uma construção feita com material moderno e que, provavelmente, polui este ambiente sacral e antigo que existe aqui”.

Havia também um lago de uma água estagnada e pensativa, com mil folhinhas as quais vinham não sei de que raízes do solo e faziam com que o lago parecesse de esmeralda. Creio já ter falado aos presentes a respeito do olhar azul de dois beneditinos alemães que moravam aqui e eram irmãos leigos, muito direitos, sérios, pensativos. Lembro-me de que, certa vez, dirigindo-me a um deles, eu lhe disse qualquer coisa. Ele parou de trabalhar — eram carpinteiros —, olhou-me como a um ser vindo não sei de onde, deu uma resposta em duas ou três palavras amáveis, mas de fim de conversa, e continuou no trabalho dele. Pensei: “Eu passeei dentro de um olhar; nunca isso me sairá do espírito”.

Transcorreram os anos. Quando pela primeira vez venho visitar este prédio, enquanto sendo uma sede nossa, sou tomado pela mesma impressão que me davam o Mosteiro em São Paulo, o contato com um ou com outro beneditino, com coisas beneditinas que tenho conhecido ao longo de minha vida, as biografias de São Bento e de Santa Escolástica que eu li. É aquele mesmo estado de espírito.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/5/1981)

Revista Dr Plinio 180 (Março de 2013)

 

1) Eugène Viollet-le-Duc (1814-1879). Arquiteto francês, famoso restaurador de edifícios medievais.

2) Ver “Revista Dr. Plinio”, n. 53, Agosto/2002, p. 31.

3) Cf. Sl 48, 3.

4) Mosteiro beneditino cuja ação e influência exerceram um papel fundamental na formação da Cristandade medieval.

5) Bairro nobre da zona norte de São Paulo onde a Ordem Beneditina possuía propriedades até fins da década de 1940.

6) Uma das sedes do Movimento onde Dr. Plinio realizou a presente exposição.

Feérico supérfluo

Ao se discorrer sobre a ordem de coisas ideal para a existência de um povo e de uma civilização, acredito dever-se-ia fazer uma distinção entre duas espécies de benemerência dos que contribuem para essa boa ordenação: a dos que asseguram e tornam abundante o indispensável, e a dos que asseguram e requintam o supérfluo.

– Sts Peter and Paul Fortress – st petersburg – Russia

Serão, talvez, duas formas de dar glória a Deus, cada qual no seu âmbito — o “necessarista” e o “superfluista” ou “requintista”.

Para se calçar esse pensamento é preciso tomar como base a tese de que o supérfluo na verdade é indispensável, ou seja, tem de se fazer presente no quotidiano do homem, e este deve notá-lo pelo menos nos seus semelhantes, pois do contrário a vida terrena lhe parecerá por demais estreita, asfixiante.

Como, porém, via de regra o supérfluo é preterido em favor do necessário, procura se tornar exímio em qualidade, a fim de se valorizar e, vez ou outra, levar a palma. Ele se requinta, torna-se mais enfeitado, mais ornado, ou se reveste de simplicidade mais impressionante, enfim, engendra mil maneiras de o requinte se mostrar tal.

– Sts Peter and Paul Fortress – st petersburg – Russia

Esse conceito me parece superiormente ilustrado pelo exemplo do “Fabergé”, célebre joalheiro da corte imperial russa no final do século XIX e início do XX. Era o ourives do supérfluo, e o encanto deslumbrante de suas peças consistia no esmero da superfluidade.

De sangue francês, levou consigo para o mundo russo o charme característico de suas origens e com ele fecundou seu talento de gênio para confeccionar jóias que são verdadeiros bibelôs de sonhos. Os mais conhecidos são os famosos Ovos de Páscoa que o Czar encomendava para presentear a Czarina e outros familiares. Com a repetição do gesto em anos sucessivos, a “moda” de oferecer os ovos “Fabergé” se espalhou pela Europa da “Belle Époque” (portanto, até 1914, quando eclodiu a Primeira Grande Guerra), constituindo um requinte da civilização daquele tempo.

– Sts Peter and Paul Fortress – st petersburg – Russia

A capacidade inventiva do artífice era inesgotável, e a cada elaboração surgia uma nova maravilha, uma joia mais aprimorada, algumas feéricas, reluzindo nas suas cores sedutoras, nos seus materiais preciosos, diferentes, lavorados com extrema categoria. Ovos que se abrem e deixam ver no seu interior outro bibelô ainda mais rico e belo; ovos que são relógios, este com um pequeno galo que assinala as horas, aquele com um único ponteiro em forma de esguia serpente; outros esmaltados, com pinturas que retratam paisagens da Rússia imperial; e ainda os que trazem fotografias dos membros da família do Czar, e os que simplesmente se revestem de ouro.

Todos de pequenas proporções, como devem ser para comportar a dose de “raffiné” e de rico que possuem. Maiores, perderiam em beleza e distinção.

E todos procuram e logram despertar o maravilhamento. O maravilhamento do supérfluo.

 

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira

(Extraído de conferência em 23/3/1990)

A civilização da admiração

A tendência para a elevação e o sobrenatural dava ao homem medieval especial facilidade para admirar e venerar a Deus Nosso Senhor. Tal estado de alma não pode ter sido privilégio de outrora; ao contrário, Deus o quer e exige de todos os fiéis, ao longo de toda a História.

 

Quando estudamos a História da Idade Média, analisamos sobretudo os personagens mais característicos daquela época: Carlos Magno, São Luís, São Fernando, São Tomás de Aquino e, de modo eminente, São Gregório VII. Entretanto, também no geral da população daquele período havia um espírito de fé eminente.

No auge da era medieval, a Cristandade era compacta e homogênea e encontrava-se em sua época mais feliz. Havia, como em todos os tempos, pecadores esparsos, interessados em fruir o seu próprio pecado, porém não obstinados em derrubar o edifício espiritual da Civilização Cristã.

Naquela era histórica, o espírito de Fé moldava a maneira de pensar e de viver do homem, tornando sua mentalidade fundamentalmente diversa do homem contemporâneo. Como se exprimia a mentalidade medieval?

Dois movimentos ascensionais

Suponhamos um copista que possuísse uma sineta para chamar o empregado, e um canivete para cortar o pergaminho e outros materiais.

Se o cabo da sineta fosse feio, ele, quando desse acordo de si, estaria com o canivete esculpindo-o de maneira a torná-lo belo.

Quanto ao canivete, ele se comprazia em fazer com que a lâmina fosse afiada, de modo a aparecer inteiramente a beleza do metal, e o cabo não fosse apenas prático, mas também bonito. Assim, no cabo do canivete ele esculpia um santo; e no alto da sineta uma cruz.

Quando ia escrever algo, ele não se limitava a fazer letras legíveis, mas pensava em compor uma iluminura desenhando, dentro da primeira letra, um pássaro voando, ou um santo rezando com halo de santidade, ou um Rosário entrelaçado nas letras.

Ou seja, os mais humildes homens do povo manifestavam, continuamente, uma tendência para o mais perfeito, mais santo e mais belo. Uma espécie de insaciabilidade temperante, uma pressão saudável e contínua da alma para o melhor, debaixo de todos os pontos de vista, nunca se contentando com aquilo que tem, mas procurando algo superior; era, portanto, uma tendência para a elevação.

Devido a esta contínua procura do mais belo, existia a ideia de que, acima dos seres visíveis, havia seres invisíveis, mais nobres e mais belos do que os visíveis. E, no alto da pirâmide destes seres espirituais estava Deus, a suma Perfeição. Então, dois movimentos ascensionais: um para melhorar as coisas terrenas, na procura da perfeição delas, e outro para, através das coisas terrenas, caminhar até Deus.

O maravilhamento é a postura de alma necessária a todo homem

Isso significava, na alma do homem medieval, uma tendência fundamental para o elevado, e uma necessidade profunda de conhecer continuamente coisas que lhe provocassem admiração.

Daí as canções de gesta, que eram a glorificação dos grandes heróis da Cristandade. E também as lendas a respeito da vida de santos, que constituíam a glorificação deles. A “Légende Dorée”, de Jacques de Voragine, por exemplo, tem magnificência nesse sentido.

Essa tendência corresponde ao contínuo estímulo comunicado por Deus à Criação. Não julguemos ser esse estado de alma necessário apenas aos medievais. Esta é a orientação de alma que, em virtude do primeiro Mandamento, Deus quer e exige de todos os fiéis.

Podemos ver isso em dois campos: a ordem natural e a ordem sobrenatural. Na ordem natural, temos o universo. Por mais que o examinemos, não encontramos um ponto que não seja suscetível de aprofundamento. E no extremo desse aprofundamento, não achamos nada que não nos cause uma espécie de maravilhamento. O universo foi construído por Deus para que o conhecimento dele conduza a atos de admiração.

Consideremos, por exemplo, a coisa mais terra a terra: a pata de uma rã. A rã é um bicho prosaico e sua pata é feia. Mas se um cientista vai estudá-la, ele encontra ali dentro uma ordenação em razão da qual acaba concluindo o que o artista nunca concluiria: é admirável a pata de uma rã. O artista dirá que é hedionda a pata de uma rã, mas o cientista afirmará: “Neste hediondo há uma maravilha!”

Na pata de uma rã, na ponta de uma grama, na estrutura de uma formiga, no céu material, nos astros, por toda parte encontramos algo admirável. Quer dizer, o universo incita o homem a prestar atenção em seu Criador fazendo atos de maravilhamento.

O “émerveillement”, o maravilhar-se, o admirar é a postura de alma necessária a todo homem; é o ponto terminal da peregrinação em toda espécie de seus estudos ou elucubrações, seja no campo artístico, científico ou cultural.

Maravilhas da Igreja Católica, Apostólica, Romana

E, bem no centro desse universo, que é um convite contínuo à admiração, há a ordem sobrenatural, a Igreja Católica, Apostólica, Romana, na qual isso também se verifica. Nas menores coisas da Igreja Católica, se as analisarmos bem, encontraremos verdadeiras maravilhas.

Tomo o mais corrente dos exemplos: o meio inventado pela Igreja para chamar os fiéis à oração, o sino colocado no alto de uma torre. Tão prático, mas quanta maravilha! A Ave-Maria que é tocada na aurora ou na hora do pôr do Sol, que maravilha! Os sinos que repicam alegremente para anunciar a Missa, que maravilha! Os sinos que dobram finados, quando o cadáver entra no templo para receber a bênção, que maravilha!

Há certas coisas feitas pela Igreja com tanta naturalidade, que ninguém se lembra de as achar bonitas; é preciso prestar atenção. Por exemplo, o modo pelo qual a Igreja trata o pecado e o pecador. Entra numa igreja um caixão, com um cadáver, carregado pela família do morto. Todo mundo, com respeito, comenta: “Coitado, era tão bom, antes de morrer abençoou os filhos, recebeu os Sacramentos, despediu-se da esposa.” De repente o coro canta: “Requiem aeternam dona ei, Domine, et lux perpetua luceat ei”. É a dúvida da Igreja: ele deve ter, pelo menos, pecados veniais para pagar, e o normal é que passe por um Purgatório bem ardente. “Meu Deus, dai-lhe o descanso eterno, e que a luz perpétua brilhe para ele”. E depois o coro entoa: “Requiescat in pace”, e embaixo todos respondem: “Amen”. É o modo pelo qual a Igreja convida à humildade e ao reconhecimento da realidade do pecado no homem, que ela está honrando dessa forma. Nota-se aí um equilíbrio fantástico.

Na Idade Média, a moda consistia em imitar os mais perfeitos

Dir-se-ia serem coisinhas dentro da vida da Igreja; mas essas “coisinhas” são sóis, e indicam que a Esposa de Cristo nos convida continuamente a uma impostação de alma ávida de admirar tudo, quer na ordem natural, quer na ordem sobrenatural.

Qualquer indivíduo que passa pela rua e possui a glória de ser batizado deve ser ávido de admiração. O homem de espírito católico tem esta tendência a procurar em tudo coisas admiráveis e não é invejoso. Encontrando alguém admirável, ele se alegra e dá graças a Deus; elogia, aplaude aquele alguém e procura torná-lo conhecido. Ele não é igualitário, não procura colocar-se no nível dos outros, mas deseja que quem é superior a ele receba mais, e seja mais glorificado.

Essa era a tendência de espírito existente durante a Idade Média.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/2/1977)

Revista Dr Plinio 168 (Março de 2012)

Delicadeza e severidade

Creio que uma das características fundamentais do homem da Idade Média era possuir um estado de espírito afeito aos longos e serenos recolhimentos, durante os quais sua alma deambulava, com todas as suas possibilidades e faculdades, por todas as espécies de realidades. E sem nunca manifestar a menor complacência para com o mal, observava as várias formas de bem, na sua imensa diversidade, amando-as todas, nas suas diferenças, flexibilidades, elasticidades e contradições aparentes. A partir dessa contemplação, ele era capaz de todas as formas de ternura, paciência, delicadeza, suavidade, como operação prévia, entre outras, para ser capaz também de todas as formas de santa e necessária austeridade.

O medieval podia, portanto, com essa serenidade e esse equilíbrio, com posição imensamente compreensiva diante das diferentes formas de bem, tirar uma conclusão: “Essas variedades me conduzem à certeza plena de que existe, para além delas, o absoluto, Deus Nosso Senhor, Criador de todas as coisas”.

Expressões de um espírito assim reluzem nas obras da Idade Média, nas iluminuras e esculturas que nos apresentam tantas figuras e personagens daquela época, imbuídas de uma profunda tranquilidade: o carpinteiro serrando uma madeira, uma borboleta esvoaçando em torno de uma flor, um raio de sol que incide sobre  um cordeirinho a pastar no prado maravilhoso.

Noutras imagens, tem-se o riacho correndo sob uma pontezinha, um cisne que passa, a trepadeira que cai junto à janela de uma casinhola que parece feita de pão de mel, e em cujas flores brincam as abelhas. Tratam-se de símbolos de formas de bem que devem nos deliciar, e que se harmonizavam e constituíam um conjunto equilibrado com virtudes aparentemente opostas, como a fortaleza e a severidade.

A alma medieval, contemplando o fato miúdo da vida cotidiana, detinha-se, encantava-se, deleitava-se com tudo e fazia inteiramente suas todas as formas de bem. Ao mesmo tempo, excluía com vigor o que era mal e contrário àquilo que admirara.

Por essa atitude, chegava a outra conclusão: “Estou aberto, enlevado e propenso à admiração diante de qualquer forma de bem. Ficaria inconsolável se a menor dessas manifestações de beleza conforme à Beleza absoluta desaparecesse da face da Terra. E repudio, com inteira firmeza, o que lhes seja contrário e intente eliminá-las do mundo”.

A meu ver, soube o homem da Idade Média, no auge de seu florescimento espiritual, praticar de modo exemplar essa espécie de admiração e amor omnímodos para com todas as formas de bem, e deduzir dessa atitude uma extrema recusa ao mal que procurava acabar com aquelas maravilhas.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 23/9/1974)

Revista Dr Plinio 132 (Março de 2009)

O Palácio dos Doges

Por serem almas com altos ideais culturais e religiosos, os venezianos conseguiram transmitir em suas construções o princípio governativo que leva à unidade as coisas sobre as quais exerce seu império.

 

O Palácio Ducal era a sede do Governo de Veneza. Com a vida civil tão menos desenvolvida do que hoje, não havia os escritórios de advocacia necessários para fazer os requerimentos. Assim, nesse lugar, chamado por isso mesmo de “Porta da Carta”, eram colocadas mesinhas onde escrivães redigiam os documentos e petições a serem apresentados aos magistrados.

Almas com altos ideais culturais e religiosos

Eu chamo a atenção para a beleza dessa porta. Notam-se embaixo os batentes grandes, divididos em quadrados esculpidos. Encimando a porta, vemos o leão alado acima do qual se abre uma larga ogiva com vitrais. Tudo enquadrado por duas agulhas de mármore branco que, por assim dizer, “apresentam armas” ao lado do pináculo gótico da janela que termina num ornato no alto.

Diante do leão, símbolo de Veneza, está ajoelhado o Doge Francesco Foscari. Vejam como a janela é bonita, com os vitrais e todo o rendilhado maravilhoso que está acima, formando círculos nos quais se encaixam os vitrais. Tudo isso dentro de uma ogiva sobre a qual estão dois Anjos carregando a figura do Evangelista São Marcos. Por fim, uma sequência de esculturas sobre pedra que culminam numa figura terminal.

É interessante notar essa tendência do gótico, inclusive em Veneza, em terminar os monumentos em altas pontas. Excetua-se o Palácio dos Doges, que se encontra fora dessa regra porque a inverte de um modo muito bonito. Mas vemos essa tendência nas duas agulhas, na ogiva como também no topo de toda essa peça escultural.

A que corresponde essa tendência? Por que aquelas almas se compraziam tanto nisso? Por serem almas com altos ideais culturais e religiosos, nos quais agrada muito ver algo que domina todo um conjunto harmônico de seres. É propriamente o princípio governativo que leva à unidade as coisas sobre as quais exerce seu império.

Essa é uma porta tão bonita que valeria a pena fazer um esforço grande para viajar só para conhecê-la. Entretanto, ela é apenas um pormenor de um palácio que contém incontáveis outras maravilhas.

Preocupação de pôr beleza em tudo

O Palácio dos Doges compõe-se de dois andares sobre uma espécie de galeria coberta que dá para a Praça de São Marcos. Entre o corpo principal do edifício e essa galeria térrea encontra-se um terraço todo ornado por colunas encimadas por rosáceas.

No pátio interno do palácio encontramos mais uma vez uma galeria inferior, não mais com os arcos góticos ogivais, mas com arcos semicirculares, e no andar superior novamente as ogivas. Por fim, o famoso “caixotão” – mas que caixotão! – vazado por janelas grandes e pequenas que completam belamente o conjunto do quadro. No topo, um rendilhado de pedras brancas indicando novamente o amor às pontas. Imaginem o edifício sem esse detalhe; não ficaria meio sombrio? Mas com essa renda de pedras brancas é uma verdadeira maravilha. A pessoa se deleita ao ver isso precisamente porque culmina numa ponta. Tudo o que termina em ponta é belo porque representa o governo perfeito.

Vale a pena prestar atenção no chão do pátio, onde se encontram dois poços, de água doce naturalmente, para as pessoas beberem, lavarem-se, etc. Mas para o chão não ficar muito monótono, fizeram em pedra mesmo esses desenhos, porque para plantar aí provavelmente não daria. Então encheram o espaço dessa maneira agradável. Vemos assim como há a preocupação de pôr beleza em tudo.

A sala do Grande Conselho, no interior do palácio, era o local onde os magistrados de Veneza se reuniam para deliberar. Considerem o contraste entre a extrema ornamentação, de um lado, e a extrema simplicidade, de outro. O teto é todo carregado de ouro, com quadros magníficos encaixados. Ao fundo, vemos um quadro representando o Paraíso, e que toma a parede toda. Uma obra maravilhosa, tendo no alto Nosso Senhor Jesus Cristo, Nossa Senhora e a Santíssima Trindade.

Portanto, uma sala do Governo dominada por uma cena fundamentalmente religiosa, de tal maneira Governo e Igreja viviam em colaboração nesses felizes tempos. Embaixo, diante dessa obra de arte, encontra-se uma tribuna ladeada por duas portas que contrastam com o conjunto, por causa da cor clara dos batentes, a tal pedra branca veneziana, dando uma nota de alegria a uma sala que estaria exposta a ficar muito soturna se não tivesse algo de branco para contrastar com o carregado das cores.

Solenidade dos atos realizados pelo Conselho

A grande tribuna conta com uma presidência e três lugares de cada lado; um Conselho de sete pessoas, portanto. Ali se decidiam questões que interessavam aos particulares. Então, era livre o acesso à sala aos que tinham assuntos a serem julgados. Não tenho certeza, mas creio que, como nos tribunais, também ali podiam falar as pessoas delegadas pelos interessados para resolverem suas questões junto ao Conselho.

Os membros do Conselho, sobretudo o presidente, participavam da sessão com roupas riquíssimas, em geral com tecidos de valor inestimável, conferindo assim grande realce à solenidade do ato. Era para fazer respeitar o poder público que, segundo nos ensina a Doutrina Católica, provém de Deus. Não que Ele escolha a forma de governo, nem indique quem vai governar. Isso Deus deixa aos homens. Mas toda sociedade humana deve ter um governo. Portanto, é da vontade divina que haja governos, e quando os homens obedecem ao governo, cumprem o desígnio de Deus. Naturalmente eles só devem cumprir a vontade dos governos quando não são contrários à Lei de Deus, porque esta fica acima de toda lei humana.

Nota-se, assim, o desejo de inculcar naqueles que assistem ao julgamento a ideia do valor religioso da decisão a qual será tomada por autoridade de Deus. Pode acontecer que o homem tome uma decisão errada, com ou sem culpa. Com efeito, em consequência do pecado original, Deus quis permitir que houvesse pessoas com pouca inteligência ou mal intencionadas. Entretanto, apesar do risco de “burros” e canalhas governarem os homens, a Providência quis que houvesse governo. Este é o princípio magnificamente expresso aí.

Os doges: homens inteligentes, espertos, meio misteriosos

“Doge” é uma palavra italiana derivada do vocábulo latino “dux”, que deu origem também à palavra “duque”, título nobiliárquico. O Doge de Veneza tinha as honras e as prerrogativas de duque.

Ao analisar os bustos de alguns deles, que se encontram nesse palácio, nota-se que, apesar da natural diferença dos traços fisionômicos, há qualquer coisa de comum entre eles, e que corresponde a um elogio que nem sempre se pode fazer aos chefes de Estado contemporâneos: são homens inteligentes, sabem o que querem e querem o que sabem, voluntariosos e, cada um a seu modo, espertos; meio misteriosos, com a fisionomia enigmática, não dizem o que pensam, mas governam mesmo a República Sereníssima de Veneza. Aliás, como uma pequena cidade como Veneza poderia ser a Rainha do Adriático e, ao cabo de algum tempo, também do Mediterrâneo, se não fosse dirigida por homens capazes disso?

Eles usavam um chapéu denominado “barrete frígio”. A Frígia era uma região da Ásia antiga onde os homens usavam esses chapéus com essa espécie de pontinha atrás. Tornou-se o símbolo dos Estados nos quais o regime de governo não era a monarquia e sim a república. Porém, não eram necessariamente repúblicas democráticas. Veneza era uma república aristocrática, e os doges pertenciam ao Conselho, tendo seus nomes inscritos no Livro de Ouro, que era o registro das famílias nobres, e todos tinham uma grande autoridade sobre Veneza.

A lindíssima Ponte dos Suspiros

A famosa Ponte dos Suspiros comunica o Palácio Ducal às prisões, e consta fundamentalmente de duas janelas. Dificilmente se pode imaginar uma ponte mais bonita do que essa. É lindíssima! É um corredor coberto pelo qual os prisioneiros eram conduzidos para ser julgados pelas autoridades competentes. Como se vê, não há possibilidade de escapar, é uma condução que não oferece perigo de evasão.

A denominação “Ponte dos Suspiros” é muito bonita. Mas exagerou-se, na literatura revolucionária, o alcance disso. Começou-se a dizer que por aí eram levados os prisioneiros destinados a serem executados. Depois, provou-se que não era verdade. Eram conduzidos para comparecer ante as autoridades judiciais, de onde, quiçá, poderiam sair absolvidos. Portanto, era um suspiro de tristeza, mas também de esperança: “Afinal, vou ser julgado. Talvez saio dessa história…”  v

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/12/1988)

Revista Dr Plinio 264 (Março de 2020)

 

Modos de ser dos brasileiros

Com verve e profundidade, Dr. Plinio descreve os modos de ser dos diversos tipos de brasileiros. Ao analisar o pernambucano, transmite as impressões que teve ao visitar um antigo engenho de sua família paterna.

 

Os modos de ser pessoais mudam de acordo com os Estados. Por exemplo, uma coisa é o modo de ser do Rio, outra coisa o de São Paulo. Mas nenhum desses dois é o mesmo da Bahia, mais florida, mais poética, mais retórica. Pernambuco ainda traz um pouco da marca da guerra dos holandeses. E vai daí para a frente…

O militarismo gaúcho tem algo de feudal

O Brasil tem dois Estados militares muito distantes entre si. O temperamento mesmo dos que pertencem a um Estado e outro são diferentes. Um deles, o Rio Grande do Sul, é militar por estar em fronteira.

Quem vive em São Paulo, por exemplo, se encontra a uma distância astronômica da parte da fronteira onde se guerreou. Portanto, a guerra para os paulistas é uma coisa remota, mas para os gaúchos, algo muito mais recente. Por isso estes são muito militares. Grande parte do contingente do Exército brasileiro é constituído por gaúchos.

Há um modo peculiar do gaúcho ser militar. O militarismo gaúcho tem qualquer coisa de feudal. Sua raiz era ainda aquela do velho coronelismo agrícola do Brasil: fazendeiros com propriedades enormes, plantações de mate, criações de gado em quantidade, extensões colossais dominadas por senhores dessas terras, com populações grandes morando ali e que dependiam deles.

Isso fazia com que em cada guerra de fronteira – contra os argentinos, raramente contra os uruguaios – os fazendeiros e a capangada saíam como uma unidade. E viviam à la militar. Não é o militar francês ou austríaco, nem um pouco. Mas o militar caboclo com aquele chapelão, um pouco far West, laço vermelho no pescoço, poncho, chimarrão, com aquela bomba de chupar feita de prata, botas altas e correrias a cavalo pelas vastidões das criações. Eram homens fortes, sólidos e dominadores.

Os cearenses são muito inteligentes…

Outro Estado militar do Brasil inteiramente diferente é o Ceará. A configuração desse Estado terá uma certa influência no militarismo do cearense, que naquela terra seca vagueia nômade em meio aos cactos e à pobreza.

O espírito de aventura não é o mesmo do senhor com uma base na terra e mandando em gente que faz parte da raiz dele. Mas é gente de correria e tropelia por aqueles sertões desérticos, com “mata-mata”, capangada, um far West norte-americano do tempo clássico, mas acomodado às condições e ao temperamento regionais. Portanto, sem aquele ar estável e firme do gaúcho, mas com outro jeito que eu acho simpático também, e que é o espírito de aventura, uma espécie de D’Artagnan(1) da poeira, dando origem a tipos como o Padre Cícero, o Lampião e outras figuras assim, legendárias.

De todos os lugares pelos quais viajei, o Ceará foi o único em que, olhando de cá, de lá e de acolá, falando com este, com aquele, não encontrei ninguém que não fosse muito inteligente. Cheguei a andar sozinho pelas ruas de Fortaleza à procura de alguém pouco dotado de inteligência, mas não encontrei.

…mas muito brincalhões

Entretanto, eles brincam demais…  Em certa ocasião, fui a uma igreja e pedi para comungar. Na sacristia, estava um padre lendo junto a uma escrivaninha. Entrei, cumprimentei-o com meu modo cerimonioso, caracteristicamente paulista.

— Padre, bom dia!

— Bom dia – respondeu-me ele com uma voz cantante e olhar inteligente. Senti que ele estava me olhando para me pregar alguma…

Eu disse:

— Padre, eu queria comungar. O senhor me desculpe, está um pouco tarde, mas o senhor poderia me dar a Comunhão?

— Posso. Mas acontece que sou aleijado e só conseguirei ir até o altar se o senhor me carregar até lá. O senhor está disposto a que eu me pendure no seu pescoço e me leve até o altar?

Enfim, para comungar eu faria qualquer outra coisa. Respondi:

— Padre, o senhor me diga como eu devo fazer que levo o senhor até o altar e lhe fico muito agradecido.

— Não precisa, não.

— Mas, como não precisa? O senhor não quer ir?

— Não. Sente aqui, Doutor Plinio, o senhor pensa que eu não o conheço? Eu o conheço muito.

Puxou uma cadeira e continuou:

— Eu sou o Monsenhor Nini.

Eu nunca tinha ouvido falar de Monsenhor Nini na minha vida… Era tudo brincadeira. O padre queria uma prosa com uma pessoa de fora. Conversamos um tanto, ele perguntou notícias de São Paulo, etc. A certa altura, viu que eu estava com pressa e disse:

— Bem, então vamos para a Comunhão. Levantou-se e foi lépido para o altar e me deu a Sagrada Eucaristia.

O charme, a principal arma de luta do carioca

Passando para o Rio de Janeiro, veremos que o carioca é inteiramente diferente. Em primeiro lugar, não é belicoso, guerreiro, mas coloca sua confiança no charme, que é a sua principal arma de luta. Talvez seja inspirado por alguma circunstância. O Rio foi, durante muito tempo, a capital do País. Deixou de ser no tempo do Juscelino, que mandou construir Brasília.

O mundo diplomático brilhava no Rio de Janeiro, que sediava as embaixadas do exterior ainda num período brilhante em que a vida diplomática era representativa, nobre, com o aroma das velhas cortes europeias. Naturalmente, esse ambiente tinha comunicação com a alta sociedade do Rio, a qual ficava muito impregnada de todos os ventos vindos da Europa.

De outro lado, sendo a capital do Império e, mais tarde, da República, o Rio atraía as elites de quase todos os Estados do Brasil para residirem lá. Havia, portanto, elementos exponenciais do que há de melhor dos vários Estados brasileiros morando junto à doçura e à beleza majestosa, suave, descansada da natureza do Rio, muito mais bonita outrora, com aquelas curvas do mar que tinham sido desenhadas por um francês e, por isso, dotadas da graça francesa. O mar chegava bem mais próximo das casas. No Hotel Glória, por exemplo, que era naquele tempo um grande hotel, sentia-se quase as ondas baterem nos paredões do edifício.

Essa doçura do ambiente carioca, com as palmeiras imperiais, o Jardim Botânico, aquelas montanhas que parecem irmãs molemente encostadas umas nas outras, aquela brisa constante, em geral morna, que sopra no Rio, o Outeiro da Glória, lindamente colocado no Morro da Glória, que é uma verdadeira joia, ao mesmo tempo uma igreja e um brinquedo, de tal maneira é bonito; tudo isso fez com que os cariocas colocassem o seu principal meio de ação no charme. Sempre muito amáveis, brincalhões, mas gentis, sem nada de agressivo, e fazendo disso o meio pelo qual atraíam, de maneira a convergir tudo para o Rio onde reinava uma atmosfera de bonomia elegante.

Paulistas antigos e mineiros

Um tipo humano bem diferente desse era o paulista antigo: fazendeiro, sem guerras, mas senhor a conta inteira, sério, amável, com um fundo de desconfiança, mas não muito carregada, de poucas palavras. Enquanto no Rio uns vão muito nas casas dos outros, entrar na casa de um paulista era uma dificuldade. Porque eles recebiam pouca gente. Eram residências bonitas, muito bem arranjadas, para acolher os parentes e os íntimos, ou as visitas de cerimônia, recebidas numa sala especial chamada sala de visitas. O resto da casa é para a intimidade.

Podemos encontrar uma típica mansão paulista antiga na esquina da Rua Dona Veridiana com a Avenida Higienópolis, onde hoje há um clube social. Outra é o Palacete dos Campos Elíseos, que é uma casa paulista ainda mais característica do que a mencionada anteriormente.

Ao considerarmos o Estado de Minas Gerais, podemos diferenciar duas Minas. Uma é a de Ouro Preto, dos profetas do Aleijadinho, do tempo colonial: recolhida, meditativa, inteligente, calma, desconfiada, rica e econômica.

Ao longo do tempo do Império, certas qualidades foram desaparecendo. O aspecto artístico caiu bastante. Isso foi substituído pela Minas política, bancária, comercial e agrícola, que vai começando a ser também industrial. Os melhores políticos rivalizam com os gaúchos. O mineiro é rei da política na arte de sussurrar, falar baixinho, dizer a metade e dar a entender o resto. A política do gaúcho é declamatória. Eles têm esperteza, verve, agradam as pessoas, mas falando muito, aos borbotões.

Baianos cantantes e pernambucanos mandões

Já a Bahia é histórica, tradicional, cantante, poética, oratória, gastronômica, pitoresca. Basta lembrar esses predicados que todo mundo sabe o que é um baiano. Não é preciso descrever.

Em Pernambuco vejo uma peculiaridade curiosa, que não é propriamente uma mistura, mas os pernambucanos são uns baianos meio apaulistados. Os baianos têm aquele charme da primeira capital do Brasil, que foi Salvador. Como os cariocas, eles possuem a arte de agradar, são leves, engraçados, e têm uma inteligência luminosa.

Os pernambucanos são brincalhões e frequentemente bem inteligentes, mas não dão propriamente para tribunos como os baianos, que postos num púlpito, ou numa tribuna, falam e arrastam. Os pernambucanos discursam bem, escrevem livros muito bem feitos, conhecem o português primorosamente e são espíritos mais tendentes a aprofundar. Entretanto, são muito mais homens de ação, gostam de produzir, de trabalhar. Ademais, são mandões. Na terra de cada um, manda cada um; e ai de quem se meter!

Casa de engenho dos Corrêa de Oliveira, em Goiana

Transmito-lhes algumas de minhas impressões da casa de engenho da família de meu pai, em Pernambuco, quando lá estive. Era uma casa antiga, ainda do tempo colonial, localizada em Goiana. Nesse lugar nasceu um dos maiores brasileiros: Dom Vital Gonçalves de Oliveira, o bispo que lutou contra os inimigos da Igreja no tempo do Império, foi muito perseguido e morreu vítima dessa perseguição. Era um gigante!

Essa residência possuía uma capela própria do tamanho de uma pequena matriz, com imagens coloniais, tudo muito bonito, ligada à casa principal por uma ponte coberta, à maneira da Ponte dos Suspiros de Veneza.

Outrora, a família de meu pai tinha sido muito rica, como todos os donos de engenho de Pernambuco, pois exportavam açúcar para a Europa em quantidade. Contudo, como todas aquelas famílias aparentadas da redondeza, perdeu a fortuna. E a decadência foi tão grande que ruiu a ponte pitoresca, poética entre a capela e a casa, que conduzia diretamente para a parte de cima ocupada pelo órgão, de onde a família assistia à Missa, ficando duas portas abrindo para o vácuo, uma na casa da família e outra na capela.

Nessa casa havia alguns móveis bonitos, sobretudo um relógio do tempo do Império. Mas a “peça-mestra” da residência era meu tio, irmão de meu pai, apelidado de Totonho. Um homem alto, ligeiramente obeso, nariz adunco, olhos penetrantes prontos a percorrer as coisas e registrar, meio quietarrão e comilão ao máximo. Aliás, o pernambucano em geral tem muito bom apetite. Era um homem pobre, mas com uma majestade, um ar de senhorio no modo de olhar admirável. Eu tinha vontade de fotografá-lo.

A família nos ofereceu um almoço pantagruélico. A fazenda ficava perto de um braço de rio, próximo ao mar. A certa altura do dia o mar entrava trazendo mariscos, caranguejos, enfim toda espécie de guloseimas. Quando o mar entrava, os pescadores baixavam uma rede que, com o refluxo, ficava repleta dos mais variados e saborosos frutos marítimos. Tudo sem gasto nem trabalho.

Cultura do espírito

As diversões deles eram as de gente empobrecida também. A fazenda ficava a certa distância da praia. Quase todos aqueles fazendeiros tinham casa na praia, mas construções muito elementares. Chegadas as férias, iam passar uma temporada na praia. Também nessa ocasião vigorava a lei do mínimo esforço. Eles tomavam umas embarcações à noitinha, preparavam sanduíches, comedorias sem as quais o pernambucano não vive, punham dentro dos barcos e iam cantando e tocando viola até amanhecer. Sem fazer o mínimo movimento, porque o rio levava. Não tinha o mínimo risco, porque era uma espécie de canal. Era só cantar, tocar viola, contemplar o luar e comer.

Compreendo que para certos povos isso pareça sem graça, porque não está posto no meio disso o trabalho. Mas se presenciassem a cena entenderiam mais a fundo. Porque durante todo esse tempo, não pensem que se fica ocioso. É um brincar, trocar ditos de espírito, manter um tipo de relação humana que absorve a atenção; é um jogo do espírito que exige da pessoa estar atenta àquilo que faz. Portanto, esse gracejar é um jogo sério do espírito. Não é a piada vagabunda, mas uma coisa dita com inteligência. E por causa disso absorve, e a cultura se desenvolve.

Quem, encontrando uma terra boa trabalha-a e ganha dinheiro, ou enriquece por meio da indústria ou comércio, faz uma coisa louvável, desde que segundo os Mandamentos da Lei de Deus. Entretanto, quem está numa terra que só produz um tipo de fruto, o qual não dá mais dinheiro, como é o caso da cana-de-açúcar, e não tem jeito de ficar rico, o melhor partido que pode tirar da vida é ter uma existência sossegada, mas cheia de cultura. Não a cultura livresca, pela qual o meu entusiasmo é moderado, mas exatamente essa cultura do espírito, que nasce do trato de uns com os outros, da conversa séria, consistente, acompanhada de uma gastronomia esplêndida e sossego. Eu pergunto: não é um “way of life”? Não é um caminho da vida?             v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/3/1987)

Revista Dr Plinio 264 (Março de 2020)

 

1) Principal personagem da peça teatral de Edmond Rostand (*1868 – †1918), “Os três mosqueteiros”.

 

Esplendor da verdade e do bem

Embora entusiasta do conhecimento meramente abstrato, Dr. Plinio afirmava ser necessário, para os seres humanos, sempre uni-lo ao conhecimento concreto. Quando o homem se põe a raciocinar sem recorrer continuamente a exemplos que, à maneira de imagens, ilustram o que está pensando, facilmente ele se perde no vácuo e chega a conclusões abstratas que são perigosas, porque nelas a realidade humana não cabe mais.

 

Vida intelectual, para quem não tem tempo de ler, só se faz com fiapos de elucubração nos interstícios da vida; é uma coisa singular, mas a pessoa martela um ponto, não consegue resolver e de repente, na hora de tomar um chá de hortelã, algo vem à cabeça: É assim!

Agora se deu isso.

O conhecimento intuitivo e a explicitação racional

Eu durante toda a vida tive um problema, que é o seguinte:

Nos círculos comuns de Filosofia escolástica, em São Paulo e outros lugares do Brasil, com quem tive contato outrora, apresentava-se a beleza com uma definição muito correta: é o esplendor do bem.

Mas o que é esplendor?

O indivíduo de espírito banal responderia logo o seguinte: “Você não sabe o que é o esplendor? É intuitivo, qualquer um sabe”.

Este é um ponto no qual alguns patrícios meus não estão de acordo comigo: eu aprecio muito o conhecimento intuitivo, mas considero uma conquista sempre que uma coisa intuitiva se explicita em termos racionais. O resto é preguiça.

Há muitos que não pensam assim e dizem: “É intuitivo, para que pensar sobre isso?” Não! Fazer penetrar a razão dentro do terreno do intuitivo, explicitar e pôr aquilo num raciocínio, se possível fulgurante, é uma coisa magnífica!

Várias vezes tenho me perguntado sobre o que é o esplendor, e não encontrei uma solução que me agradasse inteiramente. Agora, de repente, aqui conversando, não achei a solução, mas o caminho para ela. E, dialogando a respeito do caminho, acabamos por chegar à solução.

Aqui está a coisa nova: O esplendor do bem, para o homem, como é? E para o Anjo? Qual é o conceito de “pulchrum” para o Anjo e qual é esse conceito para o homem? É claro que uma coisa é reversível na outra.

Para que seja conhecimento humano, é preciso que o objeto se apresente normalmente em formas sensíveis, pelo princípio de que nada há no intelecto que não tenha antes passado pelos sentidos.

Portanto, quando uma coisa se apresenta ao homem muito esplendorosamente, mas aquele esplendor não passou pelos sentidos, ele não sossega enquanto, por uma espécie de “conversio ad phantasmata”(1), não encontra uma forma sensível de exprimir o “pulchrum” que ele concebeu do lado intelectivo.

A beleza do raciocínio

E propriamente há para o ser humano duas espécies de esplendor: um intelectivo e outro sensível. Ambos são indispensáveis. Para o Anjo é indispensável apenas o esplendor intelectivo; por exemplo, uma bela disposição de alma.

Além disso, há uma forma de “pulchrum” dotada de um esplendor próprio correspondente à parte racional, o qual se põe para o homem, à primeira vista, de um modo trivial.

Quando o indivíduo se alça a uma consideração muito elevada, sente uma espécie de esplendor de si mesmo, sem ser vaidoso. Pode facilmente tornar-se vaidoso, mas não é vaidoso de si. Ele sente uma espécie de esplendor pelo fato de ter conseguido elaborar aquele raciocínio. A beleza do raciocínio, enquanto esforço, fá-lo ver a beleza de sua alma e da operação realizada por ela. E isso é o primeiro esplendor.

O raciocínio difícil, que chega a gerar uma verdade, tem uma beleza operativa como a de um alpinista que sobe a montanha e fica encantado de ter conseguido galgar o cume. De maneira que, antes mesmo de olhar o panorama, ou enquanto o contempla, ele é alternativamente seduzido pela beleza do ato que praticou e pela pulcritude do panorama que tem diante dos olhos.

Nisso já entra uma espécie de beleza que é a pura pulcritude intelectual, quer dizer, a beleza com que o espírito vê o fulgor da operação intelectual, e que é o esplendor do bem, porque aquela operação intelectual é boa, é um bem em si, pois é reta e conforme a natureza.

Um modo de conhecer e de amar

Depois entra uma coisa mais profunda, que não é apenas operação intelectual, mas é propriamente o belo daquilo que foi pensado. São três coisas distintas: o belo sensível, o belo operativo para chegar ao resultado e o belo do objeto abstrato que se viu.

A meu ver, a mais alta semelhança com Deus não está nas coisas sensíveis, mas naquelas que o homem conhece e não são sensíveis. Estas têm uma beleza por onde, contempladas, deixam ver algo de Deus que as coisas sensíveis não conseguem; e, na ordem do criado, constituem o que mais altamente dá ao homem algo de parecido com a visão beatífica. Não é a visão beatífica, pois esta é sobrenatural, e o ato de que tratamos é natural. Mas é o ato natural que mais se parece com a visão beatífica. Razão pela qual ali se capta a maior beleza.

O que é aí beleza? É o esplendor do bem pelo qual ele é parecido com Deus. É o perceber algo que tem nexo com Deus.

Então o esplendor da verdade ou o esplendor do bem é o aparecimento — por via simbólica, quer dizer, da semelhança — de algo de análogo a Deus, e que é mais possante na concepção puramente espiritual do que na física, mas que nesta última também se deixa notar. O esplendor é a “deiformidade” da coisa que aparece.

O esplendor é essa participação enquanto vista e conhecida. Se fosse uma participação que nenhuma criatura conhecesse, não sei se ela poderia se chamar esplendor. É a beleza de Deus enquanto cognoscível pela criatura e historicamente participada.

Um equívoco que precisaríamos evitar é o de julgar que o esplendor é o único modo de conhecer, pois pode ficar a impressão de que o esplendor e a cognição são de tal maneira idênticos, que o esplendor é a única forma de cognição. Eu vejo o esplendor como uma alça, porque ele é um modo de conhecer e amar.

Ademais, tomado no sentido comum, em que é considerado como uma espécie de adjetivo e não de substantivo — e, portanto, não como subsistente por si, mas como a propriedade de algo —, o esplendor é um estado da bondade ou da verdade. Mas ele não tem uma existência em si distinta, como a bondade e a verdade têm.

A coragem em geral

Um ato moral bom pode, de vez em quando, emitir uma centelha de belo muito grande. Por exemplo, a coragem. Há um “pulchrum” próprio da coragem, que é o “pulchrum” moral em matéria de coragem. O que é o “pulchrum” aí?

O “pulchrum” — para dar a mais rasa das explicações, mas necessária para chegar até as outras — é a propriedade que tem um ato moral de se exprimir em termos estéticos, em termos de beleza para alguém, de maneira tal que psicologicamente a pessoa fica encantada com aquilo e toda a sua sensibilidade fica arrastada para aquilo. É, portanto, uma propriedade do ato moral que se reveste de aparências sensíveis, autênticas — não são falsas, são verdadeiras —, que atingem a sensibilidade e fazem a sensibilidade vibrar em uníssono com tudo quanto o raciocínio diz de meritório sobre aquilo.

Então, o que foi o esplendor aí? Foi o aparecimento no ato moral de uma certa luz, e no espírito humano de uma certa ótica, por onde a luz e a ótica se encontraram, e que deu este efeito que estou descrevendo aqui em termos psicológicos.

Há um outro aspecto da questão, que é o seguinte:

Meu espírito já conhecera intelectivamente o bom da coragem. E não só da coragem, mas daquela coragem plena, que é do general, uma coragem de alma e não apenas do corpo: é a coragem do mando, de tomar a responsabilidade, de correr o risco, de passar por derrotado, de ficar desmoralizado aos olhos dos outros, mas de enfrentar aquilo, juntamente com a coragem de arriscar a vida. É, portanto, uma coragem mais plena.

Esta coragem, intelectivamente, eu conhecia. E sabia, pelo raciocínio, ser ela meritória, porque corresponde a tais ordenações internas boas e à finalidade da ação militar, que é de fazer prevalecer o direito de uma causa ou de uma nação. Então vejo nisso uma série de coisas boas.

Mas no momento em que — pelo gesto do Condé na famosa pintura representando a batalha de Rocroi(2), por exemplo — percebi o fulgor, ao conhecer o símbolo acrescentou-se algo sensível a tudo quanto eu conhecia de modo puramente intelectivo a respeito da coragem.

É que minha inteligência, sendo de homem e não de Anjo, embora eu possa ter um conhecimento muito límpido e muito correto do que é a coragem em abstrato, se eu não tiver vários símbolos da coragem conhecidos por mim, o conhecimento humano eu não possuo, porque este supõe imagens sensíveis que eu reverta nas espirituais.

Há, portanto, um complemento de reversibilidade que é o momento no qual o indivíduo que possuía o conceito abstrato, tendo agora o fulgor, soma o fulgor ao conceito abstrato para compor a cognição inteiramente humana.

Assim, passada a batalha, o indivíduo que participou dela gostará de ver os quadros pintados, as descrições literárias — poéticas ou em prosa —, as narrações históricas, sem pretensão literária, da batalha. Assim ele verá melhor expresso coisas que ele sentia, mas não sabia dizer; e que, enquanto não sabia explicitar, não conhecia, porque o homem só conhece inteiramente o que sabe exprimir.

A coragem de Nosso Senhor Jesus Cristo

Aqui se tem o primeiro grande passo no bloco da cognição. Há um passo mais fino que é o seguinte:

Pelo próprio senso do ser, o indivíduo que assim conhece algo, feita a operação que acabo de expor, sente uma plenitude e, ao mesmo tempo, um vazio, devido à percepção de que aquilo poderia ser ainda melhor.

E nessa ideia de que aquilo poderia ser melhor, ele tem uma sede do melhor, uma admiração pelo que conheceu, a qual lhe dá mais fome de conhecer uma certa perfeição que, à medida que ele vai fazendo essa operação primeira, a noção de perfeição vai saindo da penumbra e ele vai explicitando como seria a perfeição total.

Fazendo reversibilidades de formas, de impressões, com coisas teóricas, o homem pode subir a um auge difícil de imaginar.

Por exemplo, algo que eu gostaria de fazer, se tivesse tempo: a história da coragem, com todas suas modalidades e belezas; a antologia da coragem. Se eu realizasse isso, chegaria, através de várias operações como descrevi, à ideia de uma certa coragem que não houve na natureza humana, porque é uma coragem de que Anjos seriam capazes, e não homens. Eu teria subido à trans-esfera. E, por via de hipótese, de analogia, subiria até aquilo que Deus não fez, isto é, os seres criados “ab æterno”. Então nossa cognição teria chegado, nessa matéria da coragem, ao mais alto que se pode atingir.

Eu deixo de lado um assunto supremo, divino, porque no momento não seria fácil instalá-lo com toda a adequação possível: a coragem e todas as outras virtudes de Nosso Senhor Jesus Cristo. Porque nós não podemos raciocinar como se Ele não Se tivesse feito carne e não tivesse habitado entre nós.

Mas desde já é preciso dizer que Ele foi o mais corajoso dos filhos dos homens, em certo sentido da palavra. O Redentor veio dar exemplo de certo tipo de coragem, dentro do qual está implícita toda forma de coragem com uma superação incomparável. Mas não está necessariamente com a forma de sensibilidade de que estamos tratando aqui.

De maneira que é preciso tratar o tema com muito respeito, muita reverência, muito tato, para caber bem dentro do assunto.

União entre o conhecimento abstrato e o concreto

O até aqui exposto nos oferece algumas noções de esplendor. O que é, pois, esplendor? É uma percepção — em geral, não necessariamente inesperada — muito intensa de uma beleza que se vê, quando o conceito abstrato e a forma concreta se juntam para explicar uma mesma excelência metafísica profunda. Aqui está a definição que procurávamos no começo da reunião.

Nós estamos estudando o bem e o sensível, a verdade e o sensível. Quando o bem é eminentemente bom, a verdade é eminentemente boa, e se dá essa reversão — ela existe ontologicamente —, quando esta é percebida o homem nota um esplendor.

O esplendor é uma coisa que existe na ordem concreta dos fatos, não é uma criação da vista ou imaginação do ser humano. O homem o percebe de vez em quando. Esse esplendor não é necessário à ordem angélica, mas sim à ordem humana.

A meu ver, há duas formas de esplendor. Um da linguagem corrente, ao qual nos referíamos há pouco, e que é a magnificência do “pulchrum” resultante da magnificência do “verum e do bonum”.

Mas há outro sentido da palavra esplendor, que é um esplendor, por assim dizer, didático, por onde a coisa considerada toma uma tal clareza que, de confusa que era, salta aos olhos como uma evidência, causando um efeito parecido com o esplendor, embora não o seja propriamente.

E, às vezes, quando se dá o casamento entre o conceito abstrato e a forma sensível — mesmo quando estes não dizem respeito a algo de ontologicamente esplêndido —, há uma evidência do “verum” e do “bonum” que estão ali, a qual, enquanto evidência de algo minor, se chamaria esplendor por um esticar quase ilegítimo da palavra. Uma refulgência que já não seria o esplendor, mas fruto também ela deste encontro entre o conceito abstrato e a realidade, quando se dá em coisas não excelentes. E aí se esclarece tudo perfeitamente. Portanto, o que se diz criteriologicamente esplendor, pode se afirmar também, “servatis servandis”(3), dessa refulgência didática.

Visão beatífica e Céu empíreo

A propósito disso, podemos tratar do esplendor que decorre da analogia entre coisas diversas. Uma dessas analogias, que de tão grande se tornou banal, é a que se costuma fazer entre o rei e o Sol. Ambos os conceitos se revertem. Pode-se dizer que o Sol nos ajuda a compreender um rei e que, reversivelmente, a imagem do rei ajuda-nos a entender a relação que o Sol tem com outras realidades.

Há nisso uma reversibilidade que emite uma beleza própria. E quanto mais ousado o salto entre uma criatura e outra, maior é a beleza do fulgor que transparece.

No que, por exemplo, o “verum” ou o “bonum” da situação do rei se transplanta para o “pulchrum”? As relações humanas não são capazes de agradar os sentidos como certas outras criaturas. De maneira que um tratado que nos faça ver qual é o papel da realeza num país, pode mostrar-nos o “verum” e o “bonum” presentes na realeza. Mas se o indivíduo, pela primeira vez, vê uma comparação com o Sol capaz de fazer entender bem o “pulchrum” da realeza, neste “pulchrum” ele compreende melhor o “verum” e o “bonum”. Assim, de fato, a imagem do Sol dá o esplendor da verdade e o esplendor da bondade.

Quando o homem se põe a raciocinar, sem se fazer acompanhar continuamente por algo à maneira de imagens daquilo que está pensando, facilmente se perde no vácuo e sai para conclusões abstratas que são perigosas, porque nelas a realidade boa e cotidiana, humana, não cabe mais.

Ele envereda, então, por uma espécie de pseudo-angélico, a respeito do qual há em mim um pavor e uma preocupação constante de me apoiar no real, que constitui uma segunda natureza, por hábito. É uma “bengala” sem a qual não dou um passo.

Por isso, parece-me que raciocinar sem estar relacionando toda ideia abstrata com o concreto, o tempo inteiro, não se obtém, de fato, o equilíbrio.

Só depois de encontrarmos com segurança o caminho, será bom fazermos, tanto quanto possível, também a exposição em termos meramente metafísicos.

Na cognição humana há algo por onde ela é incompleta. Não à maneira de um aleijado, nem por causa do pecado original, mas por ser o homem um composto de corpo e alma, apenas por isso. De sorte que, por um lado, o homem sacia o espírito na Metafísica e, por outro, no próprio campo da Metafísica ele precisa de uma complementação não metafísica para compreender bem a coisa.

Por vezes, a condição de contingência é apresentada quase como enfermiça e dolorosa, como um pecado original, com a insinuação de que quando o indivíduo vir Deus face a face, no Céu, seu espírito, na ordem natural, se retifica e torna-se um espírito de Anjo.

Ora, nada disso é verdade.

Sem dúvida, Deus pode revelar-Se diretamente ao espírito, ao conhecimento do homem, com plenitude e perfeição; e o fará na visão beatífica. Mas esta é uma operação sobrenatural na nossa mente, a qual, por sua natureza, continua incapaz.

Surge, assim, com muita propriedade, a ideia do Céu empíreo, com todas as suas delícias, para satisfazer a nossa mente, como esta é naturalmente, para ela não ter apenas um deleite sobrenatural — de fato imensamente superior ao natural —, mas possuir também o deleite natural que o acompanhe.

Daí a necessidade de uma cultura terrena como complemento da instrução religiosa nesta Terra; e da sociedade temporal acolitando a sociedade espiritual, para uma missão de alunos que explicam para outros alunos a aula do professor.

Assim a sociedade temporal, que é discente, explica o “verbo” da Igreja para os componentes da sociedade temporal, utilizando-se das metáforas da natureza.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/2/1984)

Revista Dr Plinio (Março de 2014)

 

1) Do latim: volta às representações imaginárias. Refere-se à doutrina de São Tomás de Aquino, segundo a qual o ser humano necessita reportar-se ao sensível para adquirir o pleno conhecimento (cf. S. Th. I, q. 86, a. 1).

2) Em 19 de maio de 1643. Combate no qual o exército francês, liderado pelo Duque d’Enghien (futuro Príncipe de Condé) derrotou as tropas espanholas.

3) Do latim: conservadas as coisas que devem ser conservadas.

Nada é tão necessário, útil, doce e glorioso!

Na Idade Média, uma homilia sobre a Cruz e os novíssimos do homem comovia as pessoas, e muitas vezes os pecadores mudavam de vida. Entretanto, a Revolução instaurou nas almas tal forma de dureza, de frieza, que em nossos dias os homens não se interessam por esses temas fundamentais.

 

Continuação dos comentários sobre a “Carta-circular aos Amigos da Cruz”, de autoria de São Luís Maria Grignion de Montfort(1).

Se Deus nos tratasse apenas com justiça, mereceríamos o Inferno

[20] “Crucem”, a cruz; que ele a leve, pois nada existe que seja tão necessário, tão útil, tão doce ou tão glorioso quanto sofrer alguma coisa por Jesus Cristo.

Então, necessário, útil, doce e glorioso; são quatro proposições. São Luís Grignion vai começar por provar como é necessário.

  1. a) Nada tão necessário — para os pecadores!

[21] Com efeito, queridos Amigos da Cruz, sois todos pecadores; não há um só dentre vós que não mereça o Inferno, e eu mais que ninguém. É preciso que nossos pecados sejam castigados neste mundo ou no outro; se o forem neste, não o serão no outro.

Essa afirmação de que todos nós mereceríamos o Inferno pode parecer uma demasia, uma coisa maluca e, entretanto, não é. Ela se baseia na ideia de que nenhum homem é capaz, por si mesmo, de corresponder à graça de Deus, constantemente, durante a vida inteira. Não se trata aqui da possibilidade do homem agradar a Deus com a graça, mas é uma outra ideia: se a graça for dada ao homem parcimoniosamente, apenas a graça suficiente, ele faz dela um tão mal uso que acaba desmerecendo-a e, portanto, perde-a, e por isso merece o Inferno. Nesse sentido, só quem não teria merecido o Inferno seria Nossa Senhora, porque Ela, em todos os dias de sua vida, correspondeu de um modo perfeito às graças que Deus lhe dava. Então, isto coincide com a metáfora apresentada por São Luís, segundo a qual todo homem é como o sapo, a serpente, o porco(2).

Então, é coerente que ele ache que todos os homens mereceriam o Inferno se Deus os tratasse, não com misericórdia, mas apenas com justiça. Essa noção é fundamental numa visão contrarrevolucionária das coisas, como é fundamental na própria doutrina católica.

Trata-se da compreensão da maldade fundamental do homem e, portanto, de como devemos viver de pé atrás em relação aos outros, e em relação a nós mesmos. E isso vale também para os santos. Por essa razão, São Luís de Montfort diz que ele mesmo, se não fosse a misericórdia de Deus, teria ido para o Inferno.

Somos filhos da misericórdia

Alguém objetará: “Mas, Dr. Plinio, isso não está em contradição com as palavras de São Paulo, antes de morrer: ‘Combati o bom combate…’?(3)” A resposta é muito simples: não está nem um pouco em contradição. São Paulo não diz que ele conseguiu combater o bom combate e fazer o percurso todo da pista por mera justiça de Deus. Ele faz tal afirmação, mas sem entrar na indagação. É claro que o conseguiu pela misericórdia. Se Deus não tivesse sido misericordioso, ele não conseguiria preencher as condições que lhe davam, em justiça, o direito ao Céu. De maneira que o Paraíso é devido, em justiça, à alma que morre bem, mas é por causa da misericórdia que a alma morre bem, de maneira que todos nós somos filhos da misericórdia, e com a mera justiça nós nos perderíamos.

A esse propósito é preciso dizer — eu insisto um pouquinho nesse ponto — que não é uma doutrina muito esplanada, em geral. Creio que vale a pena desenvolver esse assunto. A doutrina que não se ensinava, mas ao menos se insinuava no meu tempo de aluno de colégio, era essa: Deus me dá a graça suficiente. Eu correspondendo inteiramente à graça — o que está inteiramente em meu poder — obtenho, em justiça, mais graças. Assim, vou merecendo do Altíssimo promoção e mais promoção, até o estado em que deverei ficar quando eu morrer. E aí eu me apresento perante Deus com um sorriso, de igual a igual, e com um cheque na mão. Quer dizer: “Eu fiz, eu mereci, agora cumpra sua palavra, honre sua promessa, porque realizei o que era de minha parte”.

Isso não é verdade. Eu sou filho da misericórdia. Com a graça suficiente — que é suficiente mesmo! — eu poderia corresponder bem; mas é certo que não vou corresponder, e fico, portanto, em débito perante Deus. E se não houver uma intervenção contínua da misericórdia, a restaurar aquilo que usei mal, não vou para o Céu. E isso comanda as minhas orações com o Criador. É um colorido que entra em todas as perspectivas de minhas relações com Deus. Estou continuamente precisando da misericórdia d’Ele. E é por isso que se veem os maiores santos morrerem, recomendando-se à misericórdia do Altíssimo. Não é por um ato de humildade.

Quer dizer, se no fundo de minha cabeça eu penso que vou me salvar por justiça mesmo — e me impondo à justiça de Deus, mas, em última análise, vou ser humilde e direi ao Criador que tenha compaixão de mim —, estou errado. Deus precisa ter compaixão de mim para que eu me salve, senão não me salvo. Ou seja, a salvação é uma obra da misericórdia de Deus.

Misericórdia e espírito conservador; o papel de Nossa Senhora

Alguém poderia perguntar: “Compreende-se que a justiça tenha fundamento em Deus, mas que fundamento tem no Criador a misericórdia?”

Não sei se os presentes neste auditório se lembram de uma conferência, na qual eu mostrava que a virtude da misericórdia e o espírito conservador são coisas conexas. Todo artista, por exemplo, gosta de conservar as suas obras de arte porque são reflexos dele; de maneira que, se uma delas se estraga, ele por amor a si mesmo trabalhará para conservar essa obra de arte. Ora, cada um de nós é uma obra de arte irrepetível de Deus. E Ele, por amor ao plano que teve ao criar aquela obra de arte, condescende em restaurá-la, e nisso está a misericórdia do Criador. Não é um direito da obra de arte ser restaurada por Ele.

E é por isso que Deus usa para conosco de um espírito conservador, na misericórdia. A misericórdia e o espírito conservador são a mesma coisa. E o homem, querendo que tudo que existe e possa continuar a existir, continue a existir, é conservador; quer dizer, essa espécie de amor a tudo quanto existe é uma perfeição, que no homem é análoga à perfeição de Deus enquanto misericordioso. De maneira que o verdadeiro misericordioso é conservador; e o verdadeiro conservador é o homem de misericórdia. Essas são noções conexas e que dão a ideia da misericórdia divina. É dessa misericórdia que eu vivo; não vivo da justiça de Deus.

Aí também se compreende melhor o papel de Nossa Senhora. Porque a misericórdia é um dom. Se é preciso ter esse dom, deve-se pedi-lo. Mas só poderei ser atendido por misericórdia. Como posso obter misericórdia se eu não pedir? A solução é rogar a Nossa Senhora, cuja oração é perfeita e imaculada, que reze por mim. E, se Ela rezar por mim, poderei ter certeza de que serei atendido. Então, Nossa Senhora é a ponte entre Deus e os homens; é o canal da misericórdia d’Ele; uma pessoa que o Altíssimo criou para que a misericórdia d’Ele se realizasse de um modo esplêndido. Ela é Mãe de misericórdia.

É melhor sermos castigados nesta vida do que na outra

Compreendemos, assim, como toda a nossa vida espiritual é filha da misericórdia. E uma vida espiritual que faça abstração disso se torna insuportavelmente pesada, dura, fria. Se tivermos apenas a ideia de um Deus justo em relação a nós, é-nos impossível amá-Lo. Precisamos compreender que Ele é um Deus misericordioso, que condescende conosco, tem pena de nós, perdoa as nossas faltas. É essa ideia de Deus misericordioso, que São Luís Grignion inculca e está subjacente nesse trecho.

Então, diz ele que é melhor sermos castigados nesta vida, do que na outra. Portanto, as cruzes afastam de nós o Inferno.

Se Deus os castigar neste mundo de concerto conosco, sua punição será amorosa. Quem há de castigar será a misericórdia, que reina neste mundo, e não a justiça rigorosa; o castigo será leve e passageiro, acompanhado de atenuantes e de mérito, seguido de recompensas no tempo e na eternidade.

Quando formos julgados no fim do mundo, termina o reino da misericórdia e começa o da justiça. As pessoas serão depois enviadas para o Inferno ou para o Céu, de acordo com o “veredictum” final, que é da justiça. Ora, afirma São Luís, se nós formos castigados neste mundo — ainda não é o reino da justiça, mas da misericórdia —, então, virão mil cruzes, mas consentidas por nós, com atenuantes, com mil provas de amor; enquanto que no Inferno o tormento é eterno, que nem sequer merece o nome de cruz.

[22] Mas, se o castigo necessário dos pecados que cometemos for reservado para o outro mundo, a punição caberá à justiça vingadora de Deus, que leva tudo a fogo e sangue! Castigo espantoso, “horrendum”, inefável, incompreensível: “quis novit potestatem iræ tuæ”? — Quem conhece o poder de tua cólera?(4) Castigo sem misericórdia, “judicium sine misericórdia”(5), sem piedade, sem alívio, sem méritos, sem limite e sem fim.

É o castigo do Inferno.

“Sim, sem fim: esse pecado mortal de um momento, que cometestes, esse pensamento mau e voluntário, que escapou a vosso conhecimento(6), essa palavra que o vento levou, essa açãozinha contra a Lei de Deus, que durou tão pouco, serão punidos eternamente, enquanto Deus for Deus, com os demônio no Inferno, sem que o Deus das vinganças tenha piedade de vossos soluços e de vossas lágrimas, capazes de fender as pedras! Sofrer para sempre sem mérito, sem misericórdia e sem fim!

Ele coloca esta antítese: os sofrimentos desta vida e os sofrimentos do Inferno.

O Purgatório

[23] Será que pensamos nisso, queridos irmãos e irmãs, quando sofremos alguma pena neste mundo? Como somos felizes por podermos trocar tão vantajosamente uma pena eterna e infrutífera por outra passageira e meritória, carregando nossa cruz com paciência!

Quantas dívidas temos a pagar! Quantos pecados temos, para cuja expiação, mesmo após amarga contrição e confissão sincera, será preciso que soframos no Purgatório durante séculos inteiros, porque nos contentamos, neste mundo, de penitências leves demais!

Então, ele passa a falar do Purgatório.

Ah! paguemos neste mundo, de forma amigável, levando bem nossa cruz! Tudo deverá ser pago rigorosamente no outro, até o último ceitil, mesmo uma palavra ociosa(7). Se pudéssemos arrebatar ao demônio o livro de morte, onde anotou os nossos pecados todos e a pena que lhes corresponde, que grande “debet”(8) verificaríamos, e como nos sentiríamos encantados em sofrer durante anos inteiros neste mundo, para não sofrer um só dia no outro!

Esse é um pensamento que a pessoa deve ter quando sofre. A maior parte dos homens, quando tem um sofrimento, sofre inconformada; não se lembra do Inferno, do Purgatório. Entretanto, a pessoa deve dizer: “Como me alegro de sofrer! Estou padecendo agora, mas esse sofrimento vai me tirar outro, mil vezes pior. Esse padecimento, por pior que seja, afinal de contas acaba. E o sofrimento nesta Terra é menos ruim do que no Purgatório, para não falar no Inferno”.

Então, com espírito de Fé, com amor, devemos abraçar esse pensamento, e cada vez que sofremos precisamos aceitar de bom grado esse sofrimento.

Modorra do homem contemporâneo diante dessas verdades

A respeito disso, há uma coisa curiosa e que faz parte da crise religiosa do Ocidente. Quando um pregador dizia coisas dessas, na Idade Média, as pessoas se comoviam, os pecadores muitas vezes se arrependiam, mudavam de vida. Eu não sei o que aconteceu, o que caiu sobre o gênero humano, mas essas verdades tão fundamentais — que todos nós deveríamos amar — encontram uma espécie de modorra no homem contemporâneo, e mesmo nos homens piedosos. Enquanto que os santos meditavam essas verdades com delícias.

E eu tenho uma certa vergonha de desenvolver isso aqui, com a sensação de estar tratando de uma coisa tão banal, tão sabida, que as pessoas se espantam ao ouvir o que estou dizendo. Entretanto, se formos analisar, o proveito que tiramos para a nossa vida espiritual é muito bom. “Meditai em vossos novíssimos e não pecareis eternamente”(9). Os novíssimos do homem, as últimas coisas que lhe sucederão, são quatro: a morte, o Juízo, o Céu e o Inferno.

Não sei o que há, mas a meditação sobre a bem-aventurança do Céu, a visão beatífica, com todos os mil enlevos que deveriam decorrer daí, tudo isso acabou ficando como fonte estancada; procura-se tirar dela alguma água para a vida espiritual, porém as almas não se abeberam nem se dessedentam com isso.

Entretanto, pensamentos às vezes menos importantes, menos nobres, produzem um efeito maior do que o causado por tal meditação.

Ora, para quem tem Fé não é razoável que isso seja assim. O que pode mover mais alguém a aceitar a cruz do que isso? Entretanto, acaba sendo — e tenho impressão que os presentes neste auditório sentem isso na própria pele — que isso não move as pessoas; parece que a fonte está seca, se estancou.

Vemos aqui o mistério da dureza que a Revolução fez cair sobre os homens. Porque essa atitude de alma do homem contemporâneo é a mesma com relação à Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, à meditação sobre o amor misericordioso d’Ele, sobre a Sagrada Eucaristia. Por exemplo, Deus está na Sagrada Eucaristia, continuamente oferecendo reparações por nós, mas não há quase ninguém que vá adorá-Lo.

Essas meditações dizem pouco às pessoas. Entretanto, isto é o melhor suco, o melhor leite da vida espiritual, a flor de trigo da piedade. São os pensamentos inspirados por Nosso Senhor para nos salvar. Nossa Senhora ditou a Santo Inácio, em Manresa, meditações a respeito desses temas sobre os quais acabo de falar. Entretanto, qualquer coisa secou.

Cogitações ao passar em frente da Igreja da Consolação, à noite

Às vezes, por exemplo, quando estou voltando à noite de um restaurante, o automóvel passa em frente da Igreja da Consolação e a pequena distância das janelas da capela do Santíssimo; ali dentro está o tabernáculo. E faço pequenos comentários: que maravilha deve estar se passando dentro dessa capela!

É uma capela qualquer do Santíssimo Sacramento, à noite, no auge da solidão. Pensar nas coisas inenarráveis que Nosso Senhor está dizendo para as outras Pessoas da Santíssima Trindade! Nos Anjos e nos Santos que estão ali presentes, pelo menos pela atenção e pelo espírito, adorando-O! E aquela lamparina vermelha com a luzinha acesa; aquele silêncio próprio de capela do Santíssimo, onde os menores estalidos se ouvem, os ruídos da rua passam cortando o ar, como se fossem profanações, mas cessam também e continua um longo silêncio grosso de abandono, de recolhimento, de soledade — que coisa magnífica a soledade! É um silêncio assim que impregna a capela.

Como eu gostaria de poder abrir àquela hora da noite a igreja, entrar sozinho na capela do Santíssimo Sacramento e ficar o resto da noite rezando lá. E o ideal é ir sozinho, sem mais ninguém, para termos a sensação de que Nosso Senhor está ali só para nós, de que Ele não presta atenção em mais ninguém, e de que penetramos, a bem dizer, no Coração de Jesus. E ter ali uma imagem de Nossa Senhora, diante da qual possamos rezar. E até às primeiras claridades da aurora, ficarmos envoltos nesse mistério, nesse fluxo de orações que há ali dentro. Isso é uma coisa verdadeiramente celeste. Ainda que seja algo insensível, sabemos que é assim.

Alguém dirá: “Mas Dr. Plinio, que diferença faz noite e dia? O senhor pensa que Nosso Senhor adora menos ao Padre Eterno durante o dia do que à noite? E que nossos miseráveis barulhinhos terrenos são capazes de perturbar a Ele?”

Certas coisas não se sofismam assim… Por exemplo, São João Batista e Nosso Senhor iam para o deserto rezar. Deus está tão presente nos desertos quanto nas cidades. Mas há uma graça da solidão total no deserto, onde se tem a impressão de que o Altíssimo, na solidão d’Ele, se manifesta melhor ao homem que está só. E que o Criador abraça o homem, e o homem como que pode também abraçá-Lo melhor. E este é exatamente o deserto eucarístico, que é uma capela do Santíssimo Sacramento à noite.

E se não fosse chamar a atenção, eu teria vontade de, numa noite, mandar parar o automóvel bem junto à parede da capela do Santíssimo, e ficar adorando Nosso Senhor do lado de fora. São coisas tão verdadeiras e tão evidentes!

Se prestarmos atenção nos automóveis que passam por ali a toda velocidade, podemos perguntar qual é a alma que se lembra de Deus e seja capaz de fazer, pelo menos, uma jaculatória ao Santíssimo Sacramento.

Pior! Muitas daquelas pessoas estão voltando do pecado, ou indo para o pecado; vão descansar para pecar, ou descansar do pecado. E no meio daquela praça, com aquele trânsito todo, está a Igreja da Consolação; então, o abandono de Nosso Senhor fica ainda mais pungente!

Por que isso ocorre? Porque essas coisas acabaram um tanto gastas. Mas o gasto não está nelas e sim em nós, porque elas são insondáveis, eternas. Por que isto está gasto em nós? Que mistério houve para que essas coisas sumamente tocantes tenham deixado de tocar?

E é claro que este gasto é o resultado do pecado de Revolução. Quer dizer, a Revolução instaurou na alma humana uma forma de dureza, de frieza, que gastou essas coisas e fechou as almas para isso.

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 26/8/1967)

 

1) Outros trechos comentados por Dr. Plinio encontram-se nos números 109, 112, 113, 114, 115, 116, 118, 122, 123, 127, 184, 186 desta Revista.

2) Cf. Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, n. 79.

3) 2Tm 4, 7.

4) Sl 89, 11.

5) Tg, 2, 13.

6) Nota da edição de 1954: Isto é, que esquecestes por falta de exame.

7) Mt 12, 36.

8) Do latim: dívida.

9) Eclo 7, 40.